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A Educação para além do capital. ISTVÁN MÉSZÁROS Professor emérito da Universidade de Sussex (Reino Unido), o filósofo húngaro István Mészaros (1930-2017) apresentou contribuições muito importantes para o entendimento do capitalismo e da educação na contemporaneidade. É considerado um referencial nos estudos críticos sobre a estrutura capitalista apontando alternativas ao seu potencial destrutivo a partir do entendimento aprofundado das situações de desigualdade e opressão. A obra A Educação para além do capital originou-se do ensaio produzido para a conferência de abertura do Fórum Mundial de Educação (2004) realizado na cidade de Porto Alegre. Ao discursar para educadores da América Latina, Mészáros afirma de forma bastante clara e enfática sobre o papel da educação como ferramenta para a transformação da sociedade apresentando possibilidades concretas de superação dos obstáculos impostos pela lógica do capital. O pensador inicia o livro com três epígrafes de importantes pensadores com os quais dialoga no desenvolvimento de toda sua argumentação. A partir dos escritos do médico e alquimista Paraselso (1493-1541), do poeta e político cubano José Martí (1853-1895) e do pensador, filósofo e economista alemão Karl Marx (1818-1883), Mészáros afirma categoricamente que superar a alienação exige uma revolução cultural. Essa tese é a essência de toda a sua reflexão, ou seja, ir além da lógica desumanizada do sistema capitalista que tem seus princípios no individualismo, lucro e desigualdade para chegar a uma estrutura social que permita o desenvolvimento dos seres humanos em suas multiplicidades, de maneira profunda e integral. Isso é essencial para vencer as barreiras e limitações que o sistema do capital impõe não apenas sobre as atividades relacionadas à vida cotidiana, mas também sobre a forma como os indivíduos pensam, formulam seus valores e produzem as suas ideias. Para o pensador, o capitalismo não é apenas um sistema econômico, mas uma estrutura que domina todas as camadas da existência, desde as relações mais simples até as mais complexas, por conta disso, ao longo de toda sua argumentação, convida o leitor a pensar em uma alternativa educacional que seja formulada do ponto de vista da emancipação humana. O livro conta com oitenta páginas divididas em quatro momentos do discurso, ou seja, quatro partes: 1. A incorrigível lógica do capital e seu impacto sobre a educação; 2. As soluções não podem ser apenas formais: elas devem ser essenciais; 3. “A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice”; 4. A educação como “transcendência positiva da autoalienação do trabalho”. Em cada uma delas o filósofo dialoga com contextos, lugares e períodos históricos diferentes utilizando o conteúdo das ideologias vigentes (formas de pensar o mundo e entender a realidade de cada época) bem como importantes pensadores considerados referência da época como base para o desenvolvimento de sua crítica. 1. A incorrigível lógica do capital e seu impacto sobre a educação. A partir da frase que inicia esse tópico de discussão, Mészáros ressalta que a educação se transformou em um instrumento de perpetuação da lógica capitalista. Para ele, o sistema educacional que antes era entendido como um espaço para transmissão de conhecimentos e formação dos indivíduos está fortemente influenciado por uma ideologia que eterniza as desigualdades. Desse modo, é possível afirmar que a escola não está desconectada da realidade social que a cerca, uma vez que tudo aquilo que ocorre no interior da escola é reflexo do conjunto de relações que existem fora dela. Se a escola está intimamente ligada à estrutura social da qual faz parte o interesse em transformá-la é o interesse em transformar a própria realidade, por isso, a forma como o sistema capitalista funciona (sua lógica e suas consequências) é irreformável, não dá para consertar algo que na sua essência é problemático. Mészáros afirma que no sistema do capital não há espaço para a emancipação da humanidade, nem mesmo em níveis mínimos, diante disso, mudanças superficiais não são eficazes, pois, ir “além” do capital significa realizar uma mudança radical na estrutura da sociedade. Diante disso, qualquer tipo de mudança estrutural não pode limitar-se somente ao sistema educacional, tem que atingir a sociedade como um todo. Quando reformas são feitas, mudanças e avanços até podem ocorrer, mas estes ficam sempre limitados