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HAMARTIOLOGIA A DOUTRINA DO PECADO Louis Berkhof & Waine Grudem ESCOLA BÍBLICA DE DISCÍPULOS 1º Trimestre de 2013 Professor: Pr. Murilo Augusto 1 CRONOGRAMA DE AULA Aula 01 Por que o Homem Foi Criado? Aula 02 A Origem do Pecado! Aula 03 O Caráter Essencial do Primeiro Pecado! Aula 04 A Transmissão do Pecado! Aula 05 O Pecado na Vida da Raça Humana! Aula 06 A Punição do Pecado! 17/02 03 24 /02 08 10/03 17 17/03 28 24/03 35 31/03 47 2 POR QUE O HOMEM FOI CRIADO? 1. Deus não precisava criar o homem, mas nos criou para a sua própria glória. Deus nos criou para a sua própria glória. Na análise da independência divina, observamos que Deus se refere aos seus filhos e filhas das extremidades da terra como aqueles “que criei para minha glória” (Is 43.7; cf. Ef 1.11-12). Portanto, devemos fazer “tudo para a glória de Deus” (1Co 10.31). Esse fato garante a relevância da nossa vida. Percebendo que Deus não precisava nos criar, e que não precisa de nós para nada, poderíamos concluir que nossa vida não tem a menor importância. Mas as Escrituras nos dizem que fomos criados para glorificar a Deus, indicando que somos importantes para o próprio Deus. 2. Qual o nosso propósito na vida? O fato de Deus nos ter criado para a sua própria glória determina a resposta correta à pergunta: “Qual o nosso propósito na vida?” Nosso propósito deve ser cumprir a meta para que Deus nos criou: glorificá-lo. Quando falamos com respeito ao próprio Deus, eis aí um bom resumo do nosso propósito. Mas quando pensamos nos nossos próprios interesses, fazemos a feliz descoberta de que devemos nos alegrar em Deus e encontrar prazer no nosso relacionamento com ele. Diz Jesus: “Eu vim para que tenham vida e a tenham em abundncia” (Jo 10.10). Davi diz a Deus: “Na tua presena h plenitude de alegria, na tua destra, delícias perpetuamente” (Sl 16.11). C. O HOMEM À IMAGEM DE DEUS 1. O significado de “imagem de Deus”. De todas as criaturas que Deus fez, só de uma delas, o homem, diz-se ter sido feita “ imagem de Deus”. O que isso significa? Podemos usar a seguinte definição: o fato de ser o homem à imagem de Deus significa que ele é semelhante a Deus e o representa. 2. A queda: a imagem de Deus se distorce, mas não se perde. Podemos nos perguntar se é possível conceber que o homem, mesmo depois de pecar, ainda é como Deus. Essa pergunta é respondida ainda no início de Gênesis, onde Deus dá a Noé a autoridade de estabelecer a pena de morte para o homicídio logo depois da enchente; Deus diz: “Se algum derramar o sangue do homem, pelo homem se 3 derramará o seu; porque Deus fez o homem segundo a sua imagem” (Gn 9.6). Mesmo sendo os homens pecadores, ainda resta neles bastante semelhança a Deus, tanto que assassinar outra pessoa (“derramar o sangue” uma expressão do Antigo Testamento que significa tirar a vida humana) é atacar a parte da criação que mais se parece com Deus, e revela uma tentativa ou desejo (se isso fosse possível ao homem) de atacar o próprio Deus. 3. A redenção em Cristo: a recuperação gradual da imagem de Deus. No entanto, é animador abrir o Novo Testamento e ver que nossa redenção em Cristo significa que podemos, mesmo nesta vida, gradualmente crescer cada vez mais na semelhança de Deus. Por exemplo, Paulo diz que como cristãos temos uma nova natureza, que “se refaz para o pleno conhecimento, segundo a imagem daquele que o criou” (Cl 3.10). medida que vamos crescendo no verdadeiro conhecimento de Deus, da sua Palavra e do seu mundo, começamos a pensar cada vez mais os pensamentos que o próprio Deus tem. 4. Na volta de Cristo: a completa restauração da imagem de Deus. A admirável promessa do Novo Testamento é que, assim como somos hoje como Adão (sujeitos à morte e ao pecado), também seremos como Cristo no futuro (moralmente puros, jamais sujeitos morte de novo): “Assim como trouxemos a imagem do que terreno, devemos trazer também a imagem do celestial” (1Co 15.49). A plena medida da nossa criação à imagem de Deus não se vê na vida de Adão, que pecou, nem na nossa própria vida hoje, pois somos imperfeitos. 5. Aspectos específicos da nossa semelhança a Deus. Embora tenhamos argumentado acima que seria difícil definir todos os aspectos em que somos semelhantes a Deus, podemos assim mesmo mencionar vários aspectos que nos revelam mais parecidos com Deus do que todo o restante da criação. ASPECTOS MORAIS Somos criaturas moralmente responsáveis pelos nossos atos perante Deus. Correspondente a essa responsabilidade, temos um senso íntimo de certo e errado que nos separa dos animais (que têm pouco ou nenhum senso inato de moralidade ou justiça, mas simplesmente reagem ao medo do castigo ou à esperança da recompensa). Quando agimos segundo os parâmetros morais divinos, nossa semelhança a Deus se espelha numa 4 (1) (2) conduta santa e justa perante ele, mas, por outro lado, nossa dessemelhança a Deus se revela sempre que pecamos. ASPECTOS ESPIRITUAIS (4) Não temos somente corpos físicos, mas também espíritos imateriais, e podemos portanto agir de modos significativos no plano de existência imaterial, espiritual. Isso significa que temos (5) uma vida espiritual que possibilita que nos relacionemos pessoalmente com Deus, que oremos a ele e o louvemos, e ouçamos as palavras que ele nos diz. Animal nenhum jamais passou uma hora absorto em oração intercessória pela salvação de um parente ou de um amigo! Vinculado a essa vida espiritual está o fato de possuirmos (6) imortalidade; não cessaremos de existir, mas viveremos para sempre. ASPECTOS MENTAIS. (7) Temos a capacidade de raciocinar e pensar logicamente e de conhecer o que nos distingue do mundo animal. Os animais às vezes exibem conduta admirável na solução de complicações e problemas no mundo físico, mas certamente não se ocupam do raciocínio abstrato — não h algo como a “história da filosofia canina”, por exemplo, nem nenhum animal desde a criação evoluiu na compreensão de problemas éticos ou no uso de conceitos filosóficos, etc. (8) O uso que fazemos da linguagem complexa, abstrata, nos distingue dos animais. Pude pedir ao meu filho de quatro anos de idade que fosse pegar a chave de fenda grande e vermelha lá na caixa de ferramentas no porão. Mesmo que jamais a tivesse visto antes, poderia facilmente executar a tarefa, pois j conhecia os significados de “ir”, “pegar”, “grande”, “vermelha”, “chave de fenda”, “caixa de ferramentas” e “porão”. (9) Outra diferença intelectual entre seres humanos e animais é que temos uma noção de futuro distante, até um senso íntimo de que sobreviveremos à nossa morte física, senso que a muitos proporciona o desejo de tentar mostrar-se retos diante de Deus antes de morrer (Deus “pôs a eternidade no coraão do homem”, Ec 3.11). (10) Nossa semelhança a Deus também se percebe na criatividade humana em áreas como a arte, a música e a literatura, e na engenhosidade científica e tecnológica. Não devemos pensar que essa criatividade se restringe aos músicos ou artistas mundialmente famosos; também se reflete de maneira muito bela nas peças ou brincadeiras inventadas pelas crianças, na destreza que há no preparo de uma refeição, na decoração de um lar 5 (3) ou no cultivo de um jardim, e na criatividade exibida por todo ser humano que conserta algo que simplesmente não funcionava bem. (11) No aspecto das emoções, nossasemelhança a Deus se percebe numa grande diferença de grau e complexidade. É claro que os animais também exibem algumas emoções (qualquer pessoa que já tenha tido um cachorro certamente se lembra de evidentes expressões de alegria, tristeza, medo de castigo diante do erro, raiva se outro animal invade seu “território”, contentamento e afeto, por exemplo). Mas na complexidade das emoções que vivenciamos, novamente somos bem diferentes do resto da criação. ASPECTOS RELACIONAIS Além da capacidade única de nos relacionarmos com Deus, há outros aspectos relacionais ligados à imagem de Deus. (12) Embora os animais sem sombra de dúvida tenham alguma noção de comunidade, a profundeza de harmonia interpessoal que se vivencia no casamento humano, numa família humana que funcione segundo os princípios divinos, e numa igreja em que a comunidade de crentes ande em comunhão com o Senhor e uns com os outros, é muito maior do que a harmonia interpessoal vivenciada pelos animais. Na nossas relações familiares e na igreja também somos superiores aos anjos, que não se casam nem geram filhos nem vivem na companhia dos filhos e filhas remidos de Deus. (13) No próprio casamento, espelhamos a natureza de Deus no fato de os homens e as mulheres gozarem de igualdade de importância mas diversidade de papéis, desde que Deus nos criou. (14) O homem é como Deus no seu relacionamento com o restante da criação. Especificamente, o homem recebeu o direito de reger a criação, e quando Cristo voltar receberá até autoridade para julgar os anjos (1Co 6.3; Gn 1.26, 28; Sl 8.6-8). ASPECTOS FÍSICOS Será que em algum aspecto o corpo humano faz também parte daquilo que significa ser criado à imagem de