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Vozes da Literatura Brasileira Um Diálogo Essencial Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Material Teórico Responsável pelo Conteúdo: Profa. Dra. Vivian Steinberg Revisão Técnica: Profa. Dra. Geovana Gentili Revisão Textual: Profa. Ms. Silvia Augusta Barros Albert 5 • Introdução • Um diálogo possível: Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade • Considerações Finais • Um Acontecimento: Clarice Lispector (1920-1977) É importante que você leia com atenção os textos disponíveis, aprofunde seu conhecimento com a obra na íntegra, leia as sugestões de bibliografia e de sites, estabelecendo relações. É fundamental o compartilhamento de ideias para a construção de novos conhecimentos. Dialogue com o tutor e com os demais colegas, tire suas dúvidas, retomando as leituras que não ficaram muito claras para você. Para isso, utilize as ferramentas de comunicação disponíveis no Ambiente Virtual de Aprendizagem (AVA) Blackboard (Bb) como Fórum de Dúvidas e Mensagem. Nesta unidade, estudaremos o livro de crônicas de Carlos Drummond de Andrade: Confissões de Minas, com especial ênfase para a crônica “Suas cartas” e o conto “Amor”, de Clarice Lispector, do livro Laços de Família. O primeiro livro retoma algumas questões discutidas pelos modernistas brasileiros que começaram a publicar no começo do século XX e “Amor” abre a narrativa para novas perspectivas de abordagens literárias. Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil 6 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Contextualização Tanto Carlos Drummond de Andrade quanto Clarice Lispector viveram no Rio de Janeiro e fizeram dele cenário para seus poemas, crônicas, contos e romances. Nos contos e romances de Clarice Lispector, aparecem vários bairros que contêm características importantes para a história. Por exemplo, o Jardim Botânico no conto “Amor”. Esse mapa foi disponibilizado pelo Instituto Moreira Sales (IMS), que abriga o espólio de Clarice Lispector, assim como o acervo de Carlos Drummond de Andrade. Muito do acervo desses dois “titãs” da literatura brasileira está digitalizada. Podemos ter acesso, por exemplo, aos “cadernos de bordo” de Clarice. Não deixem de ler!! 7 Introdução Caro(a) aluno(a), o nosso percurso ocorre durante o século XX, depois do tumulto da “Semana de Arte Moderna”, um marco na reviravolta das artes: ampliou-se o olhar para o fazer artístico, principalmente para a linguagem e para a compreensão do Brasil enquanto um país com voz própria, não dispensando as assimilações ao estrangeiro, como Oswald de Andrade imortalizou no “Manifesto Antropófago”. Vamos seguir nessa unidade, com o Brasil pós 1930, estudando dois autores fundamentais para a formação do que entendemos hoje como Literatura Brasileira: Carlos Drummond de Andrade e Clarice Lispector. Acompanhe essa nossa caminhada. Um diálogo possível: Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade Carlos Drummond de Andrade (1902-1987) escreveu em 1943, em plena Segunda Guerra Mundial, Confissões de Minas, um livro em prosa. Mas como o próprio autor disse no prefácio: É um livro de prosa, assinado por quem preferiu quase sempre exprimir-se em poesia. (...). Mas a verdade é que se a poesia é a linguagem de certos instantes, e sem dúvida os mais densos e importantes da existência, a prosa é a linguagem de todos os instantes, e há uma necessidade humana de que não somente se faça boa prosa como também que nela se incorpore o tempo, e com isto se salve esse último. (ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 11) A distinção que o autor faz entre prosa e poesia é precisa. Ele chama a atenção para o fator tempo como o principal elemento de distinção entre as duas artes da palavra. Como estamos trabalhando a prosa, é fundamental perceber o quanto ela está relacionada ao tempo, e com isso Drummond não se refere apenas ao tempo em que está inserido, aos fatores históricos, mas à noção de tempo, do passar das horas, dos dias, das semanas, dos meses, dos anos e por aí afora. Há um encadeamento de fatos, personagens, situações. Drummond situa e escritura de Confissões de Minas entre 1932, “quando Hitler era candidato (derrotado) a presidente da República e termina em 1943, com o mundo submetido a um processo de transformação pelo fogo.” Ou seja, em plena Segunda Guerra Mundial. O autor apresenta o livro e sua feitura, assim: As páginas foram-se escrevendo mais para contar ou consolar o indivíduo das Minas Gerais, e dizem pouco das relações desse indivíduo com o formidável período histórico em que lhe é dado viver. Mesmo assim, não as desprezo. Dou-as como depoimento negativo, indicando aos mais novos que devem formular depoimentos positivos, autênticos e até mesmo impiedosos, se for o caso.(...). (...) Rapazes, se querem que a literatura tenha algum préstimo no mundo de amanhã (o mundo melhor que, como todas as utopias, avança inexoravelmente), reformem o conceito de literatura. Já não é possível viver no clima das obras-primas fulgurantes e... podres, e 8 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil legar ao futuro apenas esse saldo dos séculos. Reformem a própria capacidade de admirar e de imitar, inventem olhos novos ou novas maneiras de olhar, para merecerem o espetáculo novo de que estão participando. (...) (ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 12-14) O autor aconselha os jovens escritores e confessa que embora seu livro não diga muito sobre o momento histórico em que vive, suas crônicas narram sobre pessoas, sensações e dissabores de um sujeito pertencente a um determinado período histórico e por isso condicionado a um olhar fundador dessa escritura. Continua o diálogo com “os rapazes”, afirmando a necessidade de que, para escrever e para “tornar a vida mais interessante”, é importante reformular a “própria capacidade de admirar e de imitar” e criar novas maneiras de olhar. O texto é uma injeção de ânimo e de preocupação em mostrar que para o ato criativo é elemento fundador um “olhar novo” que admire tanto o presente como o passado. Portanto, Drummond não despreza a herança, a tradição, apenas acrescenta o elemento novo, o particular, que pertence a cada um, assim, a cada nova geração, a cada nova época, as possibilidades de escritura e de olhar se ampliarão e é preciso “reformular a própria capacidade de admirar”. Drummond conviveu com os autores do “primeiro modernismo brasileiro”. Em 1924, conheceu Mário de Andrade, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral. Seu primeiro livro, Alguma Poesia, estreou em 1930, embora o poema “No meio do caminho”, que inicia o livro, tenha sido publicado em 1928, na Revista de Antropofagia. Drummond afirma sobre esse poema, em “Autobiografia para uma revista”, que compõe o livro Confissões de Minas, que ele foi um divisor de águas: Entro para a antologia, não sem registrar que sou o autor confesso de certo poema, insignificante em si, mas que a partir de 1928 vem escandalizando meu tempo, e serve até hoje para dividir no Brasil as pessoas em duas categorias mentais 1. Consultem a página de Carlos Drummond de Andrade no link: https://goo.gl/NWEXSS Há dados bibliográficos e alguns poemas lidos pela voz de Drummond. Há também alguns textos em prosa, vários vídeos interessantíssimos, como por exemplo, o curta- metragem “O fazendeiro do ar”, de Fernando Sabino e David Neves, produzido em 1972, além de algumas entrevistas gravadas. Consultem também o site do Instituto Moreira Salles sobre Drummond. Todo seu acervo está lá, e há muito de sua obra digitalizada. Disponível em: https://goo.gl/1kYzw6 Carlos Drummond de Andrade escreveu “Autobiografia para uma revista” em Confissões de Minas. O autor conta a sua vida em uma página e meia. É possível ler esse texto na íntegra em: https://goo.gl/maqwqM 1 Em ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: CosacNaify, 2011. (p.67 a p.69). 