à lógica de comando do capital que visa seu interesse e benefício próprio. A educação deve servir como uma forma de munir os indivíduos de conceitos e habilidades para a vida, tornando-os sujeitos mais críticos e autônomos. Vale ressaltar que Mészáros entende a educação com um sentido amplo, que vai além dos níveis de ensino ou sistemas escolares, vê a educação como o processo vital de existência do homem, isto é, aquilo que caracteriza a sua especificidade como ser social, a saber, a capacidade de conhecer, de ter ciência do real e de, portanto, transformá-lo de forma consciente. A forma como os sistemas educacionais se estruturam na atualidade até disponibilizam o acesso a múltiplas informações, porém, não avançam no sentido de interpretá-las profundamente. Essa composição com graves falhas serve de grande auxílio para um terreno de reprodução de valores que são importantes para o capitalismo, como a busca incessante por lucros, a formação para o trabalho, a ausência de visão crítica sobre a realidade. Mészáros afirma que tais valores são imprescindíveis para o sistema, não para a humanidade, por isso, as reformas educacionais apresentam muitas limitações. As limitações se justificam, não por ingenuidade ou falta de capacidade intelectual de seus produtores, mas pela sua incapacidade produzida pelas condições objetivas da própria história, como a proliferação da pobreza, trabalhos precarizados e escolas defasadas. Assim, a superação da lógica do capital só pode acontecer como uma transformação social qualitativa oferecendo novos horizontes de pensamento e atuação sobre a realidade. Trata-se de uma mudança de pensamento e prática que só pode ocorrer quando os indivíduos entram em contato com diversos estímulos dentro e fora do espaço escolar. Para explicar o quanto as visões reformistas são limitadoras e não eficazes, o autor utiliza como referência as visões apresentadas por dois pensadores muito importantes em seus contextos históricos: o pai do liberalismo clássico Adam Smith (1723-1790) e o socialista utópico Robert Owen (1771-1858). Mészáros esclarece que ambos foram capazes de entender e denunciar as mazelas produzidas por este sistema de controle social, mas não questionaram a essência dos problemas sociais vigentes, sua origem real ou forma de resolução completa, não buscaram a verdadeira essência dos problemas limitando-se a visões superficiais e incompletas. Adam Smith condenou claramente o impacto negativo do "espírito comercial" (início do capitalismo na Inglaterra) sobre a classe trabalhadora. Seu reconhecimento da dimensão problemática do modo capitalista de organização fica claro na passagem abaixo: ... Estas são as desvantagens de um espírito comercial. As mentes dos homens são contraídas e tornadas incapazes de elevação. A educação é desprezada, ou no mínimo negligenciada, e o espírito heroico praticamente extinto na totalidade. Remediar estes defeitos seria um assunto digno de séria atenção. Embora Smith apresente uma genuína preocupação humanitária, percebe-se que o economista direciona aos sujeitos a culpa sobre a sua situação degradante, deixando de fazer uma crítica direta a contribuição do sistema capitalista para o surgimento e a intensificação das desigualdades. A postura de Adam Smith é encarada como problemática, pois não passa de um tipo de denúncia moralizadora sem alteraro núcleo alienante do sistema, que dizer, rende-se ao círculo vicioso dos efeitos, sem se dirigir a causa dos problemas. Ao tratar de Robert Owen, Mészáros reconhece que o socialista utópico faz uma importante denúncia a dimensão gananciosa do sistema capitalista, mas erra ao acreditar que a única forma de superar a perspectiva que vê o trabalhador como "mero instrumento de ganho" (forma de obter lucro) é através da combinação entre razão e esclarecimento. Assim, mesmo dotado de boas intenções, Owen propõe uma reconciliação entre reformismo e capitalismo, tentando remediar os efeitos alienantes e desumanizantes do “poder do dinheiro” preso à camisa de força do sistema. Mészáros aponta que essa linha de raciocínio torna-se problemática porque não pretende ultrapassar os limites do capital, mas atuar dentro do seu campo. Para ele, a única possibilidade de uma mudança educacional integral perpassa pelo processo de rasgar a “camisa de força da lógica incorrigível do sistema” perseguindo de modo estratégico todos os meios disponíveis para romper o controle exercido pelo capital. Apesar da ótica