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1 UNIVERSIDADE ESTÁCIO DE SÁ – DEPARTAMENTO DE PÓS-GRADUAÇÃO EM NEUROEDUCAÇÃO A RELAÇÃO DA FUNÇÃO EXECUTIVA COM A APRENDIZAGEM Rio de Janeiro 2015 2 A RELAÇÃO DA FUNÇÃO EXECUTIVA COM A APRENDIZAGEM Trabalho de Conclusão de curso apresentado como requisito para aprovação no curso de pós-graduação em Educação, da Estácio de Sá, sob orientação da Professora Raquel Batista. RIO DE JANEIRO – RJ 2015 3 Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à Universidade Estácio de Sá, como requisito para a obtenção do grau de Especialista em Neuroeducação Aprovado em, _____ de ______________ de 2015. Examinador Profa. Raquel Batista NOTA FINAL ____________ 4 RESUMO As funções executivas são um conjunto de processos cognitivos que ajudam a regulação da cognição e do comportamento. Pessoas as usam para realizar atividades como planejamento, organização, estratégia, prestar atenção e lembrar- se de detalhes e também para a gestão do tempo e do espaço. São essas funções que fazem com que executemos uma série de tarefas simples de nossa rotina, bem como tarefas complexas que exijam solução de problemas escolares. A aprendizagem pode ser entendida como um processo de aquisição de novas informações provenientes do meio, englobando sua recepção, processamento e consolidação, bem como a recuperação dessa informação e aplicação em momentos apropriados. As funções executivas são as responsáveis por organizar tais funções, permitindo traçar, realizar, monitorar e modificar objetivos voltados para uma meta. Para ter uma compreensão mais ampla a respeito da relação e da dessas funções com a aprendizagem é fundamental é necessário desmembrá-las em aspectos mais básicos, incluindo memória de trabalho, atenção seletiva, controle inibitório, flexibilidade e planejamento. O presente trabalho constitui-se em um levantamento bibliográfico do tema função executiva e suas implicações na aprendizagem. Palavras-chave: funções executivas, autorregulação, metacognição. 5 SUMÁRIO 1.1. MEMÓRIA OPERACIONAL OU MEMÓRIA DE TRABALHO ......................... 12 1.2. ATENÇÃO SELETIVA.................................................................................... 17 1.3. CONTROLE INIBITÓRIO ............................................................................... 19 1.4. FLEXIBILIDADE COGNITIVA ........................................................................ 20 1.5. PLANEJAMENTO .......................................................................................... 21 1.6. MONITORAMENTO ....................................................................................... 22 2. O CONCEITO DE AUTORREGULAÇÃO ............................................................ 23 2.1. AUTORREGULAÇÃO DA APRENDIZAGEM .................................................. 26 3. METACOGNIÇÃO ................................................................................................ 27 4. DESENVOLVIMENTO DE HABILIDADES EXECUTIVAS .................................... 30 5. AS FUNÇÕES EXECUTIVAS E SUAS ALTERAÇÕES ........................................ 32 6. AS FUNÇÕES EXECUTIVAS E O CONTEXTO ESCOLAR.......................................................................... 7. DISCUSSÃO ....................................................................................................... 40 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS . ....................................................................... 46 6 Agradecimentos 7 “O que você sabe não tem valor algum. O valor está em o que você faz com aquilo que sabe.” Provérbio Chinês 8 1. ASPECTOS DAS FUNÇÕES EXECUTIVAS As funções executivas podem ser entendidas como um sistema de gerenciamento dos recursos cognitivo emocionais cuja tarefa seria a resolução de problemas (Funahashi, 2001; Stuss, 1992). Esse sistema está diretamente associado à motivação, visto que é essencial para identificação de metas e para o planejamento de ações para alcançar tais objetivos. São essas funções que fazem com que executemos uma série de tarefas simples de nossa rotina, bem como tarefas complexas que exijam soluções de problemas acadêmicos. São mecanismos utilizados pelo cérebro humano para “orquestrar” o funcionamento de diversas atividades mentais otimizando seu desempenho. Imaginemos um exemplo do dia a dia (Cosenza e Guerra, 2011), em que essas funções são mobilizadas e suportam a execução de um comportamento complexo: uma mulher que trabalha fora de casa e tem filhos em idade escolar planeja oferecer um jantar a um casal de amigos. Ela decide, então, que sairá do local de trabalho mais cedo, passará no banco para retirar o dinheiro para os gastos previstos, irá ao supermercado fazer as compras necessárias, em seguida buscará os filhos na escola e então irá para casa, onde começará a preparar a refeição. Temos aqui uma estratégia comportamental global, com subtarefas que devem ser distribuídas no tempo e na forma. Suponha que ela fique retida um pouco mais no local de trabalho e, ao sair, encontre um tráfego intenso. Isso, provavelmente, vai exigir uma flexibilização de suas ações. Talvez deixe de ir ao banco e utilizar o cartão de crédito. Talvez abreviar a ida ao supermercado para não perder a hora da saída na escola ou inverter a ordem dessas ações. Mudar a rota, para evitar o trânsito, pode ser uma alternativa. Ultrapassar alguns semáforos com sinal vermelho ou trafegar em cima do passeio são comportamentos que poderiam abreviar o tempo do percurso, mas são inadequadas e devem ser inibidos. Imaginemos que, no supermercado, um ingrediente errado para o cardápio planejado seja colocado no carrinho de compras. Se ela estiver monitorando adequadamente suas ações, vai detectar o erro e providenciar a sua correção. Todos esses processos mentais deverão estar atuando até que o projeto seja cumprido; no caso, o jantar servido. 9 Como foi visto no exemplo acima, as funções executivas estão presentes no nosso cotidiano, em decisões e tarefas corriqueiras, e também nos planejamentos de longo prazo, como decidir a carreira pessoal, a viagem das férias do próximo ano ou o que fazer depois da aposentadoria. As pessoas são normalmente capazes de projetar, executar e monitorar seu comportamento até atingir um objetivo que tenham em mente. Estas habilidades de alta ordem estão diretamente relacionadas ao córtex pré-frontal (Gazzaniga et al, 2006). Essa região expandiu-se progressivamente ao longo da evolução animal e na espécie humana está muito desenvolvida em relação ao que encontramos no cérebro de outros mamíferos. Goldberg (2002) enfatiza que nenhuma outra perda pode ser tão comprometedora para o comportamento humano quanto a das funções executivas. Segundo o autor, déficits executivos podem estar relacionados a diferentes condições, como alguns transtornos psiquiátricos, demências, lesões traumáticas, entre outros. Figura 1: Fonte: http://tecnocientista.info/hype.asp?cod=6292 Os primeiros estudos da neurologia continham descrições elaboradas das funções desempenhadas por várias partes do cérebro, contudo, pouco se conhecia acerca da fisiologia dos lobos frontais. Muito tempo se passou até que os neurocientistas pudessem atentar para importância dos lobos frontais para cognição. O cérebro é formado por componentes distintos que desempenham diferentes funções, contudo, os lobos frontais não são dotados da especifidade de apresentar uma função única, prontamenteclassificável. Assim, por muito tempo, foram considerados “lobos silenciosos” (Goldberg, 2002). Mas, em 1948, o acidente com o jovem Phineas Gage, que teve o crânio atravessado por uma barra de ferro em uma explosão da qual sobreviveu, permanecendo lúcido nas horas que se seguiram do 10 acidente, trouxe voz aos lobos silenciosos. Embora a barra de ferro tenha atravessado e destruído a parte anterior do cérebro, o jovem Gage podia tocar, ouvir, sentir, falar e movimentar seus músculos; entretanto sua personalidade havia se modificado drasticamente. Ele passou a ser incapaz de se adaptar às normas, e nunca mais foi o mesmo (Damásio, 1996). Figura 2: Fonte: https://bngpsych.wordpress.com/2011/11/18/are-case-studies-a-practical-psychological- research-method/ Indivíduos com lesões pré-frontais podem apresentar uma significativa mudança em seu comportamento demonstrando dificuldade em se engajar em tarefas direcionadas a algum objetivo (Bechara & Van der Linden, 2005; Cicerone, 2002; Mc Dowell, Whyte, & Desposito, 1997; Sweeney , Kersel, Morris, Manly e Evans, 2010). Essa série de problemas que caracterizam as chamadas “disfunções executivas”, que incluem problemas de planejamento, organização, motivação, resolução de problemas e tomada de decisão (Baddeley, DellaSala, Papagno & Spinnler, 1997; Funahashi, 2001). Alguns, embora apresentem um nível de inteligência inalterado, podem se tornar apáticos e serem incapazes de tomar decisões necessárias no dia a dia, ou as tomam de uma forma desastrada, que não leva em conta prioridades, consequências ou riscos envolvidos, além de não conseguir perceber e avaliar os próprios erros. Outros podem ser impulsivos, incapazes de inibir comportamentos inadequados ou de flexibilizar sua conduta, mesmo constatando que suas ações não levam ao objetivo determinado. Podem ter uma tendência a preservar, ou insistir em ações já em andamento, mesmo que elas 11 se mostrem ineficientes, ou podem deixar de avaliar as consequências de suas ações no futuro e comportar-se de forma inadequada e antissocial. Atualmente há na literatura relativo consenso de que estas habilidades constituem um construto multidimensional. Ou seja, os processos componentes das funções executivas caracterizam