9 Em Confissões de Minas, na crônica “Suas cartas”, há um diálogo entre o narrador e “um senhor maduro, de 31 anos (quando se tem 20, os que têm 25 já são velhos imemoriais), que passou por Belo Horizonte numa alegre caravana de burgueses artistas e intelectuais, composta também por um poeta francês que perdera um braço na guerra e andava a procura de melancia e cachaça”2 . Assim o narrador nos conta como conheceu Mário de Andrade, seu interlocutor nessa crônica. O diálogo se estabelece entre o jovem aspirante a escritor e o poeta mais experiente: o fato real ocorreu em Minas Gerais quando Mário lá esteve acompanhado de outros intelectuais e artistas. Drummond coloca a voz de Mário de Andrade através de suas cartas, e isso é genial para a época, extremamente moderno e inovador. A voz se faz pelas próprias palavras do interlocutor, que se torna presente na narrativa, através das cartas. Começa a história situando no tempo e no espaço: Debruço-me à beira desse poço de dezenove anos de profundidade. Lá embaixo, no escuro, é 1924. Alguns dos que hoje me convidam a escrever estavam apenas nascendo. E eu era um dos moços de então. Os nomes mudaram, porém os moços continuam existindo na literatura, amando-a e fazendo dela um valor humano. Por que xingar os moços de literatos? O que há de melhor neles é a literatura, ou seja, a vida fantástica, que aperfeiçoa e cristaliza a vida cotidiana, a literatura que ajuda a viver, e que tanto permite sair da vida como entrar nela. Chave de duas portas, porém não chave falsa. É quase impossível ter vinte anos, um pouco de sensibilidade, um pouco de insatisfação, e não entregar a alguns poetas e alguns romancistas o cuidado de resolver os nossos problemas, de nos salvar de nós mesmos. E para melhor nos comunicarmos com eles, temos que ser nós mesmos, poetas e romancistas. Seus iguais. Somos Dante e Baudelaire, somos Balzac e Dostoiévski. Com o tempo, despregamo-nos dessas personagens monstruosas, caímos numa mediocridade vivida e suportável, reenquadramo-nos no plano estático, sem constelações, sem agapantos indescritíveis, sem bicicletas de fogo... Mas eu sustento que o pior literato de vinte anos ainda é um homem maravilhoso, e o invejo, o amo e o respeito, absolutamente sem crítica 3. O autor retoma o começo de sua vida intelectual, volta aos anos 1924, portanto dezenove anos anteriores ao da escrita, ao menos do lançamento do livro. E conta como se sentia, como via o mundo embebido nos autores canônicos europeus, principalmente os franceses, como esses jovens autores sonhavam, mas que, num determinado momento precisaram “cair na real”: “caímos numa mediocridade vivida e suportável”. Esse texto faz parte de um diálogo que Drummond estabeleceu com Mário de Andrade em relação à atração que sentia pela cultura europeia, ele e todos os jovens intelectuais. Por essa data, por ocasião da morte de Anatole France, em 1924, escritor francês decadentista de maior prestígio na França, houve uma troca de cartas entre Mário e Carlos Drummond. O jovem autor escreveu um artigo enaltecendo o autor francês e lamentando ser brasileiro. Anatole morre em 1924. Carlos Drummond escreve um comovido e elogioso epitá fio num jornal belo-horizontino e envia a có pia a Má rio de Andrade. Má rio fica horrorizado com o teor da admiraç ã o dos jovens mineiros por Anatole. 2 ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 72. 3 op. cit. p.71 10 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Em resposta a Carlos, escreve: “Anatole ensinou outra coisa de que você [, Carlos,] se esqueceu: ensinou a gente a ter vergonha das atitudes francas, prá ticas, vitais. Anatole é uma decadê ncia, é o fim duma civilizaç ã o que morreu por lei fatal e histó rica. Nã o podia ir mais pra diante. Tem tudo que é decadê ncia nele. Perfeiç ã o formal. Pessimismo diletante. Bondade fingida porque é desprezo, desdé m ou indiferenç a. (...)”. SANTIAGO, Silviano. “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil”, disponível em: https://goo.gl/3BHujB (p.10-11) O crítico Silviano Santiago, num artigo sobre Mário, Oswald e Carlos como intérpretes do Brasil, comenta o diálogo que foi estabelecido por Carlos e Mário por ocasião da morte de Anatole e pelo desenraizamento do solo nacional que está na base da admiração pelos intelectuais europeus decadentistas de autores como Drummond, àquela época. O trecho inicial de “Suas cartas” refere-se a uma mudança de perspectiva no ainda jovem Carlos. O interessante é que ele escreve essa crônica posteriormente, precisamente dezenove anos depois, e volta à sua transformação a partir da troca de cartas com Mário de Andrade. Percebe que a visão do então ingênuo Carlos Drummond era uma marca de provincianismo, de um intelectual que se volta para o estrangeiro como se lá fosse o paraíso, ou como se apenas na Europa, precisamente em Paris, pudesse se pensar direito. Em outra palavras, por estar na província e ter acesso à literatura/ arte estrangeira, passa a ser cosmopolita, mas entende que a Cidade/ Paris é que produz os melhores autores, as melhores ideias. Nesse momento, passa a ser provinciano. Silviano Santiago comenta sobre a compreensão que Mário de Andrade oferece ao então “pupilo” Drummond, discorrendo sobre a polêmica em torno de Anatole France: Sempre atento, Má rio de Andrade percebe que o cosmopolitismo e a melancolia do jovem Carlos, perdido entre as montanhas de Minas Gerais, se encontravam conformados, de um lado, pelo cinismo finissecular de Anatole France e, do outro, pela tristeza e o pessimismo de Joaquim Nabuco4. Na crônica, Drummond continua a sua interpretação para os pensamentos daquele momento. Carlos Drummond maduro espiando Carlos o Drummond moço: Vejo moços no fundo do poço, tentando sair para a vida impressa e realizada. Como falam! Como escrevem! Como bebem cerveja! Estou entre eles, mas não sei que sou moço. Julgo- me até velho, e alguns companheiros assim também se consideram. É uma decrepitude de inteligência, desmentida pelos nervos, mas confirmada pelas bibliotecas, pelo claro gênio francês, pela poeira dos séculos, por todas as abusões vulneráveis ainda vigentes em 1924. A mocidade, entretanto, parece absorver tóxicos somente para se revelar capaz de neutralizá-los. Ninguém morria de velhice, e cada um, inconscientemente, preparava a sua mocidade verdadeira. Esta tinha que vir de uma depuração violenta de preconceitos intelectuais, tinha que superar fórmulas de bom comportamento político, religioso, estético, prático, até prático! Havia excesso de boa educação no ar das Minas Gerais, que é o mais puro ar do Brasil, e os moços precisavam deseducar-se, a menos que preferissem morrer exaustos antes de ter brigado. 