estratégica que o autor propõe à educação, o mesmo constata que sozinha ela não é capaz de deter o capital. Em outros termos, há que se pensar em uma transformação de todas as condições objetivas nas quais o sistema age para atuar efetivamente sobre elas. 2. As soluções não podem ser apenas formais: elas devem ser essenciais. Nesta etapa da argumentação, Mészáros demonstra que solucionar os problemas sociais impostos pelo capital não é tarefa fácil, pois envolve um longo processo de mudança absoluta. Justifica-se assim a frase inicial, é necessário transformar a essência (o eixo central, a raiz e o alicerce) não a forma (o visível e superficial). Por certo, direciona os seus esforços na demonstração de que o modelo de educação existente há mais de um século apenas transmitiu um quadro de valores que dão legitimidade aos interesses dominantes, isto é, esclarece que a educação institucionalizada (o sistema formal, com suas leis, estrutura e hierarquia) reproduz aquilo que lhe é imposto através de uma dominação estrutural. O autor chama atenção para toda a distorção histórica serve de fundamento ao sistema educacional vigente apoiando-se na teoria da acumulação primitiva do capital de Karl Marx. Para Marx, a teoria da acumulação primitiva é explicada na Economia Política como uma anedota (piada ou história fantasiosa) na qual há muito tempo atrás existia, de um lado, uma elite inteligente, paciente, empenhada e trabalhadora e, de outro, um contingente de desocupados, vagabundos dissipando tudo o que tinham sem limites. Assim se explica que os primeiros conseguiram acumular riquezas através de seu esforço enquanto os últimos, diante da mais profunda pobreza, nada tinham para vender senão a sua força de trabalho. Na suave Economia Política reinou, desde sempre, o produto da fantasia, mas a vida real é muito mais complexa e menos poética. Na história da vida real, adverte o filósofo alemão, os métodos utilizados para o enriquecimento (acumulação primitiva) eram tudo, menos poéticos. Com o fim do sistema feudal predominou-se a violência, o abuso de poder, a morte e a ganância desenfreada. Uma vez expulsos de suas terras (expropriados da base fundiária) um grande contingente de trabalhadores foi bruscamente retirado de seu modo costumeiro de vida tendo de enquadrar-se a uma nova condição fundamentada na lógica das manufaturas e urbanização crescente. Eles foram, em massa, transformados em pedintes, ladrões e vagabundos, em parte por inclinação, na maioria dos casos devido ao stress das circunstâncias. Portanto no final do século XV e durante todo o século XVI, por toda a Europa ocidental [foi instituída] uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da presente classe trabalhadora foram punidos pela sua transformação forçada em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como criminosos 'voluntários', e assumia que dependia da sua boa vontade continuarem a trabalhar sob as anteriores condições que de fato já não existiam. Constata-se, assim, que a nascente estrutura fabril não teve condições de absorver a totalidade de ex-camponeses que passaram a viver nas cidades contribuindo diretamente para o empobrecimento e marginalização de uma porcentagem significativa desse conjunto de indivíduos. Para Marx, esse foi o contexto (final do século XV e século XVI) sobre o qual uma classe dominante passou a adotar um modo cruel de subjugar e reprimir aqueles que vendiam a força de trabalho e não a história fantasiosa reproduzida pelo discurso político daqueles que ocupavam posições de poder. Para dialogar com o cenário exposto, Mészáros recorre às análises do teórico britânico John Locke (1632 – 1704) cujo tempo foi marcado pelo crescimento do número de pobres na Inglaterra e, consequentemente, a ampliação de uma moral mais rígida e severa. Locke defendia que o aumento do número de pobres estava diretamente relacionado a hábitos corrompidos e a falta de disciplina defendendo que a resolução desse problema só ocorreria a partir da restrição da “libertinagem mediante a aplicação estrita das leis estipuladas”. Considerado um dos pais do liberalismo e grande influenciador do protagonismo inglês durante a Revolução Industrial, Locke também propôs um controle maior sobre as atividades realizadas pelos trabalhadores, bem como, a criação de “oficinas” (uma espécie de trabalho forçado) para que os filhos dos pobres não ficassem na ociosidade. Nota-se que a principal preocupação de John Locke era