Deus? Certamente não devemos pensar que nosso corpo físico implica que Deus tambm tem um corpo, pois “Deus espírito” (Jo 4.24), e pecado concebê-lo ou retratá-lo de algum modo que sugira que ele tem um corpo material ou físico (ver Êx 20.4; Sl 115.3-8; Rm 1.23). Mas ainda que não devamos em hipótese nenhuma considerar que nosso corpo físico implica que Deus também tem corpo físico, será que assim mesmo em alguns aspectos nosso corpo não reflete algo do caráter do 6 próprio Deus, constituindo portanto parte daquilo que significa ser criado à imagem de Deus? Isso é certamente verdadeiro em alguns aspectos. (15) nosso corpo físico, em vários aspectos, reflete também algo do próprio caráter de Deus. Além disso, muitos movimentos físicos e demonstrações das habilidades recebidas de Deus se fazem por meio do uso do corpo. E certamente (16) a capacidade física que Deus nos dá de gerar e criar filhos semelhantes a nós (ver Gn 5.3) é um reflexo da própria capacidade divina de criar seres humanos semelhantes a 6. Nossa grande dignidade como portadores da imagem de Deus. Seria bom se refletíssemos mais freqüentemente na nossa semelhança com Deus. É provável que fiquemos surpresos ao descobrir que quando o Criador do universo quis fazer algo “ sua imagem”, algo mais semelhante a si do que todo o resto da criação, ele nos criou. Essa descoberta nos dá um profundo senso de dignidade e importância, pois passamos a refletir sobre a excelência de todo o restante da criação divina: o universo estrelado, a terra abundante, o mundo das plantas e dos animais e os reinos dos anjos são admiráveis, magníficos mesmo. 7 ele. O HOMEM NO ESTADO DE PECADO I. A Origem do Pecado O problema do mal que há no mundo sempre foi considerado um dos mais profundos problemas da filosofia e da teologia. É um problema que se impõe naturalmente à atenção do homem, visto que o poder do mal é forte e universal, é uma doença sempre presente na vida em todas as manifestações desta, e é matéria da experiência diária na vida de todos os homens. Os filósofos foram constrangidos a encarar o problema e a procurar uma resposta quanto à origem de todo mal, e particularmente do mal moral, que há no mundo. A alguns, pareceu uma parte de tal modo integrante da vida, que buscaram a solução na constituição natural das coisas. Outros, porém, estão convictos que o mal teve uma origem voluntária, isto é, que se originou na livre escolha do homem, quer na existência atual quer numa existência anterior. Estes acham -se bem mais perto da verdade revelada na Palavra de Deus. A. Conceitos Históricos a Respeito da Origem do Pecado. Os mais antigos “pais da igreja”, assim chamados, não falam muito definidamente da origem do pecado, conquanto a idéia de que se originou na voluntária transgressão e queda de Adão no paraíso já achasse nos escritos de Irineu. Esta se tornou logo a idéia dominante na igreja, especialmente em oposição ao gnosticismo, que considerava o mal inerente à matéria e, como tal, produto do Demiurgo. O contato da alma humana com a matéria ime diatamente a tornou pecaminosa. Essa teoria naturalmente priva o pecado do seu caráter voluntário e ético. Orígenes procurou manter isso com a sua teoria do preexistencialismo. Segundo ele, as almas dos homens pecaram voluntariamente numa existência anterior e, portanto, entraram no mundo numa condição pecaminosa. Esta idéia platônica estava tão sobrecarregada de dificuldades que não pôde encontrar aceitação geral. Contudo, durante os séculos dezoito e dezenove foi defendida por Mueller e Rueckert, e por filósofos como Lessing, Schelling e J. H. Fichte. Em geral os chamados pais da igreja grega, do terceiro e do quarto século, mostravam certa inclinação para reduzir entre o pecado de Adão e o dos seus descendentes, ao passo que os “pais” da igreja latina ensinavam cada vez com maior clareza que a atual condição pecaminosa do homem encontra a sua explicação na primeira transgressão de Adão no paraíso. Os ensinos da igreja oriental culminaram finalmente no pelagianismo, que negava a existência de alguma relação vital entre ambos, enquanto que os da igreja ocidental chegaram ao seu ponto culminante no agostinianismo, que acentuava o fato de que somos culpados e corruptos em Adão. O semipelagianismo admitia a conexão adâmica, mas sustentava que isso explica apenas a corrupção do pecado, não a culpa. Durante a Idade Media reconhecia-se geralmente essa conexão. Às vezes era interpretada à maneira agostiniana, mas com mais freqüência, à maneira semipelagiana. Os reformadores 8 compartilhavam os conceitos de Agostinho, e os socinianos os de Pelágio, enquanto que os arminianos moviam-se em direção ao semipelagianismo. Sob a influencia do racionalismo e da filosofia evolucionista, a doutrina da queda do homem e de seus efeitos fatais sobre a raça humana aos poucos foi descartada. A idéia do pecado foi substituída pela do mal, e este mal era explicado de varias maneiras. Kant o considerava como uma coisa pertencente à esfera super - racional, que ele confessava não ter condições de explicar. Para Lebnitz, devia-se às necessárias limitações do universo. Schleiermacher via sua origem na natureza sentimental do homem, e Ritschl na ignorância humana, ao passo que o evolucionista o atribui à oposição das propensões inferiores à consciência moral em seu desenvolvimento gradativo. Barth fala da origem do pecado como o mistério da predestinação. O pecado originou-se na Queda, mas a Queda não foi um evento histórico; pertence à super-historia (Urgeschinchte). Adão foi de fato o primeiro pecador,mas a sua desobediência não pode ser considerada a causa do pecado do mundo. De algum modo, o pecado do homem está ligado à sua condição de criatura. A narrativa do paraíso apenas transmite ao homem a prazerosa informação de que ele não tem por que ser necessariamente um pecador. B. Dados Bíblicos a Respeito da Origem do Pecado. Na Escritura, o mal moral existente no mundo transparece claramente como pecado, isto é, como transgressão da lei de Deus. Nela o homem sempre aparece como transgressor pó natureza, e surge naturalmente a questão: Como adquiriu ele essa natureza? Que revela a Bíblia sobre esse ponto? 1. NÃO SE PODE CONSIDERAR DEUS COMO O SEU AUTOR. O decreto eterno de Deus evidentemente deu a certeza da entrada do pecado no mundo, mas não se pode interpretar isso de modo que faca de Deus a causa do pecado no sentido de ser Ele o seu autor responsável. Esta id ia claramente excluída pela Escritura. “Longe de Deus o praticar ele a perversidade, e do Todo-poderoso o cometer injustia”, Jó 34.10. Ele o santo Deus, Is 6.3, e absolutamente não há falta de retidão nele, Dt 32.4; Sl 92.16. Ele não pode ser tentado pelo mal, e Ele próprio não tenta a ninguém, Tg 1.13. Quando criou o homem, criou-o bom e à Sua imagem. Ele positivamente odeia o pecado, Dt 25.16; Sl 5.4; 11.5; Zc 8.17; Lc 16.15, e em Cristo fez provisão para libertar do pecado o homem. À luz disso tudo, seria blasfemo falar de Deus como o autor do pecado. E por essa razão, todos os conceitos deterministas que representam o pecado como uma necessidade inerente à própria natureza das coisas devem ser rejeitados. Por implicação, eles fazem de Deus o autor do pecado e são contrários, não somente à Escritura, mas também à voz da consciência, que atesta a responsabilidade do homem. 2. O PECADO ORIGINOU-SE NO MUNDO ANGÉLICO. A Bíblia nos ensina que, na tentativa de investigar a origem do pecado, devemos retornar à queda do homem, na descrição de Gn 3 e 9 fixar a tenção em algo que sucedeu no mundo angélico. Deus criou um grande númer o de anjos, e estes eram todos bons, quando saíram das mãos do seu Criador, Gn 1.31. Mas ocorreu uma queda no mundo angélico, queda na qual legiões de anjos se apartaram de Deus. A ocasião exata dessa queda não é indicada, mas em Jó 8.44 Jesus fala do diabo como assassino desde o princípio (kat’arches), e em 1 Jo 3.8 diz João que o diabo peca desde o princípio. A opinião é a de que a expressão kai’ arches significa desde o começo da história do homem. Muito pouco se diz sobre o pecado que ocasionou a queda dos anjos. Da exortação de Paulo a Timóteo, a que nenhum neófito fosse designado bispo, “para não suceder que se ensoberbea, e incorra na condena ão do diabo”, 1 Tm 3.6, podemos concluir que, co m toda a probabilidade, foi o pecado do orgulho, de desejar ser como Deus em poder e autoridade. E esta idéia parece achar corroboraão em Jd 6, onde se diz que os que caíram “não guardaram o seu estado original, mas abandonaram o seu próprio domicílio”. Não estavam contentes com a sua parte, com o governo e poder que lhes fora confiado. Se o desejo de serem semelhantes a Deus foi a tentação peculiar que sofreram, isto explica por que tentaram o homem nesse ponto particular. 