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Um bom homem é difiícil de encontrar

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Flannery O’Connor
Um bom homem
é difícil de encontrar
Tradução do inglês
Clara Pinto Correia
Um bom homem é difícil de encontrar
Autor: Flannery O’Connor
Tradução: Clara Pinto Correia
Capa: Miss Shusie
Foto capa: © Charles Mason / Getty Images / Image One
Paginação: Gabinete Gráfico Cavalo de Ferro
ISBN: 989�623�014�5
Todos os direitos para publicação
em língua portuguesa reservados por:
© Cavalo de Ferro Editores, Lda.
Travessa dos Fiéis de Deus, 113
1200�188 Lisboa
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Nenhuma parte desta obra poderá ser reproduzida
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sem a autorização prévia e por escrito do editor,
com excepção de excertos breves
usados para apresentação e crítica da obra. 
Flannery O'Connor é uma das mais impor�
tantes vozes da literatura americana, particu�
larmente aclamada pela genialidade dos seus
contos que combinam o cómico, trágico e bru�
tal. É uma escritora de referência da tradição
Gótica Sulista focada na decadência do Sul e
nas suas gentes malditas.
«Flannery O'Connor deixa o leitor extasiado,
emocionado e profundamente impressionado
por um talento literário de grandiosidade única.»
Sunday Telegraph
«Ela não era só a melhor escritora deste
tempo e lugar: ela conseguiu expressar algo se�
creto sobre a América, algo chamado Sul, com
um dom transcendente de expressar o espírito
real de uma cultura. Ela era também um génio.»
New York Times 
FLANNERY O'CONNOR
«Li as histórias todas, uma por uma, noite
dentro, sempre a sentir�me quase na margem do
rio por onde se navega para outra dimensão
qualquer. Viajei por dentro de todos os nervos
de todas as perplexidades humanas, e a rede de
dendrites ia sempre parar ao axónio fundamen�
tal, em que, de uma vez por todas, alguém tem
que fazer o gesto definitivo que muda tudo, der�
ruba tudo, atira tudo por terra ou volta a pôr tu�
do no lugar mas já todos sabemos que nunca
mais nada voltará a ser como era dantes. Era in�
crível. Era hipnótico. Era impossível de inter�
romper antes de chegar ao fim e depois eu apa�
gava a luz e ficava a dar voltas na cama (...)
A minha Flannery morreu em 1964. Descubram�
�na agora, e cada um que julgue por si mesmo.»
Clara Pinto Correia 
4 O’CONNOR
A velha e a filha estavam sentadas no alpendre
quando Mr. Shiftlet subiu a estrada pela primei�
ra vez. A velha deslizou para a ponta da cadei�
ra e inclinou�se para a frente, protegendo os
olhos do sol penetrante com a palma da mão.
A filha não conseguia ver grande coisa à sua
frente e continuou a brincar com os dedos. Em�
bora a velha vivesse sozinha com a filha na�
quele paradeiro desolado e nunca tivesse visto
Mr. Shiftlet antes, podia estabelecer, mesmo à
distância, que o homem não passava de um va�
gabundo e não era preciso ter medo dele.
A manga esquerda do seu casaco estava enrola�
da por forma a mostrar que só existia meio bra�
ço lá dentro e a sua silhueta magra inclinava�se
ligeiramente para o lado como se o vento esti�
vesse a empurrá�la. Envergava um fato preto e
um chapéu de feltro castanho que estava virado
para cima à frente e para baixo atrás e carrega�
va na mão uma caixa de ferramentas estreita de
alumínio. Aproximou�se, sem pressa, subindo a
estrada, com a face virada para o sol que pare�
A VIDA QUE SALVAR
PODE SER A SUA
cia estar a equilibrar�se no cume de uma mon�
tanha pequena.
A velha não mudou de posição até ele já es�
tar quase no seu quintal; depois levantou�se
com um punho cerrado apoiado na anca. A fi�
lha, uma rapariga grande com um vestido de
organdi azul curtinho, viu�o de repente e saltou
e começou a bater com os pés e a apontar e a
fazer sons excitados sem palavras.
Mr. Shiftlet parou mesmo à porta do quintal
e poisou a caixa no chão e cumprimentou�a com
um toque no chapéu como se ela estivesse a ter
um comportamento absolutamente normal; de�
pois virou�se para a velha e tirou�lhe o chapéu.