combinar rigorosa disciplina de trabalho com doutrinação religiosa, pois, além do trabalho obrigatório as crianças também eram pressionadas a frequentar a igreja todos os domingos junto aos seus professores. Deste modo, Mészáros deduz que tudo está reduzido a relações de poder “nuas e cruas” impostas com muita violência e brutalidade pelo modo capitalista de entender o mundo. Melhor dizendo, o filósofo entende que a função mais importante da lógica do capital é a de garantir que cada indivíduo adote um comportamento socialmente esperado para a posição social que ocupa sem nenhum tipo de discordância ou resistência. A educação torna-se um instrumento que auxilia na aceitação (internalização) da função que cada um ocupa na hierarquia social, bem como, ensina os valores e princípios considerados essenciais à manutenção do sistema. A lógica do capital engloba princípios autoritários com dimensões visíveis e ocultas, apoiadas em um quadro de referências muito amplo que ultrapassa os limites das escolas. De acordo com Mészáros, mesmo quando grandes pensadores realizam críticas ao sistema, eles não conseguem se libertar das amarras impostas. Isso se deve ao fato de nunca apontarem para a essência dos problemas e desigualdades limitando-se a análises superficiais e de baixo impacto. “Assim, não se pode escapar da ‘formidável prisão’ do sistema escolar estabelecido, reformando-o simplesmente”. Mais cedo ou mais tarde, tudo acaba sendo restabelecido em nome da busca por lucro e desenvolvimento econômico ainda que para isso a humanidade seja deixada de lado. Tal fato dá um caráter duplo ao sistema educacional: ao mesmo tempo em que é um espaço de produção de obediência, conformação e submissão aos valores capitalistas, também se faz necessária para a criação de uma estratégia de luta contra a internalização para uma forma de organização social mais livre, crítica e humanizada. 3. “A aprendizagem é a nossa própria vida, desde a juventude até a velhice”. No terceiro momento de sua reflexão, autor realiza profundos questionamentos sobre o papel do conhecimento na vida dos indivíduos chamando atenção para o fato de que a aprendizagem é parte integrante da nossa existência e não está limitadaa aquisição de habilidades e competências no ambiente escolar. Para o filósofo, as instituições educacionais exercem uma tarefa significativa na vida social, pois detém o benefício de proverem a formação institucionalizada (reconhecida pela lei), mas o conhecimento do mundo não está restrito aos muros da escola é muito mais complexo e repleto de diversidade. Mészáros afirma que é só a partir dessa concepção ampla de educação que existe uma possibilidade de “mudança verdadeiramente radical, proporcionando instrumentos de pressão que rompam a lógica mistificadora do capital”. Essa afirmação sustenta que para superar a lógica enganosa do sistema, os indivíduos devem ter acesso a uma educação de qualidade (em todas as esferas da vida) que lhes proporcionem o acesso a uma compreensão mais crítica do mundo e da realidade a que estão inseridos, só assim estarão munidos de instrumentos teóricos e práticos para superar os padrões excludentes impostos aos mais pobres. Apoiando-se nas contribuições do teórico italiano Antonio Gramsci (1891- 1937), Mészáros adverte que a perspectiva elitista de educação “exclui a esmagadora maioria da humanidade do âmbito da ação como sujeitos, e condena-os, para sempre, a serem considerados como objetos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da suposta superioridade da elite”. Essa visão elitista empobrece a humanidade como um todo, pois além de desconsiderar o potencial intelectual de uma quantidade exorbitante de pessoas, contribui para que seja aprofundado o abismo que separa as classes sociais. Diante do exposto, nota-se que a educação formal tal qual conhecemos tem uma grande importância no decorrer de toda a vida, mas, mesmo as escolas mais autoritárias - ainda que causem muito estrago e prejuízo - não prevalecem inteiramente no processo de formação de um ser humano. Para Mészáros é possível achar “alimento intelectual, moral e artístico noutros lados” e, assim, conta que se sente fui muito afortunado por encontrar, com oito anos de idade, fora do espaço escolar um professor notável. “Ele tem sido meu companheiro desde então, todos os dias. O seu nome é Attila József: um gigante da literatura mundial”. A partir do seu relato particular, evidencia a importância do acesso a diversas