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Gustavo Binenbojm Professor Adjunto de Direito Administrativo da Faculdade de Direito da UERJ. Doutor e Mestre em Direito Público, UERJ. Master of Laws (LL.M.), Yale Law School (EUA). Professor dos cursos de pós-graduação da Fundação Getulio Vargas (FGV-RJ). Professor da Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro - EMERJ. Procurador do Estado, advogado e parecerista no Rio de Janeiro. UMA TEORIA DO DIREITO ADMINISTRATIVO Direitos Fundamentais, Democracia e Constitucionalização 3ª Edição Revista e Atualizada RENOVAR Aio de Janeiro 2014 CAPÍTULO I A CRISE DOS PARADIGMAS DO DIREITO ADMINISTRATIVO 1.1. A outra história do direito administrativo: do pecado autori tário original à constituição de uma dogmática a serviço dos donos do poder. Narra a história oficial que o direito administrativo nasceu da subordinação do poder à lei e da correlativa definição de uma pauta de direitos individuais que passavam a vincular a Administração Pública.2 Essa noção garantística do direito administrativo, que se teria formado a partir do momento em que o poder aceita subme ter-se ao direito3 e, por via reflexa, aos direitos dos cidadãos, ali mentou o mito de uma origem milagrosa4 e a elaboração de catego- 2 V., por todos, Caio Tácito, Evolução Histórica do Direito Administrativo, in Temas de Direito Público, vol. 1, 1 997, p. 2. 3 Neste sentido, Diogo Freitas do Amaral, Curso de Direito Administrativo, vol. I, 1 994, p. 1 48 . 4 Textualmente, esta é a expressão utilizada por Prosper Weil para explicar o surgimento do direito administrativo . V. O Direito Administrativo, 1 977, p. 7 /l O: "A própria existência de um direito administrativo é em alguma medida fruto de um milagre. O direito que rege a actividade dos particulares é imposto a estes de fora e o respeito pelos direitos e obrigações que ele comporta encon tra-se colocado sob a autoridade e a sanção de um poder exterior e superior: o do Estado. Mas causa admiração que o próprio Estado se considere ligado (vincula do) pelo direito. ( . . . ) Não esqueçamos, aliás, as lições da história: a conquista do Estado pelo direito é relativamente recente e não está ainda terminada por toda a parte. ( . . . ) Fruto de um milagre, o direito administrativo só subsiste, de resto, 9 rias jurídicas exorbitantes do direito comum, cuja justificativa teó rica seria a de melhor atender à consecução do interesse público. 5 A cada ano, repetimo-nos a nós mesmos e a nossos alunos a mesma fábula mistificadora: a de que a certidão de nascimento do direito administrativo foi a Loi de 28 do pluviose do ano VIII, edi tada em 1 800, organizando e limitando externamente a Administra ção Pública.6 Tal lei simbolizaria a superação da estrutura de poder do Antigo Regime, fundada não no direito, mas na vontade do so berano (quod regi placuit lex est) . A mesma lei que organiza a estru tura da burocracia estatal e define suas funções operaria como ins trumento de contenção do seu poder, agora subordinado à vontade heterônoma do Poder Legislativo. Dentro da lógica da separação dos poderes, ao Parlamento, como veículo de expressão da vontade geral, caberia o primado na elaboração das normas jurídicas, que não só limitariam como preordenariam a atuação dos órgãos administrativos . À Adminis tração restaria, assim, uma função meramente executiva, de cum primento mecânico da vontade já manifestada pelo legislador. Sur ge, destarte, a ideia da legalidade como vinculação positiva à lei: se aos particulares, em prestígio e valorização de sua autonomia públi ca e privada, é permitido fazer tudo aquilo que não lhes for vedado pela lei, à Administração Pública cabe agir tão-somente de acordo com o que lei prescreve ou faculta. Esta descrição romântica do fenômeno de surgimento do direito administrativo é acolhida por ninguém menos que Caio Tácito. Confira-se sua narrativa: "O episódio central da história administrativa do século XIX é a subordinação do Estado ao regime de legalidade. A lei, como ex pressão da vontade coletiva, incide tanto sobre os indivíduos como sobre as autoridades públicas. A liberdade administrativa cessa onde principia a vedação legal. O Executivo opera dentro dos limi tes traçados pelo Legislativo, sob a vigilância do Judiciário. "7 por um prodígio a cada dia renovado. ( . . . ) Para que o milagre se realize e se prolongue, devem ser preenchidas diversas condições que dependem da forma do Estado, do prestígio do direito e dos juízes, do espírito do tempo." s Neste sentido, Celso Antônio Bandeira de Melo, Curso de Direito Adminis- trativo, 1 999, p. 56/58 . 6 Guido Zanobini, Corso di Diritto Amministrativo, 1 947, vol. I, p. 3 3 . 7 Caio Tácito, Evolução Histórica do Direito Administrativo, in Temas de Direito Público, vol. I, 1 997, p. 2 . 1 0 Tal história seria esclarecedora, e até mesmo louvável, não fos se falsa. Descendo-se da superfície dos exemplos genéricos às pro fundezas dos detalhes, verifica-se que a história da origem e do desenvolvimento do direito administrativo é bem outra. E o diabo, como se sabe, está nos detalhes. A associação da gênese do direito administrativo ao advento do Estado de direito e do princípio da separação de poderes na França pós-revolucionária caracteriza erro histórico e reprodução acrítica de um discurso de embotamento da realidade repetido por suces sivas gerações, constituindo aquilo que Paulo Otero denominou ilusão garantística da gênese. 8 O surgimento do direito administra tivo, e de suas categorias jurídicas peculiares (supremacia do inte resse público, prerrogativas da Administração, discricionariedade, insindicabilidade do mérito administrativo, dentre outras) , repre sentou antes uma forma de reprodução e sobrevivência das práticas administrativas do Antigo Regime que a sua superação . A juridici zação embrionária da Administração Pública não logrou subordiná la ao direito; ao revés, serviu-lhe apenas de revestimento e aparato retórico para sua perpetuação fora da esfera de controle dos cida dãos. O direito administrativo não surgiu da submissão do Estado à vontade heterônoma do legislador. Antes, pelo contrário, a formu lação de novos princípios gerais e novas regras jurídicas pelo Con seil d'État, que tornaram viáveis soluções diversas das que resulta riam da aplicação mecanicista do direito civil aos casos envolvendo a Administração Pública, só foi possível em virtude da postura ati vista e insubmissa daquele órgão administrativo à vontade do Par lamento . 