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! Sumário Apresentações Observações sobre os Textos de Gustavo Giovannoni Traduzidos nesta Edição . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 11 Beatriz Mugayar Kühl Atualidade de Gustavo Giovannoni . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 31 Andrea Pane O “Velhas Cidades” de Gustavo Giovannoni: Algumas Notas . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 53 Renata Campello Cabral e Carlos Roberto M. de Andrade Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano . . . . . . . . . . . . 63 Manoela Rossinetti Rufinoni Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos Velhas Cidades e Nova Construção Urbana . . . . . . . . . . . 91 O “Desbastamento” de Construções nos Velhos Centros. O Bairro do Renascimento em Roma . . . . . . 137 A Restauração dos Monumentos na Itália . . . . . . . . . . . 179 Verbete: Restauro dos Monumentos . . . . . . . . . . . . . . . . . 191 Datados do início do século XX, os estudos de Gus- tavo Giovannoni (1873-1947) sobre as questões envol- vidas nas intervenções em velhos centros demarcaram um momento crucial no processo de compreensão do organismo urbano como sujeito histórico e como artefato cultural. Nutrindo-se de valiosas contribuições teóricas que preparavam o terreno para o amadurecimento do tema, Giovannoni soube conjugar estudos provenientes de diferentes campos disciplinares – da restauração de monumentos aos debates sobre o crescimento das cidades –, em busca de respostas frente ao desafio de intervir em ambientes urbanos seculares e continuamen- te construídos. O percurso investigativo por ele traçado abriria caminho para a apreensão dos valores essenciais Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano Manoela Rossinetti Rufinoni Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 63 31/01/12 14:53 64 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos de história e de arte associados à “vida arquitetônica” desses espaços e conjuntos, considerando-os em sua inteireza compositiva e não somente como somatório de edifícios exemplares. Desde meados do século XIX, a observação das especificidades do ambiente urbano antigo já despontava em diversos estudos. Até o alvorecer do século XX, no entanto, a noção predominante de “ambiente históri- co” abarcava a área construída imediatamente ao redor dos monumentos; como uma “moldura” que permitia a manutenção das características de escala e composição de obras arquitetônicas excepcionais. Essa abordagem estivera presente nas manifestações de Carlo Cattaneo (1801-1869) contra a demolição de construções adja- centes aos monumentos1, ou mesmo de Charles Buls (1837-1914)2, anos mais tarde, e ainda permaneceria sob variadas formas ao longo do século XX. Paralelamente, no entanto, outros modos de olhar o espaço urbano e de interpretar o conceito de monumento preparavam o ter- reno para um entendimento mais amplo dos valores rela- cionados aos conjuntos antigos, aos poucos libertando-os 1. Sobre Carlo Cattaneo e o contexto do período, consultar: Giuseppe Roc- chi, “Camillo Boito e le Prime Proposte Normative del Restauro”, Res- tauro, n.15, 1974. Para uma seleção de textos do autor: Carlo Cattaneo, Scritti Storici e Geografici, Firenze, F. Le Monnier, 1957. 2. Charles Buls, Esthétique des Villes, Brussel, Bruyland-Christople, 1893. Para uma ampla análise das contribuições teóricas e práticas de Charles Buls nos campos da estética, da preservação e da urbanística, consultar: Marcel Smets, Charles Buls: I Principi dell’Arte Urbana, Roma, Officina, 1999. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 64 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 65 da dependência a um monumento principal que lhes conferisse importância. Em John Ruskin (1819-1900) e William Morris (1834-1896), por exemplo, observamos a evidenciação da dinâmica social da cidade antiga e a defesa de suas qualidades e especificidades3. Tais abor- dagens, contudo, relacionavam-se à defesa de um habitar tradicional, condenando a iminente transformação do espaço urbano e diluindo, portanto, a sua historicidade. A partir dos estudos de Camillo Boito (1836-1914)4, e principalmente de Alois Riegl (1858-1905)5, observamos a gradativa evidenciação do aspecto