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Uma teoria do Direito Administrativo

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Gustavo Binenbojm 
Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito 
da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Público, UERJ. Master of Laws 
(LL.M.), Yale Law School (EUA). Professor dos cursos de pós-graduação 
da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ). Professor da Escola da 
Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. Procurador do 
Estado, advogado e parecerista no Rio de Janeiro. 
UMA TEORIA DO DIREITO 
ADMINISTRATIVO 
Direitos Fundamentais, Democracia 
e Constitucionalização 
3ª Edição 
Revista e Atualizada 
RENOVAR 
Aio de Janeiro 
2014 
CAPÍTULO I 
A CRISE DOS PARADIGMAS DO DIREITO 
ADMINISTRATIVO 
1.1. A outra história do direito administrativo: do pecado autori­
tário original à constituição de uma dogmática a serviço dos 
donos do poder. 
Narra a história oficial que o direito administrativo nasceu da 
subordinação do poder à lei e da correlativa definição de uma pauta 
de direitos individuais que passavam a vincular a Administração 
Pública.2 Essa noção garantística do direito administrativo, que se 
teria formado a partir do momento em que o poder aceita subme­
ter-se ao direito3 e, por via reflexa, aos direitos dos cidadãos, ali­
mentou o mito de uma origem milagrosa4 e a elaboração de catego-
2 V., por todos, Caio Tácito, Evolução Histórica do Direito Administrativo, in 
Temas de Direito Público, vol. 1, 1 997, p. 2. 
3 Neste sentido, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, 
vol. I, 1 994, p. 1 48 . 
4 Textualmente, esta é a expressão utilizada por Prosper Weil para explicar o 
surgimento do direito administrativo . V. O Direito Administrativo, 1 977, p. 
7 /l O: "A própria existência de um direito administrativo é em alguma medida 
fruto de um milagre. O direito que rege a actividade dos particulares é imposto 
a estes de fora e o respeito pelos direitos e obrigações que ele comporta encon­
tra-se colocado sob a autoridade e a sanção de um poder exterior e superior: o do 
Estado. Mas causa admiração que o próprio Estado se considere ligado (vincula­
do) pelo direito. ( . . . ) Não esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do 
Estado pelo direito é relativamente recente e não está ainda terminada por toda 
a parte. ( . . . ) Fruto de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto, 
9 
rias jurídicas exorbitantes do direito comum, cuja justificativa teó­
rica seria a de melhor atender à consecução do interesse público. 5 
A cada ano, repetimo-nos a nós mesmos e a nossos alunos a 
mesma fábula mistificadora: a de que a certidão de nascimento do 
direito administrativo foi a Loi de 28 do pluviose do ano VIII, edi­
tada em 1 800, organizando e limitando externamente a Administra­
ção Pública.6 Tal lei simbolizaria a superação da estrutura de poder 
do Antigo Regime, fundada não no direito, mas na vontade do so­
berano (quod regi placuit lex est) . A mesma lei que organiza a estru­
tura da burocracia estatal e define suas funções operaria como ins­
trumento de contenção do seu poder, agora subordinado à vontade 
heterônoma do Poder Legislativo. 
Dentro da lógica da separação dos poderes, ao Parlamento, 
como veículo de expressão da vontade geral, caberia o primado na 
elaboração das normas jurídicas, que não só limitariam como 
preordenariam a atuação dos órgãos administrativos . À Adminis­
tração restaria, assim, uma função meramente executiva, de cum­
primento mecânico da vontade já manifestada pelo legislador. Sur­
ge, destarte, a ideia da legalidade como vinculação positiva à lei: se 
aos particulares, em prestígio e valorização de sua autonomia públi­
ca e privada, é permitido fazer tudo aquilo que não lhes for vedado 
pela lei, à Administração Pública cabe agir tão-somente de acordo 
com o que lei prescreve ou faculta. Esta descrição romântica do 
fenômeno de surgimento do direito administrativo é acolhida por 
ninguém menos que Caio Tácito. Confira-se sua narrativa: 
"O episódio central da história administrativa do século XIX é a 
subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como ex­
pressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indivíduos como 
sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa 
onde principia a vedação legal. O Executivo opera dentro dos limi­
tes traçados pelo Legislativo, sob a vigilância do Judiciário. "7 
por um prodígio a cada dia renovado. ( . . . ) Para que o milagre se realize e se 
prolongue, devem ser preenchidas diversas condições que dependem da forma 
do Estado, do prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo." 
s Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo, Curso de Direito Adminis-
trativo, 1 999, p. 56/58 . 
6 Guido Zanobini, Corso di Diritto Amministrativo, 1 947, vol. I, p. 3 3 . 
7 Caio Tácito, Evolução Histórica do Direito Administrativo, in Temas de 
Direito Público, vol. I, 1 997, p. 2 . 
1 0 
Tal história seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fos­
se falsa. Descendo-se da superfície dos exemplos genéricos às pro­
fundezas dos detalhes, verifica-se que a história da origem e do 
desenvolvimento do direito administrativo é bem outra. E o diabo, 
como se sabe, está nos detalhes. 
A associação da gênese do direito administrativo ao advento do 
Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França 
pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica 
de um discurso de embotamento da realidade repetido por suces­
sivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou 
ilusão garantística da gênese. 8 O surgimento do direito administra­
tivo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do inte­
resse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, 
insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras) , repre­
sentou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas 
administrativas do Antigo Regime que a sua superação . A juridici­
zação embrionária da Administração Pública não logrou subordiná­
la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato 
retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cida­
dãos. 
O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à 
vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formu­
lação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Con­
seil d'État, que tornaram viáveis soluções diversas das que resulta­
riam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo 
a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ati­
vista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Par­
lamento . 9 A conhecida origem pretoriana do direito administrati­
vo, como construção jurisprudencial (do Conselho de Estado) der­
rogatória do direito comum, traz em si esta contradição: a criação 
de um direito especial da Administração Pública resultou não da 
vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de decisão autovincu­
lativa do próprio Executivo. 10 
8 V. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vin-
culação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 27 1 . 