Tinha um cabelo preto e liso que caía a direito
desde um risco ao meio até por detrás das ore�
lhas de cada lado. A sua face era composta por
uma testa que ocupava metade do rosto e termi�
nava subitamente com as suas feições equilibra�
das por cima de uma mandíbula protuberante
forte como o aço. Parecia jovem mas tinha um
olhar de insatisfação cuidadosamente composto
como se entendesse a vida com toda a clareza.
«Boa tarde» disse a velha. Era aproximada�
mente do tamanho de um poste de uma cerca de
cedro e tinha um chapéu de homem enterrado
até baixo na cabeça. 
O vagabundo ficou a olhar para ela e não
respondeu. Virou�se de costas e observou o pôr�
6 O’CONNOR
�do�sol. Lançou tanto o seu braço inteiro como
o mais curto para cima, devagar, de forma a in�
dicar toda a extensão do céu e a sua figura for�
mou uma espécie de cruz torta. A velha obser�
vou�o com os braços cruzados sobre o peito
como se fosse a dona do céu, e a filha olhava,
com a cabeça inclinada para a frente, as suas
mãos gordas e sem esperança penduradas dos
pulsos. Tinha o cabelo longo de um dourado ró�
seo e os seus olhos eram tão azuis como o pes�
coço de um pavão.
Ele manteve a pose durante cerca de cin�
quenta segundos e depois agarrou na caixa e
avançou para o alpendre e pousou�a no pri�
meiro degrau. «Minha senhora,» disse numa
voz firme e nasalada, «dava uma fortuna para
viver onde pudesse ver o sol fazer isto todas as
tardes».
«Faz isso todas as tardes,» disse a velha e
voltou a sentar�se. A filha também se sentou e
olhou�o com uma curiosidade maliciosa como
se ele fosse um passarinho que se tivesse apro�
ximado mais que o habitual. Ele inclinou�se
para um lado, explorando o fundo das calças,
e num segundo tirou de lá uma caixa de pas�
tilha elástica e ofereceu�lhe uma delas. Ela
aceitou�a e descascou�a e começou a mastigar
sem tirar os olhos dele. Ele ofereceu também
uma pastilha à velha mas ela limitou�se a le�
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 7
vantar o lábio superior para mostrar que não
tinha dentes.
O olhar pálido e penetrante de Mr. Shiftlet já
tinha passado por tudo o que existia no quintal
– a bomba junto à esquina da casa e a figueira
grande onde três ou quatro galinhas se prepara�
vam para chocar ovos — e já tinha avançado
para um barracão onde viu a traseira quadrada
e enferrujada de um automóvel. «As senhoras
guiam?» perguntou.
«Aquele carro já não se mexe há quinze
anos» disse a velha. «No dia em que o meu ma�
rido morreu, deixou de funcionar».
«Já nada é como costumava ser, minha se�
nhora» disse ele. «O mundo está quase podre.»
«É verdade» disse a velha. «Você mora aqui
perto?»
«Chamo�me Tom T. Shiftlet» murmurou,
olhando para os pneus.
«Muito prazer» disse a velha, «chamo�me
Lucynell Crater e a minha filha é a Lucynell
Crater. O que é que anda a fazer por aqui, Mr.
Shiftlet?»
Ele ponderou se o automóvel seria um Ford
de 1928 ou 1929. «Minha senhora» disse ele, e
virou�se e deu�lhe toda a sua atenção, «deixe�
�me dizer�lhe uma coisa. Houve um desses mé�
dicos em Atlanta que agarrou numa faca e cor�
tou o coração humano – o coração humano,»
8 O’CONNOR
repetiu, inclinando�se para a frente «de dentro
do peito de um homem e segurou�o na mão,» e
levantou a mão, com a palma levantada, como
se estivesse a sopesar ligeiramente o coração
humano, «e estudou�o como se fosse um frango
de ontem e, minha senhora,» disse ele, permi�
tindo uma longa pausa significativa durante a
qual a sua cabeça deslizou para a frente e os
seus olhos cor de argila se iluminaram, «não sa�
be mais sobre isso do que a senhora ou eu.»
«É verdade,» disse a velha.
«Ora bolas! Mesmo que ele agarrasse naque�
la faca e retalhasse todos os bocados daquilo,
não ia ficar a saber mais do que a senhora ou
eu. Quanto quer apostar?»
«Nada» disse a velha sabiamente. «De onde
veio, Mr. Shiftlet?»