cultural associado aos valores atribuíveis aos artefatos. Ao lançar luzes sobre o caráter subjetivo e mutável de nossos juízos de valor, dependendo de cada tempo e lugar, Riegl abriria caminho para a atribuição de historicidade e artisticida- de a diversos artefatos até então considerados ‘menores’, permitindo significativa expansão dos bens identificáveis como patrimônio. A partir de tais conquistas conceituais, o tecido urbano antigo passaria a ser estudado como um artefato patrimonial representativo, considerado como um conjunto dotado de especificidades estéticas e histó- 3. Ver, sobretudo: John Ruskin, A lâmpada da Memória, Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2008; Maria Lucia Bressan Pinheiro, “William Morris e a SPAB”, Rotunda, n .3, out. 2004, p. 22-35. 4. Camillo Boito, Os Restauradores, Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2002; Ca- millo Boito, Questioni Pratiche di Belle Arti, Milano, Hoepli, 1893. 5. Alois Riegl, Le Culte Moderne des Monuments, son Essence et sa Genèse, Paris, Seuil, 1984 [1a ed. austríaca 1903]. Para aprofundamentos sobre a obra de Riegl, consultar: Sandro Scarrocchia, Alois Riegl: Teoria e Prassi della Conservazione dei Monumenti, Bologna, Accademia Clementina di Bologna, 1995. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 65 31/01/12 14:53 66 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos ricas próprias. Cabe ainda ressaltar a contribuição dos estudos de estética urbana, notadamente na figura de Camillo Sitte (1843-1903)6, ao lado das diversas contri- buições advindas dos questionamentos do urbanismo na busca pelas adaptações sanitárias e modernizadoras para as cidades antigas. O conjunto dessas contribuições, na variedade de suas manifestações, articulações e contradições, ao per- mitir a expansão do conceito de monumento a uma sé- rie de artefatos “menores”, ao oferecer os instrumentos investigativos para a compreensão da dimensão patri- monial dos artefatos urbanos forneceria, passo a passo, as bases conceituais para a valorização dos conjuntos edificados mais modestos, da chamada “arquitetura me- nor”. É diante deste quadro que emergem os estudos de Gustavo Giovannoni, teórico que se debruçaria atenta- mente sobre as contribuições destacadas, permitindo um expressivo salto na formulação de métodos que conjuga- riam a conservação do patrimônio – agora considerado em sua dimensão urbana –, e as experiências urbanísti- cas de modernização. Uma nova consciência sobre essa ordem de ideias foi amadurecendo nas últimas décadas. Agora, em contrapartida, apercebemo-nos de duas verdades: uma, é que um grande monumento tem valor em seu ambiente de visuais, de espaços, de massas e de cor no qual foi erguido, […]; a outra, é que o 6. Camillo Sitte, A Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísti- cos, São Paulo, Ática, 1992 (1a ed. austríaca 1889). Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 66 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 67 aspecto típico das cidades ou povoados e o seu essencial va- lor de Arte e de história com frequência residem, sobretudo, na manifestação coletiva dada pelo esquema topográfico, nos agrupamentos construtivos, na vida arquitetônica expressa nas obras menores7. A atuação do arquiteto, engenheiro e urbanista Gustavo Giovannoni foi, portanto, primordial para a aproximação entre as teorias do restauro e as contribui- ções advindas do urbanismo no que tange à valorização dos conjuntos urbanos antigos. Com uma vasta produção teórica e também prática, aliando conhecimentos no campo da história da arquitetura, das artes e das técni- cas construtivas, assim como ampla experiência na área projetual, didática e na política urbana8, as teorias de Giovannoni representaram um importante passo para a compreensão dos tecidos urbanos comopatrimônio, abrindo caminho para a delimitação de critérios de in- tervenção na cidade histórica com vistas à preservação de suas especificidades. Considerado o primeiro autor a 7. Gustavo Giovannoni, Vecchie Città ed Edilizia Nuova, Milano, Torino: Città Studi, 1995 [1a ed. 1931], p.176. 