9 Neste sentido, Pierre Delvolvé, Paradoxes du (ou paradoxes sur le) Príncipe 
de Séparation des Autorités Administrative et Judiciaire, in Mélanges René Cha­
pus - Droit Administratif, 1 992, p. 1 44 . 
1 0 Vale lembrar que o sistema de contencioso administrativo francês sempre 
1 1 
Vale lembrar que o direito administrativo nasceu e se desenvol­
veu em um período marcado pela crença na completude das gran­
des codificações escritas, embora não exista, até hoje, uma única 
compilação geral de suas normas, caracterizadas, ao revés, por sua 
fragmentação e falta de organização sistemática. 1 1 Não à toa, à mín­
gua de uma sistematização escrita, o direito administrativo francês 
permaneceu, até período muito recente, um direito essencialmen­
te pretoriano, produto das construções jurisprudenciais do Conse­
lho de Estado . 1 2 
Assim, como assinala Paulo Otero, "a idéia clássica de que a 
Revolução Francesa comportou a instauração doprincípio da lega­
lidade administrativa, tornando o Executivo subordinado à vontade 
do Parlamento expressa através da lei, assenta num mito repetido 
por sucessivas gerações: a criação do direito administrativo pelo 
Conseil d 'État, passando a Administração Pública a pautar-se por 
normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico­
privada, não foi um produto da vontade da lei, antes se configura 
como uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob 
proposta do Conseil d 'État. " 1 3 
Tal circunstância histórica subverte, a um só golpe, os dois pos­
tulados básicos do Estado de Direito em sua origem liberal: o prin­
cípio da legalidade e o princípio da separação de poderes. De fato, 
a atribuição da função de legislar sobre direito administrativo a um 
órgão da jurisdição administrativa, intestino ao Poder Executivo, 
não se coaduna com as noções clássicas de legalidade como submis­
são à vontade geral expressa na lei (Rousseau) e de partilha das 
funções estatais entre os poderes (Montesquieu) . Nenhum cunho 
garantístico dos direitos individuais se pode esperar de uma Admi­
nistração Pública que edita suas próprias normas jurídicas e julga 
soberanamente seus litígios com os administrados. 
reservou ao Poder Executivo a última palavra sobre a competência do Conselho 
de Estado, criando-se, por via indireta, uma forma suí generís de o Poder Execu­
tivo se substituir ao Poder Legislativo na criação do direito especial da Adminis­
tração Pública. Neste sentido, v. Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Da 
Justiça Administrativa em Portugal - Sua Origem e Evolução, 1 994, p . 
3 1 5/3 1 6. 
1 1 Patrícia Baptista, Transformações do Direito Administrativo, 2003, p . 2 . 
1 2 François Burdeau, Hístoire du Droít Admínistratíf, 1 995, p . 1 9. 
1 3 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vincula­
ção Administrativa à Jurídicidade, 2003, p. 27 1 . 
1 2 
Chega-se, assim, à segunda contradição na gênese do direito 
administrativo: a criação da jurisdição administrativa. Contrarian­
do a noção intuitiva de que ninguém é bom juiz de si mesmo, a 
introdução do contencioso administrativo - e a consequente sub­
tração dos litígios jurídico-administrativos da alçada do Poder Judi­
ciário -, embora alicerçada formalmente na ideia de que "julgar a 
Administração ainda é administrar" (juger l 'administration c 'est 
encare administrer) , não teve qualquer conteúdo garantístico, mas 
antes se baseou na desconfiança dos revolucionários franceses con­
tra os tribunais judiciais, pretendendo impedir que o espírito de 
hostilidade existente nestes últimos contra a Revolução limitasse a 
ação das autoridades administrativas revolucionárias. 1 4 
A invocação do princípio da separação de poderes foi um sim­
ples pretexto, mera figura de retórica, visando a atingir o objetivo 
de alargar a esfera de liberdade decisória da Administração, tornan­
do-a imune a qualquer controle judicial . 1 5 Aliás, o modelo de con­
tencioso em que a Administração julgaria a si própria não repre­
sentou qualquer inovação da Revolução Francesa, sendo, ao revés, 
uma continuidade daquele vigorante no Antigo Regime . 1 6 Tal como 
afirmado por Tocqueville, "nesta matéria encontraríamos a fórmu­
la; ao Antigo Regime pertence a idéia . " 1 7 
A institucionalização de tal modelo, e sua surpreendente iden­
tidade com a estrutura de poder das monarquias absolutistas, reve­
la o quanto o direito administrativo, em seu nascedouro, era alheio 
a qualquer propósito garantístico. Ao contrário, seu intuito primei­
ro foi o de diminuir as garantias de que os cidadãos disporiam caso 
pudessem submeter o controle da atividade administrativa a um 
poder equidistante, independente e imparcial - o Poder Judiciá­
rio . Como corretamente assinala Vasco Manuel Dias Pereira da 
S ilva, "só, pouco a pouco, é que o Direito Administrativo vai dei­
xando de ser o direito dos privilégios especiais da Administração, 
14 V., sobre o verdadeiro móvel da criação da jurisdição administrativa, André 
de Laubadere, Jean-Claude Venezia, Yves Gaudemet, Traité de Droit Adminis­
tratif, vol. 1, 1 990, p. 248. 
1 5 No mesmo sentido, Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O 
Sentido da Vinculação Administrativa à Jurídicidade, 2003, p. 275 . 
1 6 Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo 
dos Particulares - Esboço de uma teoria subjectívísta do recurso contencioso de 
anulação, 1 989, p. 27 . 
1 7 Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, 1 989, p. 64. 
