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2020213_145625_Psicologia+Social+-+coletânea+de+textos (1)

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Prévia do material em texto

PSICOLOGIA
SOCIAL
TEXTO 1
BAPTISTA, L. A. A atriz, o Padre e a Psicanalista – os
moladores de Facas. In: ______. A Cidade dos Sábios.
São Paulo: Summus, 1999. P. 45 - 49
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
TEXTO 2
LANE, S. T. M. O que é Psicologia Social. São Paulo:
Brasiliense, 2006.
TEXTO 3
LANE, S. T. M. A Psicologia Social e uma nova concepção de
homem para a Psicologia. In: LANE, S. T. M.; CODO, W.
Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo:
Editora Brasiliense: 2012 (1984), p.10-19
TEXTO 4
BOCK, A. M. B. A psicologia a caminho do novo século:
identidade profissional e compromisso social. Estudos de
Psicologia, v. 4, n. 2, 1999, p. 315-329.
315EventoEstudos de Psicologia 1999, 4(2), 315-329
A Psicologia a caminho do novo
século: identidade profissional e
compromisso social1
Ana Mercês Bahia Bock
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Resumo
O tema “A Psicologia a caminho do novo século: identidade
profissional e compromisso social” foi desenvolvido aqui a
partir de três aspectos: um pequeno resgate histórico sobre o
vínculo da Psicologia com a sociedade brasileira, buscando
caracterizar sua relação com esta sociedade; em seguida,
desenvolver a perspectiva da profissão comprometida com a
realidade social, apresentando alguns critérios para se jul-
gar o compromisso social de práticas e saberes da Psicolo-
gia, além da defesa de que a Psicologia, como saber e fazer,
se desenvolva sempre vinculada à sociedade que a acolhe; e
para finalizar, trazer a questão da identidade profissional do
psicólogo, partindo do princípio de que identidade deve ser
sempre vista como metamorfose e como movimento perma-
nente de transformação. O texto pretende ser uma defesa de
uma identidade para os psicólogos que seja movimento e
transformação, porque é reflexo do vínculo que a Psicologia
deve manter com a sociedade, que está sempre em movi-
mento, vínculo este de compromisso com as necessidades e
demandas da maioria da população brasileira.
Palavras-chave:
Psicologia,
profissão,
compromisso
social, identidade
profissional
316 Evento
A Psicologia a caminho do novo século: identidade profissio-nal e compromisso social. O tema desta palestra, que tomocomo um desafio, demonstra claramente que estamos utili-
zando o marco da mudança do século como um momento de reflexão
sobre nosso futuro, enquanto categoria profissional e enquanto ciên-
cia. Estamos em um momento importante de construir planos, pro-
jetos para o futuro; projetos estes que percebemos claramente como
definidores de nossa identidade profissional. Estamos querendo de-
finir quem queremos ser no próximo século. Pretensioso, sim, po-
rém necessário e correto. É preciso aproveitar estes marcos e rituais
Abstract
Psychology towards the new century: professional identity
and social commitment
The theme “Psychology towards the new century:
professional identity and social commitment” was elaborated
here from three foundations: 1. a short historical recovery of
the links between Psychology and Brazilian society, aiming
at the portrayal of its relationship with that society; 2. the
development of a perspective of the profession committed
to the social reality, including the presentation of criteria to
evaluate the social engagement of practices and
understandings of Psychology and the argument that
Psychology, as knowledge and doings, should always act in
dependence to the society that hosts it; 3. the prompting of
the question of psychologist’s professional identity, from the
standpoint that identity should always be seen as
metamorphosis and a permanent movement of
transformation. The text intends to be a defense of an identity
for psychologists that implies movement and transformation
because it is consequence of the linkage Psychology should
entertain with society, which is always moving, a linkage of
commitment to the needs and demands of the majority of
the Brazilian population.
Key-words:
Psychology,
profession, social
commitment,
professional
identity
317Evento
que a nossa cultura nos oferece para refletir sobre nossa atuação como
profissionais. Na verdade, há apenas uma aparência de que estamos
pensando apenas o futuro. Não; estamos pensando também o pre-
sente, o amanhã de nossa profissão.
Quem queremos ser? Que cara queremos dar à nossa profissão?
Que inserção social queremos que ela tenha? Que vínculo queremos
ter com a sociedade que abriga e recebe nosso trabalho? Que finali-
dade queremos imprimir às nossas ações? Estas são questões que, a
meu ver, estão embutidas no tema. Ou melhor, no desafio desta pa-
lestra.
Devo confessar, de início, que eu gosto deste desafio. Gosto de
poder pensar que participo da definição do futuro de minha profis-
são. Gosto de poder pensar que o futuro não está pronto e que me
cabe participar de sua construção. Isto, na verdade, me encanta. Fa-
rei, portanto, esta reflexão com paixão; podem estar certos.
Para começar, gosto de estruturar minha reflexão para que todos
possam acompanhar o caminho do meu pensamento e, quem sabe,
chegarmos juntos no final. Isto é também um ponto crucial, pois
projeto de futuro de uma profissão ninguém faz sozinho. Teremos de
enfrentar este outro desafio: construir o futuro juntos.
Pretendo, inicialmente, caracterizar o vínculo que nossa profis-
são tem tido com a sociedade para, em seguida, refletir sobre o apelo
que está sendo feito a ela, hoje. A que perguntas tem respondido e
que respostas nossa profissão tem dado à sociedade brasileira? De-
pois, discutir a perspectiva de uma profissão comprometida com a
realidade social, para finalizar com a questão da identidade profissi-
onal. Bem, vamos ao trabalho!
A Psicologia e a sociedade: um pequeno resgate
Se voltarmos um pouco mais no tempo, para “começar do come-
ço”, vamos encontrar no Brasil Colonial, de acordo com os estudos
de Mitsuko Antunes (1999), estudos sobre fenômenos psicológicos,
principalmente em obras de outras áreas do saber (tais como Teolo-
gia, Moral, Pedagogia, Política e Arquitetura) escritos por autores
de formação jesuítica, que tinham claramente a finalidade de contri-
318 Evento
buir para o controle dos indígenas. São estudos sobre emoção, senti-
dos, auto-conhecimento, adaptação ambiental, diferenças raciais e
outros temas relacionados diretamente à questão do controle político
da população colonial.
Com a vinda da Corte Portuguesa para o Rio de Janeiro, grandes
alterações sociais acontecem em uma cidade que se aglomera sem
condições básicas de vida. Doenças infecciosas proliferam e campa-
nhas de higienização da sociedade vão tomar importância e força. É
grande o desenvolvimento do saber médico, guiado pelas idéias da
higienização e saneamento físico e moral da sociedade. Os conteú-
dos psicológicos aparecem então nas produções médicas para carac-
terizar as doenças da moral, presente nas prostitutas, nos pobres e
nos loucos. É o período da criação dos grandes hospícios.
Como eliminar problemas que existem na sociedade? Como
manter mão-de-obra barata sem os efeitos indesejáveis que ela tra-
zia? As produções científicas caminhavam na direção destas ques-
tões e as respostas são permeadas de racismo científico (como a teo-
ria da degenerescência: quanto mais inferior é a raça, mais propenso
à degenerescência os indivíduos estão, por isso o índice de alcoolis-
mo e de loucura eram mais altos entre os negros).
Na Primeira República, última década do século XIX, a Psicolo-
gia começa a se separar como área. Na primeira metade do século
XX, luta-se pela modernização da sociedade brasileira. Havia um
enorme interesse em sair da produção agrária e ingressar na
modernidade através do crescimento da industrialização. Estávamos
lutando por uma nova sociedade que precisava, para poder se desen-
volver a contento, de um homem novo. A defesa da educação, da
difusão do ensino, das idéias escolanovistas, vão embasar as produ-
ções da época. A Psicologia vem, então, dar fundamentose elemen-
tos para o desenvolvimento destas novas idéias educacionais. E a
pergunta para a Psicologia se modifica: que conhecimentos científi-
cos são necessários para desenvolver as crianças na direção desta
sociedade moderna que queremos?
Noções de diferenciação das pessoas a partir da idéia de capaci-
dades inerentes aos indivíduos vão crescer no seio da Psicologia, que
319Evento
produzirá muitos instrumentos capazes de fazer estas diferenciações.
As influências americanas tornam-se dominantes na Psicologia bra-
sileira. As testagens psicológicas trazem, também, a enorme possi-
bilidade de respondermos adequadamente ao desafio da moderniza-
ção: o homem certo no lugar certo.
Do controle do período colonial, para a higienização do início
do século XIX, para a diferenciação no século XX.
O início do século XX será marcado por uma credibilidade mui-
to grande na educação. A educação foi vista como a grande respon-
sável pelo desenvolvimento da sociedade. A relação Pedagogia-estu-
dos psicológicos será, então, altamente reforçada. A Psicologia per-
mitia que a Educação fosse pensada a partir de bases científicas.
Posteriormente, na década de 30, os ideais escolanovistas vão acen-
tuar esta relação. A Escola Nova, movimento progressista na Peda-
gogia moderna, trazia uma nova proposta educacional, a partir de
uma concepção de infância que abandonava a visão tradicional, em
que a criança era possuidora de uma natureza corrompida, necessi-
tando ser “cultivada” para que o mal fosse desenraizado. A criança
passava a ser vista como possuidora de uma natureza pura e boa, que
precisava ser conhecida em sua profundidade para que o trabalho
educacional pudesse contribuir para mantê-la assim, pura, espontâ-
nea, livre. Conhecer seu desenvolvimento para poder corrigir seu
percurso se tornou tarefa imprescindível.
Além disso, todo poder de diferenciação criado pela Psicologia
contribuiu para seu avanço também na área da Psicologia
Organizacional ou do Trabalho. Era possível atuar selecionando o
homem certo para o lugar certo. Institutos de seleção e orientação
vão surgir (como o ISOP, que comemorou há pouco, seus 50 anos).