9 A conhecida origem pretoriana do direito administrati vo, como construção jurisprudencial (do Conselho de Estado) der rogatória do direito comum, traz em si esta contradição: a criação de um direito especial da Administração Pública resultou não da vontade geral, expressa pelo Legislativo, mas de decisão autovincu lativa do próprio Executivo. 10 8 V. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vin- culação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 27 1 . 9 Neste sentido, Pierre Delvolvé, Paradoxes du (ou paradoxes sur le) Príncipe de Séparation des Autorités Administrative et Judiciaire, in Mélanges René Cha pus - Droit Administratif, 1 992, p. 1 44 . 1 0 Vale lembrar que o sistema de contencioso administrativo francês sempre 1 1 Vale lembrar que o direito administrativo nasceu e se desenvol veu em um período marcado pela crença na completude das gran des codificações escritas, embora não exista, até hoje, uma única compilação geral de suas normas, caracterizadas, ao revés, por sua fragmentação e falta de organização sistemática. 1 1 Não à toa, à mín gua de uma sistematização escrita, o direito administrativo francês permaneceu, até período muito recente, um direito essencialmen te pretoriano, produto das construções jurisprudenciais do Conse lho de Estado . 1 2 Assim, como assinala Paulo Otero, "a idéia clássica de que a Revolução Francesa comportou a instauração doprincípio da lega lidade administrativa, tornando o Executivo subordinado à vontade do Parlamento expressa através da lei, assenta num mito repetido por sucessivas gerações: a criação do direito administrativo pelo Conseil d 'État, passando a Administração Pública a pautar-se por normas diferentes daquelas que regulavam a actividade jurídico privada, não foi um produto da vontade da lei, antes se configura como uma intervenção decisória autovinculativa do Executivo sob proposta do Conseil d 'État. " 1 3 Tal circunstância histórica subverte, a um só golpe, os dois pos tulados básicos do Estado de Direito em sua origem liberal: o prin cípio da legalidade e o princípio da separação de poderes. De fato, a atribuição da função de legislar sobre direito administrativo a um órgão da jurisdição administrativa, intestino ao Poder Executivo, não se coaduna com as noções clássicas de legalidade como submis são à vontade geral expressa na lei (Rousseau) e de partilha das funções estatais entre os poderes (Montesquieu) . Nenhum cunho garantístico dos direitos individuais se pode esperar de uma Admi nistração Pública que edita suas próprias normas jurídicas e julga soberanamente seus litígios com os administrados. reservou ao Poder Executivo a última palavra sobre a competência do Conselho de Estado, criando-se, por via indireta, uma forma suí generís de o Poder Execu tivo se substituir ao Poder Legislativo na criação do direito especial da Adminis tração Pública. Neste sentido, v. Maria da Glória Ferreira Pinto Dias Garcia, Da Justiça Administrativa em Portugal - Sua Origem e Evolução, 1 994, p . 3 1 5/3 1 6. 1 1 Patrícia Baptista, Transformações do Direito Administrativo, 2003, p . 2 . 1 2 François Burdeau, Hístoire du Droít Admínistratíf, 1 995, p . 1 9. 1 3 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vincula ção Administrativa à Jurídicidade, 2003, p. 27 1 . 1 2 Chega-se, assim, à segunda contradição na gênese do direito administrativo: a criação da jurisdição administrativa. Contrarian do a noção intuitiva de que ninguém é bom juiz de si mesmo, a introdução do contencioso administrativo - e a consequente sub tração dos litígios jurídico-administrativos da alçada do Poder Judi ciário -, embora alicerçada formalmente na ideia de que "julgar a Administração ainda é administrar" (juger l 'administration c 'est encare administrer) , não teve qualquer conteúdo garantístico, mas antes se baseou na desconfiança dos revolucionários franceses con tra os tribunais judiciais, pretendendo impedir que o espírito de hostilidade existente nestes últimos contra a Revolução limitasse a ação das autoridades administrativas revolucionárias. 1 4 A invocação do princípio da separação de poderes foi um sim ples pretexto, mera figura de retórica, visando a atingir o objetivo de alargar a esfera de liberdade decisória da Administração, tornan do-a imune a qualquer controle judicial . 1 5 Aliás, o modelo de con tencioso em que a Administração julgaria a si própria não repre sentou qualquer inovação da Revolução Francesa, sendo, ao revés, uma continuidade daquele vigorante no Antigo Regime . 1 6 Tal como afirmado por Tocqueville, "nesta matéria encontraríamos a fórmu la; ao Antigo Regime pertence a idéia . " 1 7 A institucionalização de tal modelo, e sua surpreendente iden tidade com a estrutura de poder das monarquias absolutistas, reve la o quanto o direito administrativo, em seu nascedouro, era alheio a qualquer propósito garantístico. Ao contrário, seu intuito primei ro foi o de diminuir as garantias de que os cidadãos disporiam caso pudessem submeter o controle da atividade administrativa a um poder equidistante, independente e imparcial - o Poder Judiciá rio . Como corretamente assinala Vasco Manuel Dias Pereira da S ilva, "só, pouco a pouco, é que o Direito Administrativo vai dei xando de ser o direito dos privilégios especiais da Administração, 14 V., sobre o verdadeiro móvel da criação da jurisdição administrativa, André de Laubadere, Jean-Claude Venezia, Yves Gaudemet, Traité de Droit Adminis tratif, vol. 1, 1 990, p. 248. 1 5 No mesmo sentido, Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vinculação Administrativa à Jurídicidade, 2003, p. 275 . 1 6 Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, Para um Contencioso Administrativo dos Particulares - Esboço de uma teoria subjectívísta do recurso contencioso de anulação, 1 989, p. 27 . 1 7 Alexis de Tocqueville, O Antigo Regime e a Revolução, 1 989, p. 64. 