operações distintas, ainda relacionadas (Miyake, Friedman, Emerson, Witzki & Howerter, 2000). Essa visão multifacetada é corroborada por pesquisas realizadas com baterias de avaliação neuropsicológica e técnicas de neuroimagem, as quais têm sugerido evidências da existência de diferentes aspectos relacionados ao córtex pré-frontal e às funções executivas (Dias, 2009; Elliot, 2003; Huizinga et al, 2006; Menezes, 2008; Miyake et al, 2000). Araújo (2004) relata, por exemplo, que lesões em diferentes partes dos lobos frontais produzem síndromes clinicamente diferentes, o que corrobora a ideia de diversidades funcional e complexidade da região. Hoje, admite-se que existem pelo menos três circuitos neuronais distintos em diferentes regiões do córtex pré-frontal, que coordenam capacidades cognitivas diferentes. A primeira região, chamada dorsolateral por sua localização na parte externa do cérebro, está relacionada com o planejamento do comportamento e a flexibilização das ações em andamento, além de estar envolvida no funcionamento da memória de trabalho. A segunda situa-se na superfície medial do cérebro e inclui a porção mais anterior do chamado giro do cíngulo1. Ela parece se encarregar das atividades de automonitoramento e da correção de erros e está envolvida também com o fenômeno da atenção. Finalmente, a terceira região situa-se na porção inferior do cérebro e é conhecida como área orbitofrontal, porque está situada logo acima da órbita. Ela se encarrega da avaliação dos riscos envolvidos em determinadas ações e pode inibir respostas inapropriadas. Portanto, segundo Cosenza e Guerra (2011), a região pré-frontal não é homogênea e tem uma grande quantidade de conexões com outras regiões corticais e subcorticais, por meio de circuitos que podem ser independentes, mas que funcionam de forma interativa 2. O córtex pré-frontal tem uma função de 1 O giro do cíngulo tem características estruturais diferentes das regiões corticais pré-frontais e tem também uma origem mais antiga na evolução. Contudo, sua porção anterior parece integrar-se funcionalmente com as demais regiões do córtex pré-frontal. 2 A região pré-frontal é uma área terciária do córtex cerebral, ocupando o topo da hierarquia funcional da unidade executora cortical. 12 coordenação, e para isso necessita receber informações de outras áreas cerebrais e repassá-las, por sua vez, a muitas outras regiões. Para que um comportamento dirigido a um objetivo seja eficiente, essa região precisa integrar e distribuir temporalmente diferentes capacidades de percepção, ação e cognição. Corroborando tal visão, considera-se que as funções executivas envolvam diferentes processamentos cognitivos e metacognitivos, cuja atuação integrada possibilita o engajamento do indivíduo em comportamentos complexos e direcionados a metas. Pondera-se que estas funções não caracterizam um construto unitário, mas englobam uma série de habilidades que atuam em consonância às exigências e demandas ambientais, como a atenção seletiva, integração e manipulação das informações relevantes na memória de trabalho, controle de impulsos, planejamento, intenção, efetivação das ações, flexibilidade cognitiva e comportamental, e monitoramento das atitudes (Duncan, Johnson, Swales & Frees, 1997; Fuster, 1997; Gazzaniga et al, 2006; Lezak et al, 2004; Pliszka, 2004; Sternberg, 2008). De forma conjunta, esses processos cognitivos permitem a um indivíduo iniciar, planejar, sequenciar e monitorar seus comportamentos e cognições (Gazzaniga et al, 2006; Pliszka, 2004). Todos esses processos serão abordados nos tópicos a seguir. 1.1. MEMÓRIA OPERACIONAL OU MEMÓRIA DE TRABALHO A memória é definida como a capacidade de fixar, conservar e reproduzir, sob a forma de lembranças, as impressões e sensações obtidas e vividas anteriormente pelo indivíduo. É por meio da memória que o ser humano poderá relacionar-se com o meio em que convive, evocando, sempre que necessário, as impressões e sensações já vivenciadas (Baddeley, 2003, p. 190; Izquierdo, 2002, p. 15). O termo memória também é designado como aquisição, armazenamento e evocação de informações, sendo que a aquisição é considerada aprendizagem. A memória envolve uma complexa função do sistema nervoso, variando do armazenamento de minutos ou poucas horas até a duração por dias e anos (Izquierdo, Vianna, Cammaarota, 2003, p.99). 13 A impressão inicial quando pensamos na memória é a de que se trata de um fenômeno unitário, porém, existem vários tipos de memória que comportam subdivisões, das quais se encarregam sistemas e estruturas cerebrais diferentes. Se considerarmos memória como sendo o armazenamento de informações, podemos classificar a memória levando em conta a sua duração. Por essa classificação, existiria uma memória de curto prazo, encarregada de armazenar acontecimentos recentes, e uma memória de longo prazo, responsável pelo registro de nossas lembranças permanentes. Porém, com os avanços das pesquisas no campo da psicologia cognitiva e das neurociências, hoje é possível traçar um quadro bem mais complexo, resultando no aparecimento de outras classificações que explicam melhor o funcionamento da nossa memória. É importante diferenciar os conhecimentos adquiridos, lembrados e utilizados conscientemente, chamados de memória explícita, como por exemplo, lembrar o nosso endereço. E outros, em que a memória se manifesta sem esforço ou intenção consciente, sem que tenhamos consciência que estamosnos lembrando de algo, chamados de memória implícita, como por exemplo, escovar os dentes. Em relação à memória explícita, pode-se distinguir uma forma de armazenar que é transitória, e uma outra que é permanente. Daremos ênfase ao estudo da memória transitória, já que é muito importante para a regulação cotidiana do nosso comportamento e atualmente é chamada de memória operacional ou memória de trabalho. O conceito de memória de trabalho, talvez seja um dos tópicos que mais provoca confusão e divergências na neurociência em geral, e na neuropsicologia em particular. Um ponto consensual é que memória de trabalho é um sistema de memória ultrarrápida (dura poucos segundos), que tem a capacidade de reter uma sequencia de 5 a 9 dígitos – o suficiente para gravarmos o número de telefone até efetuarmos a discagem, armazenando as informações somente enquanto a tarefa está sendo realizada e esquecendo o número logo em seguida. A memória de trabalho é uma das memórias que recebe grande ênfase na aprendizagem, pois ela, além de manipular informações novas advindas das vias sensoriais, faz a ligação com a memória de longo prazo, ou seja, com o conhecimento já armazenado. É um componente da função executiva que armazena e retém temporariamente a informação enquanto uma determinada tarefa está 14 sendo realizada, assim, esta memória dá suporte às atividades cognitivas como, por exemplo, a leitura. A memória de trabalho se dá por meio de um fenômeno elétrico, onde determinadas coletividades de neurônios permanecem disparando potenciais de ação durante alguns segundos, retendo temporariamente a informação, somente durante o tempo em que a mesma é necessária, extinguindo-a logo em seguida (Goldman-Rakic, 1995). Esse tipo de fenômeno tem duração extremamente efêmera (segundos) e não forma traços bioquímicos. De acordo com Baddeley (1986), a memória de trabalho é composta por quatro componentes: executivo central, a alça fonoarticulatória, o esboço visuo- espacial e o buffer episódico. O executivo central desempenha funções como: a) atenção seletiva –que corresponde à habilidade de focar a atenção em uma informação relevante e inibir outras informações distratoras; b) flexibilidade mental – que é a capacidade de coordenar múltiplas atividades cognitivas simultaneamente; c) ajuda a selecionar e executar planos e estratégias; d) capacidade de evocar informações armazenadas na memória de longo prazo. Resumidamente, o executivo central faz a interação/ligação entre a informação que está sendo processada e a que está na memória de longo prazo e, também, vai controlar a alça fonológica e o esboço visuo- espacial. Para se tornar consciente, a informação relevante tem que ultrapassar o filtro da atenção. A primeira impressão em nossa consciência se faz pela memória sensorial ou imediata. Se a informação for considerada relevante, poderá ser mantida; do contrário, será descartada. Identificada a relevância, a informação será mantida na consciência por um tempo maior, por meio de um sistema de repetição, que pode ser feito por recursos verbais ou por meio da imaginação visual, chamado metaforicamente pelos especialistas de “alça fonológica”. A alça fonológica armazena determinada quantidade de sons por um período curto de tempo. Quando precisamos manter uma sequência de números repetimos constantemente para nós mesmos esta informação pelo tempo que desejamos para que a informação não se perca. Este componente parece contribuir para os processos linguísticos como no desenvolvimento do processo de decodificação e na aprendizagem de novas palavras. 