Ele não respondeu. Enfiou a mão nos bolsos
e tirou de lá um saco de tabaco e um pacote de
mortalhas e enrolou um cigarro com toda a pe�
rícia, e prendeu�o pendurado de um canto do
lábio superior. Depois agarrou numa caixa defósforos do bolso e acendeu um na sola do sa�
pato. Segurou o fósforo aceso como se estives�
se a estudar o mistério da chama enquanto ela
viajava perigosamente na sua direcção. A filha
começou a emitir sons agudos e a apontar para
a sua mão e a espetar o dedo, mas quando a
chama estava quase a tocar nele inclinou�se
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 9
com a mão em concha como se fosse lançar fo�
go ao nariz e acendeu o cigarro.
Atirou para trás o fósforo morto e lançou um
risco de cinzento no fim da tarde. Um olhar ma�
nhoso apoderou�se�lhe da face. «Minha senho�
ra» disse ele, «nos tempos que correm não há
nada que as pessoas não façam. Posso dizer�
�lhe que meu nome é Tom T. Shiftlet e que sou
de Tarwater, Tennessee, mas a senhora nunca
me viu antes: como é que sabe que eu não es�
tou a mentir? Como é que sabe se eu não sou
Aaron Sparks, minha senhora, e nasci em Sin�
gleberry, Georgia, ou que não sou antes George
Speeds e venho de Lucy, Alabama, ou que não
sou Thompson Bright de Toolafalls, Mississipi?»
«Não sei coisa nenhuma a seu respeito» res�
mungou a velha, irritada.
«Minha senhora,» disse ele, «as pessoas já
nem se importam com a qualidade das suas
mentiras. Talvez o melhor que eu posso dizer�
�lhe seja, sou um homem; mas escute, minha
senhora,» disse ele e fez uma pausa e tornou o
seu tom de voz ainda mais eloquente, «o que é
um homem?»
A velha começou a mascar uma semente
com as gengivas. «O que é que traz naquela cai�
xa, Mr. Shiftlet?» perguntou ela.
«Ferramentas» disse ele, agora modesto. «Sou
carpinteiro.»
10 O’CONNOR
«Bom, se vem aqui à procura de trabalho
posso dar�lhe cama e mesa, mas não posso dar�
�lhe dinheiro. Estou a dizer�lhe isto antes de vo�
cê começar» disse ela.
Não houve logo resposta nem nenhuma ex�
pressão particular no seu rosto. Encostou�se ao
suporte do telhado do alpendre. «Minha senho�
ra,» disse ele devagar, «há homens para quem
certas coisas têm mais valor que o dinheiro.»
A velha balançou�se sem comentar e a filha ob�
servou a maçã de Adão que se movia para cima
e para baixo no pescoço dele. Shiftlet disse à
velha que a única coisa que interessava à maio�
ria das pessoas era o dinheiro, mas perguntou�
�lhe para que é que um homem era feito. Per�
guntou�lhe se um homem era feito para o di�
nheiro, ou quê. Perguntou�lhe para que é que
ela achava que tinha sido feita mas ela não res�
pondeu, limitou�se a balançar a cadeira e per�
guntou a si própria se um homem só com um
braço poderia instalar um novo telhado na sua
casota do jardim. Ele fez várias perguntas às
quais ela não respondeu. Disse�lhe que tinha
vinte e oito anos e que até agora a sua vida fo�
ra de uma grande variedade. Já tinha sido can�
tor de gospel, capataz no caminho de ferro, as�
sistente numa casa funerária, e fizera rádio três
meses com Inclement Roy e os seus Red Crest
Stranglers. Disse que lutara e sangrara nas For�
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 11
ças Armadas do seu país e que visitara todas as
terras estrangeiras e em toda a parte tinha vis�
to pessoas que não se importavam com a ma�
neira como faziam as coisas. E acrescentou que
não tinha sido educado dessa maneira.
Uma lua gorda e amarela apareceu por trás
dos ramos da figueira como se também quises�
se chocar os ovos das galinhas. Ele disse que
um homem tinha que fugir para o campo se
queria ver o mundo como um todo e que bem
gostaria de viver num lugar desolado como es�
te onde poderia ver o sol pôr�se os fins de tar�
de da forma como Deus planeara que o ele fi�
zesse.
«É casado ou solteiro?» perguntou a velha.