1 3 para se tornar no direito regulador das relações jurídicas adminis trativas. Milagre, mesmo, é essa sua transformação de 'direito da Administração ' em Direito Administrativo. " 1 8 Em reforço ainda maior à ideia, releva destacar que, mesmo no âmbito do Conselho de Estado, desenvolveu-se uma ampla e inten sa jurisprudência sobre os limites da própria jurisdição administra tiva, seja excluindo-se certos atos da esfera de reexame - como os atos de governo e os atos de pura administração -, seja limitando se artificialmente o espectro de fundamentos do recurso conten cioso, ou ainda pelo desenvolvimento de uma estrita legitimidade processual ativa . 1 9 É já nesse período que se evidencia, como nítido propósito do contencioso administrativo, a criação de um direito processual administrativo, consagrando inúmeras regras de privilé gio em favor da Administração . O velho dogma absolutista da ver ticalidade das relações entre o soberano e seus súditos serviria para justificar, sob o manto da supremacia do interesse público sobre os interesses dos particulares, a quebra de isonomia. E nem se diga que este estatuto especial da Fazenda Pública se limitou historica mente aos primórdios do século XIX, pois, como registra José Car los Vieira de Andrade, ele chegou até o século XXI. zo É curioso notar como a separação de poderes serviu, contradi toriamente, a esse processo de imunização decisória dos órgãos do Poder Executivo. O mesmo princípio que justificara a criação do contencioso administrativo, intestino ao Executivo, será invocado para impedir que os órgãos de controle exerçam sobre os outros órgãos da Administração poderes de injunção e substituição, em princípio legítimos e até naturais entre órgãos da mesma estrutura de Poder. Em outras palavras, criou-se no interior da Administra ção um contencioso que não oferecia ao administrado as mesmas garantias processuais dos tribunais judiciários, mas, estranhamen te, estava sujeito aos mesmos limites externos de atuação, como se se tratasse do próprio Poder Judiciário. Se algum sentido garantís tico norteou e inspirou o surgimento e o desenvolvimento da dog- 1 8 Vasco Manuel Dias Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Per dido, 1 998, p. 37 . 1 9 V. Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vin culação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 276. 20 José Carlos Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições) , 1 999, p . 50/5 1 . 1 4 mática administrativista, este foi em favor da Administração, e não dos cidadãos .2 1 Nesse contexto, as categorias básicas do direito administrativo, como a discricionariedade e sua insindicabilidade perante os órgãos contenciosos, a supremacia do interesse público e as prerrogativas jurídicas da Administração, são tributárias deste pecado original consistente no estigma da suspeita de parcialidade de um sistema normativo criado pela Administração Pública em proveito próprio, e que ainda se arroga o poder de dirimir em caráter definitivo, e em causa própria, seus litígios com os administrados. 22 Na melhor tra dição absolutista, além de propriamente administrar, os donos do poder criam o direito que lhes é aplicável e o aplicam às situações litigiosas com caráter de definitividade . Captando tal evidência, Diogo de Figueiredo Moreira Neto afirma1 com propriedade, que os conceitos ligados à preservação daautoridade "assomaram a tal importância estruturante que a litera tura jurídica do direito administrativo tornou-se praticamente unâ nime quanto à articulação dogmática da disciplina sobre a ideia central - magistralmente sintetizada por Umberto Allegretti - de que o interesse público é um interesse próprio da pessoa estatal, externo e contraposto aos dos cidadãos" . 23 Vale notar que a relutância dos países vinculados ao sistema de common law - seja na sua versão original inglesa, seja na sua versão híbrida norte-americana - em reconhecer autonomia didático científica ao direito administrativo e o repúdio à adoção da jurisdi ção administrativa deveram-se à tradição existente, naquelas na ções, de submissão das relações entre Administração e cidadãos às mesmas regras e aos mesmos juízes que decidiam os litígios entre particulares . Embora também lá tenham existido - e ainda exis- 2 1 Maurice Hauriou, em seu Précis Élémentaire de Droit Administratif, 1 943, p . 1 9, afirma que são as prerrogativas especiais da autoridade administrativa que funcionam como causa e medida da independência científica do direito adminis trativo. Paulo Otero, a seu turno, na obra Direito Administrativo - Relatório, 200 1 , p. 227, afirma que só por manifesta ilusão de ótica ou equívoco se poderá vislumbrar uma gênese garantística no direito administrativo - o direito admi nistrativo nasce como direito da Administração Pública e não como direito dos administrados. 22 V., neste sentido, João Baptista Machado, Introdução ao Direito e ao Dis curso Legitimador, 1 989, p . 1 37 . 2 3 Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Mutações do Direito Administrativo, 2000, p. 1 0/ l l . 1 5 tam - normas que contemplavam imunidades ao poder político (v.g. , a ideia da irresponsabilidade civil do Estado expressa na má xima the king can do no wrong, só superada em meados do século XX) , o direito administrativo anglo-saxão não se formou como uma estrutura dogmática munida de categorias a serviço do poder. 24 Cabe aqui fazer o registro deste que é o paradoxo da origem do direito administrativo nos dois grandes sistemas jurídicos do Oci dente: embora surgido em um país vinculado à tradição romano germânica, sua elaboração deu-se por construção do juiz adminis trativo - processo típico do common law; enquanto isso, nos países anglo-saxônicos, o reconhecimento da autonomia do direito admi nistrativo, já em momento avançado do século XX, ligou-se sobre tudo à legislação escrita (processo característico do sistema roma no-germânico) . Com efeito, a existência de um direito diferencia do do direito comum, consagrado por intermédio do sistema de precedentes judiciais (judge-made law) , deveria naturalmente re sultar de decisão soberana do Parlamento.25 Enquanto a tradição do direito público anglo-saxão exigia, como elemento constitutivo do próprio Estado de direito (rule of law) , que indivíduos e entes públicos fossem submetidos às mes mas leis e aos mesmos juízes ordinários - com a vedação genérica, em princípio, a tratamentos privilegiados para o Poder Público26 -, na tradição continental o direito administrativo é definido, em sua própria natureza, como uma lei essencialmente desigual, que conferia à Administração, como condição para a satisfação do inte resse geral, posição de supremacia sobre os direitos individuais . 