15 O esboço viso espacial (visuospatial sketchpad), armazena informações visuais, espaciais e provavelmente sinestésicas (relacionadas a percepção do movimento). O esboço viso espacial tem uma limitada capacidade de ar- mazenamento, que se restringe tipicamente a três ou quatro objetos. Parece ser importante também para a compreensão de sistemas complexos – tais como máquinas, bem como para a orientação espacial e o conhecimento geográfico. Algumas pesquisas demonstram que esse componente pode estar envolvido em tarefas de leitura diária - isto é, na manutenção de uma representação da página e seu layout - o que facilita tarefas como o mover os olhos com precisão a partir do final de uma linha para o início da próxima (Baddeley, 2000). Outro componente da memória de trabalho proposto por Baddeley é o buffer episódico, que é um sistema de armazenamento de capacidade limitada, sendo responsável pela integração de informações, tanto dos componentes visual e verbal quanto da memória de longo prazo, em uma representação episódica única. Nesse sentido, parece que o buffer é fundamental também para a evocação das memórias de arquivo, já que durante esse processo os traços de memória são reunidos no buffer episódico, para em seguida serem organizados e editados no córtex pré- frontal, para finalmente as lembranças emergirem em nossa consciência. Parece ainda haver certa confusão conceitual entre alguns pesquisadores, que acabam por considerar a função executiva e a memória de trabalho como sinônimos. Tal confusão pode gerar problemas metodológicos, pois os testes simples de memória são insuficientes para avaliar a função executiva. Como em diferentes estágios da solução de um problema pode requerer diferentes tipos de informação, os lobos frontais precisam, de forma constante, tornar novas memórias disponíveis “online”, se desfazendo, ao mesmo tempo de memórias antigas, liberando, desta maneira, espaço para a utilização de novos dados. Assim, ao invés de memorizar um conjunto estático de informações (como nos testes de memória), o sujeito precisa ser capaz de atualizar rapidamente o conteúdo de sua memória de forma contínua. A memória de trabalho é extremamente importante para o desempenho de nossas rotinas diárias. Acredita-se que pacientes psiquiátricos, como os portadores de esquizofrenia, tenham aí boa parte de seus problemas. Uma central de operações desorganizada e que contenha itens estranhos ou desnecessários aos processos cognitivos do momento impedirá o cérebro de lidar com os problemas 16 imediatos e de interagir de maneira adequada com o ambiente. É fácil imaginar, por outro lado, como o bom funcionamento da memória operacional é fundamental nos processos de aprendizagem. Diversos autores, como Baddeley (2003) e Izquierdo (2002), afirmam que a memória e a aprendizagem são processos cognitivos intimamente relacionados. O estudo sobre o funcionamento da memória de curto prazo proporcionará parâmetros concretos para a compreensão da capacidade de armazenamento de informações, que é basicamente essencial para que o aprendizado seja concretizado (Damasceno et al., 2007) . O aprendizado e a memória são propriedades básicas do sistema nervoso. Izquierdo (1989) assegura que inexiste atividade nervosa que não inclua ou não seja afetada de alguma forma pelo aprendizado e pela memória. Segundo Capovilla e Capovilla (2000), a aprendizagem é quantificada experimentalmente como a probabilidade que um organismo tem de responder da mesma forma a um determinado estímulo quando esse é repetido. Dentre as habilidades cognitivas envolvidas no processo de aprendizagem e de alfabetização, a memória é citada como um fator essencial (Izquierdo, 2002, p. 8). Dentre os fatores importantes para o desenvolvimento da memória desde a infância está sua utilidade na educação. A falta de desenvolvimento desta habilidade pode prejudicar o aprendizado. As atividades cognitivas, como a aprendizagem formal de leitura e escrita, compreensão e raciocínio, são realizados com aporte da memória de trabalho. E neste processo de ensino-aprendizagem o uso da memória é solicitado constantemente (Squire e Kandel, 2003, p. 13). Além da importância na aprendizagem é necessário ressaltarque a memória de trabalho tem um importante papel na aquisição do vocabulário durante a infância, sendo fundamental para a aquisição da linguagem e para o desenvolvimento da fala das crianças (Santos e Siqueira, 2002, p. 48). Sabendo da importância e do funcionamento da memória de trabalho é importante que sejamos seletivos sobre a informação que devemos ou queremos processar. Com relação a crianças e jovens, é importante a supervisão dos pais e professores, tanto em casa como no ambiente escolar. Nos momentos adequados, é bom limitar os estímulos e privilegiar a informação que deve ser aprendida. É recomendável a existência de certa disciplina, com horas e locais dedicados ao estudo e em que os estímulos distraidores devem ser reduzidos. 17 Contudo, nada disso será suficiente se no quadro de avisos e na mesa da sala de operações não estiverem as informações que precisam ser processadas na aprendizagem. É bom não esquecer, mais uma vez, que o cérebro se dedica a aprender aquilo que ele percebe que como significante e, portanto, a melhor maneira de envolvê-lo é fazer com que o conhecimento novo esteja de acordo com suas expectativas e que tenham ligações com o que já é conhecido e tido como importante para o aprendiz. 1.2. ATENÇÃO SELETIVA Outra habilidade importante da função executiva é a atenção seletiva, que é fundamental ao funcionamento adaptativo e orientado a um propósito. Ela permite a seleção da informação relevante à execução de uma tarefa em um dado momento, enquanto possibilita ao indivíduo ignorar estímulos distratores e irrelevantes e, assim, processar ativamente uma quantidade limitada de informações dentre todas as disponíveis aos órgãos dos sentidos ou provenientes de outros processos cognitivos (Gazzaniga et al., 2006; Stenberg, 2008). Dessa forma, ao possibilitar a filtragem de informação relevante em um dado momento, a atenção permite o uso eficaz e criterioso dos limitados recursos mentais do indivíduo. Na ausência dessa capacidade de seleção, as informações absorvidas ocorreriam de forma acentuada e desorganizada, prejudicando o processamento subsequente da informação. Assim, conforme afirma Dalgalarrondo (2000), o processo atencional implica em abdicar determinados estímulos, a fim de lidar de modo eficaz com outros. É justamente este foco seletivo sobre determinado estímulo, em detrimento de outros disponíveis no ambiente, que possibilita ao indivíduo responder mais rápida e adequadamente aos estímulos relevantes (Sternberg, 2008). Os estudos dos mecanismos cerebrais envolvidos na atenção indicam a existência de dois sistemas ou circuitos diferentes que regulam os processos de atenção, o circuito orientador e o circuito executivo. O circuito orientador está localizado no córtex do lobo parietal e permite o desligamento do foco atencional de um determinado alvo e o seu deslocamento para outro ponto, bem como os ajustes finos para que os estímulos sejam mais bem percebidos. O outro circuito, chamado 18 de circuito executivo, permite que se mantenha a atenção de forma prolongada, ao mesmo tempo em que são inibidos os estímulos distratores. Seu centro mais importante localiza-se em uma área do córtex frontal: a porção mais anterior do giro do cíngulo. A função importante dessa atenção executiva, é que ela está relacionada aos mecanismos de autorregulação, ou seja, com a capacidade de modular o comportamento de acordo com as demandas cognitivas, emocionais e sociais de uma determinada situação. Dessa forma, a atenção executiva é importante para o bom funcionamento da aprendizagem consciente. Apesar de, usualmente, apenas a atenção seletiva ser apontada como habilidade participante dos processos executivos (Gazzaniga et al., 2006; Malloy- Diniz et al., 2008), e das definições do construto atenção se referirem de modo bastante específico à atenção seletiva (Dalgalarrondo, 2000; Gazzaniga et al., 2006; Sternberg, 2008). A atenção não é um construto unitário e caracteriza um fenômeno complexo que compreende diferentes aspectos, cujas principais delimitações entre si referem-se ao tipo de processamento envolvido, ou seja, tais aspectos referem-se à seletividade, sustentação, divisão de recursos e alternância (Lezak et al., 2004). A atenção seletiva é abarcada de modo inespecífico dentro do próprio construto geral de atenção, refere-se à capacidade de selecionar o estímulo relevante na presença de distratores e emitir respostas a este estímulo específico desconsiderando aqueles não relevantes. Este aspecto é comumente referido como concentração. A sustentação ou atenção sustentada alude à capacidade do indivíduo em manter, sustentar por um período prolongado de tempo a atenção seletiva sobre o estímulo, mantendo assim uma resposta consistente ao longo de uma atividade contínua. Esta habilidade é também muitas vezes designada como vigilância (Lezak et al., 2004). Por sua vez, a atenção dividida pressupõe uma divisão dos recursos atencionais em duas ou mais tarefas. Assim, pode ser compreendida como a capacidade de dividir a atenção entre vários estímulos ao mesmo tempo em duas ou mais tarefas independentes, coordenando e executando as tarefas simultâneas, i.e., a atenção dividida impõe o tratamento simultâneo de várias informações (Lezak et al., 2004; Sternberg, 2008). De fato, como seria esperado, o desempenho humano apresenta uma queda importante em tarefas duplas, que exigem atenção dividida; sobretudo, a realização concomitante de dois processos controlados geralmente reduz a rapidez e exatidão de execução; por outro lado a realização simultânea de 19 duas tarefas pode ser otimizada se ao menos uma delas envolver um processo automático (Sternberg, 2008). Por fim, a alternância ou atenção alternada refere-se à capacidade de substituir um estímulo alvo da atenção por outro, alternando o foco atencional entre duas ou mais tarefas, o que envolve o desengajamento e, após, o (re)engajamento do foco atencional (Lezak et al., 2004). Segundo Pinto (2006), esta é uma função complexa, pois depende também da memória de trabalho e do controle inibitório. Finalizando este tópico, sabe-se que as alterações cognitivas relacionadas a distúrbios da atenção podem gerar desorganização em diferentes atividades cotidianas (Kenny; Meltzer, 1991), ocasionando comprometimentos na seleção de informações e, muito frequentemente, dificuldades em ambientes formais, como a escola. 