4 SANTIAGO, Silviano. “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil”, disponível em: https://goo.gl/3BHujB (p.11) 11 Para essa deseducação salvadora contribuiu muito, senão quase totalmente, um senhor maduro, (...)5 Descreve seu olhar ingênuo, conta como conheceu Mário de Andrade e de como transformou sua visão do Brasil e o quanto, para isso, as palavras de Mário contribuíram. As cartas de Mário de Andrade ficaram constituindo o acontecimento mais formidável de nossa vida intelectual belo-horizontina. Eram torpedos de pontaria infalível. Depois de recebê- las, ficávamos diferentes do que éramos antes. E diferentes no sentido de mais ricos ou mais lúcidos. Quase sempre ele nos matava ilusões, e a morte era tão completa que só podia deixar- nos ofendidos e infelizes. Então reagíamos com injustiças, tolices, o que viesse de momento ao coração envinagrado. Mário recebia sorrindo essas tolices, mostrava que eram simplesmente tolices, e ficávamos mais amigos...6 Drummond transporta alguns trechos de sua correspondência, da resposta que recebia para seu texto, dando voz a Mário de Andrade. Podemos ouvi-lo expondo suas ideias em relação à língua portuguesafalada e escrita no Brasil, como, por exemplo, quando ele coloca todos os problemas da língua nacional a partir da discussão em torno de uma simples preposição: Foi uma ignomínia a substituição do “na estação” por “à estação” só porque em Portugal paisinho desimportante pra nós diz assim. Repare que eu digo que Portugal diz assim e não escreve só. Em Portugal tem uma gente corajosa que em vez de ir assuntar como é que se dizia na Roma latina e materna, fez uma gramática pelo que se falava em Portugal mesmo. Mas no Brasil o sr. Carlos Drummond diz “cheguei em casa” “fui na farmácia” “vou ao cinema” e quando escreve veste um fraque debruado de galego, telefona pra Lisboa e pergunta pro ilustre Figueiredo: – Como é que se está dizendo agora no Chiado: é “chega na estação” ou “chega à estação”? E escreve o que o sr. Figueiredo manda. E assim o Brasil progride com Constituição anglo-estadunidense, língua franco-lusa e outras alavancas fecundas e legítimas. Veja bem, Drummond, que eu não digo pra você que se meta na aventura que me meti de estilizar o brasileiro vulgar. Mas refugir de certas modalidades nossas e perfeitamente humanas como o chegar na estação (aller en ville, arrivare in casa mia, andare in cittá) é preconceito muito pouco viril. Quem como você mostrou a coragem de reconhecer a evolução das artes até a atualização delas põe-se com isso em manifesta contradição consigo mesmo7 . São palavras de Mário de Andrade, numa carta, endereçada a Drummond. É um tratado sobre a língua portuguesa falada e escrita no Brasil. No momento em que escreveu o jeito que dávamos no Brasil para língua, exemplificando, logo no início com “na estação por à estação”, à maneira como se fala e se escreve em Portugal. Isso porque o “mundo culto” condenava essa “promiscuidade” com a linguagem e Drummond cedia aos caprichos portugueses (de acordo com a carta - lembrem-se, quem publicou essa carta, em sua crônica, foi Drummond). E já que falei na minha aventura, peço uma coisa e aviso outra. Não pensem vocês, aí de Minas, que sou um qualquer leviano e estou dando por paus e por pedras sem saber bem o que estou fazendo. A aventura em que me meti é uma coisa séria, já muito pensada e repensada. Não estou cultivando exotismos e curiosidades de linguajar caipira. Não. É possível que por enquanto eu erre muito e perca em firmeza e clareza e rapidez de expressão. 5 ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. p. 72. 6 op.cit. p.72. 7 op.cit. p.80. 12 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Tudo isso é natural. Estou num país novo e na escureza completa duma noite. Não estou fazendo regionalismo. Trata-se duma estilização culta da linguagem popular da roça como da cidade, do passado e do presente. É uma trabalheira danada que tenho diante de mim. É possível que me perca, mas que o fim é justo ou ao menos justificável e que é sério, vocês podem estar certos disso. Não estou pitorescando o meu estilo nem muito menos colecionando exemplos de estupidez. O povo não é estúpido quando diz “vou na escola”, “me dixe”, “carneirada”, “ mapiar”, “besta ruana”, “farra”, “vagão”, “futebol”. É antes inteligentíssimo nessa aparente ignorância porque sofrendo as influências da terra, do clima, das ligações e contatos com outras raças, das necessidades do momento e de adaptação, e da pronúncia, do caráter, da psicologia racial modifica aos poucos uma língua que já não lhe serve de expressão porque não expressa ou sofre essas influências. Então os escrevedores estilizam esse novo vulgar, descobrem-lhe as leis embrionárias e a língua literária, única que tem reconhecimento universal (aqui sinônimo de culto) aparece. Nessa entrada me meti. Sei que tudo está por fazer. E o que é pior sei que uma palavra brasileira empregada na escrita soa pra todos como exotismo, regionalismo porque só como regionalismo exótico foi empregada até agora. Mas isso não é culpa do escritor que a não emprega mais assim, mas a adota como sua maneira regular de expressão. Nem é culpa da palavra também. A culpa vem do preconceito civil adquirido na leitura dos livros cultos8. Mário de Andrade explica para os jovens intelectuais de Minas o que perseguia. Ele tinha um profundo conhecimento da língua e sabia que ela sofre influências do lugar que se fala, e aqui, não é Portugal. Enquanto lá se fala e se escreve de um jeito; aqui a língua precisou se desdobrar para atender às nossas necessidades, da terra, do clima, da ligação e contato com outros povos. O autor da carta diz e argumenta que a sua pesquisa com a língua é muito séria, não é uma aventura, não está perseguindo exotismo, mas criando um estudo aprofundado sobre a nossa língua. O que Caetano Veloso depois escreveu em sua composição “Língua”, no álbum Velô de 1984: “Deixe os Portugais morrerem à míngua”. Se munheca soa mal depois dos quinze anos de idade é porque o sujeito da cidade, mocinho faceiro e enfeitado de um despotismo de preconceitos inconscientemente hipócritas, nunca leu munheca em Fialho ou Machado de Assis e por isso se bota a policiar a língua que fala pras melindrosas do assustado e mesmo pros colegas de Academia. Tudo preconceitos e a nossa vida é feita de preconceitos eu sei. Por isso falo em criar uma linguagem culta brasileira e falo em adquirir novos preconceitos porque assim se move a vida do homem e se torna novo e se torna bonita. O meu trabalho não é simples nem pequeno. Sei que muito hei de errar. Sei que muitas vezes voltarei pra trás. Sei que exagerei. Sei que me iludirei talvez. Sei principalmente que minha língua de hoje cheira caipirismo exótico pra muita gente. Mas aqui a ilusão não é minha porque tenho a experiência histórica que está do meu lado. Mas é certo que muito errarei. Só o que eu quero é que não julguem-me mal, vocês que quero bem. As aventuras podem falhar, porém se o aventureiro teve um fim justo e trabalhou sem leviandade pra atingi-lo, a nobreza continua com o aventureiro, não acham? Não me queiram mal pelo que faço e esperem pra me condenar ao menos à apresentação dum livro em prosa. Só isso que eu peço pra vocês9 . Mário de Andrade diz que quer criar uma linguagem culta brasileira, ele denuncia os preconceitos em relação às palavras incorporadas na sintaxe do português falado no Brasil. A ideia é que se “tal palavra” não foi escrita em livros dos grandes autores é desconsiderada “pelo 8 op.cit. p.80. 9 op.cit. p.80-81. 