27 24 Como se sabe, embora a prática regulatória norte-americana remonte à se gunda metade do século XIX, o direito administrativo só vem a ser reconhecido nos Estados Unidos como disciplina autônoma muito tempo depois, já no século XX. A rigor, no entanto, não há naqueles países a adoção das mesmas categorias do direito administrativo de tradição continental, sendo antes a disciplina iden tificada com o complexo normativo regulador editado por agências reguladoras independentes e agências executivas . V., sobre o tema, Breyer, Stewart, Suns tein and Spitzer, Administrative Law and Regulatory Policy - Problems, Text, and Cases, Aspen Law and Business, 2002. 25 Paul Craig, Administrative Law, 1 999, p. 32 . 26 Albert V. Dicey, An Introduction to the Study of the Law of the Constitution, original de 1 885 , 1 0ª Edição, 1 959 . 27 M. Letourneur, The Concept of Equity in French Public Law, in R. A. New man (org.) , Equity in the Worlds Legal Systems: A Comparative Study, 1 973, p . 262/263. 16 Assim se compreende a enorme fenda, denunciada por Toc queville ainda em 1 830 e elevada a mito por Albert Dicey no final do século XIX, entre as experiências administrativas européia con tinental e anglo-saxônica. Enquanto no mundo europeu continen tal pós-revolucionário, o Estado-Administração torna-se o grande protagonista da produção normativa e da estruturação da vida eco nômica e social privadas, na Inglaterra e nos Estados Unidos, ao revés, a Administração Pública permaneceu, até pelo menos o pri meiro pós-guerra, desempenhando um papel meramente executi vo, subordinada ao direito comum e sob a vigilância do Poder Judi ciário. 28 No Brasil, o modelo de administração implantado a reboque da colonização de exploração, somado ao patrimonialismo da Coroa portuguesa que se tornou nota característica da cultura política brasileira, 29 encontrou no figurino francês do direito administrativo material farto para se institucionalizar e legitimar. Como se preten de demonstrar ao longo do texto, as peculiaridades da Administra ção Pública brasileira apenas aguçaram as contradições intrínsecas que o modelo jusadministrativista europeu continental trazia já desde a sua gênese . 1 .2 . A evolução contraditória do direito administrativo: a dogmá tica administrativista no divã. A precedente revisão histórica, a respeito das origens do direito administrativo europeu continental, não importa, todavia, anuên cia à concepção marxista da história ou a admissão de alguma teoria da conspiração, arquitetada de forma deliberada pelos detentores do poder para se subtrair à esfera de controle dos cidadãos . O di reito, como os homens, vive e se define por suas próprias circuns- 28 Luca Mannori e Bernardo Sordi, Justicia e Administración, in El Estado Moderno en Europa, Maurizio Fioravanti (org.) , 2004, p. 83/84. 29 Sobre o papel do patrimonialismo na formação da cultura político-adminis trativa brasileira, v. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil, 1 995 , p . 1 4 1/1 5 1 ; Raymundo Faoro, Os Donos do Poder, v. 2 , 1 989, especialmente o seu último capítulo, intitulado "Viagem Redonda: do patrimonialismo ao estamen to", p. 729/750. 1 7 tâncias, j amais se deixando reduzir a móveis únicos e razões uní vocas . Assim, se não é mais possível compactuar com a visão românti ca de um surgimento milagroso e pleno de boas intenções (voltadas permanentemente à proteção da cidadania e ao controle jurídico do poder) , tampouco seria lícito advogar que uma monolítica razão maquiavélica (no sentido de uma lógica de preservação do poder) esteve sempre por trás de todo o desenvolvimento do direito admi nistrativo . Mais correto é pensar a evolução histórica da disciplina como uma sucessão de impulsos contraditórios, 30 produto da ten são dialética entre a lógica da autoridade e a lógica da liberdade. Se, em sua origem, o direito administrativo se traduzia em uma normatividade marcada pelas ideias de parcialidade e desigualda de, sua evolução histórica revelou um incremento significativo da quilo que se poderia chamar de vertente garantística, caracterizada por meios e instrumentos de controle progressivo da atividade ad ministrativa pelos cidadãos.3 1 Nada obstante, como se verá a se guir, essa não foi uma tendência constante, progressiva e unidire cional, sendo antes combinada com estratégias de fuga à rigidez das formas e às restrições legais à liberdade decisória da Administra ção . Constituída pelo trabalho desses dois vetores contraditórios, a dogmática administrativista reflete esse caráterambíguo em inú meros dos seus institutos e na fragilidade de sua estrutura teórica. Talvez o aspecto mais paradoxal dessa acidentada evolução te nha sido o que Sebastian Martín-Retortillo identificou como uma fuga do direito constitucional .32 Com efeito, embora criado sob o signo do Estado de direito, para solucionar os conflitos entre auto ridade (poder) e liberdade (direitos individuais) , o direito adminis trativo experimentou, ao longo de seu percurso histórico, um pro cesso de descolamento do direito constitucional. A própria descon tinuidade das constituições, em contraste com a continuidade da burocracia, contribuiu para que o direito administrativo se nutrisse 30 Paulo Otero, Direito Administrativo - Relatório, 2001 , p. 229. 3 1 Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sentido da Vincula ção Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 282 . 32 Sebastian Martín-Retortillo Baquer, El Derecho Civil en la Genesis del De recho Administrativo y de sus Instituciones, 1 996, p . 2 1 5 . 