1.3. CONTROLE INIBITÓRIO Outra habilidade relatada na literatura e que pode ser compreendida como um mecanismo de filtragem complementar à atenção seletiva é o controle inibitório, que é a habilidade de pensar antes de agir, de postergar ou inibir a resposta baseada na capacidade de avaliar múltiplos fatores. Ao inibir estímulos irrelevantes à solução de um dado problema, a atuação deste mecanismo de inibição minimiza a demanda sobre o processamento de informação (Gazzaniga et al.,2006). No modelo sugerido por Miyake et al., o componente inibição compreende as habilidades de controle inibitório e atenção seletiva, pois permite inibir a atenção a distratores, estimulando a autodisciplina e o autocontrole sobre a atenção e as ações tendenciosas ou reativas. Conforme Sylman (2001), inúmeras tarefas do dia-a-dia exigem que o indivíduo possua a habilidade de inibir uma ação em andamento e possa, então, iniciar outra. A interrupção do comportamento em curso é uma ação extrema de controle, compondo o primeiro passo para a reordenação de metas ou para a adaptação a novos ambientes. Disto, pode-se compreender que, ao possibilitar a inibição de estímulos irrelevantes e de respostas a estes estímulos, assim como respostas não importantes ou desadaptativas, a habilidade de controle inibitório permite ao indivíduo responder apropriadamente a determinados estímulos, e lhe 20 prove o controlesobre sua ação e atenção face às contingências do meio (Davidson; Amso; Anderson; Diamond, 2006; Gil, 2002). Exemplificando, alterações relacionadas a esta habilidade muito frequentemente são associadas à impulsividade, como ocorre, por exemplo, no Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Os portadores de TDAH não possuem habilidade para inibir ações e pensamentos, resultando num comportamento impulsivo e desprovido de atenção (Simmonds; Pekar; Mostofsky, 2008). Ambos os processos estão envolvidos, por exemplo, em focar seletivamente uma conversa a ser ouvida entre vários outros estímulos concorrentes em um mesmo ambiente., os quais deverão ser desprezados, sugerindo, portanto, que ambos são processos distintos, mas sobretudo, complementares (Bear et al., 2002). Nigg (2001) concluiu que a capacidade de inibição pode caracterizar dois principais processos didaticamente distintos, ainda que funcionalmente integrados: a inibição motivacional e a inibição executiva. O primeiro refere-se à supressão de uma resposta ou comportamento frente à apresentação de um sinal de perigo ou punição, ou mesmo na presença de ansiedade ou medo, possivelmente refletindo o que o autor alude como uma interrupção límbica do programa motor em andamento. Já a inibição executiva é uma supressão controlada e deliberada de uma resposta comportamental ou cognição, consoante à realização de um objetivo. 1.4. FLEXIBILIDADE COGNITIVA A flexibilidade cognitiva é outra uma habilidade participante e fundamental ao funcionamento executivo. Pressupõe a capacidade de mudar ou alternar estratégias de ação ou pensamento, conforme a necessidade para a resolução de um problema, alternando o foco atencional entre duas ou mais tarefas consoante às demandas do ambiente (Gazzaniga et Al., 2006; Gil, 2002; Lezak Et Al., 2004; Malloy-Diniz et al., 2008). Gazzaniga e colaboradores (2006) denominam este processo de controle de tarefa. Para os autores, esta habilidade é requerida sempre que o indivíduo engaja- se em ações complexas e deve, portanto, considerar diversificadas informações, alternando o foco de processamento entre elas. Para Lezak e colaboradores (2004), a flexibilidade cognitiva é fundamental à capacidade de regular o próprio 21 comportamento e, assim, adaptá-lo às demandas ambientais. Para estes autores, alterações nesta habilidade podem incorrer em um padrão de rigidez cognitiva e comportamental, caracterizado primariamente pela dificuldade em mudar respostas ou o foco de processamento apropriadamente, com prejuízo à autorregulação do indivíduo, conhecido como perseveração. Este padrão de inflexibilidade, de modo geral, resulta em comportamentos repetitivos e não adaptativos. Dias (2006) cita como exemplo, o indivíduo que, apesar de feedback do meio de que seu comportamento é errado ou inadequado, continua a repeti-lo indiscriminadamente, perseverando no mesmo erro. O mesmo padrão também é observado no nível cognitivo; um exemplo é a percepção de imagens ambíguas, que permitem a representação de duas ou mais imagens diferentes. Indivíduos com lesões pré-frontais e problemas relacionados à inflexibilidade cognitiva encontram dificuldade em passar de uma representação para outra. Outro possível exemplo citado por Dias (2006) é a explicação de provérbios. Embora outras condições e dificuldades possam ter repercussões sobre o desempenho neste tipo de tarefa, como ocorre em casos de deficiência mental ou autismo, um padrão de inflexibilidade cognitiva também pode limitar a compreensão e explicação de provérbios, situação na qual o indivíduo fica limitado ao sentido concreto da frase, evidenciando sua incapacidade de abstração e acesso ao sentido figurado que a acompanha. Ou seja, é incapaz de regular e modular o foco de processamento e o comportamento e, deste modo, conformar este último às exigências e demandas do meio (Gil, 2002; Lezak et al., 2004). 1.5. PLANEJAMENTO A habilidade de planejar adequadamente uma sequência de ações vias à concretização final de um objetivo é importante a muitos comportamentos no dia-a- dia do indivíduo (Philips; Wynn; Mcpherson; Gilhooly, 2001). De fato, o planejamento caracteriza base imprescindível ao comportamento complexo e à solução de problemas. Dias (2006) cita alguns passos ou componentes que podem ser considerados à elaboração de um plano coerente de ação: (1) identificar o objetivo e desenvolver sub-objetivos, delimitando passos hierárquicos que conduzam até o alvo, (2) prever as consequências de suas escolhas e (3) determinar os passos 22 necessários para atingir os sub-objetivos (Gazzaniga et al., 2006). Durante todo este processo, faz-se também pertinente o monitoramento da consecução de passos vias ao objetivo. Deste modo, o planejamento é o componente cognitivo central a qualquer tarefa de resolução de problemas, sobretudo àquelas que envolvam soluções originais, novas ou não rotineiras (Krikorian; Bartok; Gay, 1994) e requeiram a identificação e a organização de uma série de ações e elementos vias à realização do objetivo (Lezak et al., 2004). Verifica-se que a habilidade de planejamento, diferentemente das outras habilidades executivas previamente descritas, caracteriza um processo complexo. Sua atuação depende, em certo grau, da ação integrada de outras funções. Por exemplo, em sua conceituação de funções executivas, Malloy-Diniz e colaboradores (2008) aludem que estas são solicitadas em situações nas quais são formulados planos de ação. Uma vez delimitada uma meta e elaborado um plano de ação adequado para alcançá-la, o indivíduo deve monitorar a realização de cada passo, corrigindo-o quando necessário; ao mesmo tempo, deve manter uma representação mental dos passos necessários à realização da tarefa e o foco atencional naquela que está realizando. Além, deve monitorar todos os sub-objetivos em curso, mudando ou alternando o foco entre eles de um modo coordenado. Lezak e colaboradores (2004) endossam ainda mais esta lista, argumentando que para adequado planejamento o indivíduo deve ainda ser capaz de conceituar e antecipar mudanças nas atuais circunstâncias, conceber alternativas, ou seja, deve ter flexibilidade cognitiva, deve ainda desenvolver uma estrutura conceitual que o oriente à direção almejada, o que pode impor forte demanda sobre a memória de trabalho. Além, capacidade de tomada de decisões, controle de impulsos, memória e atenção sustentada são fundamentais à elaboração e condução de qualquer plano. De fato, estes autores apontam que distúrbios em um ou mais destes processos podem comprometer o planejamento efetivo. Ou seja, a habilidade de planejamento pode ser considerada uma habilidade complexa, da qual participam outras funções, corroborando as ideais de Miyake e colaboradores (2000). 1.6. MONITORAMENTO 23 Apesar da atuação integrada e coordenada de todas as habilidades supramencionadas, o desempenho efetivo do comportamento complexo e direcionado a metas está ainda atrelado à capacidade do indivíduo em efetuar um auto monitoramento e, por conseguinte, regular e corrigir o curso de seu comportamento e cognição (Lezak et al., 2004). De fato, um sistema de monitoramento parece atuar no nível superior de uma hierarquia atencional, monitorando e coordenando o processamento da informação por meio de módulos especializados. Ou seja, durante o curso de uma ação via a um objetivo, o sistema de monitoramento poderia detectar uma situação geradora de conflito ou um erro; face à correção e regulação desse comportamento, o sistema poderia alocar recursos de processamento extras à tarefa em questão, sua atuação poderia assim modular a atividade de outras áreas corticais, facilitando ou inibindo seu engajamento em direção à resolução do conflito ou correção do erro. Tal atuação retrata uma rede de controle executivo (Gazzanigaet al., 2006). 