3. A ORIGEM DO PECADO NA RAÇA HUMANA. Com respeito à origem do pecado na história da humanidade, a Bíblia ensina que ele teve início com a transgressão de Adão no paraíso e, portanto, com um ato perfeitamente voluntário da parte do homem. O tentador veio do mundo dos espíritos com a sugestão de que o homem, colocando-se em oposição a Deus, poderia tornar-se semelhante a Deus. Adão se rendeu à tentação e cometeu o primeiro pecado, comendo do fruto proibido. Mas a coisa não parou aí, pois com esse primeiro pecado Adão passou a ser escravo do pecado. Esse pecado trouxe consigo corrupção permanente, corrupção que, dada a solidariedade da raça humana, teria efeito, não somente sobre Adão, mas também sobre todos os seus descendentes. Como resultado da Queda, o pai da raça só pôde transmitir uma natureza depravada aos pósteros. Dessa fonte não santa o pecado flui numa corrente impura passando para todas as gerações de homens, corrompendo tudo e todos com que entra em contato. exatamente esse estado de coisas que torna tão pertinente a pergunta de Jó, “Quem da imundícia poder tirar cousa pura? Ningum”, Jó 14.4. Mas ainda isso não tudo. Adão pecou não somente como o pai da raça humana, mas também como chefe representativo de todos os seus descendentes; e, portanto, a culpa do seu pecado é posta na conta deles, pelo que todos são passíveis de punição e morte. É primariamente nesse sentido que o pecado de Adão é o pecado de todos. o que Paulo ensina em Rm 5.12: “Portanto, assim como por um só homem entrou o pecado no mundo, e pelo pecado a morte, assim também a morte passou a todos os homens, porque todos pecaram”. As ltimas palavras só podem significar que pecaram em Adão, e isso de modo que se tornaram sujeitos ao castigo e à morte. Não se trata do pecado considerado meramente como corrupção, mas como culpa que leva consigo o castigo. Deus adjudica a todos os homens a condição de pecadores culpados em Adão, exatamente como adjudica a todos os crentes a condição de justos em Jesus Cristo. É o que Paulo quer dizer, quando afirma: “pois assim como por uma só ofensa veio o juízo sobre todos os homens para 10 condenação, assim também por um só ato de justiça veio a graça sobre todos os homens para a justificação que dá vida. Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos”, Rm 5.18, C. A Natureza do Primeiro Pecado ou da Queda do Homem. 1. SEU CARÁTER FORMAL. Pode-se dizer que, numa perspectiva puramente formal, o primeiro pecado do homem consistiu em comer ele da árvore do conhecimento do bem e do mal. Não sabemos que espécie de árvore era. Poderia ser uma tamareira ou uma figueira ou qualquer outra árvore frutífera. Nada havia de ofensivo no fruto da árvore como tal. Comê-lo não era pecaminoso per se, pois não era uma transgressão da lei moral. Quer dizer que não seria pecaminoso, se Deus não tivesse dito: “da rvore do conhecimento do bem e do mal não comers”. Não h opinião unnime quanto ao motivo pelo qual a árvore foi denominada do conhecimento do bem e do mal. Uma opinião das mais comuns é que a árvore foi chamada assim porque o comer do seu fruto infundiria conhecimento prático do bem e do mal; mas é difícil sustentar isso face à exposição bíblica segundo a qual, comendo -o, o homem passaria a ser como Deus, no conhecimento do bem e do mal, pois Deus não comete pecado e, portanto, não tem conhecimento prático dele. É muito mais provável que a árvore foi denominada desse modo porque fora destinada a revelar (a) se o estado futuro do homem seria bom ou mal; e (b) se o homem deixaria que Deus lhe determinasse o que era bom ou mau, ou se encarregaria de determina-lo por si e para si. Mas, seja qual for a explicação que se dê do nome, a ordem de Deus para não comer do fruto da árvore serviu simplesmente ao propósito de pôr à prova a obediência do homem. Foi um teste de pura obediência, desde que Deus de modo nenhum procurou justificar ou explicar a proibição.Adão tinha que mostrar sua disposição para submeter a sua vontade à vontade do seu Deus com obediência implícita. 2. SEU CARÁTER ESSENCIAL E MATERIAL. O primeiro pecado do homem foi um pecado típico, isto é, um pecado no qual a essência real do pecado se revela claramente. A essência desse pecado está no fato de que Adão se colocou em oposição a Deus, recusou -se a sujeitar a sua vontade à vontade de Deus de modo que Deus determinasse o curso da sua vida; e tentou ativamente tomar a coisa toda das mãos de Deus e determinar ele próprio o futuro. O homem, que não tinha absolutamente nenhum direito para alegar a Deus, e que só poderia estabelecer algum direito pelo cumprimento da condição da aliança das obras, desligou-se de Deus e agiu como se possuísse certos direitos contra Deus. A idéia de que o mandado de Deus era de fato uma infração dos direitos do homem parece que já estava na mente de Eva quando, em resposta à pergunta de Satans, acrescentou as palavras, “nem tocareis nele”, Gn 3.3. Evidentemente ela quis salientar o fato de que a ordem não fora razoável. Partindo da pressuposição de que tinha certos direitos contra Deus, o homem promulgou o novo centro de operações, que viu nele 11 19. próprio, onde agir contra o seu Criador. Isto explica o seu desejo de ser como Deus e a sua dúvida quanto às boas intenções de Deus ao dar-lhe a ordem. Naturalmente podem distinguir-se diferentes elementos do seu primeiro pecado. No intelecto revelou-se como incredulidade e orgulho, na vontade, como o desejo de ser como Deus, e nos sentimentos, como uma ímpia satisfação ao comer do fruto proibido. D. O Primeiro Pecado ou a Queda como Ocasionada pela Tentação. 1. OS PROCEDIMENTOS DO TENTADOR. A queda do homem foi ocasionada pela tentação da serpente, que semeou na mente do homem as sementes da desconfiança e da descrença. Embora indubitavelmente a intenção do tentador fosse levar Adão, o chefe da aliança, a cair, não obstante dirigiu-se a Eva, provavelmente porque (a) não exercia a chefia da aliança e, portanto, não teria o mesmo senso de responsabilidade; (b) não recebeu diretamente a ordem de Deus, mas apenas indiretamente e, por conseguinte, seria mais suscetível de ceder à argumentação e duvidar; e (c) seria sem dúvida o instrumento mais eficiente para alcançar o coração de Adão. O curso seguido pelo tentador é bem claro. Em primeiro l ugar, ele semeia as sementes da dúvida pondo em questão as boas intenções de Deus e insinuando que Sua ordem era realmente uma violação da liberdade e dos direitos do homem. Quando nota, pela reação de Eva, que a semente tinha criado raiz, acrescenta as sementes da descrença e do orgulho, negando que a transgressão resultaria na morte e dando a entender claramente que a ordem divina fora motivada pelo objetivo egoísta de manter o homem em sujeição. Ele afirma que, ao comer da árvore, o homem passaria a ser como Deus. As elevadas expectativas assim geradas induziram Eva a observar com atenção a árvore, e quanto mais olhava, melhor lhe parecia o fruto. Finalmente, o desejo lhe moveu a mão, e ela comeu do fruto e também o deu ao marido, e ele comeu. 2, INTERPRETAÇÃO DA TENTAÇÃO. Freqüentes tentativas têm sido feitas, e continuam sendo feitas, para explicar a Queda negando-lhe o caráter histórico. Alguns acham que toda a narrativa de Gênesis 3 é uma alegoria que representa figuradamente a autodepravação do homem e sua mudança gradativa. Barth e Brunner consideram a narrativa do estado original e da queda do homem um mito. Para eles, tanto a Criação como a Queda pertencem, não à história, mas ao que denominam super-história (Urgeschichte) e, daí, ambas são igualmente incompreensíveis. A narrativa dada em Gênesis ensina-nos meramente que, embora o homem seja atualmente incapaz de realizar algum bem e esteja sujeito à lei da morte, não há por que ser necessariamente assim. É possível ao homem livrar -se do pecado e da morte por uma vida de comunhão com Deus. Tal é a vida retratada para nós na narrativa sobre o paraíso, e ela prefigura a vida que nos é assegurada naquele de quem Adão foi apenas um tipo, a saber Cristo. Mas não é a classe de vida que o homem vive agora, ou que sempre viveu, desde o início da história. O paraíso não é uma certa localidade que podemos assinalar mas existe onde Deus é Senhor e o homem e as demais criaturas Lhe são sujeitos voluntariamente. O paraíso do passado está além 12 dos limites da história humana. Diz Barth: “Quando a história do homem come ou; quando o tempo do homem teve seu começo; quando o tempo e a história começaram onde o homem tem a primeira e a ltima palavra, o paraíso desapareceu”. do mesmo teor o que Brunner fala, quando diz: “Assim como com respeito Cria ão perguntamos em vão: Como, quando e onde aconteceu?. Também se dá com a Queda. Tanto a Criação como a Queda estão por trás da realidade histórica visível”. Outros, que não negam o caráter histórico da narrativa de Gênesis, afirmam que pelo menos a serpente não deve ser considerada como um animal literal, mas apenas como um nome ou um símbolo da cobiça, do desejo sexual, do raciocínio pecaminoso, ou de Satanás. Ainda outros asseveram que, para dizer o mínimo, o falar da serpente deve ser entendido figuradamente. Mas todas estas interpretações, e outras quejandas, são insustentáveis à luz da Escritura. As passagens que precedem e se seguem a Gn 3.1-7 