13 mocinho faceiro”. E que a língua dele é considerada caipirismo ou exotismo. O autor denuncia esse policiamento em relação à linguagem que existe, aliás, e repercute até nossos dias. O remetente critica e propõe um olhar novo para a língua portuguesa praticada no Brasil, que não é idêntica à portuguesa e não é por isso que é errada ou menor, ao contrário, traz uma riqueza incorporada às vivências próprias dessas terras, como a convivência com outros povos, por exemplo. É uma renovação que transformou a ideia de língua culta. Provocou uma mudança e uma aceitação de nossas diferenças. A literatura deu um novo passo, reestruturou-se com novas bases. Poderemos ver isso em outros autores do modernismo, por exemplo, o escritor João Guimarães Rosa, que levou a recriação da língua “brasileira” às últimas consequências. É inegável a herança que a geração que participou direta ou indiretamente da “Semana de Arte Moderna” deixou: a poesia, a prosa, a crítica saíram inteiramente renovadas do Modernismo, interpretou Alfredo Bosi, em História Concisa da Literatura Brasileira. Mário de Andrade fez um balanço escrito em 1942, “O Movimento modernista”, do qual Bosi (1987, p.431 e p.438) sintetizou: “o direito permanente à pesquisa estética; à atualização da inteligência artística brasileira; e à estabilização de uma consciência criadora nacional”. Com isso, “abriu-se caminho para formas mais complexas de ler e de narrar o cotidiano”, o que estamos vendo nesses dois autores que escolhemos para estudarnessa unidade: Drummond e Clarice Lispector. É importante ler o ensaio, na íntegra, de Silviano Santiago: “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil”, disponível em: https://goo.gl/3BHujB Há outros textos críticos, dados biográficos, correspondência, vídeo documentário, material pedagógico e outras curiosidades, muito bem feitas, em: “Drummond, testemunho da experiência humana”. Disponível em: https://goo.gl/maqwqM Vale lembrar que a prosa do modernismo brasileiro teve duas vertentes principais: uma literatura voltada para a cidade, para a interioridade, como a de Clarice Lispector, Lúcio Cardoso, Osman Lins, Cornélio Pena etc.; e outra, uma literatura voltada para o regional, para o “realismo bruto”, de acordo com Alfredo Bosi, como a de Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Jorge Amado, Raquel de Queirós, Érico Veríssimo, entre outros. Ressaltamos que essa divisão é meramente didática, pois, além de precária, acaba não dando conta das diferenças internas que separam os principais romancistas situados na mesma faixa. Uma obra classificada dentro do regionalismo, além de regional e sociológica, traz vários aspectos psicológicos como, por exemplo, a obra-prima Vidas Secas, de Graciliano Ramos, para citar apenas um romance da época. Para aprofundar essas questões, examinaremos a poética de Clarice Lispector por meio de duas crônicas dessa escritora: “Abstrato e figurativo” e “Declaração de amor”, além de ler também um conto: “Amor”. Clarice Lispector é uma escritora que renovou “por dentro” o ato de escrever ficção. 14 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Um Acontecimento: Clarice Lispector (1920-1977) Clarice Lispector escreveu a crônica que vamos estudar no livro Para Não Esquecer, publicado pela primeira vez em 1964. Essa obra é uma reunião de 108 crônicas, algumas publicadas na imprensa, e na crônica “Abstrato é o figurativo”, Clarice Lispector tece comentários sobre sua arte da escrita. Abstrato é o figurativo Tanto em pintura como em música e literatura, tantas vezes o que chamam de abstrato me parece figurativo de uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu. (LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. São Paulo: Círculo do Livro, 1980. p.59) A autora faz referência à sua arte poética, para a qual escrever é representar uma arte “mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu”, o que às vezes chamam de abstrato. Clarice Lispector refere-se à realidade interior do ser humano: a autora vai desvelando segredos íntimos da alma humana, desejos reprimidos, pensamentos escusos, penetrando-lhes, por meio do fluxo de consciência, a intimidade mais profunda. O caminho de Clarice Lispector prossegue no da perscrutação da interioridade. Haroldo de Campos, em “Prefácio” 10, escreveu: “escritora que interiorizou o escrever como destino absoluto”. Para a autora, a intensidade da entrega, que é preciso para escrever, pressupõe a inclusão da figura do eu (o trabalho sobre si mesmo) no processo da pesquisa que é a escrita, como escreveu Carlos Mendes de Sousa 11. E Clarice Lispector pronunciou: É maravilhosamente difícil escrever em língua que ainda borbulha, que precisa mais do presente do que mesmo de uma tradição. Em língua que para ser trabalhada, exige que o escritor se trabalhe a si próprio como pessoa.12 Alguns estudiosos relacionaram a literatura de Clarice Lispector ao fato dela ter nascido em outro país (ver post-it), ter convivido na infância com outra língua, o iídiche falado pelos pais, embora ela declarasse que a sua língua materna fosse o português: “A minha primeira língua foi o português. Se eu falo russo? Não, não, absolutamente... (...) eu tenho a língua presa” 13. Outra leitura que poderemos fazer, em relação à declaração da autora sobre “a língua que ainda borbulha”, é a da língua da literatura que está nascendo, a língua que, em cada autor e em cada novo texto, nasce e borbulha. 10 In: SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis/ Lorena: Vozes/ Faculdade Integradas Teresa D`Ávila, 1979, p.15. (Mencionado em SOUSA, Carlos Mendes de. Figuras da Escrita. São Paulo: IMS, 2012, p.22). 11 SOUSA, Carlos Mendes de. Figuras da Escrita. São Paulo: IMS, 2012, p.22. 12 LISPECTOR, Clarice. “Literatura de Vanguarda no Brasil” (1965), citado em Figuras da Escrita. (id. ibidem. p.22). 13 GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995, p.65. 15 Clarice Lispector (1920-1977) nasceu em Tchechelnik, na Ucrânia, chegou no Brasil com dois meses de idade. Em relação à data exata de seu nascimento, há controvérsias, seus pais vieram como imigrantes e não se sabe ao certo se havia uma certidão de nascimento ou não; parece que o documento brasileiro foi feito a partir da declaração de seu pai. Morou em Maceió, Recife e Rio de Janeiro e casou-se com Maury Gurgel Valente, seu colega do curso de Direito. Como ele passa no concurso para diplomata, eles moram em vários lugares: Belém do Pará, Nápoles, na Itália, Berna, na Suíça, Washington, nos EUA. A escritora separa-se em 1959 e volta a morar no Brasil. GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995. MOSER, Benjamin. Clarice. São Paulo: Cosac Naify, 2009. Site da editora Rocco http://www.claricelispector.com.br Cadernos de Literatura Brasileira - Clarice Lispector (São Paulo: IMS, 2004). Consultar o site do Instituto Moreira Sales: http://claricelispectorims.com.br/Facts Atenção especial para aula disponível no site do IMS do José Miguel Wisnik. Ver o filme de Suzana Amaral baseado no romance da autora A Hora da Estrela Há uma entrevista importante que Clarice deu para a TV Cultura que vale a pena ver, disponível em: http://vimeo.com/70407825 Há um texto de Clarice, “Declaração de amor”, datado de 11 de maio de 1968, no qual a autora se dá conta da consciência da tarefa de escrever e aprofunda a relação entre o escritor e a língua portuguesa: Esta é uma confissão de amor: amo a língua portuguesa. Ela não é fácil. Não é maleável. E, como não foi profundamente trabalhada pelo pensamento, a sua tendência é a de não ter sutilezas e de reagir às vezes com um verdadeiro pontapé contra os que temerariamente ousam transformá-la numa linguagem de sentimento e de “alerteza”. E de amor. A língua portuguesa é um verdadeiro desafio para quem escreve. Sobretudo para quem escreve tirando das coisas e das pessoas a primeira capa de superficialismo. (...) Eu queria que a língua portuguesa chegasse ao máximo nas minhas mãos. E este desejo todos os que escrevem têm. Um Camões e outros iguais não bastam para nos dar para sempre uma herança de língua já feita. Todos nós que escrevemos, estamos fazendo do túmulo do pensamento alguma coisa que lhe dê vida. Essas dificuldades, nós as temos. Mas não falei do encantamento de lidar com uma língua que não foi aprofundada. O que recebi de herança não me chega. Se eu fosse muda, e também não pudesse escrever, e me perguntassem a que língua eu queria pertencer, eu diria: inglês, que é preciso e belo. Mas como não nasci muda e pude escrever, tornou-se absolutamente claro para mim que eu queria mesmo era escrever em português. Eu até queria não ter aprendido outras línguas: só para que a minha abordagem do português fosse virgem e límpida.14 14 LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p.134-135. 