2. O CONCEITO DE AUTORREGULAÇÃO Uma habilidade que vem sendo frequentemente associada e até mesmo confundida com as funções executivas é a autorregulação. Ambas são formadas por conceitos que se sobrepõem, sendo os componentes executivos, especialmente o controle inibitório, habilidades importantes para o estabelecimento da autorregulação. Pode-se observar uma similaridade e mesmo relativa sobreposição dos conceitos de autorregulação e de funções executivas. Blair e Diamond (2008) e Diamond, Barnett, Thomas e Munro (2007) reconhecem a sobreposição entre esses construtos. Apontam, porém, algumas especificidades entre os estudos de ambos. Para os autores, as pesquisas sobre o funcionamento executivo têm se detido quase que exclusivamente sobre aspectos relacionados ao controle cognitivo, utilizando-se principalmente de medidas objetivas, enquanto que os estudos sobre a autorregulação têm seu foco principal sobre as situações sociais e emocionais, porém não se atendo somente sobre a inibição de emoções disruptivas, mas encorajando a expressão de emoções saudáveis. 24 O termo autorregulação parece o preferido da literatura sóciocognitiva (Bodrova; Leong, 2001; 2007; Rosário et al., 2007a), enquanto que funções executivas prevalecem na literatura cognitiva e neuropsicológica cognitiva, denotando a ênfase no processamento de informação (Dawson: Guare, 2010; Diamond et al., 2007; Gazzaniga et al., 2006; Lezak et al, 2004; Meltzer, 2010a). Desta compreensão, vê-se que a diferença entre os conceitos parece ser mais metodológico do que conceitual propriamente dito. Autores como Hofmann, Schmeichel e Baddeley (2012) entendem que as facetas das funções executivas, especialmente memória de trabalho, inibição e flexibilidade cognitiva, poderiam servir à autorregulação. Especificamente, delimitam três componentes do comportamento autorregulado: 1) representação mental de padrões de pensamento/sentimento/comportamento; 2) motivação para investir esforço para deslocar-se de um estado atual para o padrão; e 3) capacidade suficiente para realizar este deslocamento. As funções executivas serviriam principalmente o terceiro componente do comportamento autorregulado. Neste sentido, a despeito das diferentes visões teóricas e abordagens que os estudos têm dado a estes conceitos, ambos podem ser tornados como complementares, haja vista relativa sobreposição entre eles. Nos últimos anos, a autorregulação vem sendo investigado por diversas abordagens da psicologia. Pode ser definida como um processo consciente e voluntário de governo, pelo qual possibilita a gerência dos próprios comportamentos, pensamentos e sentimentos, ciclicamente voltados e adaptados para obtenção de metas pessoais e guiados por padrões gerais de conduta (BANDURA, 1991; POLYDORO & AZZI, 2008; ZIMMERMAN, 2000). Pode também ser definida, como um conjunto de processos comportamentais e cognitivos fundamentais ao ajustamento e adaptação do indivíduo, o que se dá por meio do monitoramento, regulação e controle de seus estados motivacional, emocional e cognitivo (Blair; Diamond, 2008). Inclui a habilidade de se concentrar, inibir comportamentos impulsivos ou inadequados e atuar de forma autônoma (Duckworth; Akerman; Macgregor; Salter; Vorhaus, 2009), ou seja, permite ao indivíduo comportar-se de modo deliberado e, assim, controlar as suas próprias ações. E apesar de integrarem um todo, diferentes aspectos autorregulatórios podem ainda ser destacados, como a autorregulação comportamental, que se refere ao controle do ato/resposta motora; emocional, que 25 alude à capacidade de expressar emoções de forma controlada, e a autorregulação cognitiva, que envolve o controle dos próprios processos cognitivos. Polydoro e Azzi (2008), em texto introdutório sobre autorregulação na perspectiva sociocognitiva destacam o relevante papel da autorregulação no exer- cício da agência humana – capacidade do homem de intervir intencionalmente em seu ambiente, isto é, as pessoas não apenas reagem ao ambiente externo, mas possuem a capacidade de refletir sobre ele, antecipar cognitivamente cenários construídos por ações e seus efeitos, de forma a vislumbrar e escolher cursos de ação que julgarem mais convenientes ou necessários (BANDURA, 2001, 2005, 2008). Um ponto relevante ao entendimento da autorregulação, porém, refere que esta habilidade não diz respeito apenas à capacidade de inibir um comportamento inadequado, mas integra também a capacidade de engajar-se em ações intencionais. Deste modo, a criança autorregulada é capaz de pensar antes e agir depois. De acordo com Bernier et al (2010), a autorregulação pode ser formada a partir da relação parental estabelecida entre a mãe e a criança, principalmente quando a mãe estimula o filho estabelecendo diálogos sobre pensamentos e sensações internalizadas. Segundo o autor, esse tipo de atitude pode resultar na aquisição de ferramentas mentais, ou seja, de pensamentos que farão a criança progredir da regulação externa para autorregulação. Além disso, como a autorregulação é considerada um comportamento aprendido, Andrade (2013) ressalta a importância que nas atividades desenvolvidas para as crianças estivessem incluídas a promoção desse comportamento, inclusive com brincadeiras planejadas, que são consideradas a principal fonte de autorregulação e de desenvolvimento da infância. Essas brincadeiras devem ser programadas e mediadas por um adulto. Na maioria dos estudos já realizados os mediadores eram os professores e em geral as atividades eram realizadas em grupos e/ou pares, estimulando a interação social e ensinando a criança a ter controle, planejar etapas e inibir comportamentos impulsivos (Barnett et al., 2008). Autores como Rosário, Miles e Gonzalez-Pienda (2007) sugerem ainda um desdobramento do conceito de autorregulação, que denominam de autorregulação da aprendizagem. 26 2.1. AUTORREGULAÇÃO DA APRENDIZAGEM Pesquisas sobre processos autorregulatórios a partir da perspectiva da teoria social cognitiva têm sido conduzidas em diferentes direções de articulação conceitual, como: estabelecimento de objetivos, percepções de autoeficácia, autoinstruções, autorreforçamento (Zimmerman, 1989). Segundo Rosário, Miles e Gonzalez-Pienda (2007) a autorregulação da aprendizagem é a capacidade de monitorar, regular e controlar as próprias cognições, o estado motivacional e os comportamentos, consoantes à execução ou aprendizagem de uma tarefa, tornando a criança progressivamente mais autônoma neste processo. Complementam que a criança capaz de autorregular seus processos de aprendizagem não somente é capaz de elaborar e seguir planos, mas tem a habilidade de se adaptar de modo flexível a diversas situações; ela é capaz de mobilizar comportamentos e recursos cognitivos que sejam adequados e coerentes às especificidades do contexto de aprendizagem. Aqui é possível perceber a sobreposição do conceito de autorregulação ao de funcionamento executivo; mobilizar comportamentos indica que estas ações são deliberadas, intencionalizadas, o que envolve a atuação das funções executivas. E mais, comportamentos que sejam 'adequados ao contexto de aprendizagem' indicam o engajamento de habilidades específicas, entre elas flexibilidade e controle inibitório. Os mesmos autores aludem também, que a literatura oferece distintas abordagens ao conceito de autorregulação; o ponto de convergência entre elas, porem, refere-se à autonomia. A criança autorregulada é capaz de executar tarefas de forma independente, sem a necessidade do controle imposto externamente pelo adulto, pois é capaz de controlar e regular seu próprio comportamento (Blair; Diamond, 2008; Bodrova; Leong, 2007; Rosário et al., 2007a). Conforme Zimmerman, Bandura e Martinez-Pons (1992, p. 664), os aprendizes autorreguladosnão são diferenciados somente por sua orientação pró- ativa e performance, mas também por suas capacidades automotivadoras. Schunk e Ertmer (2000) destacam, da literatura, os seguintes processos envolvidos na autorregulação da aprendizagem: estabelecer objetivos, atender regras, usar estratégias cognitivas apropriadas, organizar o ambiente de trabalho, usar os recursos de forma eficaz, monitorar o próprio desempenho, gerenciar o tempo disponível, buscar ajuda se necessário, manter crenças de autoeficácia positivas, 27 perceber o valor do aprendizado, identificar os fatores que influenciam a aprendi- zagem, antecipar os resultados das ações e experimentar satisfação com o próprio esforço. Ainda, diante da descrição do processo autorregulatório da aprendizagem por meio dos diferentes modelos, denota-se que o estudante autorregulado em sua aprendizagem é aquele que, como sintetizado por Montalvo e Torres (2004), aprendeu a planejar, controlar e avaliar seus processos cognitivos, motivacionais, afetivos, comportamentais e contextuais; possui autoconhecimento sobre o próprio modo de aprender, suas possibilidades e limitações. Com tal conhecimento, o estudante controla e regula o próprio processo de aprendizagem em direção aos objetivos e metas. 3. METACOGNIÇÃO O estudo sobre a aprendizagem, realizado no marco de diferentes perspectivas teóricas e no âmbito de disciplinas distintas, vem relacionando o processo de aprender às capacidades de planejamento e regulação da própria atividade em função de determinados objetivos. A Psicologia Cognitiva atribui a tal capacidade – definida como metacognição – um papel central no processo de aprendizagem (Jou & Sperb, 2006; Son, 2007; Veenman, Van Jout-Wolters & Afflerbach, 2006). No campo da Educação, confere-se às estratégias metacognitivas, entendidas aí como um conjunto de práticas e procedimentos, o potencial para aprimorar o processo do aprendizado (Jou & Sperb, 2008; Martín, 2004; Monereo, Pozo, & Castelló, 2004; Pozo, Monereo, & Castelló, 2004). No marco da Psicologia Cognitiva, especificamente a partir da abordagem do Processamento da Informação, é o conceito de metacognição que faz referência a essas funções que vão além da própria cognição, posto que não se relacionam a habilidades mentais específicas, mas oferecem uma organização abrangente para essas últimas (Brown, 1987; Dunlosky & Metcalfe, 2009; Jou & Sperb, 2006). Em uma abordagem neuropsicológica, é o conceito de funções executivas que designa essa capacidade de gerenciamento dos recursos cognitivos, capacidade essa que se relaciona de modo especial (embora não exclusivo) com o córtex pré-frontal (Cypel, 2006; Goldberg, 2002; Lezak, Howieson, & Loring, 2004; Powell & Voeller, 2004; Santos, 2004; Ylikoski & Hänninen, 2003). 