Houve um longo silêncio. «Minha senho�
ra,» perguntou ele por fim, «onde poderia eu
encontrar uma mulher inocente nos tempos
que correm? Não estou interessado em ne�
nhum desse lixo que posso ir buscar sempre
que quiser».
A filha estava muito inclinada para a frente,
com a cabeça quase ao nível dos joelhos obser�
vando�o através de uma porta triangular que ti�
nha construído com os cabelos; e de repente
caiu no chão num sobressalto e começou a cho�
ramingar. Mr. Shiftlet agarrou�a e ajudou�a a
voltar para a cadeira.
«É a sua menininha?» perguntou ele.
12 O’CONNOR
«A minha única» disse a velha, «e é a rapari�
ga mais doce do mundo. Não a trocava por na�
da deste mundo. Além disso, é esperta. Sabe la�
var o chão, varrer, cozinhar, lavar roupa, dar de
comer às galinhas, e não, eu não a trocava nem
por uma arca cheia de jóias.
«Não» disse ele com gentileza, «não deixe
nunca que homem nenhum a leve para longe
de si.»
«Se vier um homem atrás dela» disse a velha,
«eu não saio de casa.»
No escuro, os olhos de Mr. Shiftlet estavam
cravados na parte do pára�choques do carro que
cintilava na distância. «Minha senhora,» disse
ele, atirando o seu meio braço para cima como
se com ele pudesse apontar para a casa e o
quintal e a bomba, «não há nada estragado nes�
ta plantação que eu não possa consertar para si,
aleijado de um braço ou não. Sou um homem»
disse com uma dignidade triste, «mesmo que
não seja um homem completo. Tenho,» disse ele
batendo com os nós dos dedos no chão para en�
fatizar a importância do que ia dizer, «uma in�
teligência moral!» e a sua cara escorregou da es�
curidão para um raio de luz vindo da porta e
olhou para ela como se estivesse impressionado
com esta verdade impossível.
A velha não ficou impressionada com a fra�
se. «Já lhe disse que pode ficar por aqui e tra�
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 13
balhar para ter que comer» disse ela, «desde que
não se importe de dormir na barraca do carro.»
«Mas oiça, minha senhora,» disse ele com um
sorriso deleitado, «os monges de antigamente
dormiam dentro dos seus caixões!»
«Não estavam tão avançados como nós esta�
mos agora» disse a velha.
Na manhã seguinte Mr. Shiftlet começou a
consertar o telhado da casota do jardim en�
quanto Lucynell, a filha, se sentava numa pedra
e olhava para ele enquanto trabalhava. Ainda
não tinha passado nem uma semana e já a mu�
dança que criara no sítio era visível. Tinha con�
sertado os degraus da frente e das traseiras,
construído um curral novo para os porcos, res�
taurado uma vedação, e ensinado Lucynell, que
era completamente surda e nunca pronunciara
uma palavra na vida, a dizer a palavra «bird1»
A rapariga grande de cara rosada andava atrás
dele para onde quer que ele fosse, batendo pal�
mas e dizendo «Burrttddt, ddbirrrtdt». A velha
olhava da distância, secretamente satisfeita.
Andava doida para ter um genro.
Mr. Shitflet dormia no banco traseiro estreito
e duro do automóvel com os pés fora da janela.
14 O’CONNOR
1 – «Pássaro». (N. da T.)
Tinha a sua lâmina de barbear e uma caixa com
água num barril que lhe servia de mesa de cabe�
ceira e pusera um bocado de espelho contra o vi�
dro preto e mantinha o casaco por perto num ca�
bide pendurado por cima da janela.
Ao fim da tarde sentava�se nas escadas e
conversava enquanto a velha e Lucynell abana�
vam violentamente as cadeiras, uma de cada la�
do dele. As três montanhas da velha eram ne�
gras contra o céu azul escuro e eram visitadas
ocasionalmente por vários planetas e pela lua
quando já tinha abandonado as galinhas. Mr.
Shiftlet salientou que a razão pela qual tinha
melhorado tanto a plantação era porque acaba�
ra por se interessar pessoalmente por ela. Disse
que até ia fazer o automóvel voltar a funcionar.