16 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Tudo o que a autora diz nessa reflexão é um testemunho - sua relação com a língua -, e podemos tomá-la como uma poética. Carlos Mendes de Sousa, em Figuras da escrita, faz essa abordagem. A língua passa a reagir, do confronto nasce o desejo de aprofundar: Um ouvir por dentro, um trabalhar as sutilezas seguindo o caminho do pensamento em formação. Estar na língua como uma estrangeira pressupõe um abalar das genealogias no modo de se inscrever num lugar que, ao mesmo tempo, pretende fazerseu também. A proclamação do desejo de um lugar plano - uma língua como território chão - não pressupõe um ideal de pureza ou de cristalizadora intocabilidade. A estepe clariciana é criada na busca desse lugar raso, mas também emerge, sobretudo, na medida em que o combate dentro dele possibilite trazer para a arena da língua o modo louco do interior. Fazê-lo cantar ou sussurrar na planura de uma exterioridade agressivamente diferenciadora”.15 Se não tivesse embate, “se fosse muda”, poderia se contentar em pertencer ao inglês, um ideal de pureza ou de cristalizadora intocabilidade. Mas como não nasceu muda e pode escrever, então, a sua pátria é a língua materna, a língua portuguesa. Por um lado, Clarice Lispector procura uma simplicidade e quer tocar a língua sempre como algo novo, algo que borbulha; por outro, quer alcançar uma interioridade em que surja o inexprimível. E isso é uma poética, é a sua poética. Aproximar-se da língua como uma estrangeira e fazê-la cantar ou sussurrar, abarcando inclusive o louco interior, uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu. Do mesmo modo que o escritor se transforma, se amplia a cada escritura, também a visão da pátria, ou da língua materna é transformada pela língua, por cada nova escritura. O pensamento de Deleuze entrelaça a de Clarice Lispector: “a arte da literatura é ser-se estrangeiro na própria língua. A literatura é uma espécie de língua estrangeira que não é outra, ‘mas um devir-outro da língua’” 16. A seguir, vamos ler um conto de Clarice Lispector: “Amor”, publicado em Laços de Família. Amor17 Um pouco cansada, com as compras deformando o novo saco de tricô, Ana subiu no bonde. Depositou o volume no colo e o bonde começou a andar. Recostou-se então no banco procurando conforto, num suspiro de meia satisfação. Os filhos de Ana eram bons, uma coisa verdadeira e sumarenta. Cresciam, tomavam banho, exigiam para si, malcriados, instantes cada vez mais completos. A cozinha era enfim espaçosa, o fogão enguiçado dava estouros. O calor era forte no apartamento que estavam aos poucos pagando. Mas o vento batendo nas cortinas que ela mesma cortara lembrava- lhe que se quisesse podia parar e enxugar a testa, olhando o calmo horizonte. Como um lavrador. Ela plantara as sementes que tinha na mão, não outras, mas essas apenas. E cresciam árvores. Crescia sua rápida conversa com o cobrador de luz, crescia a água enchendo o tanque, cresciam seus filhos, crescia a mesa com comidas, o marido chegando 15 SOUSA, Carlos Mendes de. Figuras da Escrita. São Paulo: IMS, 2012, p.25. 16 id. ibidem. p.26. 17 LISPECTOR, Clarice. “Amor”. In: Laços de Família, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983, p.19-31. 17 com os jornais e sorrindo de fome, o canto importuno das empregadas do edifício. Ana dava a tudo, tranquilamente, sua mão pequena e forte, sua corrente de vida. A autora descreve sua personagem principal, Ana, e insere-a no seu dia a dia. Assim como a autora, que procura conforto em sua escrita, a personagem também procura conforto, interno e externo. Através da descrição da existência de Ana, e a autora chama a atenção dos leitores para as inquietações dela, há uma tensão nas palavras e no ritmo da narrativa que se contrapõe ao conforto que Ana busca. Sabemos que é casada, dona de casa, tem filhos, pertence a uma classe média, mora num apartamento com os filhos e o marido. A imagem que prevalece nesse trecho é a do lavrador, em que ela compara o trabalho e a o plantar, tanto que o verbo que predomina é o crescer. Certa hora da tarde era mais perigosa. Certa hora da tarde as árvores que plantara riam dela. Quando nada mais precisava de sua força, inquietava-se. No entanto, sentia-se mais sólida do que nunca, seu corpo engrossara um pouco e era de se ver o modo como cortava blusas para os meninos, a grande tesoura dando estalidos na fazenda. Todo o seu desejo vagamente artístico encaminhara-se há muito no sentido de tornar os dias realizados e belos; com o tempo, seu gosto pelo decorativo se desenvolvera e suplantara a íntima desordem. Parecia ter descoberto que tudo era passível de aperfeiçoamento, a cada coisa se emprestaria uma aparência harmoniosa; a vida podia ser feita pela mão do homem. No fundo, Ana sempre tivera necessidade de sentir a raiz firme das coisas. E isso um lar perplexamente lhe dera. Por caminhos tortos, viera a cair num destino de mulher, com a surpresa de nele caber como se o tivesse inventado. O homem com quem casara era um homem verdadeiro, os filhos que tivera eram filhos verdadeiros. Sua juventude anterior parecia-lhe estranha como uma doença de vida. Dela havia aos poucos emergido para descobrir que também sem a felicidade se vivia: abolindo-a, encontrara uma legião de pessoas, antes invisíveis, que viviam como quem trabalha — com persistência, continuidade, alegria. O que sucedera a Ana antes de ter o lar estava para sempre fora de seu alcance: uma exaltação perturbada que tantas vezes se confundira com felicidade insuportável. Criara em troca algo enfim compreensível, uma vida de adulto. Assim ela o quisera e o escolhera. Por que certa hora da tarde era a mais perigosa? Era a hora que o tempo se esvai mais devagar, o mundo exterior estava encaminhado, tudo já estava em seus devidos lugares e nada mais “precisava de sua devida força”. A metáfora do lavrador permanece: “as árvores que plantara riam dela” e a necessidade de “sentir a raiz firme das coisas”. Tudo o que procurava era um conforto. O que poderia sair do lugar: “o seu desejo vagamente artístico” foi canalizado para o fazer funcional, harmonioso. “A vida podia ser feita pela mão do homem”, ou seja, sem mistérios, organizada, material, pequena. O adjetivo que se avoluma é verdadeiro, é um valor a ser notado. A vida da Ana divide-se em duas: antes - “uma exaltação perturbada”; a outra, agora: uma vida de adulto, compreensível e, pior, ela a escolhera. A narradora confirma o livre-arbítrio. No final do próximo parágrafo, usará o mesmo verbo, no mesmo tempo, pretérito mais que perfeito. Sua precaução reduzia-se a tomar cuidado na hora perigosa da tarde, quando a casa estava vazia sem precisar mais dela, o sol alto, cada membro da família distribuído nas suas funções. Olhando os móveis