28 O termo metacognição tem seu início na literatura, no começo da década de 70, sendo Flavell (1971) um dos seus precursores. A metacognição é uma etapa do processamento de nível elevado, que é adquirida e desenvolvida pela experiência e pelo conhecimento específico que é armazenado. Refere-se ao conhecimento que alguém tem sobre os próprios processos e produtos cognitivos ou qualquer outro assunto relacionado a eles. Os pesquisadores Nickerson, Perkins e Smith, (1994) ressaltaram que a metacognição é o conhecimento e o saber, incluindo o conhecimento das capacidades e das limitações dos processos de pensamento humano; do que se pode esperar que os seres humanos saibam, em geral; e das características da pessoa em si, em especial, de si mesma como conhecedora e pensante. Este conhecimento inclui a capacidade de planejar e regular o emprego eficaz dos próprios recursos cognitivos. Burón (1997), quando estuda a metacognição, também faz referência ao “conhecimento e regulação de nossas próprias cognições e nossos processos mentais”, o que denomina de conhecimento autorreflexivo, ou seja, o conhecimento da própria mente adquirido pela auto-observação. Quotidianamente, a metacognição pode auxiliar na execução de muitas tarefas, inclusive na seleção de estratégias de memória que sejam mais adequadas para determinadas situações, o que possibilita maior economia de tempo e melhor aprimoramento do conhecimento adquirido. A metacognição permite que se tenha um controle da ação no nível-objeto cognitivo, afetivo ou motor, possibilitando uma manipulação de elementos da cognição para alcançar o propósito de controlá-la. Nesse sentido, o conhecimento metacognitivo permite decidir sobre eventos, tais como prosseguir ou não no ritmo atual de estudo, intensificar esforços, reduzir o empenho ou abandonar a tarefa (Peixoto, 2007). Portanto, refere-se ao conhecimento dos processos de cognição e seus resultados, abrangendo atividades de monitoramento desses processos em relação a objetivos ou dados cognitivos e, assim, está ligada às estratégias utilizadas pelos indivíduos nos esforços individuais para aprender. A partir dessa noção, o autor afirma que a metacognição se desenvolve a partir da capacidade do homem de refletir sobre o seu processo de conhecimento durante a realização de tarefas sobre os processos mentais que facilitam essa realização e sobre as estratégias que utiliza para a resolução de problemas. 29 Flavell (1976) aponta dois componentes centrais nesse conceito: os conhecimentos metacognitivos e as experiências metacognitivas. Os conhecimentos metacognitivos são definidos como conhecimentos ou crenças que o aprendiz possui sobre si próprio, sobre os fatores variáveis da pessoa, da tarefa, e da estratégia e sobre o modo como afetam o resultado dos procedimentos cognitivos. São os conhecimentos de que determinados conceitos, práticas e habilidades já são dominados, enquanto outros ainda não o foram, reconhecendo o que se é (ou não) capaz de alcançar; à compreensão dos processos cognitivos, ou seja, da maneira pela qual o pensamento e as funções superiores – atenção, memória, raciocínio, compreensão – atuam na resolução de um problema. Já as experiências metacognitivas se referem ao foro afetivo e consistem em impressões ou percepções conscientes que podem ocorrer antes, durante ou após a realização de uma tarefa. Geralmente, relacionam-se com a percepção do grau de sucesso que se está a ter e ocorrem em situações que estimulam o pensar cuidadoso e altamente consciente, fornecendo oportunidades para pensamentos e sentimentos acerca do próprio pensamento. Segundo Flavell (1987), o conhecimento metacognitivo e as experiências metacognitivas estão interligados, na medida em que o conhecimento permite interpretar as experiências e agir sobre elas. Estas, por sua vez, contribuem para o desenvolvimento e a modificação desse conhecimento. É através da metacognição que se pode: construir conhecimentos e habilidades que tenham maior possibilidade de sucesso e de transferência; aprender estratégias de solução de problemas que sejam passíveis de serem autorreguladas; adquirir autonomia na gestão das tarefas e nas aprendizagens, autorregulando-se e se auto ajudando; construir uma autoimagem de aprendiz produtivo e, com isso, obter motivação para aprender. Jou e Sperb (2006) se referem aos indivíduos hábeis metacognitivamente como os que teriam a capacidade de apreender e aplicar diversos conhecimentos para melhorar seu desempenho acadêmico, transformando-se em aprendizes eficientes. Assim sendo, estes aprendizes teriam a capacidade de ter consciência do que sabem relativo ao conhecimento declarativo, como usar o que sabem relativo ao conhecimento procedural e por que, onde e quando usar o que sabem, ou seja, conhecimento condicional, contextual, usando estratégias que auxiliam no processo 30 cognitivo. Portanto, é possível concluir que, ao fazer uso da metacognição, o sujeito se torna o autor de seus próprios modos de pensar e das estratégias que empregapara resolver problemas, buscando identificar como aprimorá-los. A implicação das capacidades metacognitivas e executivas no processo de aprendizagem parece ser uma realidade incontestável. A metacognição e as funções executivas são fundamentais no processo de aprendizagem, assim como seu comprometimento nos quadros de dificuldade de aprendizagem. Seleção, organização, elaboração, retenção e transformação da informação relevante são requeridas a todo o momento diante do conteúdo escolar. Mesmo nos níveis escolares mais iniciais, as capacidades metacognitivas ou executivas devem estar presentes (Corso, Sperb & Jou, 2019). 4. TENDÊNCIAS DESENVOLVIMENTAIS DAS HABILIDADES ENVOLVIDAS NAS FUNÇÕES EXECUTIVAS O desenvolvimento das funções executivas inicia-se no primeiro ano de vida e se intensifica entre 6 e 8 anos de idade, continuando até o final da adolescência e início da idade adulta. Durante todo esse período, diversas habilidades do funcionamento executivo se desenvolvem, habilidades essas que são definidas e organizadas de formas diferentes pelos diversos pesquisadores da área. Alguns estudos sugerem que as funções executivas, apesar de correlacionadas entre si, podem ser conceituadas como construtos separados, dividindo-se em componentes. Lehto et al. e Miyake et al. ao avaliar, respectivamente, crianças de 8 a 13 anos e adultos, identificaram a existência de três componentes principais: controle inibitório, memória de trabalho e flexibilidade cognitiva. Outros estudos identificaram a existência de apenas dois componentes. No estudo de Stclair-Thompson & Gathercole, que avaliou crianças de 11 e 12 anos, foram identificadas inibição e memória de trabalho, já no estudo conduzido por Huizinga et al., que estudou crianças a partir de 7 anos até adultos com 21 anos, foram identificadas memória de trabalho e flexibilidade cognitiva. Estudos recentes dividem o construto função executiva em componentes simples ou básicos, incluindo flexibilidade cognitiva, controle inibitório (considerando autocontrole e autorregulação) e memória de trabalho; e em aspectos mais complexos das funções executivas, como resolução de problemas, raciocínio e 31 planejamento. A variabilidade na organização dos componentes pode se dar por conta de diversos fatores, incluindo a idade dos participantes e o tipo de testes utilizados. Alguns componentes das funções executivas, tais como atenção seletiva, flexibilidade cognitiva e planejamento, atingem sua maturidade mais tardiamente se comparadas às demais funções cognitivas. A filtragem de informações desenvolve- se intensamente entre 6 e 8 anos e esse desenvolvimento continua até o final da adolescência e o início da idade adulta. Entretanto, mesmo apresentando maturação tardia, o desenvolvimento dessa função inicia-se no primeiro ano de vida (Diamond & Taylor, 1996), já sendo possível identificar comprometimentos em tais funções em bebês de 9 a 12 meses (Malloy-Diniz, et al., 2004). De acordo com Menezes (2009), no Brasil, estudos têm sido conduzidos buscando compreender o desenvolvimento das funções executivas em crianças e adolescentes. Tais investigações são especialmente delicadas devido à diversidade típica do desenvolvimento infantil. Assim, pode haver diferenças na maturação cerebral em crianças da mesma idade, como também podem existir diferenças no tempo de maturação de cada região em uma determinada criança (Ryan, Hammond & Burs, 1998). Dias (2009), obteve evidências de que as habilidades relacionadas às funções executivas seguem distintas trajetórias desenvolvimentais, sendo que, entre elas, a atenção seletiva especificamente apresentou um curso mais precoce de desenvolvimento, com diferença bastante significativa entre os desempenhos nos grupos mais jovens, de 7 a 10 anos e uma progressão menos evidente nos grupos mais velhos, de 12 a 14 anos. Também Menezes (2008), em seu estudo sobre evidências de validade de instrumentos para avaliar funções executivas, avaliou 193 estudantes da 5ª à 8ª séries do ensino fundamental e confirmou a hipótese de que existem habilidades