Tinha levantado o capot e estudado o meca�
nismo e disse que era evidente que o automó�
vel tinha sido construído no tempo em que os
automóveis eram mesmo construídos. Se virem
agora, disse ele, um homem põe um parafuso, e
outro homem põe outro parafuso, e outro ho�
mem põe outro parafuso, de maneira que é um
homem por parafuso. Por isso é que é preciso
pagar tanto por um carro: é preciso pagar to�
dos esses homens. Agora, se só fosse preciso
pagar a um homem, podia arranjar�se um car�
ro mais barato e nesse carro alguém teria in�
vestido o seu interesse pessoal, portanto seria
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 15
um carro melhor. A velha concordou com ele
que era assim mesmo.
Mr. Shiftlet disse que o problema do mundo
era que agoraninguém se importava com nada,
ou se dedicava particularmente ao que quer que
fosse. Disse que nunca teria sido capaz de ensi�
nar Lucynell a dizer uma palavra se não se ti�
vesse dedicado e esperado o tempo necessário.
«Ensine�lhe outra palavra qualquer» disse a
velha.
«O que é que quer que ela diga a seguir?»
perguntou Mr. Shiftlet.
O sorriso da velha era largo a desdentado e
sugestivo.
«Ensine�a a dizer “sugarpie2”» disse ela. 
Mr. Shiftlet. já sabia no que é que ela estava
a pensar.
No dia seguinte começou a mexer no auto�
móvel e nesse fim de tarde disse�lhe que se ela
comprasse uma correia de ventoinha seria ca�
paz de por o motor a funcionar.
A velha disse que lhe daria o dinheiro. «Vê
esta rapariga?» perguntou, apontando para
Lucynell que estava sentada no chão a cerca de
um pé de distância, a olhar para ele, com os
olhos muito azuis mesmo no escuro. «Se algum
16 O’CONNOR
2 – Literalmente «tarte de açúcar», uma forma rural e antiquada de di�
zer «querido». (N. da T.)
homem quisesse levá�la, eu diria “Nenhum ho�
mem no mundo vai levar esta doce menina pa�
ra longe de mim!”, mas se o homem dissesse
“Minha senhora, eu não quero levá�la, quero fi�
car com ela aqui” eu diria, “Cavalheiro, não
posso criticá�lo. Eu própria não desperdiçaria a
oportunidade de viver num sítio permanente e
ter a menina mais doce do mundo. O senhor
não é parvo” diria eu.»
«Que idade tem ela?» perguntou Mr. Shiftlet.
casualmente.
«Quinze, dezasseis» disse a velha. A rapariga
já tinha quase trinta anos mas era impossível
adivinhar devido à sua inocência.
«Também seria uma boa ideia pintá�lo» no�
tou Mr. Shiftlet. «Não vai querer que ele se en�
ferruge.»
«Isso vemos depois» disse a velha.
No dia seguinte ele caminhou até à cidade e
regressou com os instrumentos de que precisava
e uma lata de gasolina. Mais para o fim da tarde
ouviram�se ruídos horríveis vindos da cabana e
a velha correu para fora de casa, pensando que
Lucynell estava num lado qualquer a ter um ata�
que. Lucynell estava sentada no galinheiro, a ba�
ter com os pés e a gritar «Burrddtt! Bddurrddttt!»
mas a sua agitação era causada pelo automóvel.
Este emergiu da cabana com uma profusão con�
fusa de explosões, num movimento orgulhoso e
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 17
solene. Mr. Shiftlet estava sentado ao volante,
com as costas completamente erectas. Tinha uma
expressão séria de modéstia como se acabasse de
ressuscitar um morto.
Nessa noite, a balançar�se na cadeira, a ve�
lha foi direita ao assunto sem perder tempo.
«Quer uma mulher inocente, não quer?» per�
guntou com simpatia. «Não deve estar interes�
sado nesse lixo que anda para aí.»
«Não, minha senhora, não estou» respondeu
Mr. Shiftlet.
«Uma mulher que não possa falar» continuou
ela, «não pode responder�lhe torto nem usar lin�
guagem rude. É de uma mulher assim que você
precisa. Ali mesmo» e apontou para Lucynell que
estava sentada de pernas cruzadas na sua cadei�
ra, a segurar ambos os pés com as mãos.
«É verdade» admitiu ele. «Não me causaria
problemas nenhuns.»
«No sábado» disse a velha, «o senhor, ela e eu
podemos ir no carro até à cidade e tratar do ca�
samento.»
Mr. Shiftlet sentou�se mais confortavelmen�
te nos degraus.
«Não posso casar�me agora já» disse ele.