1 8 de categorias, institutos, princípios e regras próprios, mantendo-se de certa forma alheio às sucessivas mutações constitucionais . Assim, v.g. , uma das categorias básicas do direito administrati vo - a multifária noção de interesse público - de origem pré-cons titucional, resiste em alguns países até os dias de hoje completa mente alheia à juridicização de princípios e objetivos do Estado e da coletividade, operada pela Constituição. Mesmo em nações que adotaram o modelo de constituição dirigente - como Portugal e Brasil -, a doutrina administrativista permaneceu oferecendo as mais diversas conceituações de interesse público, quase todas sem qualquer referência às prescrições de suas respectivas Leis Funda mentais . No mais das vezes, o discurso da autonomia científica do direito administrativo serviu de pretexto para liberar os adminis tradores públicos da normatividade constitucional. A mesma reflexão pode ser feita em relação à discricionarieda de administrativa. Durante muito tempo - sem que isso provo casse maior polêmica - a discricionariedade era definida como uma margem de liberdade decisória dos gestores públicos, sem qualquer remissão ou alusão aos princípios e regras constitucionais . Vale lembrar que a primeira evolução no sentido do controle judi cial dos atos (ditos) discricionários - com o surgimento de teorias como as do desvio de poder e dos motivos determinantes - partiu de elementos vinculados à lei, e não à Constituição, embora diver sos Estados europeus à época já tivessem sido constitucionalizados. Aliás, a discricionariedade administrativa representou, tam bém, um movimento contraditório do direito administrativo em relação à própria legalidade, sobretudo a partir de quando esta pas sa a ser entendida como vinculação positiva à lei. De fato, no con texto de uma teoria que pretendia, em essência, a submissão inte gral da atividade administrativa à vontade do legislador, a discricio nariedade pode ser vista como uma insubmissão ou, pelo menos, uma não-submissão. Todavia, contradição mais contundente que a mera existência dos atos discricionários é a constatação de que es tes representam a grande maioria dos atos administrativos , dada a mutiplicidade de situações que reclamam a atuação do Poder Pú blico . Outro impulso contraditório do direito administrativo é aquilo que Maria João Estorninho chamou, inspirada na doutrina alemã, 19 de uma fuga para o direito privado (Flucht in das Privatrecht) . 33 Constituído, justamente, por um conjunto de adaptações e recria ções de institutos do direito civil, o regime jurídico administrativo, desde pelo menos o advento do Estado de bem-estar, passou a fa zer um curioso caminho de volta. Se o regime administrativo se caracteriza por uma combinação de prerrogativas e restrições, a fuga para o direito privado permite que as administrações centrais e ou diretas) conservem suas prerrogativas 1 despindo-se das restri ções por meio da constituição de entidades administrativas com personalidade de direito privado. Mas não só isso. Esta privatização da atividade administrativa tem se dado por variadas formas e em diferentes setores . A emer gência do gerencialismo procura aplicar técnicas de organização e gestão empresariais privadas à Administração Pública. A ideia de consensualidade tem cada vez mais permeado as relações entre ad ministrados e Administração. A intervenção direta do Estado na economia tem sido substituída por parcerias com a iniciativa priva da, pelas quais empresas não-estatais passam a explorar serviços públicos e atividades econômicas antes sujeitas a monopólio esta tal. O Estado prestador é agora sucedido por um Estado eminente mente regulador. Assiste-se, assim, à emergência de filhotes híbridos da vetusta dicotomia entre a gestão pública e a gestão privada: a atividade de gestão pública privatizada (regime administrativo flexibilizado) e a atividade de gestão privada publicizada ou administrativizada (regime privado altamente regulado) . Essa hibridez de regimes ju rídicos, caracterizada pela interpenetração entre as esferas pública e privada, representa um dos elementos da crise de identidade do direito administrativo. 34 Por fim, resta uma alusão à problemática das transformações recentes (em países da Europa continental e no Brasil) no modelo de organização administrativa. O surgimento e a proliferação das chamadas autoridades administrativas independentes subverteu a 33 Maria João Estorninho, A Fuga para o Direito Privado. Contributo Para o Estudo daActividade de Direito Privado da Administração Pública, 1 996. Sobre o tema, v. também Giuseppe di Gaspare, Il Potere nel Diritto Pubblico, 1 992, p. 385 ; Santiago González-Varas Ibafiez, El Derecho Administrativo Privado, 1 996. 34 Eduardo Paz Ferreira, Lições de Direito da Economia, 200 1 , p . 43 . 20 ideia de unidade da Administração Pública, substituindo-a pela no ção de uma Administração policêntrica. 35 O sistema político-administrativo dominante no continente eu ropeu e no Brasil desde o século XIX concentra no governo (presi dente ou primeiro-ministro e seu gabinete) , enquanto órgão supe rior da Administração Pública, poderes de intervenção intra-admi nistrativa sobre o conjunto amplo de órgãos e entidades sob sua chefia, respondendo politicamente perante o parlamento ou dire tamente ao povo, conforme o sistema de governo, pelas ações e omissões administrativas, na medida em que se encontra habilitado a dirigir, orientar, supervisionar ou controlar as respectivas estrutu ras organizativas . 36 Esse modelo, que encontra similar no constitucionalismo brasi leiro, 37 acabou erigindo a unidade administrativa em verdadeiro instrumento do princípio democrático e em fator de legitimação da Administração Pública .38 A responsabilidade política do chefe de governo junto ao povo (em sistemas presidencialistas) ou ao parla mento (em sistemas parlamentaristas) , num regime em que ele é também o chefe supremo da Administração, convolou-se em con dição necessária da controlabilidade ( accountability) social da atuação da burocracia. Pode-se mesmo dizer que este era o contra ponto democrático da chamada crise da lei e da notável expansão das margens decisórias da Administração na definição das políticas públicas . Tal sistema entra em crise com a importação, para diversos paí ses da Europa continental e para o Brasil, da figura da independent regulatory agency (agência reguladora independente) . Esse tipo de estrutura institucional só se proliferaria na Europa ocidental a par- 35 Sobre o tema, v. Capítulo VI, infra. 36 Paulo Otero, O Poder de Substituição em Direito Administrativo: Enqua dramento Dogmático-Constitucional, vol. II, p. 792 . 