limpos, seu coração se apertava um pouco em espanto. Mas na sua vida não havia lugar para que sentisse ternura pelo seu espanto — ela o abafava com a mesma 18 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil habilidade que as lides em casa lhe haviam transmitido. Saía então para fazer compras ou levar objetos para consertar, cuidando do lar e da família à revelia deles. Quando voltasse era o fim da tarde e as crianças vindas do colégio exigiam-na. Assim chegaria a noite, com sua tranqüila vibração. De manhã acordaria aureolada pelos calmos deveres. Encontrava os móveis de novo empoeirados e sujos, como se voltassem arrependidos. Quanto a ela mesma, fazia obscuramente parte das raízes negras e suaves do mundo. E alimentava anonimamente a vida. Estava bom assim. Assim ela o quisera e escolhera. O bonde vacilava nos trilhos, entrava em ruas largas. Logo um vento mais úmido soprava anunciando, mais que o fim da tarde, o fim da hora instável. Ana respirou profundamente e uma grande aceitação deu a seu rosto um ar de mulher. O bonde se arrastava, em seguida estacava. Até Humaitá tinha tempo de descansar. Foi então que olhou para o homem parado no ponto. O ritmo da narrativa acompanha as tardes modorrentas e quase instáveis, mas passava rapidamente, assim sentia a protagonista. Os móveis da casa são humanizados, voltam arrependidos, como se a desordem se instaurasse enquanto dormiam, ou durante o tempo perigoso. “A casa vazia sem precisar mais dela” era perigoso porque havia tempo de se olhar, de se perceber, de ser sujeito com desejos próprios, não existir como ser funcional, organizado e fazendo parte de uma engrenagem. Depois da digressão que os leitorespuderam espiar pela fechadura a vida de Ana, voltamos a nos instalar no bonde, no qual ela tentava um conforto. E surge alguém, o inesperado, “o homem parado no ponto”. A diferença entre ele e os outros é que ele estava realmente parado. De pé, suas mãos se mantinham avançadas. Era um cego. O que havia mais que fizesse Ana se aprumar em desconfiança? Alguma coisa intranqüila estava sucedendo. Então ela viu: o cego mascava chicles... Um homem cego mascava chicles. Ana ainda teve tempo de pensar por um segundo que os irmãos viriam jantar — o coração batia-lhe violento, espaçado. Inclinada, olhava o cego profundamente, como se olha o que não nos vê. Ele mascava goma na escuridão. Sem sofrimento, com os olhos abertos. O movimento da mastigação fazia-o parecer sorrir e de repente deixar de sorrir, sorrir e deixar de sorrir — como se ele a tivesse insultado, Ana olhava-o. E quem a visse teria a impressão de uma mulher com ódio. Mas continuava a olhá-lo, cada vez mais inclinada — o bonde deu uma arrancada súbita jogando-a desprevenida para trás, o pesado saco de tricô despencou- se do colo, ruiu no chão — Ana deu um grito, o condutor deu ordem de parada antes de saber do que se tratava — o bonde estacou, os passageiros olharam assustados. Incapaz de se mover para apanhar suas compras, Ana se aprumava pálida. Uma expressão de rosto,há muito não usada, ressurgia-lhe com dificuldade, ainda incerta, incompreensível. O moleque dos jornais ria entregando-lhe o volume. Mas os ovos se haviam quebrado no embrulho de jornal. Gemas amarelas e viscosas pingavam entre os fios da rede. O cego interrompera a mastigação e avançava as mãos inseguras, tentando inutilmente pegar o que acontecia. O embrulho dos ovos foi jogado fora da rede e, entre os sorrisos dos passageiros e o sinal do condutor, o bonde deu a nova arrancada de partida. Poucos instantes depois já não a olhavam mais. O bonde se sacudia nos trilhos e o cego mascando goma ficara atrás para sempre. Mas o mal estava feito. 19 A rede de tricô era áspera entre os dedos, não íntima como quando a tricotara. A rede perdera o sentido e estar num bonde era um fio partido; não sabia o que fazer com as compras no colo. E como uma estranha música, o mundo recomeçava ao redor. O mal estava feito. Por quê? Teria esquecido de que havia cegos? A piedade a sufocava, Ana respirava pesadamente. Mesmo as coisas que existiam antes do acontecimento estavam agora de sobreaviso, tinham um ar mais hostil, perecível... O mundo se tornara de novo um mal-estar. Vários anos ruíam, as gemas amarelas escorriam. Expulsa de seus próprios dias, parecia-lhe que as pessoas da rua eram periclitantes, que se mantinham por um mínimo equilíbrio à tona da escuridão — e por um momento a falta de sentido deixava-as tão livres que elas não sabiam para onde ir. Perceber uma ausência de lei foi tão súbito que Ana se agarrou ao banco da frente, como se pudesse cair do bonde, como se as coisas pudessem ser revertidas com a mesma calma com que não o eram. O homem parado no ponto, um cego mascando chicles desencadeou em Ana uma epifania, ou seja, um instante de lucidez, é revelador, a personagem se percebe no objeto, nesse caso, no outro, no cego que mascava chicles. Epifania- ler em E-dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia. Disponível em: https://goo.gl/yjYYkR Ana se desarticula-se, põe em cheque toda sua existência por essa experiência. O que causou a estranheza não foi o homem em si, mas o encontro com o inesperado. No seu mundo organizado, não cabia aquela imagem: ele estava realmente parado: “um homem cego mascava chicles”, deixou-a desprevenida. “A rede perdera o sentido”: rede é um lugar seguro, uma proteção, se perde o sentido, então não está mais em segurança e o fato de estar num lugar seguro, o bonde não resolvia a questão, “era um fio partido”. Nunca mais seria a mesma, a experiência, que não é racional, não é possível expressá-la com palavras. Ana percebeu a falta de sentido da existência, ou de uma vida que imaginava em ordem. O narrador aprofundará o olhar para Ana, mostrará as paixões que a dominam, sua inquietação, sua experiência de amor, como o título nos revela. O que chamava de crise viera afinal. E sua marca era o prazer intenso com que olhava agora as coisas, sofrendo espantada. O calor se tornara mais abafado, tudo tinha ganho uma força e vozes mais altas. Na Rua Voluntários da Pátria parecia prestes a rebentar uma revolução, as grades dos esgotos estavam secas, o ar empoeirado. Um cego mascando chicles mergulhara o mundo em escura sofreguidão. Em cada pessoa forte havia a ausência de piedade pelo cego e as pessoas assustavam-na com o vigor que possuíam. Junto dela havia uma senhora de azul, com um rosto. Desviou o olhar, depressa. Na calçada, uma mulher deu um empurrão no filho! Dois namorados entrelaçavam os dedos sorrindo... E o cego? Ana caíra numa bondade extremamente dolorosa. Ela apaziguara tão bem a vida, cuidara tanto para que esta não explodisse. Mantinha tudo em serena compreensão, separava uma pessoa das outras, as roupas eram claramente feitas para serem usadas e podia-se escolher pelo jornal o filme da noite - tudo feito de modo 20 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil a que um dia se seguisse ao outro. E um cego mascando goma despedaçava tudo isso. E através da piedade aparecia a Ana uma vida cheia de náusea doce, até a boca. Só então percebeu que há muito passara do seu ponto de descida. Na fraqueza em que estava, tudo a atingia com um susto; desceu do bonde com pernas débeis, olhou em torno de si, segurando a rede suja de ovo. Por um momento não conseguia orientar-se. Parecia ter saltado no meio da noite. Ana passou por uma experiência, como se estivesse vendo a vida pela primeira vez, nem percebeu que o ponto que deveria descer já passara, transformara-se, era outra pessoa, mas só intimamente, assim