«Tudo o que a senhora quer fazer custa dinhei�
ro e eu não tenho esse género de dinheiro.»
«Para que é que é preciso o dinheiro?» per�
guntou a velha.
18 O’CONNOR
«É preciso dinheiro» disse ele. «Algumas pes�
soas fariam as coisas de qualquer maneira nos
tempos que correm, mas da maneira como eu
penso, eu não me casaria com uma mulher que
não pudesse levar a viajar como se fosse uma
pessoa importante. Quer dizer, precisava de le�
vá�la para um hotel e tratá�la bem. Não me ca�
saria nem com a Duquesa de Windsor» disse ele
com firmeza, «se não pudesse levá�la para um
hotel e oferecer�lhe um bom jantar.»
«Fui educado assim, e não há nada que eu
possa fazer para mudar isso. A minha velha
mãe ensinou�me como é que se faz.»
«A Lucynell nem sequer sabe o que é um ho�
tel,» resmungou a velha. «Oiça lá, Mr. Shiftlet»
disse ela, deslizando para a frente na cadeira, «o
senhor ganharia uma casa permanente com um
poço fundo e a rapariga mais inocente do mun�
do. Não precisa de dinheiro nenhum. Deixe�me
dizer�lhe uma coisa: não há nenhum lugar no
mundo para um pobre homem aleijado e sem
amigos que anda à deriva.»
As palavras feias instalaram�se na cabeça de
Mr. Shiftlet como um grupo de milhafres no cimo
de uma árvore. Não respondeu logo. Enrolou um
cigarro e depois acendeu�o e depois disse numa
voz sem inflexão, «Minha senhora um homem é
constituído por duas partes, o corpo e o espírito.»
A velha apertou as gengivas com força.
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 19
«Um corpo e um espírito» repetiu ele. O cor�
po, minha senhora, é como uma casa: não vai
para lado nenhum. Mas o espírito, minha se�
nhora, é como um automóvel: sempre a mover�
�se, sempre...»
«Oiça Mr. Shiftlet» disse ela, «o meu poço
nunca seca e a minha casa está sempre quente
no Inverno e nada neste sítio está penhorado.
Vá ao tribunal e veja por si próprio. E debaixo
daquela cabana tem um belo automóvel.» es�
tendeu o isco com cautela. «Pode tê�lo pintado
até Sábado. Eu pago a pintura.» 
Na escuridão, o sorriso de Mr. Shiftlet esti�
cou�se como uma cobra fina a acordar junto a
uma fogueira. Ao fim de um segundo recom�
pôs�se e disse, «Estou só a dizer que o espírito
de um homem vale mais para ele do que qual�
quer outra coisa. Teria que levar a minha espo�
sa a passear pelo menos um fim de semana, sem
me preocupar com os custos. Preciso de seguir
o meu espírito para onde ele quer ir.»
«Dou�lhe quinze dolares para uma viagem
de fim de semana» disse a velha com uma voz
seca. «É o melhor que posso fazer.»
«Nem sequer chegava para mais que pagar a
gasolina e o hotel» disse ele. «Não dava para ela
comer.»
«Setenta e cinco» disse a velha. «É tudo o que
tenho por isso não ganha nada em estar a ten�
20 O’CONNOR
tar ordenhar�me. Podem levar um farnel para o
almoço.»
Mr. Shiftlet ficou muito magoado com o ter�
mo «ordenhar». Não duvidava de que ela possui�
ria bastante mais dinheiro enfiado dentro do col�
chão mas nessa altura já lhe tinha dito que não
estava interessado em dinheiro. «Hei�de fazer
com que isso chegue» disse e levantou�se e foi�se
embora sem lhe dirigir nem mais uma palavra. 
No sábado guiaram os três até à cidade no
carro com a pintura ainda mal acabada de secar
e Mr. Shiftlet e Lucynell casaram�se no gabine�
te da conservatória com a velha como testemu�
nha. Quando saíram do edifício do tribunal, Mr.
Shiftlet começou a torcer o pescoço dentro do
colarinho. Parecia moroso e amargurado como
se tivesse sido insultado enquanto alguém o se�
gurava. «Isto não me satisfez,» disse. «Foi só
uma coisa que uma mulher fez num gabinete,
nada mais que análises de sangue e papeladas.
O que é que eles sabem sobre o meu sangue?