A institucionalização da Psicologia era evidente. E é importante
registrar que, ao lado de toda uma prática e de um conhecimento
“diferenciador” e que via o homem de forma muito simplificada, a-
histórica, no qual o aspecto social era, na maior parte das vezes,
relegado a segundo ou último plano, convivia um conhecimento crí-
tico que concebia o homem e o fenômeno psicológico como
indissociáveis do processo de socialização, entendendo o psiquismo
320 Evento
como manifestação e como instância histórica e social. Helena
Antipoff, Manoel Bomfim e Ulisses Pernambucano representam esse
setor da Psicologia, que não foi vitorioso na História, mas que regis-
trou suas idéias, permitindo-nos hoje resgatá-los.
Em 1962, a Psicologia foi definitivamente institucionalizada,
através da Lei 4119, que regulamentou a profissão no país. Nos anos
que se seguem, cursos de Psicologia proliferaram no país, associa-
ções profissionais e científicas, campos de trabalho foram surgindo.
Enfim, a Psicologia se desenvolvia com vigor.
No final de década de 70, com as grandes greves operárias, a
classe média também foi levada às suas organizações. Criou entida-
des e fortaleceu as já existentes. Nessa época, precisamente em 1979,
os psicólogos, inicialmente em São Paulo, mas seguidos pelo Rio de
Janeiro, Minas Gerais, Pernambuco, Rio Grande do Sul e, logo de-
pois, Brasília, Ceará, Paraná, ocuparam ou criaram seus Sindicatos.
Os Conselhos foram em seguida ocupados por grupos mais progres-
sistas, que queriam a entidade trabalhando para que a Psicologia se
tornasse um instrumento a serviço da população brasileira.
A década de 80 trouxe novos desafios aos psicólogos. A peque-
na, mas significativa, abertura do mercado de trabalho no serviço
público de saúde colocou aos psicólogos e às suas entidades desafios
muito grandes. Era preciso “reinventar” uma Psicologia que permi-
tisse contribuir e responder às necessidades daquela população, com
a qual não estávamos habituados a trabalhar. Esse fato contribuiu
para fortalecer nossas entidades. A década de 80 foi, assim, fervilhante
para os psicólogos. Os Sindicatos se uniram e criaram a Federação
Nacional dos Psicólogos; os Conselhos também se fortaleceram, pro-
duzindo material escrito sobre a profissão e organizando Congressos
(como os CONPSI, que aconteceram em São Paulo). Psicólogos in-
gressaram e fortaleceram o movimento da saúde, chegando a colo-
car na direção desse movimento uma psicóloga (Mônica Valente),
além da participação ativa no Movimento da Luta Antimanicomial.
Estava dada a largada para um período em que os psicólogos
iriam se perguntar e refletir sobre a relação de seu trabalho e do
próprio fenômeno psicológico com a realidade social. A realidade
321Evento
social entrava na Psicologia para remexer tudo o que, durante tantos
anos, ficou naturalizado e cristalizado. Estas questões vão tomando
formas diferentes dentro da Psicologia, até chegarmos ao momento
atual, no qual estamos colocando a questão do compromisso social
de nossa profissão e de nossa ciência.
Discutir o compromisso social da Psicologia significa, portanto,
sermos capazes de avaliar a sua inserção, como ciência e profissão,
na sociedade e apontarmos em que direção a Psicologia tem cami-
nhado: para a transformação das condições de vida? Para a manu-
tenção?
Para contribuir para este debate, pretendo responder a duas ques-
tões:
1. Por que hoje se coloca esta exigência para a Psicologia, de
atuar com compromisso social?
2. Quais os critérios para se afirmar que a intervenção “demons-
tra compromisso social”?
Por que, hoje, se coloca esta exigência para a Psicologia, en-
quanto ciência e profissão, de buscar uma produção e uma interven-
ção que denote “compromisso social”? Dois pontos me parecem im-
portantes para responder a esta questão.
Primeiro, é preciso comentar alguns dados sobre a situação de
nosso país, para que possamos caracterizar a necessidade deste tipo
de intervenção.
Considerando-se o Produto Interno Bruto (PIB), o Brasil ocupa,
hoje, o lugar de 10a economia mundial. Entre 174 nações, o Brasil é
a 10ª em produção de riqueza.
Mas, se considerarmos, agora, o Índice de Desenvolvimento
Humano (IDH), o Brasil tem outra classificação: somos a 79ª nação.
Somos a 86ª em educação; temos altos índices nas taxas de mortali-
dade infantil, em analfabetismo, e baixos nas condições de moradia
e saneamento básico, em atendimento à saúde da população... E 15,8%
da população brasileira, ou seja, 26 milhões de pessoas, não têm
acesso às condições mínimas de saúde, educação e serviços básicos.
Somos, para coroar esse quadro, a nação campeã em concentração
de renda. O PIB per capita dos 20% mais ricos (US$18.563) é 32
322 Evento
vezes maior do que o dos 20% mais pobres (US$578). Os 20% mais
pobres ficam com apenas 2,5% da renda, enquanto que os 20% mais
ricos detêm 63,4% dela.
Estes índices se traduzem em péssimas condições de vida para a
maioria de nossa população, que não tem acesso aos serviços básicos
de saúde e educação. Temos, de 160 milhões de habitantes, 46 mi-
lhões fora da escola, sendo 43 milhões de adultos analfabetos (totais
e funcionais) e 3 milhões de crianças entre 7 e 14 anos. Se tomarmos
o dado dos que estão na escola, vamos assistir a uma “mortalidade
escolar” (termo utilizado aqui para designar a perda de alunos que a
escola sofre) impressionante: 38 milhões no ensino fundamental;
5,5 milhões no ensino médio e 2 milhões no ensino superior. Sem
distribuição de renda, nenhum outro problema é resolvido e todas as
medidas tornam-se paliativas.
Temos um país no qual a média de imposto de renda das insti-
tuições financeiras foi, em 1998, de R$630,00; o total de imposto
territorial rural em 1998 foi 250 milhões, em um país que tem a
maior área cultivável do planeta (para comparar, o cigarro arreca-
dou 1 bilhão de reais no mesmo ano!).
E que políticassociais temos tido em nosso país? Estamos sob os
ditames do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional que,
na busca de administrar e controlar os empréstimos feitos por gran-
des financiadores internacionais aos países em desenvolvimento, vêm
interferindo em suas políticas domésticas. São medidas que visam
permitir que o Estado vá desinvestindo em setores não-lucrativos,
para poder aumentar suas possibilidades de pagamento da dívida
externa.
Que país é este? Que situação dramática a que vivemos!
É importante, aqui, fazer uma distinção semântica. Muitos têm
dito que vivemos uma situação trágica. Não, não vivemos. Tragédia
é um termo que designa acontecimentos que despertam lástima, uma
ocorrência funesta, mau fado, infortúnio... Algo que o “destino” nos
reservou, porque independe de nossa intervenção. Terremotos, ci-
clones, tempestades são tragédias. Devemos utilizar nestes casos,
como é o caso brasileiro, o termo drama, que também designa acon-
323Evento
tecimento terrível, catastrófico, mas que aqui se refere à interferên-
cia humana. Temos em nosso país uma situação dramática!
Fechado esse parêntese semântico, volto ao nosso drama. Poderí-
amos ficar aqui horas descrevendo as características de nossa situa-
ção econômica e política e as condições de vida de nosso povo. Mas
sabemos que todos aqui a conhecem bem. Queria apenas começar
situando a sociedade em que acontece nossa profissão e nossa ciência.
E o que nós, psicólogos, temos com isto?
Nós, profissionais da vida, não podemos deixar de considerar
este quadro, porque é dele e nele que podemos caracterizar as neces-
sidades e demandas para nossa profissão. Não podemos mais nos
pensar como profissionais que, em consultórios particulares ou es-
critórios, oferecemos nossos serviços acreditando que estamos tendo
alguma contribuição ou interferência para a melhoria das condições
de vida. Sei que não tem sido fácil sair destes lugares, pois estamos
nos centros urbanos e precisamos trabalhar. Mas não perceber as
limitações sociais de nosso trabalho ou mesmo, pior ainda, camuflar
isto com justificativas de que sofrimento psíquico é igual para todos
(ricos e pobres) é alguma coisa que não se pode mais aceitar. Preci-
samos reconhecer as limitações de nossa ação profissional, pois isto
já é um bom começo.
Bem, recordando nosso trajeto nesta reflexão, estávamos bus-
cando responder por que, hoje, se coloca a exigência do compromis-
so social. Apresentamos, então, dados sobre as condições de vida em
nosso país e pretendemos aqui concluir este primeiro ponto afirman-
do que, hoje, se coloca essa exigência porque as condições de vida de
nosso povo estão se deteriorando; há muita pobreza, muita carência
e estas situações têm gerado sofrimento psíquico e nós, psicólogos,
já não podemos mais estar de costas para esta realidade. Ela entra
pela nossa casa; ela se estampa nos jornais e na televisão; ela nos
atinge em nosso trabalho. A realidade já é tão evidente que nos per-
turba e nos coloca questões.
Mas, para irmos adiante em nossa reflexão, poderíamos nos per-
guntar: mas o Brasil sempre viveu com dificuldades; as condições de
324 Evento
vida em nosso país podem estar piores, mas nunca estiveram boas.
Por que agora esta exigência?
Porque a Psicologia vem se transformando e vem se aproximan-
do de visões concretas e históricas, abandonando as visões naturali-
zantes que ainda caracterizam nossa ciência e nossas técnicas.
Vamos explicar melhor isto:
A Psicologia em seu desenvolvimento esteve sempre presa a uma
dicotomia entre objetividade e subjetividade; entre interno e exter-
no; entre natural e histórico; objeto e sujeito; razão e emoção; indiví-
duo e sociedade.