mesmo nem conseguiria falar disso. Quando reconhece o lugar que estava, sabe que está no Jardim Botânico, um lugar conhecido. Agora ela consegue enxergar cada detalhe, estava à flor da pele. O relato é magnificamente expresso. Clarice Lispector traduz em palavras a epifania da personagem, uma experiência única. Nesse conto, como em tantos outros textos seus, Clarice Lispector mantém-se fiel à sua poética, ao contar histórias abarcando “o louco interior, uma realidade mais delicada e mais difícil, menos visível a olho nu”. Após essa breve análise e apresentação de Clarice Lispector, vale a pena ler esse conto na íntegra, para que como leitor mais preparado, você possa produzir novos sentidos ao texto e fruir a estética de uma das maiores escritoras brasileiras. Era uma rua comprida, com muros altos, amarelos. Seu coração batia de medo, ela procurava inutilmente reconhecer os arredores, enquanto a vida que descobrira continuava a pulsar e um vento mais morno e mais misterioso rodeava-lhe o rosto. Ficou parada olhando o muro. Enfim pôde localizar-se. Andando um pouco mais ao longo de uma sebe, atravessou os portões do Jardim Botânico. Andava pesadamente pela alameda central, entre os coqueiros. Não havia ninguém no Jardim. Depositou os embrulhos na terra, sentou-se no banco de um atalho e ali ficou muito tempo. A vastidão parecia acalmá-la, o silêncio regulava sua respiração. Ela adormecia dentro de si. De longe via a aléia onde a tarde era clara e redonda. Mas a penumbra dos ramos cobria o atalho. Ao seu redor havia ruídos serenos, cheiro de árvores, pequenas surpresas entre os cipós. Todo o Jardim triturado pelos instantes já mais apressados da tarde. De onde vinha o meio sonho pelo qual estava rodeada? Como por um zunido de abelhas e aves. Tudo era estranho, suave demais, grande demais. Um movimento leve e íntimo a sobressaltou — voltou-se rápida. Nada parecia se ter movido. Mas na aléia central estava imóvel um poderoso gato. Seus pêlos eram macios. Em novo andar silencioso,desapareceu. Inquieta, olhou em torno. Os ramos se balançavam, as sombras vacilavam no chão. Um pardal ciscava na terra. E de repente, com mal-estar, pareceu-lhe ter caído numa emboscada. Fazia-se no Jardim um trabalho secreto do qual ela começava a se aperceber. Nas árvores as frutas eram pretas, doces como mel. Havia no chão caroços secos cheios de circunvoluções, como pequenos cérebros apodrecidos. O banco estava manchado de sucos roxos. Com suavidade intensa rumorejavam as águas. No tronco da árvore pregavam-se as luxuosas patas de uma aranha. A crueza do mundo era tranqüila. O assassinato era profundo. E a morte não era o que pensávamos. 21 Ao mesmo tempo que imaginário — era um mundo de se comer com os dentes, um mundo de volumosas dálias e tulipas. Os troncos eram percorridos por parasitas folhudas, o abraço era macio, colado. Como a repulsa que precedesse uma entrega — era fascinante, a mulher tinha nojo, e era fascinante. As árvores estavam carregadas, o mundo era tão rico que apodrecia. Quando Ana pensou que havia crianças e homens grandes com fome, a náusea subiu-lhe à garganta, como se ela estivesse grávida e abandonada. A moral do Jardim era outra. Agora que o cego a guiara até ele, estremecia nos primeiros passos de um mundo faiscante, sombrio, onde vitórias-régias boiavam monstruosas. As pequenas flores espalhadas na relva não lhe pareciam amarelas ou rosadas, mas cor de mau ouro e escarlates. A decomposição era profunda, perfumada... Mas todas as pesadas coisas, ela via com a cabeça rodeada por um enxame de insetos enviados pela vida mais fina do mundo. A brisa se insinuava entre as flores. Ana mais adivinhava que sentia o seu cheiro adocicado... O Jardim era tão bonito que ela teve medo do Inferno. Era quase noite agora e tudo parecia cheio, pesado, um esquilo voou na sombra. Sob os pés a terra estava fofa, Ana aspirava-a com delícia. Era fascinante, e ela sentia nojo. Mas quando se lembrou das crianças, diante das quais se tornara culpada, ergueu-se com uma exclamação de dor. Agarrou o embrulho, avançou pelo atalho obscuro, atingiu a alameda. Quase corria — e via o Jardim em torno de si, com sua impersonalidade soberba. Sacudiu os portões fechados, sacudia-os segurando a madeira áspera. O vigia apareceu espantado de não a ter visto. Enquanto não chegou à porta do edifício, parecia à beira de um desastre. Correu com a rede até o elevador, sua alma batia-lhe no peito — o que sucedia? A piedade pelo cego era tão violenta como uma ânsia, mas o mundo lhe parecia seu, sujo, perecível, seu. Abriu a porta de casa. A sala era grande, quadrada, as maçanetas brilhavam limpas, os vidros da janela brilhavam, a lâmpada brilhava — que nova terra era essa? E por um instante a vida sadia que levara até agora pareceu-lhe um modo moralmente louco de viver. O menino que se aproximou correndo era um ser de pernas compridas e rosto igual ao seu, que corria e a abraçava. Apertou-o com força, com espanto. Protegia-se trêmula. Porque a vida era periclitante. Ela amava o mundo, amava o que fora criado — amava com nojo. Do mesmo modo como sempre fora fascinada pelas ostras, com aquele vago sentimento de asco que a aproximação da verdade lhe provocava, avisando-a. Abraçou o filho, quase a ponto de machucá-lo. Como se soubesse de um mal — o cego ou o belo Jardim Botânico? — agarrava-se a ele, a quem queria acima de tudo. Fora atingida pelo demônio da fé. A vida é horrível, disse-lhe baixo, faminta. O que faria se seguisse o chamado do cego? Iria sozinha... Havia lugares pobres e ricos que precisavam dela. Ela precisava deles... Tenho medo, disse. Sentia as costelas delicadas da criança entre os braços, ouviu o seu choro assustado. Mamãe, chamou o menino. Afastou-o, olhou aquele rosto, seu coração crispou-se. Não deixe mamãe te esquecer, disse-lhe. A criança mal sentiu o abraço se afrouxar, escapou e correu até a porta do quarto, de onde olhou-a mais segura. Era o pior olhar que jamais recebera. Q sangue subiu-lhe ao rosto, esquentando-o. Deixou-se cair numa cadeira com os dedos ainda presos na rede. De que tinha vergonha? Não havia como fugir. Os dias que ela forjara haviam-se rompido na crosta e a água escapava. Estava diante da ostra. E não havia como não olhá-la. De que tinha vergonha? É que já não era mais piedade, não era só piedade: seu coração se enchera com a pior vontade de viver. Já não sabia se estava do lado do cego ou das espessas plantas. O homem pouco a pouco se distanciara e em tortura ela parecia ter passado para o lados que lhe haviam ferido os 22 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil olhos. O Jardim Botânico, tranqüilo e alto, lhe revelava. Com horror descobria que pertencia à parte forte do mundo — e que nome se deveria dar a sua misericórdia violenta? Seria obrigada a beijar um leproso, pois nunca seria apenas sua irmã. Um cego me levou ao pior de mim mesma, pensou espantada. Sentia-se banida porque nenhum pobre beberia água nas suas mãos ardentes. Ah! era mais fácil ser um santo que uma pessoa! Por Deus, pois não fora verdadeira a piedade que sondara no seu coração as águas mais profundas? Mas era uma piedade de leão. Humilhada, sabia que o cego preferiria um amor mais pobre. E, estremecendo, também sabia por quê. A vida do Jardim Botânico chamava-a como um lobisomem é chamado pelo luar. Oh! mas ela amava o cego! pensou com os olhos molhados. No entanto não era com este sentimento que se iria a uma igreja. Estou com medo, disse sozinha na sala. Levantou- se e foi para a cozinha ajudar a empregada a preparar o