formas de manifestações artísticas e científicas para o crescimento pessoal e humano retomando o princípio original de toda a sua reflexão: "a aprendizagem é a nossa própria vida”. Porém, para que isso se torne real, é necessário desafiar as formas dominantes que criam uma espécie de conformismo generalizado, fortemente reforçado a favor do capital através da educação institucionalizada. Assim, professores e alunos que se rebelam contra a estrutura vigente “fazem- no com a munição que adquiriram tanto dos seus companheiros rebeldes no interior do domínio formal, e a partir do campo mais amplo da experiência educacional". É preciso construir o que Mészáros chama de atividade "contrainteriorização", quer dizer, criar um sistema educacional alternativo à disposição do povo. Para isso, é indispensável planejar de maneira coerente e muito bem fundamentada que não fique apenas no discurso reconhecendo os alvos a combater e as melhores estratégias para que mudanças ocorram de fato. A construção da "contraconsciência" deve dedicar-se a produzir uma estrutura educacional que proporcione o acesso à cultura e ao conhecimento historicamente produzido pela humanidade. A ideologia dominante opera através da modelagem da consciência utilizando “todo tipo de severas restrições”. Dessa forma, educar para a transformação social está diretamente comprometido com a libertação do aprisionamento das mentes impulsionando o pensamento autônomo e independente a partir de práticas educacionais mais abrangentes. 4. A educação como "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho". Em seu último tópico de discussão, Mészáros realiza uma profunda interpretação da sociedade atual à luz de complexos conceitos do marxismo. Para o autor, vivemos em um período no qual predomina "uma desumanizante alienação” e uma “subversão fetichista do real estado de coisas dentro da consciência”. Isto significa que estamos imersos a uma ideologia dominante que opera através da manipulação da consciência, mascarando as relações de desigualdade e exploração como se tais situações fossem naturais ou até mesmo consequência de escolhas individuais. Esse empobrecimento da compreensão sobre a realidade torna-se metabólico porque é a energia que nutre toda a estrutura do sistema permitindo que ele tenha força para permanecer existindo e se reproduzindo. Marx destaca que o sistema capitalista precisa de “cuidados” e “alimentos” para continuar vivo, assim como o sistema metabólico necessita da combinação entre diversos fatores como hábitos saudáveis e boa nutrição para ter energia suficiente e manter o funcionamento do corpo humano. O filósofo alemão destaca que a principal fonte de alimento da lógica do capital, ou seja, aquilo que lhe dá energia tornando-se a raiz de toda desigualdade e contradição existente em nosso dia a dia é a alienação do trabalho que, consequentemente, leva a um processo de autoalienação. O capitalismo “não pode exercer as suas funções sociais metabólicas de reprodução” se estiver fraco e sem energia. Nenhum organismo pode se reproduzir sem as condições mínimas para tal, por isso, quando o sistema cria meios para que os indivíduos “desaprendam” a pensar, contribui para que os sujeitos percam a sua consciência da vida concreta, deixando-se influenciar. Marx aponta que essa perda da consciência das próprias atividades é a principal fonte de energia do sistema permitindo que ele se reproduza e continue escravizando as pessoas. Quando o indivíduo deixa de utilizar a sua capacidade criativa e não compreende mais os resultados de sua atividade essencial que é o trabalho está alienado, isto é, torna-se um mero reprodutor e executor de procedimentos, sem pensar ou atribuir sentido a tudo aquilo que realiza. Desse modo, a alienação não se trata de algo que foi imposto por um poder exterior, místico ou sobrenatural, mas pelo próprio trabalho. Daí a necessidade de uma intervenção que seja consciente e mude toda nossa maneira de ser, só assim torna-se possível vencer a alienação e cortar a fonte que nutre o sistema. Em outros termos, é necessária "uma reestruturação radical das nossas condições de existência” para que possa ocorrer uma transformação do pensamento e, consequentemente, da prática. Marx adverte, porém, sobre o perigo da reprodução de discursos de negação, ou seja, o fato de negar o capitalismo não significa sua imediata superação, pois, “todas as formas de negação permanecem condicionadas pelo objeto da sua