1 3 
para se tornar no direito regulador das relações jurídicas adminis­
trativas. Milagre, mesmo, é essa sua transformação de 'direito da 
Administração ' em Direito Administrativo. " 1 8 
Em reforço ainda maior à ideia, releva destacar que, mesmo no 
âmbito do Conselho de Estado, desenvolveu-se uma ampla e inten­
sa jurisprudência sobre os limites da própria jurisdição administra­
tiva, seja excluindo-se certos atos da esfera de reexame - como os 
atos de governo e os atos de pura administração -, seja limitando­
se artificialmente o espectro de fundamentos do recurso conten­
cioso, ou ainda pelo desenvolvimento de uma estrita legitimidade 
processual ativa . 1 9 É já nesse período que se evidencia, como nítido 
propósito do contencioso administrativo, a criação de um direito 
processual administrativo, consagrando inúmeras regras de privilé­
gio em favor da Administração . O velho dogma absolutista da ver­
ticalidade das relações entre o soberano e seus súditos serviria para 
justificar, sob o manto da supremacia do interesse público sobre os 
interesses dos particulares, a quebra de isonomia. E nem se diga 
que este estatuto especial da Fazenda Pública se limitou historica­
mente aos primórdios do século XIX, pois, como registra José Car­
los Vieira de Andrade, ele chegou até o século XXI. zo 
É curioso notar como a separação de poderes serviu, contradi­
toriamente, a esse processo de imunização decisória dos órgãos do 
Poder Executivo. O mesmo princípio que justificara a criação do 
contencioso administrativo, intestino ao Executivo, será invocado 
para impedir que os órgãos de controle exerçam sobre os outros 
órgãos da Administração poderes de injunção e substituição, em 
princípio legítimos e até naturais entre órgãos da mesma estrutura 
de Poder. Em outras palavras, criou-se no interior da Administra­
ção um contencioso que não oferecia ao administrado as mesmas 
garantias processuais dos tribunais judiciários, mas, estranhamen­
te, estava sujeito aos mesmos limites externos de atuação, como se 
se tratasse do próprio Poder Judiciário. Se algum sentido garantís­
tico norteou e inspirou o surgimento e o desenvolvimento da dog-
1 8 Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Per­
dido, 1 998, p. 37 . 
1 9 V. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vin­
culação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 276. 
20 José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições) , 1 999, p . 
50/5 1 . 
1 4 
mática administrativista, este foi em favor da Administração, e não 
dos cidadãos .2 1 
Nesse contexto, as categorias básicas do direito administrativo, 
como a discricionariedade e sua insindicabilidade perante os órgãos 
contenciosos, a supremacia do interesse público e as prerrogativas 
jurídicas da Administração, são tributárias deste pecado original 
consistente no estigma da suspeita de parcialidade de um sistema 
normativo criado pela Administração Pública em proveito próprio, 
e que ainda se arroga o poder de dirimir em caráter definitivo, e em 
causa própria, seus litígios com os administrados. 22 Na melhor tra­
dição absolutista, além de propriamente administrar, os donos do 
poder criam o direito que lhes é aplicável e o aplicam às situações 
litigiosas com caráter de definitividade . 
Captando tal evidência, Diogo de Figueiredo Moreira Neto 
afirma1 com propriedade, que os conceitos ligados à preservação daautoridade "assomaram a tal importância estruturante que a litera­
tura jurídica do direito administrativo tornou-se praticamente unâ­
nime quanto à articulação dogmática da disciplina sobre a ideia 
central - magistralmente sintetizada por Umberto Allegretti -
de que o interesse público é um interesse próprio da pessoa estatal, 
externo e contraposto aos dos cidadãos" . 23 
Vale notar que a relutância dos países vinculados ao sistema de 
common law - seja na sua versão original inglesa, seja na sua versão 
híbrida norte-americana - em reconhecer autonomia didático­
científica ao direito administrativo e o repúdio à adoção da jurisdi­
ção administrativa deveram-se à tradição existente, naquelas na­
ções, de submissão das relações entre Administração e cidadãos às 
mesmas regras e aos mesmos juízes que decidiam os litígios entre 
particulares . Embora também lá tenham existido - e ainda exis-
2 1 Maurice Hauriou, em seu Précis Élémentaire de Droit Administratif, 1 943, 
p . 1 9, afirma que são as prerrogativas especiais da autoridade administrativa que 
funcionam como causa e medida da independência científica do direito adminis­
trativo. Paulo Otero, a seu turno, na obra Direito Administrativo - Relatório, 
200 1 , p. 227, afirma que só por manifesta ilusão de ótica ou equívoco se poderá 
vislumbrar uma gênese garantística no direito administrativo - o direito admi­
nistrativo nasce como direito da Administração Pública e não como direito dos 
administrados. 
22 V., neste sentido, João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Dis­
curso Legitimador, 1 989, p . 1 37 . 
2 3 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Mutações do Direito Administrativo, 
2000, p. 1 0/ l l . 
1 5 
tam - normas que contemplavam imunidades ao poder político 
(v.g. , a ideia da irresponsabilidade civil do Estado expressa na má­
xima the king can do no wrong, só superada em meados do século 
XX) , o direito administrativo anglo-saxão não se formou como uma 
estrutura dogmática munida de categorias a serviço do poder. 24 
Cabe aqui fazer o registro deste que é o paradoxo da origem do 
direito administrativo nos dois grandes sistemas jurídicos do Oci­
dente: embora surgido em um país vinculado à tradição romano­
germânica, sua elaboração deu-se por construção do juiz adminis­
trativo - processo típico do common law; enquanto isso, nos países 
anglo-saxônicos, o reconhecimento da autonomia do direito admi­
nistrativo, já em momento avançado do século XX, ligou-se sobre­
tudo à legislação escrita (processo característico do sistema roma­
no-germânico) . Com efeito, a existência de um direito diferencia­
do do direito comum, consagrado por intermédio do sistema de 
precedentes judiciais (judge-made law) , deveria naturalmente re­
sultar de decisão soberana do Parlamento.25 
Enquanto a tradição do direito público anglo-saxão exigia, 
como elemento constitutivo do próprio Estado de direito (rule of 
law) , que indivíduos e entes públicos fossem submetidos às mes­
mas leis e aos mesmos juízes ordinários - com a vedação genérica, 
em princípio, a tratamentos privilegiados para o Poder Público26 
-, na tradição continental o direito administrativo é definido, em 
sua própria natureza, como uma lei essencialmente desigual, que 
conferia à Administração, como condição para a satisfação do inte­
resse geral, posição de supremacia sobre os direitos individuais . 27 
24 Como se sabe, embora a prática regulatória norte-americana remonte à se­
gunda metade do século XIX, o direito administrativo só vem a ser reconhecido 
nos Estados Unidos como disciplina autônoma muito tempo depois, já no século 
XX. A rigor, no entanto, não há naqueles países a adoção das mesmas categorias 
do direito administrativo de tradição continental, sendo antes a disciplina iden­
tificada com o complexo normativo regulador editado por agências reguladoras 
independentes e agências executivas . V., sobre o tema, Breyer, Stewart, Suns­
tein and Spitzer, Administrative Law and Regulatory Policy - Problems, Text, 
and Cases, Aspen Law and Business, 2002. 