37 A Constituição brasileira de 1 988, em seu art. 84, II, confere ao Presidente da República, com o auxílio dos Ministros de Estado, o poder de direção superior sobre a AdministraçãoPública federal. 38 Sobre as relações entre a unidade da Administração Pública e o princípio democrático, v. Rudolf Mõgele, Die Eínheit der Verwaltungs als Rechtsproblem, 1 987 , p. 545 apud Paulo Otero, Legalidade e Administração Pública - O Sen tido da Vinculação Administrativa à Juridicidade, 2003, p. 3 1 6 . 2 1 tir dos anos setenta e oitenta do século XX, sob o influxo dos pro j etos de governança comunitária promovidos pela União Européia, com o nome de autoridade administrativa independente, enquanto ao Brasil só chegaria nos anos noventa, a reboque dos processos de privatização e reforma do Estado. As autoridades ou agências independentes quebraram o vínculo de unidade no interior da Administração Pública, eis que a sua ati vidade passou a situar-se em esfera jurídica externa à da responsa bilidade política do governo. Caracterizadas por um grau reforçado da autonomia política de seus dirigentes em relação à chefia da Administração central, as autoridades independentes rompem o modelo tradicional de recondução direta de todas as ações adminis trativas ao governo (decorrente da unidade da Administração) . Passa-se, assim, de um desenho piramidal para uma configuração policêntrica. 39 A não-submissão das autoridades independentes à linha hierár quica da chefia da Administração tem sido normalmente justifica da pela necessidade de dotar a regulação de alguns setores da eco nomia e da vida social de maior neutralidade, profissionalismo e qualificação técnica, objetivo que não se conseguiu atingir em um modelo unitário, onde a atividade administrativa acabava por tor nar-se diretamente responsiva à lógica político-eleitoral . Todavia, ao avanço da tecnocracia sobre espaços tradicionalmente ocupados pela política corresponde um risco de deslegitimação das estrutu ras estatais de poder.40 lnobstante suas possíveis justificativas teóricas e pragmáticas, fato é que as autoridades administrativas independentes repre sentam mais um elemento problemático no acidentado e contradi tório percurso de evolução do direito administrativo . Tais contradições, construídas e reproduzidas em momentos históricos distintos pelo mundo afora, convergem agora, no Brasil, para um momento de inflexão teórica que se poderia caracterizar como uma crise dos paradigmas do direito administrativo brasi leiro. 39 Francesco Caringella, Corso di Diritto Amministrativo, 200 1 , vol. 1, p . 6 1 9 e ss. 40 Sobre o tema, v. Capítulo VI, infra. 22 1 .3. Delimitando o objeto da investigação: a crise dos paradigmas do direito administrativo brasileiro. Como se pretendeu demonstrar acima, a crise dos paradigmas do direito administrativo não se constitui apenas do novo, mas exi be também, em larga medida, alguns vícios de origem. Não obstan te, as transformações por que passou o Estado moderno, desde a ascensão do Estado providência até o seu colapso, verificado nas últimas décadas do século XX, assim como a emergência do Estado democrático de direito, agravaram o descompasso entre as velhas categorias e as reais necessidades e expectativas das sociedades contemporâneas em relação à Administração Pública. Captando a evidência, assim Marçal Justen Filho sintetiza a aventada crise : 110corre que o instrumental teórico do direito administrativo se reporta ao século XIX. Assim se passa com os conceitos de Estado de Direito, princípio da legalidade, discricionariedade adminis trativa. A fundamentação filosófica do direito administrativo se relaciona com a disputa entre DUGUIT e HAURIOU, ocorrida nos primeiros decênios do século XX. A organização do aparato administrativo se modela nas concepções napoleônicas, que tradu zem uma rígida hierarquia de feição militar. (. . .) O conteúdo e as interpretações do direito administrativo permanecem vinculados e referidos a uma realidade sociopolítica que há muito deixou de existir. O instrumental do direito administrativo é, na sua essên cia, o mesmo de um século atrás. "41 Nesta toada, é possível identificar quatro paradigmas clássicos do direito administrativo que fizeram carreira no Brasil e que se encontram em xeque na atualidade, diante de transformações de correntes da nova configuração do Estado democrático de direito: 1) o dito princípio da supremacia do interesse público sobre o in teresse privado, que serviria de fundamento e fator de legitimação para todo o conjunto de privilégios de natureza material e proces sual que constituem o cerne do regime jurídico-administrativo;42 41 Marçal Justen Filho, Curso de Direito Administrativo, 2005, p. 1 3 . 42 Neste sentido, v. Celso Antônio Bandeira de Melo, O Conteúdo do Regime Jurídico-Administrativo e seu Valor Metodológico, Revista de Direito Público, V�. 2, 1 967, p . 45/47. 23 II) a legalidade administrativa como vinculação positiva à lei, tra duzida numa suposta submissão total do agir administrativo à vontade previamente manifestada pelo Poder Legislativo. Tal pa radigma costuma ser sintetizado na negação formal de qualquer vontade autônoma aos órgãos administrativos, que só estariam au torizados a agir de acordo com o que a lei rigidamente prescreves se ou facultasse;43 III) a intangibilidade do mérito administrativo, consistente na in controlabilidade das escolhas discricionárias da Administração Pú blica, seja pelos órgãos do contencioso administrativo, seja pelo Poder Judiciário (em países, como o Brasil, que adotam o sistema de jurisdição una) , seja pelos cidadãos, através de mecanismos de participação direta na gestão da máquina administrativa;44 IV) a ideia de um Poder Executivo unitário, fundada em relações de subordinação hierárquica (formal ou política) entre a burocra cia e os órgãos de cúpula do governo (como os Ministérios e a Presidência da República) . Na tradição do constitucionalismo bra sileiro, a fórmula da Administração unitária é sintetizada, como no atual art. 84, inciso II, da Constituição de 1 988, na competência do Chefe do Executivo para exercer a direção superior da Admi nistração, com o auxílio dos Ministros de Estado. Como agente