negação”. Assim, para romper com a lógica estabelecida de forma radical, a educação (no sentido mais abrangente do termo) deve atuar “como uma bússola” que orienta e reforça a caminhada para transformação social. A mudança da consciência deve ser constantemente fortalecida e isso só ocorre a partir de uma educação que disponibilize o acesso ao máximo de conhecimentos historicamente acumulados pela humanidade. Trata-se, portanto, de converter a educação em instrumento de luta, pois manter as massas com uma compreensão limitada sobre a realidade interessa muito a classe dominante. Diante disso, Mészáros defende que a tarefa histórica de resistência e enfrentamento a lógica do capital é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo e só ocorre com o fortalecimento do que ele chama de "contra internalização" (ou contra consciência), quer dizer, um processo que auxilie na de uma imagem mais complexa sobre o mundo na consciência do indivíduo, tornando mais clara e aprofundada a sua compreensão da realidade objetiva. Trata-se de munir os sujeitos de instrumentos que lhe permitamentender a vida como ela é, com suas mazelas, benefícios, desigualdades, prazeres, belezas e explorações. Essa forma de existência é concreta, abrangente e radicalmente diferente de tudo aquilo que a estrutura dominante defende, por isso dá a oportunidade de pensar “para além do capital”. O teórico afirma que a luta para a construção de uma nova ordem social metabólica que sustente concretamente a si própria, sem nenhum tipo de referência para os males do capitalismo só ocorre quando todas as instâncias da vida tornam-se comprometidas em deixar claro que qualquer coisa criada historicamente (como a alienação, as desigualdade e a exploração do homem pelo homem) pode ser desconstruída históricamente ao contrário da pretensa validade permanente que o sistema prega. Isto posto, Mészáros volta a ressaltar que as estratégias reformistas contribuem de maneira prática para reduzir ou minimizar as contradições que o sistema apresenta, pois suas propostas visam alterações pontuais que não rompem com lógica em vigor. Se a lógica (estrutura subjetiva) não muda, a prática (estrutura objetiva) não muda, pois os defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente, quanto mais ser realmente resolvidos sem que se faça referência ao sistema como um todo. De acordo com o autor, a natureza estratégica do discurso reformista contribui para mascarar e esconder o real pois continua defendendo as “determinações sistêmicas da ordem existente” utilizando o malígno enunciado "não há alternativa", como se a ordem social e as instituições estabelecidas fossem inevitáveis e insuperáveis. É precisamente por conta do caráter mistificador (enganoso) de tal discurso que elementos fundamentais permanecem escondidos ou imperceptíveis para a imensa maioria das pessoas funcionando como instrumento de perpetuação do sistema, é nesse contexto que o fortalecimento do acesso à informação torna-se instrumento concreto de luta. Visando demonstrar a importância do acesso ao conhecimento como instrumento de transformação radical, Mészáros apresenta as realizações educacionais cubanas, chamando atenção para o fato de que mesmo um país subdesenvolvido com graves limitações econômicas e estruturais conseguiu não só eliminar o analfabetismo de forma rápida, mas apresentar elevados níveis de pesquisa científica, ou seja, tais conquista são resultados diretos de uma abordagem que possibilitou uma educação qualitativamente diferente. Assim sendo, não pode existir uma superação efetiva do processo de alienação sem que se promova, conscientemente, a universalização conjunta do trabalho e da educação. Dito de outra forma, é preciso que o ser humano se realize no processo de trabalho atribuindo sentido e significado a tudo aquilo que faz, porém, a lógica da administração científica não se importa com a difusão do conhecimento e o cultivo de um alto padrão de inteligência, a ela interessa apenas a capacidade de executar os procedimentos e dominar as operações necessárias para o básico. Segundo Mészáros, a educação predominante no capitalismo sempre esteve à serviço de uma concepção alienante e brutalizante que enxerga o trabalhador como um indivíduo dotado de limitações. Para ilustrar sua análise, apresenta uma forte afirmação do engenheiro Frederick Winslow Taylor, grande referência da administração gerencial e dos padrões de organização produtiva que surgiram e