25 Paul Craig, Administrative Law, 1 999, p. 32 . 
26 Albert V. Dicey, An Introduction to the Study of the Law of the Constitution, 
original de 1 885 , 1 0ª Edição, 1 959 . 
27 M. Letourneur, The Concept of Equity in French Public Law, in R. A. New­
man (org.) , Equity in the Worlds Legal Systems: A Comparative Study, 1 973, p . 
262/263. 
16 
Assim se compreende a enorme fenda, denunciada por Toc­
queville ainda em 1 830 e elevada a mito por Albert Dicey no final 
do século XIX, entre as experiências administrativas européia con­
tinental e anglo-saxônica. Enquanto no mundo europeu continen­
tal pós-revolucionário, o Estado-Administração torna-se o grande 
protagonista da produção normativa e da estruturação da vida eco­
nômica e social privadas, na Inglaterra e nos Estados Unidos, ao 
revés, a Administração Pública permaneceu, até pelo menos o pri­
meiro pós-guerra, desempenhando um papel meramente executi­
vo, subordinada ao direito comum e sob a vigilância do Poder Judi­
ciário. 28 
No Brasil, o modelo de administração implantado a reboque da 
colonização de exploração, somado ao patrimonialismo da Coroa 
portuguesa que se tornou nota característica da cultura política 
brasileira, 29 encontrou no figurino francês do direito administrativo 
material farto para se institucionalizar e legitimar. Como se preten­
de demonstrar ao longo do texto, as peculiaridades da Administra­
ção Pública brasileira apenas aguçaram as contradições intrínsecas 
que o modelo jusadministrativista europeu continental trazia já 
desde a sua gênese . 
1 .2 . A evolução contraditória do direito administrativo: a dogmá­
tica administrativista no divã. 
A precedente revisão histórica, a respeito das origens do direito 
administrativo europeu continental, não importa, todavia, anuên­
cia à concepção marxista da história ou a admissão de alguma teoria 
da conspiração, arquitetada de forma deliberada pelos detentores 
do poder para se subtrair à esfera de controle dos cidadãos . O di­
reito, como os homens, vive e se define por suas próprias circuns-
28 Luca Mannori e Bernardo Sordi, Justicia e Administración, in El Estado 
Moderno en Europa, Maurizio Fioravanti (org.) , 2004, p. 83/84. 
29 Sobre o papel do patrimonialismo na formação da cultura político-adminis­
trativa brasileira, v. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1 995 , p . 
1 4 1/1 5 1 ; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, v. 2 , 1 989, especialmente o seu 
último capítulo, intitulado "Viagem Redonda: do patrimonialismo ao estamen­
to", p. 729/750. 
1 7 
tâncias, j amais se deixando reduzir a móveis únicos e razões uní­
vocas . 
Assim, se não é mais possível compactuar com a visão românti­
ca de um surgimento milagroso e pleno de boas intenções (voltadas 
permanentemente à proteção da cidadania e ao controle jurídico 
do poder) , tampouco seria lícito advogar que uma monolítica razão 
maquiavélica (no sentido de uma lógica de preservação do poder) 
esteve sempre por trás de todo o desenvolvimento do direito admi­
nistrativo . Mais correto é pensar a evolução histórica da disciplina 
como uma sucessão de impulsos contraditórios, 30 produto da ten­
são dialética entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade. 
Se, em sua origem, o direito administrativo se traduzia em uma 
normatividade marcada pelas ideias de parcialidade e desigualda­
de, sua evolução histórica revelou um incremento significativo da­
quilo que se poderia chamar de vertente garantística, caracterizada 
por meios e instrumentos de controle progressivo da atividade ad­
ministrativa pelos cidadãos.3 1 Nada obstante, como se verá a se­
guir, essa não foi uma tendência constante, progressiva e unidire­
cional, sendo antes combinada com estratégias de fuga à rigidez das 
formas e às restrições legais à liberdade decisória da Administra­
ção . Constituída pelo trabalho desses dois vetores contraditórios, a 
dogmática administrativista reflete esse caráterambíguo em inú­
meros dos seus institutos e na fragilidade de sua estrutura teórica. 
Talvez o aspecto mais paradoxal dessa acidentada evolução te­
nha sido o que Sebastian Martín-Retortillo identificou como uma 
fuga do direito constitucional .32 Com efeito, embora criado sob o 
signo do Estado de direito, para solucionar os conflitos entre auto­
ridade (poder) e liberdade (direitos individuais) , o direito adminis­
trativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um pro­
cesso de descolamento do direito constitucional. A própria descon­
tinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da 
burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse 
30 Paulo Otero, Direito Administrativo - Relatório, 2001 , p. 229. 
3 1 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vincula­
ção Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 282 . 
32 Sebastian Martín-Retortillo Baquer, El Derecho Civil en la Genesis del De­
recho Administrativo y de sus Instituciones, 1 996, p . 2 1 5 . 
1 8 
de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se 
de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais . 
Assim, v.g. , uma das categorias básicas do direito administrati­
vo - a multifária noção de interesse público - de origem pré-cons­
titucional, resiste em alguns países até os dias de hoje completa­
mente alheia à juridicização de princípios e objetivos do Estado e 
da coletividade, operada pela Constituição. Mesmo em nações que 
adotaram o modelo de constituição dirigente - como Portugal e 
Brasil -, a doutrina administrativista permaneceu oferecendo as 
mais diversas conceituações de interesse público, quase todas sem 
qualquer referência às prescrições de suas respectivas Leis Funda­
mentais . No mais das vezes, o discurso da autonomia científica do 
direito administrativo serviu de pretexto para liberar os adminis­
tradores públicos da normatividade constitucional. 