distintas relacionadas às funções executivas, e que as funções executivas desenvolvem-se de acordo com a progressão escolar. Segundo Cosenza e Guerra (2011) o processo de aprimoramento das funções executivas é contínuo, embora diferenciado para seus múltiplos aspectos e parece haver correspondência com surtos de desenvolvimento do córtex pré-frontal, quer ocorrem, por exemplo, entre o nascimento e os 2 anos, dos 7 aos 9 anos e já no final da adolescência, entre os 16 e os 19 anos. 32 O córtex pré-frontal é lento em sua maturação, e continua a se modificar significativamente até a adolescência por meio de processos como a ramificação de dendritos e a formação e a eliminação de sinapses. Além disso, há modificações significativas em suas conexões com outras regiões, sendo notáveis as alterações progressivas na mielinização dos axônios que constituem os feixes das comunicações entre o córtex pré-frontal e as demais áreas com as quais ele se conecta (Cosenza e Guerra, 2011). As funções executivas atuam como uma interface entre os indivíduos e o ambiente com o qual interagem. Por isso mesmo, os fatores ambientais são importantes no desenvolvimento dessas funções, pois influenciam intensamente as modificações que no sistema nervoso estarão ocorrendo por causa dessa interação (Cosenza e Guerra; 2011). Na espécie humana, um ambiente social bem estruturado é requisito fundamental para propiciar o desenvolvimento daquelas funções. Como as histórias individuais são diferentes, também o desenvolvimento das funções executivas terá trajetórias desiguais para cada pessoa, e as habilidades adquiridas serão provavelmente distintas. 5. AS FUNÇÕES EXECUTIVAS E SUAS ALTERAÇÕES Segundo Dias, Menezes e Seabra (2010), o comprometimento das habilidades executivas, caracterizando a chamada síndrome disexecutiva, pode compreender alterações cognitivo-comportamentais diversas, associadas ao prejuízo de seus processos componentes, tais como dificuldades na seleção de informação, distratibilidade, dificuldades na tomada de decisão, problemas de organização, comportamento perseverante ou estereotipado, dificuldade no estabelecimento de novos repertórios comportamentais, dificuldades de abstração e de antecipação das consequências Tirapu-Ustárroz & Céspedes 2004; Strauss, Sherman & Spreen, 2006). A essas dificuldades, Lent (2001) acrescenta o imediatismo comportamental e o prejuízo no ajuste social do comportamento, e Saboya, Franco e Mattos (2002) destacam os prejuízos em habilidades de planejamento, memória evocativa e mesmo em linguagem expressiva. Em suma, alterações estruturais ou funcionais dos lobos pré-frontais ou de seus circuitos 33 podem ocasionar diversos transtornos comportamentais desadaptativos (García- Molina, 2008). Há evidências da relação entre as funções executivas e a aprendizagem escolar. Segundo Blair e Razza (2007) e Duncan et al. (2007), as funções executivas têm se mostrado preditoras dos desempenhos em disciplinas de linguagem e de matemática em crianças pequenas. De fato, conforme estudo de meta-análise feito por Duncan et al. (2007), habilidades executivas avaliadas na pré-escola, tal como o controle atencional, predizem de forma significativa o sucesso posterior em matemática e em leitura. Além da relação com o sucesso acadêmico, as funções executivas têm sido relacionadas a problemas sociais e mentais, tais como o Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperatividade, os Transtornos Globais do Desenvolvimento, deficiência intelectual, comportamentos disruptivos e evasão escolar (Hartman, Houwen, Scherder & Visscher, 2010; Lezak et al., 2004;. Mazzocco & Kover, 2007; Arnoudse-Moens, Smidts, Oosterlaan, Duivenvoorden & Weisglas-Kuperus, 2009). O TDAH é o protótipodo transtorno do neurodesenvolvimento onde os déficits neuropsicológicos básicos são os da atenção e das funções executivas. De fato, postergar tarefas e/ou não finalizá-las, dificuldade em focalizar e sustentar a atenção, dificuldade em organização e hierarquização, deficiência em memória de trabalho e prospectiva, o que pode ocasionar o esquecimento de datas e compromissos, são alterações executivas frequentemente relatadas em associação com o transtorno e que levam a significativo impacto no desempenho funcional do indivíduo (Saboya, Saraiva, Palmini, Lima & Coutinho, 2007). Outras necessidades especiais de aprendizagem onde podemos encontrar disfunção executiva mais ampla ou específica são o autismo, a deficiência intelectual, os transtornos do aprendizado, ou em condições como a depressão e as epilepsias. Algumas evidências de alterações executivas em crianças com Distúrbio Específico de Linguagem (DEL) também foram encontradas, sugerindo prejuízos em habilidades de atenção, memória, inibição e memória de trabalho associadas ao diagnóstico (Im-Bolter, Johnson & Pascual-Leone, 2006). Outras investigações também têm sugerido comprometimento destas habilidades nos quadros de transtorno de aprendizagem, especificamente, a dislexia (Beneventi et al, 2010; 34 Reiter et al, 2005; Salgado et al, 2008) e a discalculia (Argollo, 2008; Balbi, 2008; McLean & Hitch, 1999). Por exemplo, Reiter e colaboradores (2005) investigaram diversos aspectos das funções executivas em crianças com diagnóstico de dislexia. Seus dados mostraram que as crianças com o transtorno de leitura apresentavam desempenho inferior ao do grupo controle em tarefas de memória de trabalho, fluência verbal e de figuras, e controle inibitório, quando avaliado por tarefas complexas. Já a avaliação da resolução de problemas mostrou-se parcialmente comprometida, enquanto a habilidade de formação de conceitos não apresentou comprometimento. Beneventi e colaboradores (2010), por sua vez, buscaram averiguar a relação entre a dislexia e uma das habilidades executivas, a memória de trabalho. Os resultados indicaram que os disléxicos apresentavam comprometimento na memória de trabalho. No âmbito nacional, também Salgado e colaboradores (2008) encontraram evidências de prejuízo em algumas habilidades executivas em crianças com dislexia. Porém, conforme apontam Dias, Trevisan, Menezes, Godoy e Seabra (no prelo), não é claro qual papel estes comprometimentos executivos podem ter na manifestação dos principais sintomas da dislexia. As autoras ainda hipotetizam que seria plausível que as alterações executivas, como por exemplo, o comprometimento na memória de trabalho, prejudicassem a compreensão de leitura, tendo menor efeito, se algum, sobre os processos de decodificação. Algumas evidências nesta direção são oferecidas pelo estudo de Cutting, Materek, Cole, Levine e Mahone (2009). Os autores investigaram os processos neuropsicológicos associados a diferentes tipos de dificuldades de leitura, ou seja, dificuldades na leitura de palavras isoladas e déficit na compreensão de leitura. Apesar de crianças com ambas as dificuldades apresentarem prejuízo em fluência de leitura e habilidades de linguagem oral em relação aos controles, as crianças e adolescentes com déficits específicos de compreensão mostraram, tanto em relação aos controles quanto aos pares com dificuldades na leitura de palavras isoladas, prejuízo em funções executivas, especificamente na habilidade de planejamento e organização. Evidências apontam ainda para um comprometimento das habilidades executivas na discalculia ou Transtorno da Matemática (conforme APA, 2002). Por exemplo, McLean e Hitch (1999) verificaram prejuízo executivo e, de modo mais específico, no subsistema visoespacial da memória de trabalho em crianças com o transtorno. Também Balbi (2008), a partir de dois relatos de caso com crianças de 35 sete e oito anos com o mesmo diagnóstico, relatou alterações na memória de trabalho associados ao quadro, bem como prejuízos no desempenho atencional. 6. AS FUNÇÕES EXECUTIVAS E O CONTEXTO ESCOLAR A aprendizagem pode ser entendida como um processo de aquisição de novas informações provenientes do meio, englobando sua recepção, processamento e consolidação, bem como a recuperação dessa informação e aplicação em momentos apropriados. Portanto, segundo Machado e Maia (2012) fica claro que, para o adequado orquestramento dessas diversas etapas que possibilitam a aprendizagem há necessidade do funcionamento executivo. O aprendizado necessita da participação orquestrada de uma série de funções cognitivas. As funções executivas organizam tais funções, permitindo traçar, realizar, monitorar e modificar objetos voltados para uma meta. As funções executivas são, portanto, determinantes da capacidade de aprendizagem, é possível que crianças portadoras de inteligência normal e problemas com função executiva tenham baixo rendimento acadêmico. As funções executivas exercem grande impacto sobre a capacidade do indivíduo de aprender novas informações (Bodrova; Leong, 2007). Prejuízos nestas habilidades também podem acarretar um comprometimento significativo no desempenho escolar. Para estudantes com tais prejuízos, escrever, tomar notas, ler e compreender textos complexos pode ser particularmente difícil (Meltzer, 2010b). Isso pode acontecer, pois indivíduos com déficits executivos frequentemente experimentam uma sobrecarga de informações, desorganizam-se e não conseguem iniciar ou retornar uma tarefa. Como consequência, seu desempenho em diversas áreas fica comprometido e suas notas não refletem sua habilidade intelectual (Meltzer; Bagnato, 2010). Tarefas escolares em geral, como compreensão de leitura, escrita, solução de problemas matemáticos, tomar notas e executar projetos de longo prazo, requerem a organização e integração de múltiplas habilidades. Gradativamente, ao longo do progresso escolar, o sucesso acadêmico passa a depender grandemente