Desde Wundt, temos vivido esse desafio de superar estas dicoto-
mias e nosso desenvolvimento teórico pode ser registrado a partir
destas tentativas.
Mantidas estas dicotomias, não temos sido capazes de compre-
ender o homem que não de forma a naturalizar seu desenvolvimento
e seu mundo psicológico. Explicando melhor: porque mantemos uma
visão dicotômica, temos explicado o movimento do mundo psicoló-
gico como um movimento interno, gerado por si mesmo. É a ima-
gem do Barão de Munchhausen que sai do pântano puxando pelos
seus próprios cabelos, imagem esta que usei em meu trabalho de
doutoramento para simbolizar as idéias que a Psicologia tem
construído, que vêem o homem como um ser capaz de, através de
seu próprio esforço, se autodeterminar (Bock, 1999).
Esta tradição naturalizante do fenômeno psicológico nos jogou
em uma perspectiva de profissão que sempre compreendeu nossa
intervenção como curativa, remediativa, terapêutica. Temos nos li-
mitado a ela nestes anos todos de profissão. Não é para menos que
temos tido um modelo médico de intervenção.
Mas isto vem mudando. A realidade objetiva, o mundo social e
cultural vem invadindo nosso conhecimento e já não podemos mais
falar de mundo psicológico sem considerar o mundo social e cultu-
ral. Ainda estamos construindo um modelo de relação entre estes
mundos, entendendo que estes se influenciam e não que constituem
um ao outro. Isto significa que ainda não superamos a dicotomia...
mas estamos caminhando.
325Evento
A Psicologia tem se aberto para estas novas leituras. Queremos
entender o mundo psicológico como um mundo constituído a partir
de relações sociais e de formas de produção da sobrevivência. Quero,
aqui, explicar melhor, pois penso que este aspecto é fundamental.
A Psicologia, ao pensar o indivíduo descolado de seu mundo
social e cultural, viu o desenvolvimento deste ser como produzido
pelo seu próprio movimento. Algo dentro de nós nos movimenta. O
mundo social ficou isento. Construímos uma Psicologia que não pre-
cisa fazer qualquer referência ao mundo social e cultural para falar
do humano. Temos visto isto em pronunciamentos de psicólogos que
explicam o que se passa com um indivíduo sem fazer qualquer refe-
rência a questões políticas, econômicas e culturais de nossa socieda-
de. O máximo que avançamos é até o pai e mãe do indivíduo. Nem
na família, enquanto instituição social que se estrutura para respon-
der às necessidades da sociedade burguesa e capitalista, chegamos
ainda. Mas estamos avançando!
A Psicologia está, então, se abrindo para estas questões e isto
coloca o compromisso social como uma possibilidade, como uma
exigência, como um critério de qualidade da intervenção.
Penso que outros aspectos existem, mas me dou por satisfeita
para responder à primeira questão a que me propus com estes dois
elementos: o país exige nosso posicionamento político no exercício
da profissão e a Psicologia começa a nos possibilitar este posiciona-
mento com seu avanço na crítica da naturalização de fenômeno psi-
cológico que caracterizou a história de nosso conhecimento.
Psicologia e Compromisso Social: uma tarefa necessária
Podemos partir, então, para nossa segunda questão: quais os crité-
rios para se afirmar que a intervenção demonstra “compromisso soci-
al”?
Não tenho aqui a pretensão de esgotar os critérios possíveis para
esta classificação. Mas vou apontar alguns que me parecem importantes.
Primeiro: o trabalho do psicólogo deve apontar para a transfor-
mação social, para a mudança das condições de vida da população
brasileira. Friso que disse “apontar”, porque é a finalidade do traba-
326 Evento
lho que importa ser caracterizada aqui. Estamos falando do compro-
misso, portanto de uma perspectiva ética. Assim, vale a intenção. A
finalidade do trabalho.
O psicólogo não pode mais ter uma visão estreita de sua inter-
venção, pensando-a como um trabalho voltado para um indivíduo,
como se este vivesse isolado, não tivesse a ver com a realidade soci-
al, construindo-a e sendo construído por ela. É preciso ver qualquer
intervenção, mesmo que no nível individual, como uma intervenção
social e, neste sentido, posicionada. Vamos acabar com a idéia de
que mundo psicológico não tem nada a ver com mundo social. Que
sofrimento psíquico não tem nada a ver com condições objetivas de
vida. Os psicólogos precisamter clareza de que, ao fazer ou saber
Psicologia, estão com sua prática e seu conhecimento interferindo
na sociedade. Temos exemplos de como nossos conceitos serviram
para acobertar as desigualdades sociais. Diferenças individuais, pers-
pectivas classificatórias, noções abstratas de ser humano e de mundo
psicológico nas quais a noção de potencialidades estava dada de for-
ma apriorística à vida, a própria noção de desenvolvimento, permiti-
ram que as condições sociais que facilitam ou impedem o “desenvol-
vimento” do sujeito ficassem camufladas por detrás de discursos abs-
tratos e ideológicos. Na área da educação existe um exemplo bem
evidente: falamos de fracasso escolar e de dificuldades de aprendiza-
gem nos referindo sempre ao aluno. Como podemos acreditar que
uma parte apenas de um processo (a criança) fracasse sozinha? O
processo de ensino-aprendizagem fracassou, não o aluno. Não temos
dúvida, hoje, de que a Psicologia contribuiu para ocultar as condi-
ções desiguais de vida no decorrer da História.
Precisamos escapar disto e nos engajar politicamente através da
finalidade de nossa intervenção. Quero esclarecer que penso que sem-
pre tivemos finalidades para nosso trabalho, mas nunca quisemos
colocá-las em debate. Nunca quisemos evidenciá-las. Agora é hora!
Outro critério que podemos utilizar é verificar se a prática esca-
pa do modelo médico de fazer Psicologia. Isto é, se a prática desen-
volvida não pensa a realidade e o sujeito a partir da perspectiva da
doença. O psicólogo pode e deve, hoje, pensar sua intervenção de
327Evento
maneira mais ampla, no sentido da promoção da saúde da comuni-
dade - e isto significa compreender o sujeito como alguém que, am-
pliando seu conhecimento e sua compreensão sobre a realidade que
o cerca, se torna capaz de intervir, transformar, atuar, modificar a
realidade. Claro que a doença é uma possibilidade nesta realidade,
mas nunca pode ser o eixo para a Psicologia.
Um terceiro critério é o tipo de técnica que se utiliza. Nossas
técnicas têm sido construídas e utilizadas com uma determinada ca-
mada social, em geral intelectualizada e muito verbal. A população
brasileira, na sua maioria, não tem costume e facilidade para traba-
lhar a partir das técnicas com as quais estamos acostumados. É pre-
ciso inovar - e inovar a partir das características da população a ser
atendida. Nossa formação tecnicista tem nos ensinado coisas pron-
tas para aplicar. Precisamos nos tornar capazes de criar Psicologia,
adaptando nossos saberes à demanda e à realidade que se nos apre-
senta.
Assumir um compromisso social em nossa profissão é estar vol-
tado para uma intervenção crítica e transformadora de nossas condi-
ções de vida. É estar comprometido com a crítica desta realidade a
partir da perspectiva de nossa ciência e de nossa profissão. É romper
com 500 anos de desigualdade social que caracteriza a história bra-
sileira, rompendo com um saber que oculta esta desigualdade atrás
de conceitos e teorias naturalizadoras da realidade social. Assumir
compromisso social em nossa prática é acreditar que só se fala do ser
humano quando se fala das condições de vida que o determinam.
Termos práticas terapêuticas deve significar termos práticas capazes
de alterar a realidade social, de denunciar as desigualdades, de con-
tribuir para que se possa cada vez mais compreender a realidade que
nos cerca e atuarmos nela para sua transformação no sentido das
necessidades da comunidade social. Assumir compromisso social em
nossa ciência é buscar estranhar o que hoje já parece familiar; é não
aceitar que as coisas são porque são, mas sempre duvidar e buscar
novas respostas. Compromisso social é estranhar, é inquietar-se com
a realidade e não aceitar as coisas como estão. É buscar saídas. É isto
328 Evento
que parte de nossa categoria profissional vem fazendo, o que é moti-
vo de orgulho para todos nós.
Movimento e transformação: uma identidade profissional
para os psicólogos
E, para terminar minha reflexão, trago a questão da identidade
profissional do psicólogo. Tenho resistido um pouco a discussões
sobre a identidade da Psicologia, porque, em geral, essas discussões
buscam uma cara para a Psicologia pensando em poder mantê-la
depois de encontrada. Quero uma Psicologia que se metamorfoseie o
tempo todo, acompanhando as mudanças da realidade social de nos-
so país. Não podemos querer uma Psicologia que seja a cristalização
de uma mesmice de nós mesmos. Se entendermos que a identidade é
movimento, é metamorfose, devemos entender que a identidade pro-
fissional nunca estará pronta; nunca terá uma definição. Estará sem-
pre acompanhando o movimento da realidade. Na verdade, penso
que nos enganamos quando falamos que não temos identidade pro-
fissional. Temos sim. Temos uma identidade profissional que reflete
a prática importante que temos tido, porém elitista, restrita, pouco
diversificada e colada às necessidades e demandas de setores dominan-
tes de nossa sociedade. Uma minoria que, possuindo condições de
comprar nossos serviços, foi por muito tempo a única usuária deles.
Queremos agora dar a volta por cima e construir uma profissão iden-
tificada com as necessidades da maioria da população brasileira, uma
maioria que sofre, dadas as condições de vida que possui; uma mai-
oria que luta, dadas as condições de vida que possui. Identificar-se
com as necessidades de nosso povo e acompanhar o movimento des-
tas necessidades, sendo capazes de construirmos, sempre e perma-
nentemente, respostas técnicas e científicas. É este o nosso desafio.
Queremos estar em busca permanente, em movimento sempre.
Queremos que o movimento seja a nossa identidade e que a inquieta-
ção seja nosso lema.