A mesma reflexão pode ser feita em relação à discricionarieda­
de administrativa. Durante muito tempo - sem que isso provo­
casse maior polêmica - a discricionariedade era definida como 
uma margem de liberdade decisória dos gestores públicos, sem 
qualquer remissão ou alusão aos princípios e regras constitucionais . 
Vale lembrar que a primeira evolução no sentido do controle judi­
cial dos atos (ditos) discricionários - com o surgimento de teorias 
como as do desvio de poder e dos motivos determinantes - partiu 
de elementos vinculados à lei, e não à Constituição, embora diver­
sos Estados europeus à época já tivessem sido constitucionalizados. 
Aliás, a discricionariedade administrativa representou, tam­
bém, um movimento contraditório do direito administrativo em 
relação à própria legalidade, sobretudo a partir de quando esta pas­
sa a ser entendida como vinculação positiva à lei. De fato, no con­
texto de uma teoria que pretendia, em essência, a submissão inte­
gral da atividade administrativa à vontade do legislador, a discricio­
nariedade pode ser vista como uma insubmissão ou, pelo menos, 
uma não-submissão. Todavia, contradição mais contundente que a 
mera existência dos atos discricionários é a constatação de que es­
tes representam a grande maioria dos atos administrativos , dada a 
mutiplicidade de situações que reclamam a atuação do Poder Pú­
blico . 
Outro impulso contraditório do direito administrativo é aquilo 
que Maria João Estorninho chamou, inspirada na doutrina alemã, 
19 
de uma fuga para o direito privado (Flucht in das Privatrecht) . 33 
Constituído, justamente, por um conjunto de adaptações e recria­
ções de institutos do direito civil, o regime jurídico administrativo, 
desde pelo menos o advento do Estado de bem-estar, passou a fa­
zer um curioso caminho de volta. Se o regime administrativo se 
caracteriza por uma combinação de prerrogativas e restrições, a 
fuga para o direito privado permite que as administrações centrais 
e ou diretas) conservem suas prerrogativas 1 despindo-se das restri­
ções por meio da constituição de entidades administrativas com 
personalidade de direito privado. 
Mas não só isso. Esta privatização da atividade administrativa 
tem se dado por variadas formas e em diferentes setores . A emer­
gência do gerencialismo procura aplicar técnicas de organização e 
gestão empresariais privadas à Administração Pública. A ideia de 
consensualidade tem cada vez mais permeado as relações entre ad­
ministrados e Administração. A intervenção direta do Estado na 
economia tem sido substituída por parcerias com a iniciativa priva­
da, pelas quais empresas não-estatais passam a explorar serviços 
públicos e atividades econômicas antes sujeitas a monopólio esta­
tal. O Estado prestador é agora sucedido por um Estado eminente­
mente regulador. 
Assiste-se, assim, à emergência de filhotes híbridos da vetusta 
dicotomia entre a gestão pública e a gestão privada: a atividade de 
gestão pública privatizada (regime administrativo flexibilizado) e 
a atividade de gestão privada publicizada ou administrativizada 
(regime privado altamente regulado) . Essa hibridez de regimes ju­
rídicos, caracterizada pela interpenetração entre as esferas pública 
e privada, representa um dos elementos da crise de identidade do 
direito administrativo. 34 
Por fim, resta uma alusão à problemática das transformações 
recentes (em países da Europa continental e no Brasil) no modelo 
de organização administrativa. O surgimento e a proliferação das 
chamadas autoridades administrativas independentes subverteu a 
33 Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado. Contributo Para o 
Estudo daActividade de Direito Privado da Administração Pública, 1 996. Sobre 
o tema, v. também Giuseppe di Gaspare, Il Potere nel Diritto Pubblico, 1 992, p. 
385 ; Santiago González-Varas Ibafiez, El Derecho Administrativo Privado, 1 996. 
34 Eduardo Paz Ferreira, Lições de Direito da Economia, 200 1 , p . 43 . 
20 
ideia de unidade da Administração Pública, substituindo-a pela no­
ção de uma Administração policêntrica. 35 
O sistema político-administrativo dominante no continente eu­
ropeu e no Brasil desde o século XIX concentra no governo (presi­
dente ou primeiro-ministro e seu gabinete) , enquanto órgão supe­
rior da Administração Pública, poderes de intervenção intra-admi­
nistrativa sobre o conjunto amplo de órgãos e entidades sob sua 
chefia, respondendo politicamente perante o parlamento ou dire­
tamente ao povo, conforme o sistema de governo, pelas ações e 
omissões administrativas, na medida em que se encontra habilitado 
a dirigir, orientar, supervisionar ou controlar as respectivas estrutu­
ras organizativas . 36 
Esse modelo, que encontra similar no constitucionalismo brasi­
leiro, 37 acabou erigindo a unidade administrativa em verdadeiro 
instrumento do princípio democrático e em fator de legitimação da 
Administração Pública .38 A responsabilidade política do chefe de 
governo junto ao povo (em sistemas presidencialistas) ou ao parla­
mento (em sistemas parlamentaristas) , num regime em que ele é 
também o chefe supremo da Administração, convolou-se em con­
dição necessária da controlabilidade ( accountability) social da 
atuação da burocracia. Pode-se mesmo dizer que este era o contra­
ponto democrático da chamada crise da lei e da notável expansão 
das margens decisórias da Administração na definição das políticas 
públicas . 
Tal sistema entra em crise com a importação, para diversos paí­
ses da Europa continental e para o Brasil, da figura da independent 
regulatory agency (agência reguladora independente) . Esse tipo de 
estrutura institucional só se proliferaria na Europa ocidental a par-
35 Sobre o tema, v. Capítulo VI, infra. 
36 Paulo Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo: Enqua­
dramento Dogmático-Constitucional, vol. II, p. 792 . 
37 A Constituição brasileira de 1 988, em seu art. 84, II, confere ao Presidente 
da República, com o auxílio dos Ministros de Estado, o poder de direção superior 
sobre a AdministraçãoPública federal. 