se intensificaram durante o século XX. Manifestando total falta de compromisso com o desenvolvimento humano e intelectual da classe trabalhadora, afirma Taylor: Um dos primeiros requisitos para que um homem seja apto a lidar com ferro fundido como ocupação regular é que ele seja tão estúpido e fleumático que mais se assemelhe, no seu quadro mental, a um boi. [...] O operário que é mais adequado para o carregamento de lingotes é incapaz de entender a real ciência que regula a execução desse trabalho. Ele é tão estúpido, que a palavra percentagem" não tem qualquer significado para ele. Fica evidente que esse tipo de discurso não está empenhado na construção de uma visão ampla e crítica sobre o mundo. É por isso que, apenas dentro da perspectiva de transcendência positiva, quer dizer, superação em qualidade, que o desafio de universalizar o trabalho e a educação poderá acontecer. A educação para além do capital busca criação de uma nova ordem social que seja qualitativamente diferente. Mézsáros defende que lançar-se pelo caminho que conduz a essa ordem é necessário e urgente. Pois as “incorrigíveis determinações destrutivas da ordem existente tornam imperativo contrapor aos irreconciliáveis antagonismos estruturais do sistema do capital uma alternativa concreta e sustentável”. O potencial insustentável do sistema está cada vez mais forte prejudicando intensamente as condições elementares da sobrevivência humana. Para o autor, “o sistema do capital não conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho, em sua subordinação estrutural ao capital”, ou seja, o capitalismo precisa impor todos esses aparatos de poder (as mediações) para limitar a vida dos indivíduos guiando as suas relações, sua forma de ver o mundo e os seus sonhos. A esse conjunto de limitações que impõem à humanidade uma forma alienada de compreensão da vida, Mészáros chamou de “imperativos fetichistas do sistema”. Por conta disso, a edificação de uma alternativa concreta a essa forma de controle está diretamente relacionada a valores nutridos e escolhidos pelos indivíduos de acordo com as suas reais necessidades e não por aqueles impostos “sob forma de apetites totalmente artificiais”. Nenhum desses objetivos emancipadores é concebível sem a intervenção mais ativa da educação, entendida na sua orientação concreta, no sentido de estimular o controle consciente dos processos de exploração, desigualdade e desumanização próprios da reprodução metabólica já existente. É necessário cultivar princípios mais livres e igualitários em contraste com a estrutura insustentável dos “adversários" fortalecendo as bases de uma ordem social que vá para além dos limites do capital. Mészáros aponta que a ordem social em vigência opera através de círculos viciosos de desperdício e escassez, pois ao mesmo tempo que nega os requisitos mínimos para a satisfação humana à esmagadora a maioria da população, apresenta índices de desperdício de proporções escandalosas, ilustradas pelos seguintes números: Segundo as Nações Unidas, no seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, o 1% mais rico do mundo aufere tanta renda quanto os 57% mais pobres. A proporção, no que se refere aos rendimentos, entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no mundo aumentou de 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 bilhões de pessoas viviam com menos de dois dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 bilhões não tinham acesso a nenhuma forma aprimorada de serviço de saneamento, e uma em cada seis crianças em idade de freqüentar a escola primária não esta va na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não-agrícola esteja desempregada ou subempregada. O autor evidencia que o que está em jogo aqui não é a deficiência dos recursos econômicos disponíveis, mas sim a inevitável deficiência estrutural de um sistema desumanizante e desumanizado. Romper esse círculo vicioso implica em uma intervenção efetiva na educação, capaz, simultaneamente, de estabelecer prioridades e de definir as reais necessidades, mediante a plena e livre deliberação dos indivíduos envolvidos. Se isso não ocorrer, o autor adverte que as consequências podem ser devastadoras a serviço da constante criação de necessidadesartificiais para a obtenção de lucros. Dessa forma, a educação para além do capital nada mais é do que a educação integral humanizada, ou seja, uma concepção de educação que não está limitada a um número fixo de anos na vida dos