Referências
Antunes, M. A. M. (1999). A Psicologia no Brasil: leitura histórica sobre
sua constituição. São Paulo: Unimarco.
Bock, A. M. B. (1999). Aventuras do Barão de Munchhausen na Psicolo-
gia. São Paulo: EDUC.
329Evento
1 Versão revista da palestra de abertura da II
Semana Norte-rio-grandense de Psicolo-
gia, realizada em Natal (RN) nos dias 16-
18 de setembro de 1999, promovida pelo
CRP-13/Seção RN, UFRN e UNP.
Ana Mercês Bahia Bock,
doutora em Psicologia Social pela
PUCSP, é psicóloga e professora
de Psicologia Social e da Educa-
ção na PUCSP, diretora da Facul-
dade de Psicologia (gestões 93/97
e 97/2001), presidente do Conse-
lho Federal de Psicologia (gestões
97/98 e 98/2001). É co-autora do
livro Psicologias: uma introdução
ao estudo da Psicologia, pela Sa-
raiva, e autora do livro Aventuras
do Barão de Munchhausen na
Psicologia, pela EDUC/Cortez.
Endereço para correspondência:
Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo, Rua Monte Alegre,
984, 05014-901, São Paulo, SP. E-
mail: anabock@zaz.com.br.
Recebido em 21.09.99
Revisado em 18.10.99
Aceito em 06.11.99
Nota
Sobre o autor
TEXTO 5
OLIVEIRA, F. O.; WERBA, G. C. Representações Sociais. In:
JACQUES, M. G. C. et al. Psicologia social
contemporânea: livro-texto. Petrópolis: Vozes, 2003, p.
104-117.
REPRESENTAÇÕES SOCIAIS
Fátima O. de Oliveira
Graziela C. Werba
Discorrer sobre Representações Sociais (RS) não tem sido uma tarefa fácil.
Elas se colocam, em parte, na ordem da “utopia”. Por que RS lembra utopia?
Porque nunca se chega ao limite deste conceito: ao nos aproximarmos dele, o
vemos escorregar para mais longe, obrigando-nos a transpor nossas próprias
fronteiras buscando, novamente, aquele “horizonte perdido”.
Atualmente, as discussões em torno da teoria das RS têm ocupado um grande
espaço no campo da Psicologia Social, obrigando muitos teóricos e acadêmicos
a revisarem seus enfoques, proporcionando a todos novas formas de olhar,
entender e interpretar os fenômenos sociais, ajudando a compreender, em
última análise, por que as pessoas fazem o que fazem.
Como nasceu esta teoria?
Para Moscovici (1994, p. 8), o conceito de representação social tem suas
origens na Sociologia e na Antropologia, através de Durkheim e de Lévi-Bruhl.
Inicialmente chamado de representação coletiva, serviu como elemento básico
para elaboraçãode uma teoria da religião, da magia e do pensamento mítico.
Também contribuíram para a criação da teoria das RS, a teoria da linguagem de
Saussure, a teoria das representações infantis de Piaget e a teoria do
desenvolvimento cultural de Vygotsky.
A teoria das RS pode ser considerada como uma forma sociológica de
Psicologia Social (FARR, 1994). O conceito é mencionado pela primeira vez por
Moscovici, em seu estudo sobre a representação social da psicanálise, intitulado
Psychanalyse: Son image et son public. Nesta obra, Moscovici conduz um estudo
tentando compreender mais profundamente de que forma a psicanálise, ao sair
dos grupos fechados e especializados, é ressignificada pelos grupos populares.
O que motivou Moscovici a desenvolver o estudo das RS dentro de um trabalho
científico foi, principalmente, sua crítica aos pressupostos positivistas e
funcionalistas das demais teorias que não davam conta de explicar a realidade
em outras dimensões, principalmente na dimensão histórico-crítica.
No Brasil o interesse pela teoria das RS iniciou no final da década de 1970,
lembrando sua estreita relação com o desenvolvimento da própria psicologia
social que, a partir de algumas instituições, assume uma postura mais crítica,
não apenas em relação à psicologia americana, mas também em contrapartida
ao “papel subserviente da ciência frente às questões de ordem macrossocial”
(SPINK, 1996, p. 170).
A teoria das RS tem sido discutida, criticada, reformulada e cada vez mais
empregada em muitos trabalhos científicos. Apesar de Moscovici recusar-se a
conceituá-la de modo definitivo, muitos autores têm-se esforçado para
compreendê-la mais profundamente, bem como contribuir para seu
desenvolvimento enquanto teoria.
Mas o que são as representações sociais?
As Representações Sociais são “teorias” sobre saberes populares e do senso
comum, elaboradas e partilhadas coletivamente, com a finalidade de construir e
interpretar o real. Por serem dinâmicas, levam os indivíduos a produzir
comportamentos e interações com o meio, ações que, sem dúvida, modificam
os dois.
De Rosa (1994) distingue entre três níveis de discussão e análise das RS:
• Nível fenomenológico – as RS são um objeto de investigação. Esses objetos
são elementos da realidade social, são modos de conhecimento, saberes do
senso comum que surgem e se legitimam na conversação interpessoal cotidiana
e têm como objetivo compreender e controlar a realidade social.
• Nível teórico – é o conjunto de definições conceituais e metodológicas,
construtos, generalizações e proposições referentes às RS.
• Nível metateórico – é o nível das discussões sobre a teoria. Neste colocam-se
os debates e as refutações críticas com respeito aos postulados e pressupostos
da teoria, juntamente a uma comparação com modelos teóricos de outras
teorias.
Para evitar confusões é fundamental distinguir entre estes três níveis, bem
como assinalar sobre qual deles se está falando. Quanto à metodologia, nas RS,
ela vai variar de acordo com o objeto de estudo, acompanhando paralelamente
estes três níveis de discussão.
Apesar de Moscovici não ter apresentado um conceito definitivo de RS, tentou
situá-la da seguinte forma:
Moscovici (1981, p. 181) refere que “por Representações Sociais entendemos um
conjunto de conceitos, proposições e explicações originado na vida cotidiana no
curso de comunicações interpessoais. Elas são o equivalente, em nossa sociedade,
aos mitos e sistemas de crença das sociedades tradicionais: podem também ser
vistas como a versão contemporânea do senso comum”.
Talvez seja Jodelet quem melhor e mais detalhadamente conceitue RS como
“uma forma de conhecimento, socialmente elaborada e partilhada, tendo uma visão
prática e concorrendo para a construção de uma realidade comum a um conjunto
social” (JODELET, 1989, p. 36).
Para Guareschi (1996a) são muitos os elementos que costumam estar
presentes na noção de RS. Nelas há elementos dinâmicos e explicativos, tanto na
realidade social, física ou cultural; elas possuem uma dimensão histórica e
transformadora; nelas estão presentes aspectos culturais, cognitivos e
valorativos, isto é ideológicos. Esses elementos das RS estão sempre presentes
nos objetos e nos sujeitos; por isso as RS são sempre relacionais, e portanto
sociais.
Um dos elementos fundamentais da teoria das RS é a interligação possível
entre cognição, afeto e ação no processo de representação. Tanto Jovchelovitch
(1996), como Guareschi, mostram a importância desta interligação no processo
cognitivo.
A representação, como um processo mental, carrega sempre um sentido
simbólico. Jodelet (1988) identifica no ato de representar cinco características
fundamentais: 1) representa sempre um objeto; 2) é imagem e com isso pode
alterar a sensação e a ideia, a percepção e o conceito; 3) tem um caráter
simbólico significante; 4) tem poder ativo e construtivo; 5) possui um caráter
autônomo e generativo.
Para que estudamos as RS?
Estudar RS é buscar conhecer o modo de como um grupo humano constrói
um conjunto de saberes que expressam a identidade de um grupo social, as
representações que ele forma sobre uma diversidade de objetos, tanto próximos
como remotos, e principalmente o conjunto dos códigos culturais que definem,
em cada momento histórico, as regras de uma comunidade.
Uma das principais vantagens desta teoria é sua capacidade de descrever,
mostrar uma realidade, um fenômeno que existe, do qual muitas vezes não nos
damos conta, mas que possui grande poder mobilizador e explicativo. Torna-se
necessário, por isso, estudá-lo para que se possa compreender e identificar
como ela atua na motivação das pessoas ao fazer determinado tipo de escolha
(comprar, votar, agir, etc.).
É fundamental darmo-nos conta de que, na maioria das vezes, nós praticamos
determinadas ações, como por exemplo comprar e votar, não por razões lógicas,
racionais ou cognitivas, mas por razões principalmente afetivas, simbólicas,
míticas, religiosas, etc. A teoria das RS chama a atenção a essa realidade e tenta
mostrar a importância de se conhecer essas representações para se
compreender o comportamento das pessoas.
O conceito de RS é versátil e três importantes postulados podem se combinar
em seu emprego:
• é um conceito abrangente, que compreende outros conceitos tais como:
atitudes, opiniões, imagens, ramos de conhecimento;
• possui poder explanatório: não substitui, mas incorpora os outros conceitos,
indo mais a fundo na explicação causal dos fenômenos;
• o elemento social na teoria das RS é algo constitutivo delas, e não uma
entidade separada. O social não determina a pessoa, mas é substantivo dela. O
ser humano é tomado como essencialmente social.
Como podemos ver, a teoria das RS é bastante abrangente e seu conceito
dinâmico pode nos ajudar a entender as várias dimensões da realidade, quais
sejam: a física, a social, a cultural, a cognitiva, e isso tudo de forma objetiva e
subjetiva. Essa abertura torna as RS um instrumento valioso e imprescindível no
campo da psicologia social.
Por que criamos as RS?