condutor básico da superação de tais categorias jurídicas, erige-se hodiernamente a ideia de constitucionalização do direito administrativo como alternativa ao déficit teórico apon tado nos itens anteriores, pela adoção do sistema de direitos funda mentais e do sistema democrático qual vetores axiológicos - tradu zidos em princípios e regras constitucionais - a pautar a atuação da Administração Pública. Tais vetores convergem no princípio maior da dignidade da pessoa humana e, (1) ao se situarem acima e 43 Tal formulação clássica é devida, entre nós, a Hely Lopes Meirelles, Direito Administrativo Brasileiro, 1 995, p. 82/83: "Na Administração não há liberdade nem vontade pessoal. Enquanto na administração particular é lícito fazer tudo que a lei não proíbe, na Administração Pública só é permitido fazer o que a lei autoriza. " V. também, sobre o tema, Luís Roberto Barroso, Disposições Constitu cionais Transitórias: conceito e classificação. Delegações Legislativas: validade e extensão. Poder Regulamentar: conteúdo e limites, in O Direito Constitucional e a Efetividade de suas Normas, 1 993, p. 387 . 44 Maria Sylvia Zanella Di Pietro, Discricionariedade Administrativa na Cons tituição de 1 988, 1 99 1 , p. 93 e ss. 24 para além da lei, (II) vincularem juridicamente o conceito de inte resse público, (III) estabelecerem balizas principiológicas para o exercício legítimo da discricionariedade administrativa e (IV) ad mitirem um espaço próprio para as autoridades administrativas independentes no esquema de separação de poderes e na lógica do regime democrático, fazem ruir o arcabouço dogmático do velho direito administrativo. 45 Assim, tem-se que: (i) a Constituição, e não mais a lei, passa a situar-se no cerne da vinculação administrativa à juridicidade; (ii) a definição do que é o interesse público, e de sua propaladasupremacia sobre os interesses particulares, deixa de estar ao in teiro arbítrio do administrador, passando a depender de juízos de ponderação proporcional entre os direitos fundamentais e outros valores e interesses metaindividuais constitucionalmente consa grados; (iii) a discricionariedade deixa de ser um espaço de livre escolha do administrador para se convolar em um resíduo de legitimida de, 46 a ser preenchido por procedimentos técnicos e jurídicos prescritos pela Constituição e pela lei com vistas à otimização do grau de legitimidade da decisão administrativa. Com o incremen to da incidência direta dos princípios constitucionais sobre a ativi dade administrativa e a entrada no Brasil da teoria dos conceitos jurídicos indeterminados, abandona-se a tradicional dicotomia en tre ato vinculado e ato discricionário, passando-se a um sistema de graus de vinculação à juridicidade; (iv) a noção de um Poder Executivo unitário cede espaço a uma miríade de autoridades administrativas independentes, denomi- 45 Neste sentido, Patrícia Ferreira Baptista, Transformações do Direito Admi nistrativo, 2003, p. 1 29-30: "Da condição de súdito, de mero sujeito subordina do à Administração, o administrado foi elevado à condição de cidadão. Essa nova posição do indivíduo, amparada no desenvolvimento do discurso dos direitos fundamentais, demandou a alteração do papel tradicional da Administração Pú blica. Direcionada para o respeito à dignidade da pessoa humana, a Administra ção, constitucionalizada, vê-se compelida a abandonar o modelo autoritário de gestão da coisa pública para se transformar em um centro de captação e ordena ção dos múltiplos interesses existentes no substrato social ." 46 A expressão é devida a Diogo de Figueiredo Moreira Neto, Legitimidade e Discricionariedade - Novas Reflexões sobre os Limites e Controle da Discricio nariedade, 2002, p. 3 3 . 25 nadas entre nós, à moda anglo-saxónica, agências reguladoras in dependentes, que não se situam na linha hierárquica direta do Pre sidente da República e dos seus Ministros . A pedra de toque dessa independência (ou autonomia reforçada) das agências reguladoras em relação ao governo é a independência política dos seus dirigen tes, nomeados por indicação do Chefe do Poder Executivo após aprovação do Poder Legislativo, e investidos em seus cargos a ter mo fixo, com estabilidade durante o mandato. Isto acarreta a im possibilidade de sua exoneração ad nutum pelo Presidente - tan to aquele responsável pela nomeação, como seu eventual sucessor, eleito pelo povo. À autonomia reforçada das agências, todavia, corresponderá um conjunto de controles jurídicos, políticos e so ciais, de modo a reconduzi-las aos marcos constitucionais do Esta do democrático de direito. Na tarefa de desconstrução dos velhos paradigmas e proposição de novos, a tessitura constitucional assume papel condutor deter minante, funcionando como diretriz normativa legitimadora das novas categorias . A premissa básica a ser assumida é a de que as feições jurídicas da Administração Pública - e, a fortiori, a disci plina instrumental, estrutural e finalística da sua atuação - estão alicerçadas na própria estrutura da Constituição, entendida em sua dimensão material de estatuto básico do sistema de direitos funda mentais e da democracia. Cumpre, entretanto, antes da apresentação da alvitrada mu dança dos paradigmas do direito administrativo brasileiro - e para evitar discussões meramente semânticas - esclarecer em que sen tido a palavra paradigma será empregada ao longo do texto. 1 .3 . 1 . A noção de paradigma adotada: um acordo semântico. A palavra de origem grega paradeigma significa modelo ou exemplo. Todavia, o sentido do termo - e dos seus correlatos crise e mudança de paradigma - que acabou vulgarizando-se remonta ao livro clássico de Thomas Kuhn, de 1 962 , A Estrutura das Revoluções Científicas . 47 Considerada uma das mais importantes contribuições à filosofia da ciência, a obra de Kuhn propõe uma 47 Thomas Kuhn, A Estrutura das Revoluções Científicas (tradução de Beatriz Vianna Boeira e Nelson Boeira}, 2005 . 