manifestam evidente propósito de construir uma pura e simples narrativa histórica. Pode-se provar que assim foram entendidas pelos escritores bíblicos, mediante muitas referências, como por exemplo, Jó 31.33; Ec 7.29; Is 43.27; Os 6.7; Rm 5.12, 18, 19; 1 Co 5.21; 2 Co 11.3; 1 Tm 2.14, e, portan to, não temos o direito de afirmar que os referidos versículos, que constituem parte integrante da narrativa, devem ser interpretados figuradamente. Além disso, certamente a serpente é considerada como um animal em Gn 3.1, e não daria bom sentido substituir “serpente” por “Satan s”. O castigo de que fala Gn 3.14, 15 pressupõe uma serpente literal, e Paulo não a entende doutro modo, em 2 Co 11.3. E, apesar de poder-se entender num sentido figurado a serpente falar por meio de gestos as tutos, não parece possível imaginá-la mantendo dessa maneira a conversação registrada em Gn 3. A transação toda, a fala da serpente inclusive, sem dúvida acha sua explicação na operação de algum poder sobrenatural, não mencionado em Gn 3. A Escritura dá a entender claramente que a serpente foi apenas um instrumento de Satanás, e que Satanás foi o real tentador, que agiu na serpente e por meio dela, como posteriormente agiu em homens e em porcos, Jo 8.44; Rm 16.20; 2 Co 11.3; Ap 12.9. A serpente foi um instrumento próprio para Satanás, pois ele é a personificação do pecado, e a serpente simboliza o pecado (a) em sua natureza astuta e enganosa, e (b) em sua picada venenosa, com a qual mata o homem. 3. A QUEDA PELA TENTAÇÃO E A SALVABILIDADE DO HOMEM. Tem -se sugerido que o fato de que a queda do homem foi ocasionada pela tentação proveniente de fora, pode ser uma das razões pelas quais o homem é salvável, diversamente dos anjos, que não estiver am sujeitos a uma tentação externa, mas caíram pelas incitações da sua própria natureza interior. Nada de certo se pode dizer sobre esteponto, porém. Mas, seja qual for o significado da tentação a este respeito, certamente não será suficiente para explicar como um ser santo como Adão pôde cair 1 Gd’s Search for Man, p. 98. 2 Man in Revolt, p. 142. 13 1 2 em pecado. É-nos impossível dizer como a tentação pôde encontrar um ponto de contato numa pessoa santa. E mais difícil de explicar ainda, é a origem do pecado no mundo angélico. E. A Explicação Evolucionista da Origem do Pecado. Naturalmente, uma teoria evolucionista coerente não pode admitir a doutrina da Queda, e bom número de teólogos modernistas a rejeitaram como incompatível com o evolucionismo. É verdade que já alguns teólogos muito conservadores como Denney, Gore e Orr que aceitam, embora com reserva, a explicação evolucionista da origem do homem, e acham que ela deixa lugar para a doutrina da Queda nalgum sentido da palavra. Mas é significativo que todos eles concebem a narrativa da Queda como uma representação mítica ou alegórica de uma experiência ética ou de uma catástrofe moral realmente sucedida no princípio da história que resultou em sofrimento e morte. Significa que eles não aceitaram a narrativa da Queda como um relato histórico do que realmente sucedeu no jardim do Éden. Em suas Conferências Hulseanas sobre A Origem e a Propagação do Pecado, Tennant fez um relato minucioso e interessante da origem do pecado segundo o ponto de vista evolucionista. Ele se deu conta de que o homem não poderia herdar o pecado dos seus antepassados animais, visto que estes não tinham pecado algum. Quer dizer que os impulsos, propensões, desejos e qualidades que o homem herdou dos animais inferiores não podem ter o nome de pecado. Segundo a sua avaliação, eles constituem apenas o material do pecado, e não se tornam pecados de fato enquanto a consciência moral não se desperta no homem, e se permite que eles assumam o controle na determinação das ações do homem, contrariamente à voz da consciência e às sanções éticas. Ele sustenta que, no curso do seu desenvolvimento, o homem foi-se tornando aos poucos um ser ético, tendo uma vontade indeterminada, sem explicar como tal vontade é possível onde prevalece a lei da evolução, e considera essa vontade como a causa única o pecado. Define o pecado “como uma atividade da vontade expressa em pensamentos, palavras ou atos contrários à consciência individual, à sua noão do que o bem e o direito, o conhecimento da lei moral e a vontade de Deus”. Conforme a raça humana se desenvolve, os padrões éticos se tornam mais rigorosos, e a hediondez do pecado aumenta. O ambiente pecaminoso torna mais difícil ao homem refrear-se quanto ao pecado. Esta opinião de Tennant não deixa lugar para a queda do homem no sentido geralmente aceito da palavra. Na verdade, Tennant repudia explicitamente a doutrina da queda, reconhecida em todas as grandes confisses históricas da igreja. Diz W. H. Johnson: “Os críticos de Tennant estão de acordo em que a sua teoria não deixa espaço para o clamor do coração contrito que, não somente confessa atos isolados de pecado, mas tambm declara: ‘Fui formado em iniqüidade; h uma lei de morte em meus membros’”. * “Hulsean Lectures”, estabelecidas por John Hulse (1708-1790), teólogo inglês. Nota do tradutor, 1 Capítulo III. 2 P. 163. 3 Can the Christian Now Believe in Evolution?, p. 136. 14 * 1 2 3 15 F. Os Resultados do Primeiro Pecado. A primeira transgressão do homem teve os seguintes resultados: 1. O concomitante imediato do primeiro pecado e, portanto, dificilmente um resultado dele no sentido estrito da palavra, foi a depravação total da natureza humana. O contágio do seu pecado espalhou-se imediatamente pelo homem todo, não ficando sem ser tocada nenhuma parte da sua natureza, mas contaminando todos os poderes e faculdades do corpo e da alma. Esta completa corrupção do homem é ensinada claramente na Escritura, Gn 6.5; Sl 14.3; Rm 7.18. A depravação total de que se trata aqui não significa que a natureza humana ficou logo tão completamente depravada como teria a possibilidade de vir a ser. Na vontade essa depravação manifestou -se como incapacidade espiritual. 2. Imediatamente relacionada com a matéria do item anterior, deu -se a perda da comunhão com Deus mediante o Espírito Santo. Esta é simplesmente o reverso da completa corrupção mencionada no parágrafo anterior. Ambos podem ser combinados numa única declaração, de que o homem perdeu a imagem de Deus no sentido de retidão original. Ele rompeu com a verdadeira fonte de vida e bem-aventurança, e o resultado foi uma condição de morte espiritual, Ef 2.1, 5, 12; 3. Esta mudança da condição real do homem refletiu-se também em sua consciência. Houve, primeiramente, uma consciência da corrupção, revelando-se no sentido de vergonha, e no esforço que os nossos primeiros pais fizeram para cobrir a sua nudez. E depois houve uma consciência de culpa, que achou expressão numa consciência acusadora e no temor de Deus que isso inspirou. 4. Não somente a morte espiritual, mas também a morte física resultou do primeiro pecado do homem. De um estado de posse non mori desceu a um estado de non possenon mori. Havendo pecado, ele foi condenado a retornar ao pó do qual fora tomado, Gn 3.19. Diz-nos Paulo que por um homem a morte entrou no mundo e passou a todos os homens, Rm 5.12, e que o salário do pecado é a morte, Rm 6.23. 5. Esta mudança redundou também numa necessária mudança de resistência . O homem foi expulso do paraíso, porque este representava o lugar da comunhão com Deus, e era símbolo da vida mais completa e de uma bem-aventurança maior reservadas para ele, se continuasse firme. Foi-lhe vedada a árvore da vida, porque esta era o símbolo da vida prometida na aliança das obras. QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1.Que diferentes teorias há quanto à origem do pecado? 2. Que prova bíblica há de que o pecado começou no mundo angélico? 3. À luz da Bíblia, pode-se sustentar a interpretação alegórica da narrativa da Queda? 4. Há algum lugar para a Queda na 4.18. teoria evolucionista? 5. Deus quis a queda do homem, ou simplesmente a permitiu? 6. A nossa doutrina reformada (calvinista) faz de Deus o autor do pecado? 7. Quais as objeç ões à noção de que as almas dos homens pecaram numa existência anterior? 8. Há justificativa para Deus, por ter feito o estado espiritual da humanidade em geral dependente da obediência ou desobediência do primeiro homem? 9. Que é que Barth e Brunner querem dizer quando falam da queda do homem como super-história? 10. Por que será que a doutrina da aliança das obras encontra tão pouca aceitação fora dos círculos reformados (calvinistas)? 11. O que explica a generalizada negligência desta doutrina nos dias atuais? 