Tentando entender a formação e origem das RS, constata-se que criamos as
RS para tornar familiar o não familiar. Este movimento que se processa
internamente vem a serviço de nosso “bem-estar”, pois tendemos a rejeitar o
estranho, o diferente, enfim, tendemos a negar as novas informações,
sensações e percepções que nos trazem desconforto. Para assimilar o não
familiar, dois processos básicos podem ser identificados como geradores de RS,
o processo de ancoragem e objetivação. Vejamos primeiro o que significam os
conceitos: familiar e não familiar, a partir das noções de Universos Reificados e
Universos Consensuais.
Poderíamos dizer que existem, na sociedade, dois tipos diferentes de
universos de pensamento: os Universos Consensuais (UC) e os Universos
Reificados (UR).
Nos UR, que são mundos restritos, circulam as ciências, a objetividade, ou as
teorizações abstratas. Nos UC, que são as teorias do senso comum, encontram-
se as práticas interativas do dia a dia e a produção de RS.No UC a sociedade é vista como um grupo de pessoas que são iguais e livres,
cada uma com possibilidade de falar em nome do grupo. Nenhum membro
possui competência exclusiva. Já no UR, a sociedade é percebida como um
sistema de diferentes papéis e classes, cujos membros são desiguais.
O não familiar situa-se, e é gerado, muitas vezes, dentro do UR das ciências e
deve ser transferido ao UC do dia a dia. Essa tarefa é, geralmente, realizada
pelos divulgadores científicos de todos os tipos, como jornalistas, comentaristas
econômicos e políticos, professores, propagandistas, que têm nos meios de
comunicação de massa um recurso fantástico.
Podemos agora retomar as noções de Ancoragem e Objetivação e ver que
papel desempenham nesse contexto.
Ancoragem é o processo pelo qual procuramos classificar, encontrar um lugar,
para encaixar o não familiar. Pela nossa dificuldade em aceitar o estranho e o
diferente, este é muitas vezes percebido como “ameaçador”. A ancoragem nos
ajuda em tais circunstâncias. É um movimento que implica, na maioria das
vezes, em juízo de valor, pois, ao ancorarmos, classificamos uma pessoa, ideia
ou objeto e com isso já o situamos dentro de alguma categoria que
historicamente comporta esta dimensão valorativa. Quando algo não se encaixa
exatamente a um modelo conhecido, nós o forçamos a assumir determinada
forma, ou entrar em determinada categoria, sob pena de não poder ser
decodificado. Este processo é fundamental em nossa vida cotidiana, pois nos
auxilia a enfrentar as dificuldades de compreensão ou conceituação de
determinados fenômenos. Por exemplo, quando surgiu o problema da Aids,
diante das perplexidades e dificuldades em entendê-la e classificá-la, uma das
formas encontrada pelo senso comum para dar conta de sua ameaça, foi
ancorá-la como uma “peste”, mais especificamente “a peste gay” ou “o câncer
gay”. Assim representada, embora classificada de forma equivocada e
preconceituosa, a nova doença pareceu menos ameaçadora, pois já havia sido
categorizada pelo senso comum como uma peste, e só aconteceria aos “gays”.
Um dos melhores exemplos de como ocorre a Ancoragem é fornecido por
Jodelet, em seu trabalho sobre a representação social da loucura. Ao abrirem as
portas do manicômio e colocarem os doentes mentais em contato com os
aldeões na rua, aqueles foram imediatamente julgados por padrões
convencionais e comparados a idiotas, vagabundos, epilépticos, ou aos que, no
dialeto local, eram chamados de maloqueiros. Quando determinado objeto, ou
ideia, é comparado ao paradigma de uma categoria, ele adquire características
dessa categoria e é reajustado para que se enquadre nela. Neste exemplo, a
ideia destes aldeões sobre os idiotas, vagabundos ou epilépticos, foi transferida,
sem modificação, aos doentes mentais.
Já a Objetivação é o processo pelo qual procuramos tornar concreto, visível,
uma realidade. Procuramos aliar um conceito com uma imagem, descobrir a
qualidade icônica, material, de uma ideia, ou de algo duvidoso. A imagem deixa
de ser signo e passa a ser uma cópia da realidade. Um dos exemplos fornecidos
por Moscovici refere-se à religião. Ao se chamar de “pai” a Deus, está-se
objetivando uma imagem jamais visualizada (Deus), em uma imagem conhecida
(pai), facilitando assim a ideia do que seja “Deus”.
Qual a diferença entre representações sociais e outras teorias?
Podemos dizer que a principal diferença entre o conceito de RS de outros
conceitos é sua dinamicidade e historicidade específicas. As RS estão associadas
às práticas culturais, reunindo tanto o peso da história e da tradição, como a
flexibilidade da realidade contemporânea, delineando as representações sociais
como estruturas simbólicas desenhadas tanto pela duração e manutenção
como pela inovação e metamorfose.
Existem diferenças entre o enfoque dado à psicologia social americana e o
enfoque europeu. A psicologia social que floresceu nos EUA é uma Psicologia
essencialmente cognitivista, que foi exportada para a Europa (e América do Sul).
Ao florescer em solo norte-americano, a psicologia social do pós-guerra
alimenta-se de uma visão individualista específica de sua cultura, o que Farr
(1994) denomina de psicologia social psicológica, enfraquecendo a vertente mais
interdisciplinar com a sociologia que se chama de psicologia social sociológica. É
neste contexto que nasce a teoria das RS, teoria esta que, tendo origem em
Durkheim, um sociólogo, contrapõe-se à vertente americana e assim o campo
de estudos das RS acaba por ampliar a noção de social.
Deve-se fazer uma distinção entre RS e as Representações Coletivas, como
empregadas por Durkheim. Sperber (1985), ao explicar a diferença, faz uma
analogia com a medicina: diz ele que a mente humana é susceptível de
representações culturais, do mesmo modo que o organismo humano é
susceptível de doenças. Ele divide as representações em: coletivas –
representações duradouras, amplamente distribuídas, ligadas à cultura,
transmitida lentamente por gerações, “são tradições” e se comparam à endemia;
e sociais – são típicas de culturas modernas, espalham-se rapidamente por toda
a população, possuem curto período de vida, são parecidos com os “modismos”
e se comparam à epidemia.
A Teoria das RS diferencia-se de muitas outras, também no que concerne à
visão do social e ser humano. Para a Teoria Comportamentalista, o social é dado
como pronto, e o ser humano é condicionado; para a psicanálise, o social é
relegado a uma categoria de menor importância e o ser humano é determinado
pelo inconsciente; já para a teoria das RS o social é coletivamente edificado e o
ser humano é construído através do social.
Outra importante diferença entre a teoria das RS e outras de tendência mais
positivista e funcionalista, é que aquela aceita a existência de conteúdos
contraditórios, ou seja, seu estudo e pesquisa não descartam os achados
conflitantes; pelo contrário, é a possibilidade de trabalhar com as diferenças que
enriquece a compreensão do fenômeno investigado, conferindo à teoria das RS
uma dimensão dialética.
Não menos importante na pesquisa das RS é a relação que ela estabelece com
o estudo da ideologia, que veremos a seguir.
Que relações se podem estabelecer entre o estudo das RS e ideologia?
A relação que as RS estabelecem com ideologia provoca ainda muitas
discussões. Se ideologia for definida como algo reificado, pronto e acabado,
como parece ser o sentido que Moscovici dá à ideologia, é evidente que as RS
não podem ser identificadas com ela, exatamente pelo fato de serem dinâmicas
e sempre passíveis de transformação.
Ultimamente está havendo uma ampla tendência de se definir ideologia de
acordo com a definição proposta por Thompson (1995, p. 76): “Ideologia é o uso
das formas simbólicas para criar ou manter relações de dominação”; em outras
palavras, é o sentido a serviço de relações assimétricas, desiguais. O conceito de
“sentido” embutido em ideologia é o “sentido” das formas simbólicas inseridas
nos contextos sociais. As “formas simbólicas” são um amplo conjunto de ações e
falas, imagens e textos que são produzidos pelas pessoas e reconhecidas por
elas e outros como “construtos significativos”. As falas e expressões linguísticas
são centrais na análise podendo ser também imagens visuais ou construtos que
combinam imagens e palavras. Ainda para se entender melhor o que seja
ideologia é importante discutir o que se entende por “dominação”. Dominação é
uma relação que se estabelece entre pessoas ou grupos, onde uns interferem e
se apropriam das capacidades ou habilidades de outros, de maneira assimétrica.
Portanto, existem diversas formas de dominação que podem ser: econômica, de
gênero, de raça, de etnia, de idade, religiosa, etc. (GUARESCHI, 1996b).
Se tomarmos, pois, ideologia como o uso de formas simbólicas para criar ou
reproduzir relações de dominação, podemos concluir que as RS, pelo fato de
serem formas simbólicas, podem ser ideológicas, mas não podemos deduzir
isto a priori. Para dizer que uma RS é ideológica precisamos primeiro mostrar
que ela serve emdeterminadas circunstâncias para criar ou reproduzir relações
de dominação.
Como investigamos as RS?
Não existe uma metodologia exclusiva para a investigação das RS, sendo que
encontramos desde investigações realizadas em uma base quantitativa, como as
que trabalham com dados qualitativos, e ainda alguns que fazem uso
complementar destas duas abordagens.
Um dos instrumentos mais usados e desenvolvidos na investigação das RS
tem sido a técnica dos grupos focais. Existem, é claro, outros tantos que podem
ser empregados, de acordo com o propósito da pesquisa, recursos disponíveis
(tempo, verba, sujeitos, etc.), inclusive o estilo do investigador. Mas a técnica dos
grupos focais parece se adaptar de maneira mais adequada a esta investigação.
Os grupos focais podem ser descritos, basicamente, como entrevistas que se
fundamentam na interação desenvolvida dentro do grupo. O ponto-chave destes
grupos é o uso explícito dessa interação para produzir dados e insights que
seriam difíceis de conseguir fora desta situação. Isso se constitui na grande
vantagem desses grupos, a oportunidade que eles oferecem de se estabelecer
uma intensa troca de ideias sobre determinado tópico, num período limitado de
tempo, onde os dados são discutidos e aprofundados em conjunto. A qualidade
dos dados pode ser, em consequência, superior aos de uma entrevista
individual. Embora esta técnica tenha sido e é ainda muito usada com fins
publicitários, está sendo também cada vez mais frequentemente utilizada no
campo das ciências sociais.