26 nova forma de conceber a evolução científica e uma noção de para digma a ela peculiar. Segundo Kuhn, a história demonstra a emergência de determi nadas formas de se conceber a ciência e a realização científica, que se afirmam como paradigmas por um dado período de tempo. Tais paradigmas definem o objeto da empreitada científica, as questões que serão admissíveis, como as perguntas serão elaboradas e como as respostas serão interpretadas. É dizer: os paradigmas definem os contornos de um modelo científico e delimitam a lógica que permi tirá o seu aprimoramento e a obtenção de respostas a questões problemáticas . É interessante observar que, sob determinado paradigma, o que se pratica, segundo Kuhn, é a ciência normal, concebida como a investigação interna aos pressupostos da concepção científica vi gente . É segundo tais pressupostos que são escritos manuais e pre parados os estudantes para serem membros da comunidade cientí fica. Em um certo sentido, os paradigmas exercem uma eficácia bloqueadora, subtraindo determinados pressupostos à dúvida, cuja legitimidade é simplesmente aceita como premissa . Ocorre que, nesta investigação interna ao paradigma, algumas perguntas não são satisfatoriamente respondidas, enquanto outras recebem soluções anômalas. A sucessão de anomalias e questões não respondidas pode conduzir a uma crise do paradigma vigente, dando azo ao surgimento de teorias revolucionárias, que propõem a substituição do objeto e da forma como as perguntas devem ser feitas. Em tais momentos de crise, o que se propõe não são formas de aprimoramento ou harmonização do paradigma face a casos pro blemáticos, mas, ao revés, a própria revisão das premissas daquele modelo científico. Se o paradigma desafiante logra solidificar-se, as perguntas e objetos antigos são abandonados, passando-se a uma nova concepção do que seja fazer ciência. Nestas circunstâncias, portanto, terá havido uma mudança de paradigma. Convém assinalar que Kuhn (físico de formação) não deixa cla ro se considera tal estrutura evolutiva aplicável às ciências sociais, sendo certo, entretanto, que seus exemplos são todos colhidos das chamadas "ciências duras" . Independentemente disso, adota-se aqui uma concepção fraca de paradigma, de modo a torná-la apli cável à ciência do direito. Assim, a tese kuhniana não será propria mente testada, servindo antes como inspiração para a noção de paradigma jurídico aqui adotada. 27 Neste sentido, pode-se dizer que o discurso jurídico, como de corrência de seu caráter essencialmente dogmático, elege determi nadas premissas teóricas, em suas diferentes searas, que são tempo rariamente subtraídas à dúvida e cuja legitimidade decorre de sua aceitação ampla pela comunidade jurídica. Tais premissas conver tem-se, desta forma, em verdadeiros paradigmas da ciência do di reito, sob os quais todo um conjunto de teorias é erigido para expli car ou solucionar as questões emergentes de sua adoção. Esta seria a produção do direito convencional, de vez que circunscrita aos lindes teóricos estabelecidos no paradigma. Como ensina Tércio Sampaio Ferraz Junior, baseado em lição de Viehweg, o direito (como qualquer fenômeno) comporta análi se sob pelo menos dois enfoques distintos: o dogmático e o zetético . O enfoque dogmático caracteriza-se por uma limitação teórica, consistente na inegabilidade dos pontos de partida. "Um exemplo de uma premissa deste gênero, no direito contemporâneo, é o prin cípio da legalidade ( . . . ) que obriga o jurista a pensar os problemas comportamentais a partir da lei, conforme à lei, para além da lei mas nunca contra a lei . "48 Já o enfoque zetético caracteriza-se pela questionabilidade das premissas ou pontos de partida, o que con duz a análise, tendencialmente, a problematizações abertas e ilimi tadas.Assim, durante a vigência de um paradigma, a ciência do direito (assim como suas diversas disciplinas) é concebida a partir de de terminadas premissas ou pontos de partida, que servem como pos tulados explicativos de todo o sistema. Enquanto as soluções cons truídas em consonância com o paradigma permanecem dotadas de certo grau de plausibilidade e aceitação da comunidade jurídica, predomina o enfoque dogmático do direito. Não obstante, há momentos específicos em que, dado o acú mulo de anomalias não solucionadas dentro do paradigma, surgem teorias subversivas do próprio paradigma, que põem em xeque a sua legitimidade e propõem novas formas de conceber o objeto e a própria metodologia de trabalho da ciência jurídica. O que tradi cionalmente era aceito como premissa passa ao centro do debate 48 Tércio Sampaio Ferraz Junior, Introdução ao Estudo do Direito - Técnica, Decisão, Dominação, 1 994, p. 48. 28 científico, travando-se uma batalha teórica entre desafiantes e de safiados. Nestas circunstâncias, predomina o enfoque zetético do direito: trata-se de um momento de crise de paradigmas. A investigação aqui desenvolvida pretende demonstrar que o direito administrativo brasileiro encontra-se em um momento de crise de paradigmas, que se caracteriza, precisamente, pelo descré dito de suas antigas premissas teóricas e pela emergência de novas . A consolidação de novos paradigmas depende, todavia, do seu grau de plausibilidade e de sua capacidade de gerar consensos, com al guma pretensão de estabilidade, no seio da comunidade científica. Esta a pretensão maior deste trabalho. Passa-se, a seguir, a uma exposição sucinta das circunstâncias que caracterizam a crise de cada uma das quatro grandes premissas teóricas, identificadas como antigos paradigmas do direito admi nistrativo brasileiro, bem como das novas premissas que as desa fiam na atualidade, compondo o mosaico dos novos paradigmas da disciplina no Brasil. A Mudança de Paradigmas Proposta 1 .3 .2 . Da supremacia do interesse público ao dever de proporcio nalidade: a crise da ideia de regime jurídico administrativo. Tornou-se clássica, na literatura administrativista brasileira, a definição de Celso Antônio Bandeira de Mello para o dito princípio da supremacia do interesse público sobre os interesses particu lares: "Trata-se de verdadeiro axioma reconhecível no moderno Direito Público. Proclama a superioridade do interesse da coletividade, firmando a prevalência dele sobre o particular, como condição até mesmo, da sobrevivência e asseguramento deste último. É pressu posto de uma ordem social estável, em que todos e cada um possam sentir-se garantidos e resguardados. "49 49 Celso Antônio Bandeira de Mello, Curso de Direito Administrativo, 2003, p . 60. 29
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