jantar. Mas a vida arrepiava-a, como um frio. Ouvia o sino da escola, longe e constante. O pequeno horror da poeira ligando em fios a parte inferior do fogão, onde descobriu a pequena aranha. Carregando a jarra para mudar a água - havia o horror da flor se entregando lânguida e asquerosa às suas mãos. O mesmo trabalho secreto se fazia ali na cozinha. Perto da lata de lixo, esmagou com o pé a formiga. O pequeno assassinato da formiga. O mínimo corpo tremia. As gotas d’água caíam na água parada do tanque. Os besouros de verão. O horror dos besouros inexpressivos. Ao redor havia uma vida silenciosa, lenta, insistente. Horror, horror. Andava de um lado para outro na cozinha, cortando os bifes, mexendo o creme. Em torno da cabeça, em ronda, em torno da luz, os mosquitos de uma noite cálida. Uma noite em que a piedade era tão crua como o amor ruim. Entre os dois seios escorria o suor. A fé a quebrantava, o calor do forno ardia nos seus olhos. Depois o marido veio, vieram os irmãos e suas mulheres, vieram os filhos dos irmãos. Jantaram com as janelas todas abertas, no nono andar. Um avião estremecia, ameaçando no calor do céu. Apesar de ter usado poucos ovos, o jantar estava bom. Também suas crianças ficaram acordadas, brincando no tapete com as outras. Era verão, seria inútil obrigá-las a dormir. Ana estava um pouco pálida e ria suavemente com os outros. Depois do jantar, enfim, a primeira brisa mais fresca entrou pelas janelas. Eles rodeavam a mesa, a família. Cansados do dia, felizes em não discordar, tão dispostos a não ver defeitos. Riam-se de tudo, com o coração bom e humano. As crianças cresciam admiravelmente em torno deles. E como a uma borboleta, Ana prendeu o instante entre os dedos antes que ele nunca mais fosse seu. Depois, quando todos foram embora e as crianças já estavam deitadas, ela era uma mulher bruta que olhava pela janela. A cidade estava adormecida e quente. O que o cego desencadeara caberia nos seus dias? Quantos anos levaria até envelhecer de novo? Qualquer movimento seu e pisaria numa das crianças. Mas com uma maldade de amante, parecia aceitar que da flor saísse o mosquito, que as vitórias-régias boiassem no escuro do lago. O cego pendia entre os frutos do Jardim Botânico. Se fora um estouro do fogão, o fogo já teria pegado em toda a casa! pensou correndo para a cozinha e deparandocom o seu marido diante do café derramado. — O que foi?! gritou vibrando toda. Ele se assustou com o medo da mulher. E de repente riu entendendo: — Não foi nada, disse, sou um desajeitado. Ele parecia cansado, com olheiras. Mas diante do estranho rosto de Ana, espiou-a com maior atenção. Depois atraiu-a a si, em rápido afago. 23 — Não quero que lhe aconteça nada, nunca! disse ela. — Deixe que pelo menos me aconteça o fogão dar um estouro, respondeu ele sorrindo. Ela continuou sem força nos seus braços. Hoje de tarde alguma coisa tranqüila se rebentara, e na casa toda havia um tom humorístico, triste. É hora de dormir, disse ele, é tarde. Num gesto que não era seu, mas que pareceu natural, segurou a mão da mulher, levando-a consigo sem olhar para trás, afastando-a do perigo de viver. Acabara-se a vertigem de bondade. E, se atravessara o amor e o seu inferno, penteava-se agora diante do espelho, por um instante sem nenhum mundo no coração. Antes de se deitar, como se apagasse uma vela, soprou a pequena flama do dia. Considerações Finais Nessa unidade, participamos de uma conversa entre dois grandes escritores e intérpretes do Brasil: Carlos Drummond de Andrade e Mário de Andrade. Em uma de suas crônicas “Suas cartas”, Drummond estabelece um diálogo com o poeta mais velho. Estruturalmente, ele inova, colocando duas vozes, sendo que a voz de Mário de Andrade pertencia a ele mesmo, ou seja, a voz era a transcrição de cartas que este enviou a Drummond. O tema era a literatura e o fazer literário, o olhar para a língua portuguesa falada no Brasil, a valorização das diferenças. Ao contrário de alguns outros escritores que tentavam copiar ou criticar esse falar diferente de Portugal, considerando-o errado de acordo com os bons costumes ou a velha gramática. É importante perceber que focar o olhar para a língua, senti-la em sua concretude, passa a ser uma questão da modernidade. De uma forma peculiar, Clarice Lispector, se vê como estrangeira a cada novo texto. Mergulha na língua, percebe-a como pátria, e assim cria personagens sofisticados internamente, criando textos próximos à poesia, atenta ao fazer literário. O conto “Amor” descreve a epifania de uma dona de casa, Ana, quando sai para as compras, pega um bonde e vê - vê um cego mascando chicles. Seus temas são voltados para as revoluções internas mais do que para acontecimentos externos. É enriquecedor cada texto dessa autora, em que transparece uma humanidade e uma compreensão da humanidade que vale a pena conferir. 24 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Material Complementar Para complementar seu conhecimento sobre o assunto, além da insistência para que leia as obras na íntegra. Ressalto a importância de conhecer o material disponibilizado sobre os autores no site do Instituto Moreira Salles (IMS), há vários vídeos e o longa-metragem Vida e verso de Carlos Drummond de Andrade, produzido pelo IMS, com roteiro e direção de Eucanaã Ferraz e fotografia de Walter Carvalho. Disponível em: https://goo.gl/iMaUKb https://goo.gl/L4EEkk E sobre Clarice Lispector: https://goo.gl/Tfi63Y Ressalto uma aula de José Miguel Wisnik, gravada no site acima, uma entrevista para a TV Cultura, “Panorama com Clarice”, sua última entrevista para Júlio Lerner, pouco antes de morrer, o especial traz ainda depoimentos de admiradores de Clarice Lispector. https://youtu.be/ohHP1l2EVnU E o filme A Hora da estrela, de Suzana Amaral. 25 Referências ANDRADE, Carlos Drummond de. Confissões de Minas. São Paulo: Cosac Naify, 2011. BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 47. ed. São Paulo: Cultrix, 2006. Cadernos de Literatura Brasileira - Clarice Lispector (São Paulo: IMS, 2004) GOTLIB, Nádia Battella. Clarice - uma vida que se conta. São Paulo: Ática, 1995 LISPECTOR, Clarice. “Amor” in: Laços de Família, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. LISPECTOR, Clarice. A Descoberta do mundo. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. LISPECTOR, Clarice. Para não esquecer. São Paulo: Círculo do Livro, 1980. MOSER, Benjamin. Clarice,. São Paulo: Cosac Naify, 2009 SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. Petrópolis/ Lorena: Vozes/ Faculdade Integradas Teresa D`Ávila, 1979. SANTIAGO, Silviano. “Mário, Oswald e Carlos, intérpretes do Brasil”, disponível em: http:// www.projetomemoria.art.br/drummond/obra/downloads/SANTIAGO%20-%20Mario,%20 Oswald%20e%20Carlos.pdf SOUSA, Carlos Mendes de. Figuras da Escrita. São Paulo: IMS, 2012. Referências Bibliográficas (disponível para consulta) E-Dicionário de Termos Literários, Carlos Ceia: http://www.edtl.com.pt. Página de Carlos Drummond de Andrade: http://drummond.memoriaviva.com.br Projeto memória: http://www.projetomemoria.art.br/ http://www.projetomemoria.art.br/drummond/ obra/prosa_ensaios-e-cronicas.jsp Site do Instituto Moreira Sales - http://claricelispectorims.com.br/Facts 26 Unidade: Modernismo no Brasil depois de 1940 - Intérpretes do Brasil Anotações www.cruzeirodosulvirtual.com.br Campus Liberdade Rua Galvão Bueno, 868 CEP 01506-000 São Paulo SP Brasil Tel: (55 11) 3385-3000 www.cruzeirodosulvirtual.com.br Rua Galvão Bueno, 868 Tel: (55 11) 3385-3000
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