Morgan (1988, p. 22) afirma que “a finalidade mais comum dos grupos focais é
conduzir uma discussão em grupo que se assemelhe a uma conversação normal e
viva entre amigos e vizinhos...” Os grupos focais se prestam, pois, muito bem para
a finalidade de se “chegar mais próximo às compreensões que os participantes
possuem do tópico de interesse do pesquisador”. Pode-se compreender, além
disso, não apenas “o que”, mas também “por que” os participantes pensam da
maneira como pensam (p. 24).
O papel do coordenador, nos grupos focais, é o de conduzir a discussão de
forma livre, porém com o cuidado de não desviar o tema proposto. As falas dos
grupos são geralmente registradas em cassete e seguem os seguintes passos
para o trabalho de tratamento dos dados:
a) transcrição das entrevistas;
b) leitura flutuante do material, intercalando a escuta do material gravado com
a leitura do material transcrito, de modo a captar os temas propostos, detendo-
se na construção, na retórica, permitindo a emergência dos investimentos
afetivos;
c) retorno aos objetivos da pesquisa para, após a categorização dos dados,
fazer sua interpretação de acordo com os referenciais teóricos em questão.
Desse modo, após a atenta escuta e leitura, são pinçadas verbalizações que
revelam uma ideia, ou avaliação, referentes ao tema proposto. A partir daí é
possível uma categorização de dados, agrupando-os por afinidade. Destes,
surgem as categorias principais a partir das quais se permite a construção de
um mapeamento das categorias dos grupos focais.
Um uso muito apropriado do grupo focal é também servir de fundamentação
para se criar uma entrevista, ou questionário, mais estruturados para serem
aplicados a outros grupos, pessoas, ou para entrevistas individuais.
O número de grupos para se discutir um tema específico pode variar entre
três a quatro e a duração normal é de uma hora, chegando às vezes a hora e
meia. O tamanho dos grupos varia de no mínimo quatro participantes, até o
máximo de doze, mas o mais recomendado é entre seis e oito participantes.
Umas das possíveis maneiras de se interpretar as RS após terem sido
levantadas nos grupos focais e mapeadas é utilizar o referencial metodológico
baseado em John B. Thompson (1995, capítulo 6) denominado por ele de
Hermenêutica de Profundidade (HP). Este autor distingue dois níveis de análise
na compreensão dos fatos sociais, em especial as formas simbólicas. Um
primeiro nível é o da hermenêutica da vida cotidiana, que consiste numa
descrição fenomenológica dos fatos. Em um segundo nível, denominado
hermenêutica de profundidade, busca-se investigar e interpretar as formas
simbólicas mais profundamente. O processo compõe-se de três fases: a análise
sócio-histórica, que investiga o fenômeno na dimensão espácio-temporal, as
suas inter-relações sociais, as instituições e a estrutura social; a análise formal
ou discursiva, que investiga as formas simbólicas em si mesmas através de
diversos tipos de análise de discurso, como a semiótica, a análise sintática, a
análise da conversação, a análise argumentativa, a análise narrativa, etc.;
finalmente a interpretação, ou reinterpretação, que é o espaço onde se
interpretam as formas simbólicas de acordo com os referenciais teóricos em
questão. É importante lembrar que toda a interpretação é aberta e conflitiva,
sujeita a outras e novas interpretações.
Considerações finais
Ao finalizarmos este capítulo, podemos retomar a questão inicial: que teoria é
essa? Parece-nos ser uma teoria nova, aberta e fecunda. Não é uma teoria
pronta. Cremos que essa sua incompletude seja justamente uma das suas
importantes possibilidades.
Podemos identificar dois grandes avanços, a nosso ver, trazidos por essa
teoria:
a) a teoria das RS trata do conhecimento construído e partilhado entre
pessoas, saberes específicos à realidade social, que surgem na vida cotidiana no
decorrer das comunicações interpessoais, buscando a compreensão de
fenômenos sociais;
b) a teoria das RS colocou os saberes do senso comum em uma categoria
científica. Ela veio valorizar este conhecimento popular, tornando possível e
relevante sua investigação.
Talvez estejamos demasiadamente acostumados a trabalhar com teorias já
prontas, onde o que poderia ser descoberto já o foi, ou, em outras palavras,
teorias que nos são familiares, que não nos assustam, mas que, por outro lado,
pouco nos provocam. Poderíamos dizer que a provocação é a alma da pesquisa;
talvez até possamos arriscar pensar que é este despertar da curiosidade pelo
que nos é não familiar, não reconhecido previamente, o que nos move a novas
descobertas científicas. Aliás, Aristóteles já dizia que a curiosidade é a alma da
ciência.
A teoria das RS certamente nos obriga a pensar, exige muito trabalho de
interpretação e reinterpretação, coloca-nos frente a dicotomias, conflitos, deixa-
nos diante do desconhecido, ela desconcerta! É justamente aí que ela favorece
nosso crescimento, pois vemo-nos obrigados a desconstruir certezas
envelhecidas e a nos abrirmos para novas possibilidades. Todo esse movimento
está contido no cerne da própria teoria, que é dinâmica em essência.
Leituras complementares
Conforme mencionamos no início deste capítulo, a teoria das RS é recente, por
isso, a bibliografia em português a respeito do assunto não é extensa.
No Brasil, na PUC de São Paulo, há um grupo que trabalha com Mary Jane
Spink, organizadora de “O conhecimento no cotidiano: as representações sociais na
perspectiva da psicologia social”. São Paulo: Brasiliense, 1993, que apresenta bons
trabalhos teóricos e metodológicos sobre representações sociais.
Na PUC do Rio Grande do Sul, outro grupo liderado por Pedrinho Guareschi
tem-se dedicado ao estudo e pesquisa em RS. O livro Textos em representações
sociais. Petrópolis: Vozes, 1994, que organizou com Sandra Jovchelovitch (London
School of Economics and Political Science), traz boas discussões sobre a teoria,
metodologia e pesquisa em RS. Do mesmo autor, para quem está se “iniciando”
em representações sociais, sugerimos um texto básico: Representações sociais:
alguns comentários oportunos, (ver bibliografia).
Na Uerj há outro grupo ligado a Celso Pereira de Sá, autor de A teoria e
pesquisa do núcleo central. Petrópolis: Vozes, 1996, que discute proposições
básicas e a produção empírica da abordagem do núcleo central.
Para quem tem facilidade com outros idiomas pode ser interessante a leitura
de trabalhos clássicos como do próprio Moscovici, de Denise Jodelet, ou ainda
de AnnamariaS. De Rosa (citados na bibliografia).
Finalmente, para quem está interessado em conhecer e produzir trabalhos na
linha dos que encontrou neste capítulo, poderá acompanhar as atividades que
vêm sendo desenvolvidas pela Associação Brasileira de Psicologia Social –
Abrapso, que publica a excelente revista científica Psicologia & Sociedade (PUC-
São Paulo).
Bibliografia
DE ROSA, Annamaria S. From theory to metatheory in social representations: the
lines of argument of a theoretical – methodological debate. Social Science
Information. Vol. 33, n. 2, 1994, p. 273-303.
FARR, R.M. Representações sociais: a teoria e sua história. In: GUARESCHI, P. &
JOVCHELOVITCH, S. Textos em representações sociais. Petrópolis: Vozes, 1994, p.
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GUARESCHI, P. Sem dinheiro não há salvação: ancorando o bem e o mal entre
neopentecostais. In: GUARESCHI, P. & JOVCHELOVITCH, S.
______. Representações sociais: alguns comentários oportunos. Revista Coletâneas
da Anpepp n. 10, vol. 1, set., 1996a, p. 9-36.
______. A ideologia: um terreno minado. Psicologia & Sociedade, Revista da
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Revista Psico. Porto Alegre, 27 (1): 193-205, jan/jun, 1996.
MORGAN, D.L. Focus groups as qualitative research. Newbury Park, CA: Sage
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SPINK, M.J. Representações sociais: questionando o estado da arte. Psicologia &
Sociedade, Revista da Associação Brasileira de Psicologia Social – Abrapso, 8 (2):
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THOMPSON, J.B. Ideologia e cultura moderna: teoria social crítica na era dos
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TEXTO 6
STREY, M. N. Gênero. In: JACQUES, M. G. C. et al.
Psicologia social contemporânea: livro-texto. Petrópolis:
Vozes, 2003, p. 180-197.
TEXTO 7
DAMATTA, Roberto. Tem pente aí?: reflexões sobre a
identidade masculina. Revista Enfoques: revista semestral
eletrônica dos alunos do Programa de Pós-graduação em
Sociologia e Antropologia da UFRJ, Rio de Janeiro, v.9, n.1,
p.134-151, agosto 2010.
ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ 
Volume 9, número 1, agosto 2010 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Republicação: Tem Pente Aí? Reflexões sobre a Identidade Masculina 
 
[Publicado no livro SER HOMEM, organizado por Dario Caldas] 
 
 
 Roberto DaMatta3 
 
3 Professor Titular de Antropologia da Pontificia Universidade Católica do Rio de Janeiro, 
Professor Emérito da Universidade de Notre Dame, autor de vários livros, entre os quais se 
destacam: Carnavais, Malandros e Heróis, A Casa & a Rua, O que faz o brasil, Brasil?, 
Universo do Carnaval e Conta de Mentiroso: Sete Ensaios de Antropologia Brasileira. Seu 
último livro reúne crônicas publicadas na sua coluna nos jornais O Estado de São Paulo e O 
Globo e tem o título de Crônicas da Vida e da Morte. Esta versão foi modificada e algumas 
pequenas observações foram acrescentadas ao texto original, que permanece o mesmo. 