Mesmo que eles me tirassem o coração e o cor�
tassem» disse ele, «continuariam a não saber na�
da sobre mim. Não me satisfez de todo.»
«Satisfez a lei» disse a velha abruptamente.
«A lei» disse Mr. Shifltet e cuspiu. «É a lei que
não me satisfaz.»
Tinha pintado o carro de verde com uma fai�
xa amarela mesmo por baixo das janelas. Sen�
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 21
taram�se os três no banco da frente e a velha
disse, «A Lucynell não está bonita? Parece uma
boneca.» Lucynell envergava um vestido branco
que a mãe tinha desenterrado de um baú e de�
pois retocado e trazia um panamá branco na ca�
beça com cerejas de madeira vermelhas à volta
da pala. De vez em quando a sua expressão plá�
cida modificava�se com um pensamento breve e
isolado como um raio verde que atravessasse o
deserto. «Saiu�lhe a sorte grande!» disse a velha.
Mr. Shiftlet nem sequer olhou para ela.
Voltaram a guiar para casa para deixarem a
velha e levarem o almoço. Quando estavam
prontos para partir, a mãe de Lucynell ficou pa�
rada a olhar para a janela do carro, com os de�
dos apertados contra o vidro. «Nunca me sepa�
rei dela por doisdias antes» disse.
Mr. Shiftlet ligou o motor.
«E nunca deixaria nenhum homem levá�la
mas vi que o senhor a trataria bem. Adeus, Su�
garbaby» disse ela, acariciando a manga do ves�
tido branco. Lucynell olhou de frente para ela e
não pareceu tê�la visto de todo. Mr. Shiftlet fez
o carro deslizar em diante para a velha ser obri�
gada tirar dali as mãos.
O princípio da tarde estava claro e aberto e
cercado por um céu azul pálido. Embora o au�
tomóvel não atingisse mais que trinta milhas
por hora, Mr. Shiftlet imaginou uma escalada
22 O’CONNOR
magnífica seguida de várias curvas em gancho
executadas com perícia a grande velocidade,
que lhe subiu inteiramente à cabeça e lhe per�
mitiu esquecer a sua amargura da manhã. Sem�
pre quisera ter um carro e nunca conseguira
comprar um antes. Guiou muito depressa por�
que queria chegar a Mobile ao anoitecer.
A certa altura, deteve os seus pensamentos o
tempo suficiente para olhar para Lucynell no
banco ao lado do seu. A rapariga grande come�
ra o almoço assim que tinham saído da cerca da
casa e agora estava a puxar as cerejas do cha�
péu uma por uma e a atirá�las pela janela. Mr.
Shiftlet ficou outra vez deprimido apesar do au�
tomóvel. Tinha guiado mais umas cem milhas
quando decidiu que ela já devia estar com fome
outra vez e na cidadezinha seguinte a que che�
gou parou em frente de um lugar para comer
feito de alumínio pintado, chamado The Hot
Spot 3 e levou�a lá para dentro e mandou vir
duas doses de fiambre e bolos de trigo4. A via�
gem tinha causado sono à noiva e assim que su�
biu para o banco Lucynell encostou a cabeça ao
balcão e fechou os olhos. Não estava mais nin�
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 23
3 – Literalmente «O lugar quente», significando «O lugar que está a
dar». (N. da T.)
4 – Prato característico da América sulista, extremamente gordurodos
e muito apreciado. O trigo é esmigalhado com água por forma a fazer
um pasta, e depois frito na chapa em bolas irregulares. (N. da T.)
guém no The Hot Spot além de Mr. Shiftlet e do
rapaz do balcão, um jovem pálido com um pa�
no engordurado por cima do ombro. Antes que
ele conseguisse engolir o que tinha no seu pra�
to, já ela estava a ressonar suavemente.
«Dá�lhe a comida quando ela acordar» disse
Mr. Shiftlet. «Eu pago já.»
O rapaz inclinou�se e começou a olhar para
o cabelo de tom dourado róseo e para os olhos
entreabertos no sono. Depois levantou o olhar e
cravou�o em Mr. Shiftlet. «Parece um anjo de
Deus» murmurou.
«Anda à boleia» explicou Mr. Shiftlet. «E eu
não posso esperar. Tenho que chegar hoje a
Tuscaloosa.»
O rapaz voltou a inclinar�se e tocou numa
madeixa do cabelo dourado com muito cuidado
e Mr. Shiftlet foi�se embora.