12. Por que é importante manter esta doutrina? BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm III, p. 605-624; III, p. 1-60; Kuyper, Dict. Dogm.,p.23-117; De Peccato,p. 17-26; Vos, Geref. Dogm. II, p.32-54; Hodge, Syst. Theol.,p. 183-196; 216-232; Schmid, Doct. Theol. of the Ev. Luth. Ch., p. 239-242; Valentine, Chr. Theol. I, p. 416-420; Litton, Introd. To Dogm. Theol. ,p. 133-136; Pope, Chr. Theol.II, p. 3-28; II, p.108; Raymond, Syst. Theol. II, p.50-63; 99; 111; Macintosh, Theol. as an Empirical Science, p.216-229; MacPherson, Chr. Dogm., p. 220-242; Orr, God’s Image in Man, p. 197-240; Candlish, The Bibl. Doct. OfSin, p. 82-89; Talma, De Anthopologie van Calvijn, p. 69-91; Kuyper, Uit het Woord, De Leer der Verbonden, p. 3-221; Tennant, The Origin and propagation of Sin; ibid. The Concept of 16 Sin. II. O Caráter Essencial do Primeiro Pecado O pecado é um dos mais tristes fenômenos da vida humana, e também o mais comum. Faz parte da experiência comum da humanidade e, portanto, impõe-se à atenção de todos os que não fecham deliberadamente os olhos para as realidades da vida humana. Há os que sonham por algum tempo com a bondade essencial do homem e falam com indulgência das palavras e ações isoladas que não se enquadram nos padrões éticos da boa sociedade, descrevendo -as como simples paixões e fraquezas, pelas quais o homem não é responsável e as quais prontamente cedem a medidas corretivas; mas, com o correr do tempo, com o fracasso de todas as medidas de reforma externa, e com a verificação de que a supressão de um mal só serve para liberar outro, essas pessoas ficam inevitavelmente desiludidas. Tomam consciência do fato de que estiveram lutando meramente com os sintomas de uma doença arraigada profundamente e que defrontam, não apenas o problema dos pecados, isto é, dos atos pecaminosos isolados, mas o problema muito maior e mais profundo do pecado, de um mal inerente à natureza humana. É exatamente o que estamos começando a presenciar na época atual. Muitos modernistas de hoje não hesitam em dizer que a doutrina de Rousseau a respeito da bondade inerente do homem evidenciou-se como um dos mais perniciosos ensinos do período do Iluminismo, e agora Horton, que pleiteia uma teologia realista e acredita que esta requer a aceitação 17 princípios marxistas, diz: “Creio que o cristianismo ortodoxo representa uma profunda compreensão de todo o predicamento humano. Creio que a dificuldade humana básica é aquela perversão da vontade, aquela traição contra a vontade divina, que se chama pecado; e creio que o pecador é, num certo sentido, uma enfermidade racial, transmissível de geração a geração. Ao afirmar essas coisas, os ‘pais’ cristãos e os reformadores protestantes falavam como rea lista, e podiam ter coletado pilhas de provas empíricas para suporte das suas idias”. Em vista do fato de que o pecado é real e ninguém pode livrar-se dele na presente existência, não admira que os filósofos, como os teólogos, se decidiram a atracar-se com o problema do pecado, conquanto na filosofia seja mais conhecido como o problema do mal que do pecado, Consideramos abreviadamente algumas das mais importantes teorias filosóficas sobre o mal, antes de expormos a doutrina escriturística do pecado. A. Teorias Filosóficas a Respeito da Natureza do Mal. 1. TEORIA DUALISTA. Esta é uma das teorias que foram comuns na filosofia grega. Na forma do gnosticismo, conseguiu penetrar na Igreja Primitiva. Admite a existência de um princípio eterno do mal, e sustenta que no homem o espírito representa o princípio do bem, e corpo, o do mal. É objetável por várias razões: (a) É posição filosoficamente insustentável que haja fora de Deus algo 1 Realistic Theology, p.56 reclamam a presença de maior medida de realismo no reconhecimento do pecado. Assim, Walter de alguns 1 que seja eterno e independente da Sua vontade. (b) Essa teoria retira do pecado o seu caráter ético, fazendo dele uma coisa puramente física e independente da vontade humana, e, deste modo, destrói na verdade a idéia de pecado, (c) Também elimina a responsabilidade do homem, apresentando o pecado como uma necessidade ou inevitabilidade física. Segundo essa teoria, o único meio de escarparmos do pecado consiste em livrar-nos do corpo. 2. TEORIA DE QUE O PECADO É MERA PRIVAÇÃO. De acordo com Leibnitiz, o presente mundo é o melhor mundo possível. A existência do pecado deve ser considerada inevitável. O pecado não pode ser atribuído à acaso pessoal de Deus e, portanto, deve ser considerado como simples negação ou privação, sem necessidade de nenhuma causa eficiente. As limitações da criatura o tornam inevitável. Essa teoria torna o pecado um mal necessário, desde que as criaturas são necessariamente limitadas, e o pecado é uma conseqüência inevitável dessa limitação. Sua tentativa de evitar fazer de Deus o autor do pecado não tem bom êxito pois, mesmo que o pecado fosse apenas uma negação sem nenhuma causa eficiente, Deus seria, não obstante, o autor da limitação da qual ele resultaria. Além disso, a teoria tende a obliterar a distinção entre o mal moral e o mal físico, visto que descreve o pecado como pouco mais que um infortúnio sobrevindo ao homem. Conseqüentemente, propende a embotar no homem a noção do mal ou da corrupção do pecado, destruir o sentimento de culpa e abrogar a responsabilidade moral do ser humano. 3. TEORIA DE QUE O PECADO É UMA ILUSÃO. Para Spinoza, como para Leibnitiz, o pecado é simplesmente um defeito, uma limitação da qual o homem está cônscio; mas enquanto Leibnitiz considera a noção do mal, que surge dessa limitação, como necessária, Spinoza sustenta que a resultante consciência do pecado deve-se simplesmente à inadequação do conhecimento do homem, que não consegue ver tudo sub specie aeternitatis, isto é, em unidade com a eterna e infinita essência de Deus. Se o conhecimento do homem fosse adequado, de sorte que visse tudo em Deus, ele não teria nenhuma idéia do pecado; este seria simplesmente inexistente para ele. Mas essa teoria, que apresenta o pecado como uma coisa puramente negativa, não explica os seus terríveis resultados que a experiência universal da humanidade atesta da maneira mais convincente. Levada adiante coerentemente, ela abroga todas as distin es ticas e reduz conceitos como “carter moral” e “conduta moral” a frases sem sentido. De fato, reduz toda a vida do homem a uma ilusão: seu conhecimento, sua experiência, o testemunho da consciência, e assim por diante, pois todo o seu conhecimento é inadequado. Além disso, vai contra a experiência da humanidade, que atesta que os mais inteligentes são, muitas vezes, os maiores pecadores, sendo Satanás o maior de todos. 4. TEORIA DE QUE O PECADO É FALTA DE CONSCIÊNCIA DE DEUS, PELO FATO DE ESTAR A NATUREZA HUMANA PRESA AOS SENTIDOS. É o conceito de Schleiermacher. Segundo ele, a consciência do pecado, da parte do homem, depende da sua consciência de 18 Deus. Quando o senso da realidade de Deus se desperta no homem, imediatamente toma consciência da oposição da sua natureza inferior àquela noção. Esta oposição segue-se da própria constituição de seu ser, de sua natureza sensorial, presa aos sentidos, da ligação da alma com um organismo físico. É, pois, uma imperfeição inerente, mas uma imperfeição que o homem sente como pecado e culpa. Contudo, isso não faz de Deus o autor do pecado, uma vez que o homem concebe erroneamente essa imperfeição como pecado. O pecado não tem existência objetiva, mas existe somente na consciência do homem. Mas essa teoria declara o homem constitutivamente mau. O mal estava presente no homem mesmo em seu estado original, quando sua consciência de Deus não era suficiente forte para dominar a natureza sensorial do homem, presa aos sentidos.Isso está em flagrante oposição à Escritura, quando esta sustenta que o homem erroneamente julga que esse mal é o pecado e, assim, entende o pecado e a culpa como puramente subjetivos. E embora Schleiermacher queira evitar esta conclusão, faz de Deus o autor do pecado, responsável por este, pois Ele é o Criador da natureza sensorial do homem. A teoria repousa também numa incompleta indução dos fatos, visto que não leva em conta o fato de que muitos dos mais odiosos pecados do homem não pertencem à sua natureza física, e, sim, à sua natureza espiritual, como por exemplo a avareza, a inveja, o orgulho, a malícia, e outros. Além disso, leva às conclusões mais absurdas como, por exemplo, a de que o ascetismo, enfraquecendo a natureza sensorial, o domínio dos sentidos, necessariamente enfraquece a força do pecado; a de que o homem vai ficando menos pecador conforme se vão enfraquecendo os seus sentidos; a de que o único redentor é a morte; e a de que os espíritos desencarnados ou incorpóreos, o diabo inclusive, não tem nenhum pecado. 