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ENFOQUES – revista eletrônica dos alunos do PPGSA/IFCS/UFRJ 
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 Quando eu era um rapazinho e abria os olhos para o mundo na pequena 
cidade mineira de São João Nepomuceno, em plena década de 1950, havia uma 
brincadeira que nos perturbava, mas que era típica dos encontros de rua em frente 
da sinuca do Cida, a melhor e o ponto de referência dos rapazes de toda a cidade. 
 A brincadeira consistia em desabusada e grosseiramente apalpar o traseiro do 
amigo, questionando em tom jocoso: "Tem pente aí?!", o que normalmente fazia 
com que a vítima desse um pulo para frente, protegesse as nádegas com as mãos e 
reagisse violentamente ao brinquedo, o que — e este era um dos objetivos da 
apalpadela — deleitava o grupo que atentamente observa sua reação. Permanecer 
incólume, indiferente (ou fingidamente indiferente) ao gesto também acontecia, mas 
era muito raro e decepcionante. O que os expectadores gostavam de ver e de 
jocosamente comentar era a reação da vítima, tentando atabalhoada e rapidamente 
proteger o traseiro invadido por dedos alheios, num ato semiautomático ou 
inconsciente. 
 A ideia que justificava a brincadeira era, naquele contexto cultural, plausível. 
A pessoa que passava a mão na nádega do amigo estava em busca de um pente, um 
instrumento usado por todos nós naquela fase da vida na qual a aparência física (o 
rosto, a barba por nascer, o bigodinho e, sobretudo, os cabelos com sua brilhantina 
e o seu famoso topete) era um alvo de constante preocupação.4 Como o pente era 
usado ao lado do lenço e da "carteira-de-dinheiro" e de "documentos", no "bolso-de-
 
4É curioso e significativo que o gesto esteja relacionado ao pente, ao penteado e ao cabelo, 
um elemento humano com nítidas conotações sexuais, associado que está ao luto, à disciplina, 
à castidade e à agressão libidinal. Precisaria lembrar o caso bíblico de Sansão? Cabelos 
cortados remetem à castração e a disciplina, ao controle da sexualide; cabelos raspados são 
um indicativo de luto; e cabelos soltos, despenteados e grandes indicam descaso pelas 
normais sociais, sendo a marca registrada dos rebeldes ou dos que se situam marginal e 
criticamente em relação ao sistema, como é o caso dos renunciantes indianos, dos líderes 
messiânicos, e foi o caso dos revolucionários europeus no sec. XIX e dos hippies nos Estados 
Unidos de antigamente. Para um ensaio inspirador, leia-se Edmund Leach, "Cabelo Mágico", 
em Edmund Leach, Coleção Grandes Cientistas Sociais, São Paulo: Ática. 
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trás" da calça, nada mais legítimo e mais "natural" do que passar a mão na bunda do 
companheiro com a desculpa de solicitar um pente! 
 A ambiguidade da ação residia num trocadilho ritual que provocava riso e 
nervosismo porque o gesto licenciava simultaneamente tanto a busca de um pente, 
quanto a invasão de um lugar proibido do corpo masculino. Pedir um pente era uma 
demanda normal, mas procurá-lo sem pedir no "bolso de trás" da calça do 
companheiro equivalia a um ataque inesperado ao traseiro, uma zona sagrada do 
corpo masculino, corpo que, naquela etapa da vida, todos estavam construindo com 
cuidado e grave sensibilidade. 
 Se a vítima reagia violentamente, ela era imediatamente acusada de possuir 
uma sobressensibilidade na bunda: sinal de que havia sido "mordida de cobra". Ou, 
pior ainda, que tinha "tesão no rabo", sintoma de tendência ao homossexualismo 
passivo que se constituía em dos dois maiores inimigos do modelo de masculinidade 
adotado — o outro seria a impotência. Nada pior, portanto, do que receber o passe e 
xingar, gritar e, acima de tudo, reagir fisicamente ao atacante que, para complicar 
ainda mais as coisas,poderia ser o nosso melhor amigo. 
 Assim sendo, a atitude mais adequada era a de controlar-se, exprimindo uma 
olímpica ou estudada e serena indiferença ao incômodo gesto, indiferença que às 
vezes fazia com que a vítima invertesse os papéis e pedisse jocosamente ao 
atacante que continuasse a passar a mão na sua nádega. Nesta linha, houve até um 
episódio memorável e evidentemente raro, quando uma das vítimas do "Tem pente 
aí" não se assustou e chegou seu traseiro mais perto da mão do agressor nela 
soltando um sonoro peido, numa inversão de papéis que surpreendeu o grupo, 
ridicularizando e desmoralizando o atacante. 
 Mas esse foi um caso extremo. Na realidade, o comum era sair do golpe 
dando um pulo pra frente, tentando assimilar a surpreza com um meio-sorriso, numa 
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atitude de fingida indiferença, assumindo com elegância a ambiguidade e o mau 
gosto do gesto. 
 
— II — 
 Hoje, com a distância do tempo e com a ajuda da prática antropológica, vejo 
que a brincadeira do "Tem pente aí?" era mais do que um modo histriônico e um 
tanto grosseiro de tratar os outros, pois se constituía num gesto ritual, destinado a 
moldar ou a socializar, para ser mais preciso, a nossa masculinidade. Ou seja, a 
brincadeira era um modo ritualizado, posto que ambíguo, arbitrário, repetitivo e 
socialmente aprovado, de chamar a atenção para uma parte sagrada do corpo 
masculino: o traseiro. Um pedaço do corpo que, naquela cultura (e no Brasil em 
geral) era tido como especial, tinha que ser colocado à parte e, sendo tabu, só 
poderia ser tocado em circunstâncias especiais, por pessoas especiais. Ademais, se a 
pessoa era verdadeiramente "Homem" (com "H" maiúsculo, como se dizia), ela 
deveria ser uma área do corpo absolutamente insensível a qualquer toque ou passe. 
 Num plano superficial, o "Tem Pente Aí?" era uma brincadeira de mau gosto e 
um teste de masculinidade. Uma espécie de prova que ajudava a separar os 
"normais" dos "fronteiriços". Quem fugia, temia e reagia com exagero mostrava ter 
sido "mordido de cobra". Quem reagia moderadamente, enfrentando seus impulsos 
mais recônditos, era "homem". Mas o problema não terminava nessa trivial 
constatação binária, porque havia graus de reação e variação nos resultados. Por 
exemplo: se a vítima demorasse a reagir, a espera poderia ser tomada como um 
sinal de que ela havia sido "mordida de cobra". Ademais, uma mesma pessoa 
poderia reagir de acordo com a norma da indiferença num dia e, no outro, assustar-
se e fazer uma reclamação irritada. 
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 No fundo, a brincadeira atualizava o princípio do "se ficar o bicho pega, se 
correr o bicho come", o que não deixava de ser revelador pois o resultado final 
indicava que todos eram muito machos para resistir às apalpadelas no rabo e, 
simultânea e perturbadoramente, todos eram veadinhos em potencial. Pois quem é 
que não se sentia incomodado em ter o seu nobre e sagrado traseiro invadido? 
 
— III — 
 Num plano profundo, o gesto perturbava ainda mais porque era uma genuína 
autocrítica social, pondo a nu um lado problemático e jamais discutido da nossa 
masculinidade. Muito mais do que um ritual destinado a nos fortalecer como 
homens, dentro da ideia de que os homens verdadeiramente machos não devem ter 
nenhuma sensibilidade no rabo, ele era também um comentário sobre um estilo ou 
modalidade — aquilo que nós, antropólogos sociais, chamamos de "cultura" ou de 
"ideologia" — de conceber e construir o masculino.5 Comentário que obviamente 
revelava o seu lado frágil, indicando as sutilezas e os problemas de ser homem no 
Brasil. 
 Para nós, "ser homem" não era apenas ter um corpo de homem, mas 
mostrar-se como "masculino" e "macho" em todos os momentos. Como a brincadeira 
do "Tem Pente Aí?" dramatizava, ninguém devia (ou podia) esquecer esta condição, 
nem mesmo quando conversava despreocupadamente com os amigos numa área 
pública da cidade. Um dos preços da masculinidade, portanto, era uma eterna 
vigilância das emoções, dos gestos e do próprio corpo. 
 
5 Os verdadeiros machos não devem ter sensibilidade nas partes "erradas" do corpo que 
assim podem ser tocadas em público sem provocar constrangimento. O futebol americano faz 
boa prova deste princípio quando mostra homens recebendo a bola (que neste esporte é um 
ovo) por detrás do traseiro de outros homens que são, assim, sistematicamente tocados na 
bunda sem que isto se constitua num exemplo explícito de homossexualidade. Neste sentido, 
esta modalidade de futebol acentua que o verdadeiro homem transcende as zonas 
potencialmente perigosas do seu corpo, sendo insensível a elas. E, de fato, o futebol é o mais 
masculino, o mais apreciado e o mais prestigiado esporte da sociedade americana. 
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 De fato, naquela comunidade, falava-se explicitamente da cara, do cabelo 
(que deveria ser usado curto e bem penteado, denotando disciplina e controle) e, 
mais disfarçadamente, comentava-se sobre o tamanho do pênis. O traseiro, 
entretanto, que jamais era discutido abertamente, pois falar dele seria uma prova de 
feminilidade, só poderia ser trazido à tona nas inúmeras anedotas cuja temática era 
o homossexualismo e numa brincadeira "inocente" que, por isso mesmo, revelava 
sua enorme importância na constelação de elementos que constituía a ideologia da 
masculinidade naquela época e lugar. Uma brincadeira que, focalizando o traseiro, 
chamava a atenção para um orifício e para o lado de trás — para uma dimensão 
interior e considerada frágil do corpo, obrigando a entrar em contato direto com o 
que era — eis o paradoxo — inequivocamente considerado como a parte mais 
feminina do corpo masculino. Era como se a brincadeira destacasse como incomôdo 
ou inapropriado o fato de os homens terem que ter também um traseiro — que coisa 
mais chata! — tal como as mulheres e, é claro, com os homossexuais. 