38 Sobre as relações entre a unidade da Administração Pública e o princípio 
democrático, v. Rudolf Mõgele, Die Eínheit der Verwaltungs als Rechtsproblem, 
1 987 , p. 545 apud Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sen­
tido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 3 1 6 . 
2 1 
tir dos anos setenta e oitenta do século XX, sob o influxo dos pro­
j etos de governança comunitária promovidos pela União Européia, 
com o nome de autoridade administrativa independente, enquanto 
ao Brasil só chegaria nos anos noventa, a reboque dos processos de 
privatização e reforma do Estado. 
As autoridades ou agências independentes quebraram o vínculo 
de unidade no interior da Administração Pública, eis que a sua ati­
vidade passou a situar-se em esfera jurídica externa à da responsa­
bilidade política do governo. Caracterizadas por um grau reforçado 
da autonomia política de seus dirigentes em relação à chefia da 
Administração central, as autoridades independentes rompem o 
modelo tradicional de recondução direta de todas as ações adminis­
trativas ao governo (decorrente da unidade da Administração) . 
Passa-se, assim, de um desenho piramidal para uma configuração 
policêntrica. 39 
A não-submissão das autoridades independentes à linha hierár­
quica da chefia da Administração tem sido normalmente justifica­
da pela necessidade de dotar a regulação de alguns setores da eco­
nomia e da vida social de maior neutralidade, profissionalismo e 
qualificação técnica, objetivo que não se conseguiu atingir em um 
modelo unitário, onde a atividade administrativa acabava por tor­
nar-se diretamente responsiva à lógica político-eleitoral . Todavia, 
ao avanço da tecnocracia sobre espaços tradicionalmente ocupados 
pela política corresponde um risco de deslegitimação das estrutu­
ras estatais de poder.40 
lnobstante suas possíveis justificativas teóricas e pragmáticas, 
fato é que as autoridades administrativas independentes repre­
sentam mais um elemento problemático no acidentado e contradi­
tório percurso de evolução do direito administrativo . 
Tais contradições, construídas e reproduzidas em momentos 
históricos distintos pelo mundo afora, convergem agora, no Brasil, 
para um momento de inflexão teórica que se poderia caracterizar 
como uma crise dos paradigmas do direito administrativo brasi­
leiro. 
39 Francesco Caringella, Corso di Diritto Amministrativo, 200 1 , vol. 1, p . 6 1 9 
e ss. 
40 Sobre o tema, v. Capítulo VI, infra. 
22 
1 .3. Delimitando o objeto da investigação: a crise dos paradigmas 
do direito administrativo brasileiro. 
Como se pretendeu demonstrar acima, a crise dos paradigmas 
do direito administrativo não se constitui apenas do novo, mas exi­
be também, em larga medida, alguns vícios de origem. Não obstan­
te, as transformações por que passou o Estado moderno, desde a 
ascensão do Estado providência até o seu colapso, verificado nas 
últimas décadas do século XX, assim como a emergência do Estado 
democrático de direito, agravaram o descompasso entre as velhas 
categorias e as reais necessidades e expectativas das sociedades 
contemporâneas em relação à Administração Pública. 
Captando a evidência, assim Marçal Justen Filho sintetiza a 
aventada crise : 
110corre que o instrumental teórico do direito administrativo se 
reporta ao século XIX. Assim se passa com os conceitos de Estado 
de Direito, princípio da legalidade, discricionariedade adminis­
trativa. A fundamentação filosófica do direito administrativo se 
relaciona com a disputa entre DUGUIT e HAURIOU, ocorrida 
nos primeiros decênios do século XX. A organização do aparato 
administrativo se modela nas concepções napoleônicas, que tradu­
zem uma rígida hierarquia de feição militar. (. . .) O conteúdo e as 
interpretações do direito administrativo permanecem vinculados e 
referidos a uma realidade sociopolítica que há muito deixou de 
existir. O instrumental do direito administrativo é, na sua essên­
cia, o mesmo de um século atrás. "41 
Nesta toada, é possível identificar quatro paradigmas clássicos 
do direito administrativo que fizeram carreira no Brasil e que se 
encontram em xeque na atualidade, diante de transformações de­
correntes da nova configuração do Estado democrático de direito: 
1) o dito princípio da supremacia do interesse público sobre o in­
teresse privado, que serviria de fundamento e fator de legitimação 
para todo o conjunto de privilégios de natureza material e proces­
sual que constituem o cerne do regime jurídico-administrativo;42 
41 Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, 2005, p. 1 3 . 
42 Neste sentido, v. Celso Antônio Bandeira de Melo, O Conteúdo do Regime 
Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico, Revista de Direito Público, 
V�. 2, 1 967, p . 45/47. 
23 
II) a legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, tra­
duzida numa suposta submissão total do agir administrativo à 
vontade previamente manifestada pelo Poder Legislativo. Tal pa­
radigma costuma ser sintetizado na negação formal de qualquer 
vontade autônoma aos órgãos administrativos, que só estariam au­
torizados a agir de acordo com o que a lei rigidamente prescreves­
se ou facultasse;43 
III) a intangibilidade do mérito administrativo, consistente na in­
controlabilidade das escolhas discricionárias da Administração Pú­
blica, seja pelos órgãos do contencioso administrativo, seja pelo 
Poder Judiciário (em países, como o Brasil, que adotam o sistema 
de jurisdição una) , seja pelos cidadãos, através de mecanismos de 
participação direta na gestão da máquina administrativa;44 
IV) a ideia de um Poder Executivo unitário, fundada em relações 
de subordinação hierárquica (formal ou política) entre a burocra­
cia e os órgãos de cúpula do governo (como os Ministérios e a 
Presidência da República) . Na tradição do constitucionalismo bra­
sileiro, a fórmula da Administração unitária é sintetizada, como no 
atual art. 84, inciso II, da Constituição de 1 988, na competência 
do Chefe do Executivo para exercer a direção superior da Admi­
nistração, com o auxílio dos Ministros de Estado. 