5. TEORIA DO PECADO COMO FALTA DE CONFIANÇA EM Deus E COMO OPOSIÇÃO AO SEU REINO, DEVIDO À IGNORÂNCIA. Como Schleiermacher, Ritschl também dá ênfase ao fato de que o pecado é entendido somente do ponto de vista da consciência cristã. Os que se acham fora dos limites da religião cristã, e os que estão ainda alheios à experiência da redenção, não têm nenhum conhecimento do pecado. Sob a influencia da obra redentora de Deus, o homem toma consciência da sua falta de confiança em Deus e da sua oposição ao reino de Deus, que constitui o bem supremo. O pecado não é determinado pela atitude do homem para com a lei de Deus, mas por sua relação com o propósito de D eus, que visa ao estabelecimento do Reino. O homem imputa a si próprio, como culpa, o seu fracasso em não conseguir tornar seu propósito de Deus, mas Deus o considera apenas como ignorância e, porque ignorância, é imperdoável. Esse conceito de Ritschal lembra-nos, por contraste, a máxima grega: Conhecimento é virtude, Absolutamente não faz justiça à posição escriturística de que o pecado é, acima de tudo, transgressão da lei de Deus e, portanto, torna o homem culpado à vista de Deus e merecedor de condenação. Além disso, a idéia de que o pecado é ignorância vai contra a voz da experiência cristã. O homem que leva sobre si o fardo o senso de pecado, certamente não pensa nisso daquele modo. Também é grato porque não somente os pecados cometidos na ignorância são 19 doáveis, mas igualmente todos os demais, com a única exceção da blasfêmia contra o Espírito Santo. 6. TEORIA DE QUE O PECADO É EGOÍSMO. Assumem essa posição Mueller e A H. Strong, entre outros. Alguns que assumem essa posição concebem o egoísmo apenas como o oposto do altruísmo ou da generosidade; outros o entendem como a escolha do ego, em vez de Deus, como o supremo objeto do amor. Ora, essa teoria, especialmente quando concebe o egoí smo como a colocação do ego no lugar de Deus, é, de longe, a melhor das teorias mencionadas.Todavia, dificilmente se pode dizer que é satisfatória. Embora todo egoísmo seja pecado,e haja um elemento de egoísmo em todo pecado, não se pode dizer que o egoísmo é a essência do pecado. Só se pode definir propriamente o pecado com referencia à lei de Deus, referencia completamente ausente da definição em foco. Além disso, há muitos pecados nos quais o egoísmo está longe de ser o principio dominante. Quando um pai é abatido pela pobreza e vê a esposa e os filhos esmorecidos por falta de alimento, e, em, seu desesperado desejo de socorrê -los acaba recorrendo ao roubo, dificilmente se pode dizer que isso é puro egoísmo. Até pode ser que a idéia de ego estivesse inteiramente ausente. A inimizade para com Deus, a dureza de coração, a impenitência e a incredulidade são pecados hediondos, mas não podem ser simplesmente classificados como egoísmo. E certamente a idéia de que toda virtude é desinteresse próprio ou generosidade, o que parece constituir um necessário corolário da teoria que estamos considerando, não é válida, pelo menos numa das suas formas. Um, ato deixa de ser virtuoso quando a sua realização cumpre e satisfaz alguma exigência da nossa natureza. Ademais, a justiça, a fidelidade, a humanidade, a clemência, a paciência e outras virtudes podem ser cultivadas ou praticadas, não como formas de generosidade, mas como virtudes inerentemente excelentes, não meramente pela promoção da felicidade de outros, mas pelo que elas são em si mesmas. 7. TEORIA DE QUE O PECADO CONSISTE NA OPOSIÇÃO DAS PROPENSÕES INFERIORES DA NATUREZA HUMANA A UMA CONSCIÊNCIA MORAL DESENVOLVIDA GRADATIVAMENTE. Essa opinião foi desenvolvida, como foi assinalado no item anterior, por Tennant, em suas Conferências Hulseanas. É a doutrina do pecado elaborado de acordo com a teoria evolucionista. Os impulsos naturais e as qualidades herdadas, derivadas dos animais inferiores, compõem o material do pecado, mas não se tornam pecado concretamente enquanto não forem tolerados contrariamente ao senso moral da humanidade em seu desenvolvimento gradual. As teorias de McDowall e Fiske seguem linhas semelhantes. A teoria apresentada por Tennant hesita um tanto entre a idéia bíblica sobre o homem e a idéia apresentada pela teoria evolucionista, inclinado-se ora para um lado, ora para outro. Pressupõe que o homem tinha livre arbítrio – vontade livre – mesmo antes do despertar da sua consciência moral, de modo que podia fazer uma escolha quando era posto diante de um ideal moral; mas não explica como se pode conceber uma vontade livre e indeterminada num processo de evolução. A teoria limita o pecado 20 às transgressões da lei moral cometidas com clara consciência de um ideal moral e, portanto, condenadas como más pela consciência. É, na verdade, apenas a velha idéia pelagiana do pecado enxertada na teoria evolucionista e, portanto, está aberta a todas as objeções que pesam sobre o pelagianismo. O defeito radical dessas teorias todas é que procuram definir o pecado sem levar em consideração que o pecado é essencialmente o abandono de Deus, a oposição a Deus e a transgressão da lei de Deus. Sempre se deve definir o pecado em termos da relação do homem com Deus e Sua vontade como vem expressa na lei moral. B. A Idéia Bíblica do Pecado. Ao dar a idéia bíblica do pecado, é necessário chamar a atenção para diversas particularidades. 1. O PECADO É O MAL NUMA CATEGORIA ESPECÍFICA. Hoje em dia ouvimos falar muito do mal, e relativamente pouco do pecado; e isso é muito enganoso. Nem todo mal é pecado. Não se deve confundir o pecado com o mal físico, com aquilo que é danoso ou calamitoso. É possível falar, não só do pecado mas da doen a, como um mal, ma, então, a palavra “mal” empregada em dois sentidos totalmente diversos. Acima da esfera física está a esfera ética, na qual é aplicável o contraste entre o bem moral e o mal moral, e é somente nesta esfera que podemos falar de pecado. E mesmo nesta esfera não desej vel substituir a palavra “pecado” pela palavra “mal” sem acrescentar algum qualificativo, pois aquela mais especifica do que esta. O pecado um mal moral. Muitos nomes empregados na Escritura para designar o pecado indicam o seu teor moral.Chatta’th dirige a atenção para o pecado como feito que era o alvo e que consiste num desvio do caminho certo. ’Avel e ’avon indicam que é uma falta de integridade e retidão, uma saída da vereda designada. Pesha’ refere-se a ele como uma revolta ou uma recusa de sujeição à autoridade legitima, uma positiva transgressão da lei, e um rompimento da aliança. E resha’ o assinala como uma fuga ímpia e culposa da lei. Ademais, é designado como culpa por ’asham, como infidelidade e traição por ma’al, como vaidade por ’aven e como perversão ou distorção da natureza (torção) por ’avah. As palavras neotestamentárias correspondentes, como hamartia, adikia, parabasis, paraptoma, anomia, paranomia e outras, indicam as mesmas idéias. Em vista do emprego dessas palavras e do modo pelo qual a Bíblia normalmente fala do pecado, não se pode duvidar do seu teor ético. Não é uma calamidade que sobreveio inopinadamente ao homem, envenenou sua vida e arruinou sua felicidade, mas um curso que o homem decidiu seguir deliberadamente e que leva consigo misera inaudita. Fundamentalmente não é uma coisa passiva, como uma fraqueza, um defeito, ou uma imperfeição pela qual não podemos ser responsabilizados, mas uma ativa oposição a Deus, e uma positiva transgressão da Sua lei, constituindo culpa. O pecado é o resultado de uma escolha livre, porém má, do homem. Este é o 21 ensino claro da Palavra de Deus, Gn 3.1-6; Is 48.8; Rm 1.18-32; 1 Jo 3.4. A aplicação da filosofia evolucionista ao estudo do Velho Testamento levou alguns eruditos à convicção de que a idéia ética do pecado não se desenvolveu até o tempo dos profetas, mas esta opinião não encontra apoio na maneira como os mais antigos livros da Bíblia falam do pecado. 2. O PECADO TEM CARÁTER ABSOLUTO. Na esfera ética, o constante entre o bem e o mal é absoluto. Não há condição neutra entre ambos. Apesar de indubitavelmente haver graus nos dois, não há graduação entre o bem e o mal. A transição de um para o outro não é de caráter quantitativo, e sim, qualitativo. Um ser moral bom não se torna mau por uma si mples diminuição da sua bondade, mas somente por uma mudança qualitativa radical, por um volver ao pecado. O pecado não é um grau menor de bondade, mas mal positivo. Isso é ensinado claramente na Bíblia. Quem não ama a Deus é, por isso, caracterizado como mau. A Escritura não reconhece nenhuma posição de neutralidade. Ela concita o ímpio a voltar -se para a retidão e, às vezes, fala do justo como caindo no mal; mas não contem nem uma só indicação de que um ou outro alguma vez fica numa posição neutra. O homem esta do lado certo ou do lado errado, Mt 10.32, 33; 12.30; Lc 11.23; Tg 2.10. 