Sentiu�se mais deprimido que nunca à me�
dida que guiava em solidão. O fim da tarde ti�
nha�se tornado quente e húmido e a paisagem
era agora mais plana. No fundo do céu estava
uma tempestade a preparar�se muito devagar e
sem trovões como se tivesse a intenção de su�
gar todas as gotas de ar da terra antes de ex�
plodir. Havia certas alturas em que Mr. Shiftlet
preferia não estar entregue a si próprio. Tam�
bém achava que um homem possuidor de um
automóvel tem algumas obrigações para com os
24 O’CONNOR
outros e mantinha�se alerta a ver se alguém pe�
dia boleia. A certa altura viu um sinal que di�
zia: «Guie com Cuidado. A vida que salvar po�
de ser a sua».
De cada lado da estrada estreita apareciam
agora campos secos e aqui e ali uma cabana ou
um posto de gasóleo emergia nas clareiras.
O sol começou a pôr�se mesmo em frente do au�
tomóvel. Era uma bola avermelhada que através
do pára�brisas parecia achatada em cima e em
baixo. Viu um rapaz com jardineiras e um cha�
péu cinzento parado na berma e reduziu a velo�
cidade e parou diante dele. O rapaz não tinha o
polegar levantado, mas trazia consigo uma ma�
la de cartão pequena e o chapéu estava posto na
cabeça de uma forma que indicava que acabara
de abandonar algum sítio para sempre. «Jovem»
disse Mr. Shiftlet, «vejo que queres uma boleia.»
O rapaz não disse se queria ou não queria
mas abriu a porta do carro e entrou, e Mr. Shif�
tlet recomeçou a guiar. A criança pôs a mala no
colo e dobrou os braços por cima dela. Virou a
cabeça e olhou pela janela afastando�se de Mr.
Shiftlet. Mr. Shiftlet sentiu�se oprimido. «Jo�
vem» disse ao fim de um minuto. «Eu tenho a
melhor mãe do mundo e por isso deduzo que tu
só tens a segunda melhor.»
O rapaz atirou�lhe um olhar escuro e breve e
depois voltou a olhar para a outra janela.
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 25
«Não há nada mais doce» continuou Mr.
Shiftlet, «do que a mãe de um rapaz. Ensinou�
�lhe as primeiras orações nos seus joelhos, deu�
�lhe amor quando mais ninguém lho daria, dis�
se�lhe o que é que estava bem e o que é que não
estava, e viu�o fazer as coisas certas. Jovem»
disse ele, «nunca senti num único dia da minha
vida o que senti quando abandonei aquela mi�
nha velha mãe.» 
O miúdo agitou�se no banco e não olhou pa�
ra Mr. Shiftlet. Descruzou os braços e pôs uma
mão no fecho da porta. 
«A minha mãe era um anjo de Deus» disse
Mr. Shiftlet numa voz muito tensa. «Ele tirou�a
do Céu e deu�ma a mim e eu fugi dela.» Os seus
olhos ficaram instantaneamente enevoados pe�
la humidade das lágrimas. O carro quase não
andava.
O rapaz voltou�se violentamente no banco.
«Vai para o diabo!» gritou. «A minha velha é um
saco de pulgas e a tua é um gato fedorento es�
fomeado!» e com isto escancarou a porta e sal�
tou com a sua mala para a berma.
Mr. Shiftlet ficou tão chocado que durante
cerca de cem pés continuou a guiar devagar com
a porta ainda aberta. Uma nuvem, exactamente
da cor do chapéu do rapaz e em forma de nabo,
tinha descido pela frente do sol, e outra, com
pior aspecto, estava acocorada por trás do carro.
26 O’CONNOR
Mr. Shiftlet sentiu que a podridão do mundo es�
tava prestes a devorá�lo. Levantou o braço e dei�
xou�o cair sobre o peito. «Oh Senhor!», rezou.
«Aparece a varre a lama deste mundo!»
O nabo continuou a descer devagar. Depois
de alguns minutos veio o estrondo tremendo de
um trovão por trás e pingos de chuva fantásti�
cos, como tampas de latas de sopa, esbarraram
contra a traseira do automóvel de Mr. Shiftlet.
Carregou com força no acelerador e com o co�
tovelo fora da janela lançou�se a alta velocida�
de para Mobile debaixo do duche galopante. 
A VIDA QUE SALVAR PODE SER A SUA 27

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