Como agente condutor básico da superação de tais categorias 
jurídicas, erige-se hodiernamente a ideia de constitucionalização 
do direito administrativo como alternativa ao déficit teórico apon­
tado nos itens anteriores, pela adoção do sistema de direitos funda­
mentais e do sistema democrático qual vetores axiológicos - tradu­
zidos em princípios e regras constitucionais - a pautar a atuação 
da Administração Pública. Tais vetores convergem no princípio 
maior da dignidade da pessoa humana e, (1) ao se situarem acima e 
43 Tal formulação clássica é devida, entre nós, a Hely Lopes Meirelles, Direito 
Administrativo Brasileiro, 1 995, p. 82/83: "Na Administração não há liberdade 
nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo 
que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei 
autoriza. " V. também, sobre o tema, Luís Roberto Barroso, Disposições Constitu­
cionais Transitórias: conceito e classificação. Delegações Legislativas: validade e 
extensão. Poder Regulamentar: conteúdo e limites, in O Direito Constitucional e 
a Efetividade de suas Normas, 1 993, p. 387 . 
44 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Discricionariedade Administrativa na Cons­
tituição de 1 988, 1 99 1 , p. 93 e ss. 
24 
para além da lei, (II) vincularem juridicamente o conceito de inte­
resse público, (III) estabelecerem balizas principiológicas para o 
exercício legítimo da discricionariedade administrativa e (IV) ad­
mitirem um espaço próprio para as autoridades administrativas 
independentes no esquema de separação de poderes e na lógica do 
regime democrático, fazem ruir o arcabouço dogmático do velho 
direito administrativo. 45 
Assim, tem-se que: 
(i) a Constituição, e não mais a lei, passa a situar-se no cerne da 
vinculação administrativa à juridicidade; 
(ii) a definição do que é o interesse público, e de sua propaladasupremacia sobre os interesses particulares, deixa de estar ao in­
teiro arbítrio do administrador, passando a depender de juízos de 
ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros 
valores e interesses metaindividuais constitucionalmente consa­
grados; 
(iii) a discricionariedade deixa de ser um espaço de livre escolha 
do administrador para se convolar em um resíduo de legitimida­
de, 46 a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos 
prescritos pela Constituição e pela lei com vistas à otimização do 
grau de legitimidade da decisão administrativa. Com o incremen­
to da incidência direta dos princípios constitucionais sobre a ativi­
dade administrativa e a entrada no Brasil da teoria dos conceitos 
jurídicos indeterminados, abandona-se a tradicional dicotomia en­
tre ato vinculado e ato discricionário, passando-se a um sistema de 
graus de vinculação à juridicidade; 
(iv) a noção de um Poder Executivo unitário cede espaço a uma 
miríade de autoridades administrativas independentes, denomi-
45 Neste sentido, Patrícia Ferreira Baptista, Transformações do Direito Admi­
nistrativo, 2003, p. 1 29-30: "Da condição de súdito, de mero sujeito subordina­
do à Administração, o administrado foi elevado à condição de cidadão. Essa nova 
posição do indivíduo, amparada no desenvolvimento do discurso dos direitos 
fundamentais, demandou a alteração do papel tradicional da Administração Pú­
blica. Direcionada para o respeito à dignidade da pessoa humana, a Administra­
ção, constitucionalizada, vê-se compelida a abandonar o modelo autoritário de 
gestão da coisa pública para se transformar em um centro de captação e ordena­
ção dos múltiplos interesses existentes no substrato social ." 
46 A expressão é devida a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Legitimidade e 
Discricionariedade - Novas Reflexões sobre os Limites e Controle da Discricio­
nariedade, 2002, p. 3 3 . 
25 
nadas entre nós, à moda anglo-saxónica, agências reguladoras in­
dependentes, que não se situam na linha hierárquica direta do Pre­
sidente da República e dos seus Ministros . A pedra de toque dessa 
independência (ou autonomia reforçada) das agências reguladoras 
em relação ao governo é a independência política dos seus dirigen­
tes, nomeados por indicação do Chefe do Poder Executivo após 
aprovação do Poder Legislativo, e investidos em seus cargos a ter­
mo fixo, com estabilidade durante o mandato. Isto acarreta a im­
possibilidade de sua exoneração ad nutum pelo Presidente - tan­
to aquele responsável pela nomeação, como seu eventual sucessor, 
eleito pelo povo. À autonomia reforçada das agências, todavia, 
corresponderá um conjunto de controles jurídicos, políticos e so­
ciais, de modo a reconduzi-las aos marcos constitucionais do Esta­
do democrático de direito. 
Na tarefa de desconstrução dos velhos paradigmas e proposição 
de novos, a tessitura constitucional assume papel condutor deter­
minante, funcionando como diretriz normativa legitimadora das 
novas categorias . A premissa básica a ser assumida é a de que as 
feições jurídicas da Administração Pública - e, a fortiori, a disci­
plina instrumental, estrutural e finalística da sua atuação - estão 
alicerçadas na própria estrutura da Constituição, entendida em sua 
dimensão material de estatuto básico do sistema de direitos funda­
mentais e da democracia. 
Cumpre, entretanto, antes da apresentação da alvitrada mu­
dança dos paradigmas do direito administrativo brasileiro - e para 
evitar discussões meramente semânticas - esclarecer em que sen­
tido a palavra paradigma será empregada ao longo do texto. 
1 .3 . 1 . A noção de paradigma adotada: um acordo semântico. 
A palavra de origem grega paradeigma significa modelo ou 
exemplo. Todavia, o sentido do termo - e dos seus correlatos crise 
e mudança de paradigma - que acabou vulgarizando-se remonta 
ao livro clássico de Thomas Kuhn, de 1 962 , A Estrutura das 
Revoluções Científicas . 47 Considerada uma das mais importantes 
contribuições à filosofia da ciência, a obra de Kuhn propõe uma 
47 Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (tradução de Beatriz 
Vianna Boeira e Nelson Boeira}, 2005 . 
26 
nova forma de conceber a evolução científica e uma noção de para­
digma a ela peculiar. 
Segundo Kuhn, a história demonstra a emergência de determi­
nadas formas de se conceber a ciência e a realização científica, que 
se afirmam como paradigmas por um dado período de tempo. Tais 
paradigmas definem o objeto da empreitada científica, as questões 
que serão admissíveis, como as perguntas serão elaboradas e como 
as respostas serão interpretadas. É dizer: os paradigmas definem os 
contornos de um modelo científico e delimitam a lógica que permi­
tirá o seu aprimoramento e a obtenção de respostas a questões 
problemáticas . 