3.O PECADO SEMPRE TEM RELAÇÃO COM DEUS E SUA VONTADE. Os mais antigos teólogos compreendem que é impossível ter uma correta concepção do pecado sem vê-lo em relação a Deus e Sua vontade e, portanto, acentuavam este aspecto e normalmente falavam do pecado como “falta de conformidade com a lei de Deus”. , sem duvida, uma correta defini ão formal do pecado. Mas surge a questão: Qual é precisamente o conteúdo material da lei? Que é ela exige? Respondendo-se esta questão, será possível determinar o que é o pecado num sentido material. Ora, não há duvida de que a grande e central exigência da lei é o amor a Deus. E se ponto de vista material, a bondade consiste em amar a Deus, o mal moral consiste no oposto. É a separação de Deus, a oposição a Deus, o ódio a Deus, e isto se manifesta em constante transgressão da lei de Deus, em pensamento, palavra e ato. As seguintes passagens mostram claramente mente que a Escritura vê o pecado em relação a Deus e Sua lei, quer como lei escrita nas tabuas do coração, quer como dada por meio de Moises, Rm 1.32; 2.12-14; 4.15; Tg 2.9; 1 Jo 4. O PECADO INCLUI A CULPA E A CORRUPÇÃO. A culpa é o estado de merecimento da condenação ou de ser passível de punição pela violação de uma lei ou de uma exigência moral. Ela expressa a relação do pecado com a justiça ou da penalidade com a lei. Mesmo assim, porém, apalavra tem duplo sentido. Pode indicar uma qualidade inerente ao pecador, a saber, o seu demérito, más qualidades ou cumplicidade, que o faz merecedor de castigo. Dabney fala disso como “culpa potencial”. inseparável do pecado, jamais se encontra em quem não é pessoalmente pecador, e é permanente, de modo que, uma vez estabelecida, não pode ser removida pelo perdão. Mas também pode indicar a obrigação de satisfazer a jus tiça, pagar a 22 3.4. penalidade do pecado – a “culpa de fato”, como lhe chama Dabney. Não inerente ao homem, mas é o estatuto penal do legislador, que fixa a penalidade da culpa. Pode ser removida pela satisfação pessoal ou vicária das justas exigências da lei. Embora muitos neguem que o pecado inclui culpa, essa negação não se harmoniza com o fato de que o pecado é ameaçado com castigo, e de fato o recebe, e evidentemente contradiz claras afirmações da escritura, Mt 6.12; Rm 3.19; 5.18; Ef 2.3. Por corrupção entendemos a corrosiva contaminação inerente, a que todo pecador está sujeito. É uma realidade na vida de todos os indivíduos. É inconcebível sem a culpa, embora a culpa, como incluída numa relação penal, seja concebível sem a corrupção imediata. Mas é sempre seguida pela corrupção. Todo aquele que é culpado em Adão, também nasce com uma natureza corrupta, em conseqüência. Ensina-se claramente a doutrina da corrupção do pecado em passagens como, Jó 14.4; Jr 17.9; Mt 7.15-20; Rm 8.5-8; Ef 4.17-19. 5. O PECADO TEM SUA SEDE NO CORAÇÃO. O pecado não reside nalguma faculdade da alma, mas no coração, que na psicologia da Escritura é o órgão central da alma, onde estão as saídas da vida. E desse centro, sua influencia e suas operações espalham -se para o intelecto, a vontade, as emoções – em suma, a todo homem , seu corpo inclusive. Em seu estado pecaminoso, o homem completo é objeto de desprazer de Deus. Há um sentido em que se pode dizer que o pecado teve origem na vontade do homem, caso em que a vontade não designa uma volição efetiva, na medida em que isto sucede com a natureza volitiva do homem. Havia uma tendência do coração, subjacente à volição efetiva, quando o pecado entrou no mundo. Esta maneira de ver está em perfeita harmonia com as descrições bíblicas, em passagens como as seguintes: Pv 4.23; Jr 17.9; Mt 15.19, 20; Lc 6.45; Hb 3.12. 6. O PECADO NÃO CONSISTE APENAS DE ATOS MANIFESTOS. O pecado não consiste somente de atos patentes, mas também de hábitos pecaminosos e de uma condição pecaminosa da alma. Estes três âmbitos se interrelacionam do seguinte modo: O estado pecaminoso á a base dos hábitos pecaminosos, e estes se manifestam em ações pecaminosas. Também há verdade, porém, na alegação de que os atos pecaminosos repetidos levam ao estabelecimento de hábitos pecaminosos. As ações e as disposições pecaminosas do homem devem ser atribuídas a uma natureza corrupta, que as explica. As passagens citadas no parágrafo anterior consubstanciam esta opinião, pois provam com clareza que o estado ou a condição do homem é completamente pecaminosa. E se for necessário levantar a questão sob re se os pensamentos e os sentimentos do homem natural, chamado “carne” na Escritura, devam ser considerados como constituindo pecado, poder-se-ia responder indicando passagenscomo as seguintes: Mt 5.22, 28; Rm 7.7; Gl 5.17, 24, e outras. Em conclusão, pode-se dizer que se pode definir o pecado como falta de conformidade com a lei moral de Deus, em ato, disposição ou estado. C. O Conceito Pelagiano de Pecado. 1 Christ Our penal Substitute, p. 10,11. 23 1 O conceito pelagiano do pecado é completamente diverso do que foi apresentado acima. O único ponto de semelhança está em que o pelagiano também vê o pecado em relação à lei de Deus, e o considera uma transgressão da lei. Mas em todas as outras particularidades, sua concepção difere amplamente do conceito bíblico e agostiniano. 1. EXPOSIÇÃO DO CONCEITO PELAGIANO. Pelágio tomou o seu ponto de partida na capacidade do homem. Sua proposição fundamental é: Deus ordenou ao homem que praticasse o bem; daí, este deve ter capacidade para fazê-lo. Significa que o homem tem livre arbítrio no sentido absoluto da expressão, de modo que lhe é possível decidir a favor ou contra o que é bom, e também praticar tanto o bem como o mal. A decisão não depende de qualquer caráter moral que haja no homem, pois a vontade é inteiramente indeterminada. Se o homem vai fazer o bem ou o mal depende simplesmente da sua vontade livre e independente. Disto se segue, naturalmente, que não existe o que chamam de desenvolvimento moral do indivíduo. O bem e o mal estão localizados nas ações isoladas do homem. Desta posição fundamental decorre naturalmente o ensino de Pelágio a respeito do pecado. O pecado co nsiste somente nos atos isolados provenientes da vontade. A coisa chamada natureza pecaminosa não existe, como tampouco as chamadas disposições pecaminosas. O pecado é sempre uma escolha deliberada do mal, escolha feita por uma vontade perfeitamente livre e que igualmente pode escolher e seguir o bem. Mas se fosse assim, inevitavelmente se seguiria que Adão não foi criado num estado de santidade positiva, mas, sim, num estado de equilíbrio moral, Sua condição seria de n eutralidade moral. Nesse caso, ele não era nem bom nem mau, e, portanto, não tinha natureza moral; mas ele escolheu o curso do mal, e assim se tornou pecaminoso. Considerando que o pecado consiste unicamente em atos isolados decorrentes da vontade, a idéia da sua propagação pela procriação é absurda. Uma natureza pecaminosa, se existisse tal coisa, poderia passar de pai a filho, mas os atos pecaminosos não podem ser propagados dessa maneira. Isso é por natureza uma impossibilidade. Adão foi o primeiro pecador, mas em nenhum sentido o seu pecado passou aos seus descendentes. O que chamam de pecado original, não existe. As crianças nascem num estado de neutralidade, começando exatamente como Adão começou, com a exceção de que levam a desvantagem de terem maus exemplos ao seu redor. O seu curso futuro terá que ser determinado pela própria livre escolha. A universidade do pecado é admitida, porquanto toda experiência a testifica. Deve-se à limitação e ao hábito de pecar, que se forma gradativamente. Estritamente falando, segundo o ponto de vista pelagiano, não há pecadores, mas tão somente atos pecaminosos isolados. Isso impossibilita completamente uma concepção religiosa da história da raça. 2. OBJEÇÕES AO CONCEITO PELAGIANO. Há várias objeções fortes ao conceito pelagiano do pecado, das quais as mais importantes são as seguintes: 24 a. A posição fundamental de que Deus só responsabiliza o homem por aquilo que este é capaz de fazer, é absolutamente contrária ao testemunho da consciência e à palavra de Deus. É um fato inegável que, conforme o homem cresce no pecado, decresce a sua capacidade para o bem. Ele se torna, em proporção cada vez maior, um escravo do pecado. Segundo a teria em foco, isso também envolveria uma diminuição da sua responsabilidade. Mas isso equivale a dizer que o próprio pecado redime gradativamente as suas vitimas, aliviando-as da sua responsabilidade. Quanto mais pecador, menos responsável o homem é. Contra essa posição a consciência registra um vigoroso protesto. Paulo não diz que os pecadores endurecidos que ele descreve em Rm 1. 18-32 estavam virtualmente sem responsabilidade, mas, antes, considera-os dignos de morte. Disse Jesus que os ímpios judeus que se vangloriavam da sua liberdade, mas manifestaram a sua extrema iniqüidade procurando mata-lo, eram escravos do pecado, não compreendiam a Sua linguagem porque eram incapazes de ouvir a Sua palavra, e iam morrer em seus pecados, Jo 8.21, 22, 34, 43. Embora escravos do pecado, eram, não obstante, responsáveis. b. Negar que o homem tem por sua natureza uma estrutura moral é simplesmente rebaixa-lo ao nível dos animais. Segundo esse conceito, tudo da vida do homem que não seja uma consciente escolha da vontade, está privado de toda e qualquer qualidade moral. Mas a consciência dos homens em geral atesta o fato de que o contraste entre o bem e o mal aplica-se também às tendências, aos desejos, ao temperamento e às emoções do homem, sendo que esses elementos também possuem um caráter moral. No pelagianismo, o pecado e a virtude são reduzidos a apêndices superficiais do homem, de maneira nenhuma vinculados à sua vida interior. As passagens que damos a seguir mostram que a opinião da Escritura é completamente diversa: Jr 17.9; Sl 51.6, 10; Mt 15.19; Tg 4.1,2. c. Uma escolha da vontade que não seja de modo nenhum determinada pelo caráter do homem, não somente é inimaginável, como também é eticamente destituída de valor. Se uma boa ação do homem simplesmente acontece porque sim, e não se pode dar nenhuma razão que explique por que não sucedeu o oposto, noutras palavras, se a ação não é uma expressão do caráter do homem, falta-lhe por completo valor moral. É só como um expoente do caráter que uma ação tem o valor moral que se lhe atribui. d. A teoria pelagiana não pode explicar satisfatoriamente a universalidade do pecado. O mau exemplo dos pais e avós não oferece uma verdadeira explicação. A simples e abstrata possibilidade de um homem vir a pecar, mesmo quando fortalecida pelo mau exemplo, não explica como aconteceu que, de fato, todos os homens pecaram. Como se pode explicar que a vontade sempre e invariavelmente seguiu na direção do pecado, e nunca na direção oposta? É muito mais natural pensar numa disposição geral para pecar. D. O Conceito Católico romano do Pecado. 