da sua habilidade de planejar e priorizar tarefas, manejar tempo, organizar materiais e 36 informações, monitorar seu progresso e refletir sobre seu trabalho (Meltzer, 2010b; Meltzer; Basho, 2010). Quando as funções executivas não se desenvolvem adequadamente, podem conduzir a algumas dificuldades em diversos contextos. Apenas para ilustrar, Dawson e Guare (2010) oferecem um pequeno resumo a respeito das alterações executivas e suas consequências comportamentais. Dias (2013) cita os seguintes exemplos: uma criança com prejuízo na habilidade de inibição pode frequentemente interromper a aula ou ter dificuldade em esperar a sua vez; alterações na memória de trabalho poderiam estar relacionadas ao esquecimento de trabalhos e de prazos, de informações importantes ou materiais; uma pobre atenção sustentada poderia ser a causa da dificuldade de completar tarefas no tempo previsto, interrupções da atividade antes de chegar ao fim ou de mudança frequente de atividades; por sua vez, prejuízo na iniciação poderia levar a uma inércia, com a necessidade de incentivo ou de dicas para iniciar uma tarefa. Crianças com alterações na flexibilidade permanecem rígidos em seus padrões de pensamento, não tentam diferentes abordagens para resolver um problema e podem ficar ansiosos com mudanças nos planos ou rotina; aquelas com dificuldade de planejamento podem experimentar problemas com projetos de longo prazo, não conseguir fazer e nem seguir um plano. Comprometimento no manejo de tempo poderia estar atrelado a uma dificuldade de completar tarefas no prazo previsto, estas crianças podem experimentar dificuldade em se ajustar quando surgem novas tarefas; aquelas com prejuízo na organização podem apresentar mesa, materiais e mesmo as ideias desorganizadas, não conseguindo por exemplo, produzir um texto e uma narrativa organizada e coerente;enquanto que indivíduos com problemas na persistência na direção e objetivos caracterizam-se por evitar tarefas desafiadoras e frequentemente não retornam à tarefa quando a mesma é interrompida. Por fim, comportamento caracterizado por birras frequentes e super-reação a problemas pequenos podem estar relacionados à manifestação de ansiedade, mas também a alterações no controle emocional. Dias (2013) ressalta que os exemplos dos autores mencionados retratam alterações nas habilidades executivas, o que não é necessariamente, o caso das crianças em idade pré-escolar, nas quais estas habilidades ainda estão em desenvolvimento. 6.1. DESENVOLVENDO AS HABILIDADES EXECUTIVAS 37 Howard Gardner sugere que as funções executivas emergem de uma das inteligências propostas por ele, a inteligência intrapessoal, e são importantes na coordenação das demais inteligências, regulando o comportamento em direção aos objetivos relevantes para o indivíduo. Segundo ele, a inteligência intrapessoal desenvolve-se gradualmente ao longo da vida dos indivíduos e tem grande importância para que as pessoas adquiram as estratégias necessárias para viver harmoniosamente em sociedade. Gardner propõe que três parâmetros são importantes quando se observa o desenvolvimento das funções executivas na perspectiva da inteligência intrapessoal: as metas, as habilidades e a vontade. Sugere ainda que, nesse desenvolvimento, poderíamos identificar dois estágios: o do aprendiz e o do mestre. Durante o estágio de aprendiz, a criança precisa dominar o conhecimento e os procedimentos que o seu grupo cultural determina. Além disso, é preciso aprender os valores e as normas do grupo social em que vive. Por meio da socialização realizada pelos pais e pela escola, ela aprende a entender as emoções, sentimentos e ações, além de compreender as expectativas do outro. Daí a importância de pais e professores darem limites às crianças, mostrando a consequência de suas atitudes. Nesse estágio, as metas, que estão geralmente ligadas à aquisição de habilidades, são sugeridas por pais e professores. Elas são gradativamente internalizadas pelo aprendiz por meio de imitação de modelos, instruções, recompensas e punições. Esse estágio se inicia com o processo de socialização no primeiro ano de vida e se prolonga até o início da idade adulta (da educação infantil ao primeiro emprego). Nessa época, as metas mais imediatas podem ainda depender de autoridades e patrões, mas existe a capacidade de mantê-la por conta própria, com a mobilização da vontade intrínseca que leve à sua satisfação. Já no estágio mestre, o indivíduo desenvolveu sua inteligência intrapessoal em direção a um autoconhecimento mais profundo. Sabe integrar sua metas, habilidades e vontade para construção de uma agenda pessoal que extrapola o programa da sociedade em que vive. Ou seja, essas pessoas têm iniciativa própria e se propõem a ter objetivos de longo prazo, dentro do seu próprio estilo, sem necessariamente estar ligado às expectativas da família e exigências do trabalho. A 38 vontade e as habilidades são mobilizadas de forma a superar obstáculos e atingir novos objetivos. Segundo Consenza e Guerra (2011), à escola delegou-se a tarefa de desenvolver habilidade, sem grande preocupação no desenvolvimento das funções executivas de forma mais ampla. As atividades escolares são focadas na memorização e na repetição, acredita-se que o estudante comum desenvolverá por conta própria a capacidade de planejar seu tempo, priorizando informações (separar as ideias básicas dos detalhes ou do irrelevante), monitorando o seu progresso e refletindo sobre o seu trabalho. Mas, principalmente nas condições do mundo do mundo moderno, sabemos que isso frequentemente não acontece. Crianças e adolescentes, na maioria das escolas, e mesmo no ambiente familiar, não são expostos a estratégias que privilegiem o desenvolvimento das funções executivas. É importante que o educador tenha como objetivo ajudar o educando a atingir o estágio de mestre, criando as condições para que ele se desenvolva em termos de planejamento, desempenho, compreensão e expressão. Para que ele desenvolva sua capacidade de autorregulação e saiba reconhecer limites, mas também saiba identificar oportunidades, avaliar riscos e refletir sobre seus próprios erros, ou seja que, que tenha o conhecimento metacognitivo. Se não há desafios e o ambiente é muito confortável, não há estímulo para mudar para melhor. Por tudo o que foi falado até agora, fica clara a necessidade de propiciar o desenvolvimento das funções executivas nas escolas, utilizando o ensino de estratégias que favoreçam esse desenvolvimento. Elas devem estar voltadas para que os estudantes aprendam a planejar suas atividades, decompondo-as em subtarefas que possam ser desenvolvidas, sendo capazes de estabelecer metas dentro de uma perspectiva temporal. Pretende-se que eles saibam não só buscar a informação utilizando os recursos existentes, mas que saibam, também, identificar as questões relevantes. Que possam organizar criticamente a informação fazendo avaliações e generalizações, além de incorporar novos conceitos dentro do que já é conhecido. Deseja-se que desenvolvam a capacidade de serem flexíveis, lidando de forma construtiva com as ambiguidades. E que possam debater e discutir ideias, examinando as abordagens alternativas e daí tirando conclusões. Devem ser capazes de identificar erros e discrepância e a ausência de lógica, estando aptos a identificar e corrigir os próprios lapsos nas diversas matérias acadêmicas. 39 Não existe consenso de quais as melhores práticas para o desenvolvimento dessas estratégias no ambiente escolar, mas já sabe que a melhor forma é incorporando-as ao currículo e não ensiná-los de forma isolada. Porém, é importante que isso aconteça de forma estruturada e sistemática, explicando-se como, quando, onde e por que utilizá-las. O educando deve ter a oportunidade de compreender, através da prática, que elas efetivamente podem ajuda-lo não só no ambiente escolar, mas na sua vida em geral, tornando-os aprendizes independentes, com um pensamento flexível que os habilita a um crescimento constante. Segundo Cosenza e Guerra (2011), a questão do desenvolvimento das funções executivas no mundo de hoje é um problema que vai além do seu treinamento no ambiente escolar. É preciso lembrar que o cérebro humano desenvolveu-se ao longo da evolução em um ambiente radicalmente diferente do encontrado no mundo moderno. Durante milhares de anos, as comunidades humanas eram pequenas e as crianças em contato muito próximo com pais, parentes e vizinhos. Os pais principalmente, mas também os demais membros do grupo atuavam como provedores externos das funções executivas, enquanto essas se desenvolviam nas crianças. Eles estabeleciam as metas, verificando sua implementação. Podiam supervisionar o comportamento e ajudar na resolução de problemas e na correção de erros e desvios. O grupo social era capaz de acompanhar de perto o desenvolvimento das crianças, até que fossem capazes de tomar decisões e desempenhar suas funções no mundo real. As crianças e os adolescentes observavam os pais e demais membros da comunidade e tinham a oportunidade de aprender as estratégias cotidianas, ao mesmo tempo em que internalizavam as normas do seu grupo cultural, que eram respeitadas a partir da constatação que eram de fato, “valores” para a sobrevivência individual e do grupo. A capacidade de pensar, resolver problemas e autorregular-se de acordo com as regras e necessidades daquela sociedade aconteciam de forma progressiva e natural. Conforme avançam as séries escolares, suas dificuldades se tornam cada vez mais notórias, pois simultaneamente se elevam as demandas acadêmicas que exigem mais de suas funções executivas e se reduz o suporte provido
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