É interessante observar que, sob determinado paradigma, o que 
se pratica, segundo Kuhn, é a ciência normal, concebida como a 
investigação interna aos pressupostos da concepção científica vi­
gente . É segundo tais pressupostos que são escritos manuais e pre­
parados os estudantes para serem membros da comunidade cientí­
fica. Em um certo sentido, os paradigmas exercem uma eficácia 
bloqueadora, subtraindo determinados pressupostos à dúvida, cuja 
legitimidade é simplesmente aceita como premissa . 
Ocorre que, nesta investigação interna ao paradigma, algumas 
perguntas não são satisfatoriamente respondidas, enquanto outras 
recebem soluções anômalas. A sucessão de anomalias e questões 
não respondidas pode conduzir a uma crise do paradigma vigente, 
dando azo ao surgimento de teorias revolucionárias, que propõem 
a substituição do objeto e da forma como as perguntas devem ser 
feitas. Em tais momentos de crise, o que se propõe não são formas 
de aprimoramento ou harmonização do paradigma face a casos pro­
blemáticos, mas, ao revés, a própria revisão das premissas daquele 
modelo científico. Se o paradigma desafiante logra solidificar-se, as 
perguntas e objetos antigos são abandonados, passando-se a uma 
nova concepção do que seja fazer ciência. Nestas circunstâncias, 
portanto, terá havido uma mudança de paradigma. 
Convém assinalar que Kuhn (físico de formação) não deixa cla­
ro se considera tal estrutura evolutiva aplicável às ciências sociais, 
sendo certo, entretanto, que seus exemplos são todos colhidos das 
chamadas "ciências duras" . Independentemente disso, adota-se 
aqui uma concepção fraca de paradigma, de modo a torná-la apli­
cável à ciência do direito. Assim, a tese kuhniana não será propria­
mente testada, servindo antes como inspiração para a noção de 
paradigma jurídico aqui adotada. 
27 
Neste sentido, pode-se dizer que o discurso jurídico, como de­
corrência de seu caráter essencialmente dogmático, elege determi­
nadas premissas teóricas, em suas diferentes searas, que são tempo­
rariamente subtraídas à dúvida e cuja legitimidade decorre de sua 
aceitação ampla pela comunidade jurídica. Tais premissas conver­
tem-se, desta forma, em verdadeiros paradigmas da ciência do di­
reito, sob os quais todo um conjunto de teorias é erigido para expli­
car ou solucionar as questões emergentes de sua adoção. Esta seria 
a produção do direito convencional, de vez que circunscrita aos 
lindes teóricos estabelecidos no paradigma. 
Como ensina Tércio Sampaio Ferraz Junior, baseado em lição 
de Viehweg, o direito (como qualquer fenômeno) comporta análi­
se sob pelo menos dois enfoques distintos: o dogmático e o zetético . 
O enfoque dogmático caracteriza-se por uma limitação teórica, 
consistente na inegabilidade dos pontos de partida. "Um exemplo 
de uma premissa deste gênero, no direito contemporâneo, é o prin­
cípio da legalidade ( . . . ) que obriga o jurista a pensar os problemas 
comportamentais a partir da lei, conforme à lei, para além da lei 
mas nunca contra a lei . "48 Já o enfoque zetético caracteriza-se pela 
questionabilidade das premissas ou pontos de partida, o que con­
duz a análise, tendencialmente, a problematizações abertas e ilimi­
tadas.Assim, durante a vigência de um paradigma, a ciência do direito 
(assim como suas diversas disciplinas) é concebida a partir de de­
terminadas premissas ou pontos de partida, que servem como pos­
tulados explicativos de todo o sistema. Enquanto as soluções cons­
truídas em consonância com o paradigma permanecem dotadas de 
certo grau de plausibilidade e aceitação da comunidade jurídica, 
predomina o enfoque dogmático do direito. 
Não obstante, há momentos específicos em que, dado o acú­
mulo de anomalias não solucionadas dentro do paradigma, surgem 
teorias subversivas do próprio paradigma, que põem em xeque a 
sua legitimidade e propõem novas formas de conceber o objeto e a 
própria metodologia de trabalho da ciência jurídica. O que tradi­
cionalmente era aceito como premissa passa ao centro do debate 
48 Tércio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao Estudo do Direito - Técnica, 
Decisão, Dominação, 1 994, p. 48. 
28 
científico, travando-se uma batalha teórica entre desafiantes e de­
safiados. Nestas circunstâncias, predomina o enfoque zetético do 
direito: trata-se de um momento de crise de paradigmas. 
A investigação aqui desenvolvida pretende demonstrar que o 
direito administrativo brasileiro encontra-se em um momento de 
crise de paradigmas, que se caracteriza, precisamente, pelo descré­
dito de suas antigas premissas teóricas e pela emergência de novas . 
A consolidação de novos paradigmas depende, todavia, do seu grau 
de plausibilidade e de sua capacidade de gerar consensos, com al­
guma pretensão de estabilidade, no seio da comunidade científica. 
Esta a pretensão maior deste trabalho. 
Passa-se, a seguir, a uma exposição sucinta das circunstâncias 
que caracterizam a crise de cada uma das quatro grandes premissas 
teóricas, identificadas como antigos paradigmas do direito admi­
nistrativo brasileiro, bem como das novas premissas que as desa­
fiam na atualidade, compondo o mosaico dos novos paradigmas da 
disciplina no Brasil. 
A Mudança de Paradigmas Proposta 
1 .3 .2 . Da supremacia do interesse público ao dever de proporcio­
nalidade: a crise da ideia de regime jurídico administrativo. 
Tornou-se clássica, na literatura administrativista brasileira, a 
definição de Celso Antônio Bandeira de Mello para o dito princípio 
da supremacia do interesse público sobre os interesses particu­
lares: 
"Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito 
Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, 
firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição até 
mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressu­
posto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam 
sentir-se garantidos e resguardados. "49 
49 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 2003, 
p . 60. 
29

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