25 Conquanto os Cânones e Decretos do Concilio de Trento sejam um tanto ambíguos sobre a doutrina do pecado, o conceito católico romano do pecado predominante pode ser expresso como segue: O verdadeiro pecado sempre consiste num ato consciente da vontade. É certo que as disposições e os hábitos que não estão de acordo com a vontade de Deus são de caráter pecaminoso; contudo, não se lhes pode chamar pecados, no sentido estrito da palavra. A concupiscência que está presente no homem e por trás do pecado, ganhou domínio sobre o homem no paraíso e, assim, precipitou a perda do donun superadditum da justiça original, não pode ser considerada pecado, mas somente a lenha ( fomes) ou o combustível par o pecado. A pecaminosidade dos descendentes de Adão é primordialmente uma condição negativa, apenas, consistindo na ausência de algo que devia estar presente, isto é, dajustiça original, que não é essencial à natureza humana. Alguma coisa essencial estaria faltando somente se, como alguns sustentam, a justitia naturalis também fosse perdida. As objeções a esse conceito evidenciam-se perfeitamente no que foi dito com relação à teoria pelagiana. Um simples lembrete delas parece mais que suficiente. Até onde sustenta que o verdadeiro pecado consiste somente numa escolha deliberada da vontade e em atos manifestos, as objeções levantadas contra o pelagianismo lhe são pertinentes. A idéia de que a justiça original foi acrescentada sobrenaturalmente à constituição natural do homem, e de que a sua perda não macula a natureza humana, é antibíblica, como foi demonstrada em nossa discussão da imagem de Deus no homem. De acordo com a Bíblia, a concupiscência é pecado, verdadeiro pecado, e raiz de muitas ações pecaminosas. Expusemos isso quando consideramos o conceito bíblico do pecado. QUESTIONÁRIO PARA PESQUISA: 1. A filosofia conseguiu explicar com sucesso a origem do pecado? 2. A escritura dá apoio à idéia de que, originariamente, o pecado não tinha qualidade ética? 3. Quais as objeções ao conceito de que o pecado é mera privação? 4. Devemos conceber o pecado como uma substância? 5. Com o nome de quem se associa essa idéia? 6. Esse pecado existe isolado do pecador? 7. Como podemos provar que o pecado sempre deve ser julgado pela lei de Deus? 8. Paulo favoreceu o antigo dualismo grego, quando falou do “corpo do pecado” e empregou o termo “carne” para designar a natureza pecaminosa do homem? 9. recomendvel a tendência de falar do “mal”, e não do “pecado”? 10. Que se quer dizer com a interpreta ão social do pecado? 11. Essa forma de interpretação reconhece o pecado pelo que ele é fundamentalmente? BIBLIOGRAFIA PARA CONSULTA: Bavinck, Geref. Dogm III, p. 121-158; III, Kuyper, Dict. Dogm., De Peccato, p. 27-35; Hodge, Syst. Theol.II,p.130-192; Vos, Geref. Dogm. II, p.21-32; Dabney, Syst. And Polem. Theol , p 306-317;. MacPherson, Chr. Dogm., p. 257-264; Pope, Chr. Theol.II, p. 29-42; Orchard, Modern Theories of Sin; Moxon, The Doctrine of Sin; Alexander, Syst. Of Bibl. Theol. I, p. 232-265; Brown, Chr, Theol. in Outline, p. 261-282; Clarck, An Outline of Chr, 26 Theol. ,p. 227-239; Orr, God’s Image in Man, p. 197-246; Mackintosh, Christianity and Sin, cf. índice; Candlish, The Bibl. Doct. Of Sin, p.31-34; Talma, De Anthopologie van Calvijn, p. 92-117; Tennant, The Concept of Sin. 27 28 III. A Transmissão do Pecado Tanto a Escritura como a experiência nos ensinam que o pecado é universal e, de acordo com a Bíblia, a explicação dessa universalidade está na queda de Adão. Estes dois pontos, a universalidade do pecado e a relação de Adão com a humanidade em geral, pedem consideração agora. Enquanto tem havido acordo geral quanto à universalidade do pecado, tem havido diferentes explicações da ligação entre o pecado de Adão e o dos seus descendentes. A. Resenha Histórica. 1. ANTES DA REFORMA. Os escritos dos apologetas nada contêm de definido a respeito do pecado original, ao passo que os de Irineu e Tertuliano ensinam claramente que a nossa condição pecaminosa é resultado da queda de Adão. Mas a doutrina da direta imputação do pecado de Adão aos seus descendentes, até a eles é estranha. Tertuliano tinha uma concepção realista da humanidade. Segundo ele, toda a raça humana estava potencial e numericamente em Adão e, portanto, pecou quando ele pecou, e se tornou corrupta quando ele se tornou corrupto. A natureza humana completa pecou em Adão e, daí, toda individualização dessa natureza também é pecaminosa. Orígenes, que foi profundamente influenciado pela filosofia grega, tinha um conceito diferente sobre o assunto, e praticamente não reconhecia ligação alguma entre o pecado de Adão e o dos seus descendentes. Ele via e explicação da pecaminosidade da raça humana primariamente no pecado pessoal de cada alma num estado pré-temporal, embora mencione também certo mistério de geração. Agostinho partilhava a concepção realista de Tertuliano. Apesar de falar de “imputaão”, ainda não tinha em mente a imputa ão direta ou imediata da culpa de Adão à sua posteridade. Sua doutrina do pecado original não é inteiramente clara. Talvez isto se deva ao fato de que ele hesitava na escolha entre o traduci onismo e o criacionismo. Embora acentuasse o fato de que todos os homens estavam seminalmente presentes em Adão e pecaram de fato nele, também se aproximava muito da idéia de que eles pecaram em Adão como seu representante. Contudo, sua ênfase principal recaía na transmissão da corrupção do pecado. O pecado é transmitido por propagação, e esta propagação do pecado de Adão é, ao mesmo tempo, um castigo por seu pecado. Wiggers expe resumidamente a idia com estas palavras: “A corrupção da natureza humana, na raça toda, foi o justo castigo da transgressão do primeiro homem, em quem todos os homens j existiam”. O grande oponente de Agostinho, Pelágio, negava essa conexão entre o pecado de Adão e o da sua posteridade. Como ele a via, a propagação do pecado pela geração natural envolvia a teoria traducionista sobre a origem da alma que ele considerava um erro herético; e a imputação do pecado de Adão a quem quer que fosse, a não ser a ele próprio, estaria em conflito com a retidão divina. 1 Augustinism and Pelagianism, p. 88. 1 O Conceito pelagiano foi rejeitado pela igreja, e o pensamento dos escolásticos em geral seguia as linhas indicadas por Agostinho, sempre recaindo a ênfase na transmissão da corrupção de Adão, e não na transmissão da sua culpa. Hugo de São Vítor e Pedro Lombardo sustentavam que a concupiscência real macula o sêmen no ato de procriação, e que essa mancha de algum modo contamina a alma em sua união com o corpo. Anselmo, Alexandre de Hales e Bonaventura salientavam a concepção realista da ligação entre Adão e sua posteridade. Toda a raça humana estava seminalmente presente em Adão, e, portanto, também pecou nele. Sua desobediência dói desobediência da raça humana inteira. Ao mesmo tempo, a geração era considerada a condição sine qua non da transmissão da natureza pecaminosa. Em Bonaventura e outros depois dele, a distinção entre a culpa original e a corrupção original foi expressa mais claramente. A idéia fundamental era que a culpa do pecado de Adão é imputada a todos os seus descendentes. Adão sofreu a perda da justiça original e com isso incorreu no desprazer divino. Como o resultado, todos os seus descendentes estão privados da justiça original e, nessas condições, são objetos da ira divina. Além disso, de algum modo a corrupção do pecado de Adão passou à sua posteridade, mas a maneira como se deu essa transmissão era matéria de discussão entre os escolásticos. Visto que não eram traducionistas e, portanto, não podiam dizer que a alma, que, afinal de contas, é a verdadeira sede do mal no homem, passa de pai a filho pelo processo de geração natural, perceberam que tinha que ser dita alguma coisa mais para explicar a transmissão do mal inerente. Alguns diziam que este é transmitido por meio do corpo, o qual, por sua vez, contamina a alma assim que entra em contato com ela. Outros, sentindo o perigo dessa explicação, procuravam-na no simples fato de que todo homem nasce
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