indivíduos, mas, devido a suas funções radicalmente mudadas, que possibilite o acesso ao conhecimento a todas as pessoas. Trata-se de um empreendimento progressivo e em permanente construção pois como agentes ativos, os indivíduos devem constante apresentar suas reais necessidades e metas. “A educação, nesse sentido, é verdadeiramente uma educação continuada”. Mészáros adverte: Não pode ser "vocacional" (o que em nossas sociedades significa o confinamento das pessoas envolvidas a funções utilitaristas estreitamente predeterminadas, privadas de qualquer poder decisório), tampouco "geral" (que deve ensinar aos indivíduos, de forma paternalista, as "habilidades do pensamento"). Essas noções são arrogantes presunções de uma concepção baseada numa totalmente insustentável separação das dimensões prática e estratégica. Portanto, a "educação continuada" significativa baseada na gestão coletiva, constitui-se como um dos princípios fundamentais de uma sociedade para além do capital, tornando-se representativa do processo de construção permanente dos saberes necessários a humanidade tanto do ponto de vista técnico-científico como da perspectiva humanizadora. É só a partir dessa dinâmica de mudança permanente é que se torna possível um modo justo e equitativo para a determinação de princípios orientadores para a organização social global. Ao tratar de princípios globais, a educação humanizada sempre estará preocupada com as necessidades reais de todos, ou pelo menos da maioria da humanidade diferentemente da concepção de globalização atual na qual umas poucas potências imperialistas (especialmente a maior delas) tomam as decisões baseadas nos interesses do capital transnacional. Para o autor, a globalização do capital não funciona nem pode funcionar, pois não é capaz de superar as contradições irreconciliáveis que se manifestam na crise estrutural global do sistema, em outras palavras, mesmo com uma pretensa tentativa de “curar” os efeitos negativos do sistema, a globalização capitalista porque é estruturalmente incapaz de se dirigir às suas causas. Mészáros afirma que vivemos em um momento de crise global do capital, ou seja, trata-se de uma época histórica de transição de uma ordem social existente para outra que é qualitativamente diferente. Portanto, para romper com alógica capitalista e trilhar caminho que a superem a tarefa educacional é, simultaneamente, teórica e prática pois trata-se de uma transformação social, ampla e emancipadora. Elas são inseparáveis, nenhuma das duas pode ser posta à frente da outra uma vez que a emancipação radical requerida é inconcebível sem uma concreta e ativa contribuição da educação no seu sentido amplo, tal como foi descrito neste texto. E vice-versa: a educação não pode funcionar “suspensa no ar” sem bases concretas de aplicação. Para que o objetivo de ir “além do capital” seja concretizado é necessário que o projeto educacional esteja articulado no seu “inter-relacionamento dialético”, em outras palavras, aberto as mudanças e adequações à vida real, disposto a rever suas bases diante de todo tipo de necessidade que se crie. Assim, adverte Mészáros: Cabe a nós todos - todos, porque sabemos muito bem que "os educadores também têm de ser educados" - mantê-las de pé, e não deixá-las cair. As apostas são elevadas demais para que se admita a hipótese de fracasso. “Nesse empreendimento, as tarefas imediatas e as suas estruturas estratégicas globais não podem ser separadas ou opostas umas às outras”, quer dizer, é preciso agir no aqui e no agora, alterando o modelo de educação vigente, transformando a escola, os sujeitos e as práticas. Mas é necessário olhar e alterar o imediato buscando também transformar o todo, o autor ressalta que a resolução dos problemas “só é possível se a abordagem do imediato for orientada pela sintetização da estrutura estratégica”. Assim, o sucesso da estratégia de superar a lógica do capital “é impensável sem a realização das tarefas imediatas”, mas essas estão em constante processo de mudança, sempre renovadas e expandidas, é aí que está o centro de toda a ação. O olhar atento as transformações do sistema e a superação de seus desafios deve ser o guia “em direção ao futuro - no sentido da única forma viável de auto mediação”. É preciso partir do imediato, mas orientar as ações sempre visando ocupar espaço dentro da estratégia global orientada pelo futuro de superação que se vislumbra.
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