 Realmente, no vocabulário naquela cultura, as mulheres tinham "face", 
"seios", "rosto"; os homens, "peito" e "cara". Na cara — que era uma região 
constituída de cabelo, barba e bigode6 — estava a máscara da firmeza e da 
vergonha, que anunciava o "homem" dentro de cada um de nós. Por isso, é claro, 
um homem poderia ter a sua cara "quebrada" por outro numa desavença, pois a 
cara — como o vidro ou o cristal — denotava uma zona de fronteira, além de 
homogeneidade e dureza mas, em compensação, possuía uma alta sensibilidade à 
afronta, à agressão e ao conflito. 
 Havia pessoas que tinham "cara de homem". Nelas, era visível uma postulada 
"essência masculina" que separava os duros dos fracos, os bravos dos covardes, os 
 
6 No quadro das vulgaridadas brasileiras, fala-se em "cabelo, barba e bigode", referindo-se a 
um encontro sexual no qual se teve intercurso anal, vaginal e oral com uma mulher. Era 
comum o oferecimento de um "serviço completo", constituído de cabelo, barba e bigode, nos 
prostíbulos. Novamente vale notar a associação entre cabelo e atividade sexual. 
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meros homens dos "machos". Nelas, a barba e, sobretudo, o bigode falavam muito 
alto, pois se as mulheres tinham rostos macios, rosados e lisos ("lisos como bunda 
de santo", dizia-se à boca miúda entre sorrisos), os homens deveriam tê-los ásperos 
e cinzentos. Pela mesma lógica, se os lábios e as orelhas femininos eram 
emoldurados pelo batom e pelos brincos, os dos homens eram vestidos por bigodes 
e cabelo, o que fazia com que todos nós cultivássemos os ralos pelos que nasciam 
nas nossascaras e corpos (sobretudo nas pernas e peito) com imenso cuidado e 
enorme orgulho. À propósito: ter pelo na orelha era sinal de masculinidade e de 
malvadeza. 
 Depois da cara vinha certamente o pênis, cujo tamanho (e funcionamento 
adequado) era uma fonte permanente de preocupação. Como algo visível e 
obviamente comparável, ele era o foco implícito do corpo nos vestiários e um ator 
importante nas anedotas e nas histórias que constituíam os recursos básicos de 
nossa pedagogia sexual. Não era estranho ouvir relatos de concursos nos quais a 
rapaziada media seus pênis, estabelecendo uma hierarquia entre seus donos. 
Também não era incomum ouvir narrativas nas quais o falo do herói "levantava" 
rapidamente e tornava-se um instrumento poderoso, incontrolável. Assim, o falo era 
idealizado e lido como o pau, a pica, a espada, o mastro, a marreta, o canhão, o 
porrete, a pistola etc. Todo e qualquer objeto de agressão poderia ser usado como 
metáfora para o órgão masculino.7 
 O pênis era um ator social a ser permanentemente testado, experimentado e 
consumido. Como órgão central e explícito da masculinidade, como traço distintivo 
da condição de "homem", o falo (muito mais do que o escroto) era um elemento 
 
7 Diz-se no Brasil que, numa situação de confronto, um homem vai decidir tudo "mostrando o 
pau", isto é, apresentando o seu falo para os outros homens implicados no conflito. Do mesmo 
modo, fala-se em "dar (ou levar) uma porrada", e em "dar (ou levar) um esporro", e em 
"meter o pau" em alguém como atos que denotam agressão ou depreciação de uma outra 
pessoa. 
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permanente da consciência.8 De tal modo que não seria exagero afirmar que, 
naquela cultura, a masculinidade era representada e igualmente englobada pelo 
pênis que, por sua vez, definia e representava as pessoas numa definição social 
inapelável. Ou seja: quem havia nascido homem tinha que se comportar como tal — 
com hombridade, com consistência, firmeza e com certa dureza — realizando 
sistematicamente certos gestos e mostrando aos outros certos hábitos, gostos e 
atitudes. Até a roupa, a comida, a bebida, os sapatos e as meias podiam ser 
tomadas como ausência (ou deficiência) de masculinidade. Qualquer fuga do padrão 
local era considerada um desvio daquilo que deveria ser camisa, calça, meia, 
gravata, relógio ou sapato de homem. Uma maneira trivial de reforçar essa 
padronização consistia em perguntar para a pessoa que usava uma peça de vestiário 
de modelo diferente ou ambíguo se na loja onde ele havia comprado aquele objeto 
"vendia-se roupa (ou qualquer outro objeto) pra homem". 
 
— IV — 
 Diante de todos esses valores e práticas que acentuavam explicitamente o 
lado positivo e superior da masculinidade, não causa estranheza que uma das 
maiores contradições naquela sociedade era o homem que resolvia abandonar o seu 
"aparato masculino" tornando-se assexuado ou, pior que isso, "virando veado". Pois 
se os homens eram intrínseca e naturalmente superiores, o homossexualismo (que, 
para nós, só existia entre os homens, sendo verdadeiramente impensável entre as 
mulheres), ou o celibato eram vistos como uma traição ao gênero. Deste modo, 
descobrir que um homem podia "virar mulher" era uma desobediência a um rígido 
 
8 Em outras culturas o escroto é mais importante ou mais usado como metáfora. Nos Estados 
Unidos, por exemplo, diz-se: "'X' has balls", denotando que é uma pessoa com tutano, energia 
e capacidade para enfrentar o mundo e os outros. No mundo hispânico, é uma vergonha ser 
homem e não ter cujones; ou seja: possuir tutano e coragem. 
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sistema de classificação que tudo dividia em termos de masculino e feminino, e uma 
prova inequívoca de desprezo à solidariedade básica devida ao gênero masculino, 
uma dimensão fundamental da identidade como pessoa neste mundo que fora 
desenhado e destinado aos homens. Ademais, "virar mulher" era tornar-se um 
inferior e ficar satisfeito em ser uma reles imitação. Pois os veados eram seres 
intermediários e ambíguos. Não eram bem mulheres, embora procedessem social e 
sexualmente como tal. Daí, sem dúvida, o termo altamente pejorativo — 
"mulherzinha" — aplicado aos homossexuais passivos. Naquela comuniddade, não 
havia nenhuma noção de um homossexualismo masculino, de caráter mais complexo 
e igualitário, pois o elo homoerótico era sempre convertido ou traduzido 
culturalmente numa relação hierárquica (como a dos gregos clássicos) entre um 
homem (o ativo e com mais experiência ou mais velhos) e uma "mulherzinha" — ou 
outro homem que fazia o papel de passivo, "dando a bunda" — o que de certo modo 
normalizava as coisas, restabelecendo o par paradigmático homem/mulher. Era 
certamente em virtude dessa complementaridade hierárquica que o 
homossexualismo feminino não era problematizado e ficava fora de consideração. 
Afinal, as mulheres não penetravam e, na nossa concepção, praticavam um ato 
sexual misterioso e, por isso, superexcitante. 
 Naquele lugar e naquele tempo, não era possível separar a prática sexual da 
definição total da identidade social. Assim, "ser veado" ou ser "mulherzinha" não 
dizia respeito apenas à atividade sexual, como quer a ideologia moderna e o 
individualismo, mas falava de todo o ser que se manifestava principalmente pelo fato 
de ser fisicamente constituído como homem ou mulher. E, talvez muito mais que 
isso, de ser tentado a "virar uma mulher", tendo um aparato físico masculino. 
 Nos vestiários, na piscina, nas rodas de bar ou nos banhos de ribeirão, falava-
se ou aludia-se ao tamanho do pênis com muita frequência. Ter o pênis grande era 
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sinal de orgulho e marca de masculinidade, embora todos conhessem o ditado (que 
soava como um embuste) segundo o qual "tamanho não é documento" — entendido 
por todos como uma espécie de prêmio de consolação e como a expressão do bom-
senso que tudo equilibrava. 
 Mas se o falo era o símbolo oficial, a marca registrada e o sinal exterior do 
masculino, a nádega, o rabo, o traseiro, o lôlô, o cu, o lorto, a mala, o fiofó, o 
furingo, o rabo, a bunda representava o outro lado (inesperado e incerto) da 
medalha. Pois era nesta zona que repousava, como nossa brincadeira fazia prova, o 
inverso da masculinidade. O seu lado obscuro, interior e oculto. A dimensão 
reveladora de tendências insuspeitadas como a feminilidade, a impotência e a 
covardia: quem é que queria ser um "bundão", ou um "brocha"? O seu plano frágil, 
dependente e marginal: quem é que queria ser um "bunda-suja"? O ângulo que de 
certo modo dotava o corpo do homem de um pedaço antimasculino — uma parte 
macia e semiaberta, que o inferiorizava e o igualava às mulheres. E para complicar 
ainda mais as coisas, dizia-se que bunda não tinha sexo, o que acentuava a 
homossexualidade passiva como a única forma estigmatizada de viadagem e situava 
o encontro homosexual ativo como socialmente aprovado. Assim, o problema não 
residia em relacionar-se sexualmente com homens, mas em "dar a bunda" o que, 
num nível profundo, significava ser englobado pelo comedor — as metáforas sexuais 
reproduzindo as normas hierárquicas da organização social, nas quais o inferior era 
englobado e se dissolvia socialmente no superior. Um coronel "contém" um major e, 
este, um capitão que, por sua vez, foi um tenente e assim sucessivamente. 
 Realmente, no plano social, a sociedade ordenava as pessoas em termos de 
relações hierárquicas, complementares e interdependentes: homem/mulher; 
rico/pobre, santo/pecador; superior/inferior; mais-velho/mais novo; em casa/na rua

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