8. Além da prática profissional voltada ao desenvolvimento de projetos de arquitetura, Giovannoni atuou ativamente na área didática, na pesquisa e na promoção de atividades culturais, bem como na elaboração de planos diretores e projetos urbanos de novos bairros. Sobre a produção teórica e projetos elaborados, bem como para estudos recentes sobre sua obra, consultar: Giovanni Carbonara, Avvicinamento al Restauro, Napoli, Li- guori, 1997, pp. 234-240; Maria Piera Sette (org.), Gustavo Giovannoni: Riflessioni agli Albori del XXI Secolo, Roma, Bonsignori, 2005; Guido Zucconi (org.), Dal Capitello alla Città, Milano, Jaca, 1997. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 67 31/01/12 14:53 68 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos empregar a expressão “patrimônio urbano”9, Giovannoni elaborou estudos que permitiram a inserção, de modo até então pioneiro, da preservação dos tecidos urbanos tra- dicionais na pauta do discurso urbanístico. Na verdade, Giovannoni teria, mesmo, considerado a conservação das cidades antigas como parte integrante de sua prospectiva de urbanização. Apesar do caráter inovador de suas ideias e da inegável influência sobre a legislação italiana e sobre a produção teórica de diversos autores, seus trabalhos ficaram durante muito tempo relegados ao ostracismo devido, principalmente, às críticas que endereçou à ar- quitetura moderna e às suas posturas no campo político. Assim, foram necessárias algumas décadas para que sua obra recebesse uma releitura imparcial, que consideras- se suas atentas observações sobre as particularidades das cidades antigas e as condições de seu crescimento, independentemente de suas filiações ideológicas. Dentre a sua vasta produção teórica, destaca-se a obra Vecchie Città ed Edilizia Nuova10, publicação datada de 1931 e que reúne os diversos temas debatidos em artigos avulsos publicados desde 1911. Além de ser considerado o pri- meiro texto italiano de urbanismo, a obra possui impor- tância crucial para a conceituação do restauro urbano, 9. Segundo Françoise Choay, A Alegoria do Patrimônio, São Paulo, Unesp, 2001, p. 195. 10. G. Giovannoni, op. cit. O livro conserva o título de artigo publicado pelo autor em 1913 na revista Nuova Antologia, texto traduzido para o presente livro. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 68 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 69 já que procurou integrar, de forma, então, inovadora, as questões pertinentes ao tratamento do patrimônio histórico e aquelas voltadas à solução dos problemas urbanísticos11. Dentre outras indagações, os estudos de Giovanno- ni buscaram responder à mesma questão que já intriga- ra outros teóricos como Camillo Sitte, Charles Buls ou Joseph Stübben: o desafio de compreender e organizar as relações entre a cidade moderna e a cidade antiga. De posse de amplo conhecimento sobre as teorias ur- banísticas até então elaboradas, Giovannoni defendeu a busca por uma solução projetual que considerasse os mecanismos de expansão da cidade – atentando para as evidentes diferenças entre o núcleo antigo e os novos bairros e para as questões econômicas e administrativas envolvidas na atuação em cada uma dessas diferenciadas parcelas urbanas. O autor defende que os núcleos urba- nos antigos possuem especificidades morfológicas, esca- las compositivas e qualidades históricas e estéticas que requerem uma atuação e uma destinação de usos apro- priadas. Para Giovannoni, a maioria dos projetos de in- tervenção na cidade antiga até então propostos, baseados nas radicais operações de “desventramento” – aberturas 11. Na introdução à versão francesa, Choay afirma que as releituras da obra giovannoniana ganharam espaço sobretudo a partir dos anos 1980 – no contexto de revisão teórica de certos pressupostos do urbanismo moderno – sendo ainda impulsionadas ao longo dos anos 1990 após a reedição de Vecchie Città e respectiva tradução francesa. Françoise Choay, “Introduc- tion”, em G. Giovannoni, L’Urbanisme Face aux Villes Anciennes, Paris, Seuil, 1998. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 69 31/01/12 14:53 70 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos drásticas de novas vias por motivos de higiene pública – não consideravam tais particularidades e propunham, como ponto de partida, a adaptação forçada a novos usos não condizentes com a estrutura urbana preexistente. Por fim, tais projetos não só destruíam importantes parcelas dos núcleos antigos, como tampouco obtinham resultados satisfatórios com relação à desejada salubridade. De maneira geral, os projetos desenvolvidos se- gundo esse modelo, ao buscar a assimilação de funções e condições modernas pelo organismo urbano antigo, partiam de uma premissa equivocada, já que as par- ticularidades dos tecidos tradicionais não eram devi- damente consideradas. Dessa forma, Giovannoni não persegue soluções urbanas baseadas na dupla assimi- lação entre o modelo urbano antigo e o moderno. Ao contrário, busca a separação entre ambas as formações urbanas, reservando a cada uma delas as funções que lhes seriam compatíveis e projetando soluções de tráfe- go que permitissem a comunicação entre ambas as es- truturas. Por um lado, propõe reservar ao tecido antigo apenas a circulação local, isolando-o do grande tráfego urbano moderno; por outro lado, destina aos tecidos preexistentes as funções consideradas “de proximida- de” (moradia, pequeno comércio, serviços), sejam elas tradicionais ou novas, desde que compatíveis com sua escala e morfologia. As funções consideradas incom- patíveis seriam locadas em novos centros, localizados em novos bairros construídos além do núcleo urbano antigo, de modo a orientar a expansão da cidade e a Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 70 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 71 evitar a recorrência a um centro único12. Propõe, por- tanto, a adoção de duas escalas diferenciadas de gestão e intervenção e orienta, a partir de tais atribuições, o desenvolvimento de um organismo urbano “pluripolar”. Logo, assim como o projeto de novos bairros e vias, também a preservação das parcelas urbanas antigas deveria necessariamente integrar o escopo dos planos para as cidades, tanto na escala local, como regional e territorial, e não mais como no “velho método dos pla- nos diretores, nos quais se desenhavam sobre a planta os edifícios mais notáveis, deixando o trabalho nos menores para as picaretas”13. Para os centros antigos, propõe a realização de adaptações construtivas limitadas, de certa forma “mi- crocirúrgicas”, com o intuito de sanar problemas sani- tários ocasionados pelo adensamento descontrolado e, paralelamente, permitir a fruição contemporânea das funções consideradas compatíveis sem prejudicar as qualidades históricas e estéticas do conjunto urbano. Dessa forma, o tecido urbano antigo – agora denominado patrimônio urbano – é considerado como um “organis- 12. Esse modelo seria posto em prática na construção dos bairros de Monte Sacro e La Garbatella, localizados na então periferia de Roma, ambos projetados por Giovannoni (o segundo com a participação de Marcello Piacentini). Aldo Giuliani, Monumenti, Centri Storici, Ambiente, Milano, Tamburi, 1966, pp. 12-14. Giovannoni discorre sobre a descentralização urbana em diversos escritos; ver por exemplo: La Urbanistica e la de Urbanizzazione, Roma, Società Italiana per il Progresso delle Scienze, 1936. 13. G. Giovannoni, “Restauro dei Monumenti e Urbanistica”, Le Arti, 1942, p. 34. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 71 31/01/12 14:53 72 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos mo vivo”14, como uma parcela urbana integrante de um organismo maior eintegrada à vida contemporânea, que possui, portanto, um “valor de uso”, além da função considerada “museal” que de certa forma emergia como prioritária em algumas interpretações e intervenções conservativas do período15. As adaptações limitadas propostas por Giovannoni configurariam o método conhecido como diradamento edilizio, ou seja, o “desadensamento” ou “desbastamen- to” construtivo dos conjuntos urbanos antigos. A análise do autor considerava que a insalubridade dos velhos núcleos urbanos não era devida à composição original do tecido antigo e sim ao adensamento posterior e des- controlado que ocupara os interstícios dos edifícios e provocara aumentos construtivos não condizentes com a 14. Giovannoni emprega a expressão “organismo vivo” como referência direta à Charles Buls: “A cidade, o povoado, o bairro, a praça, o jardim, a via, são portanto considerados como obras de Arte, como ‘organismos vivos’, para empregar a expressão de Buls”. G. Giovannoni, Vecchie Città…, op. cit., p.116. 15. Dentre outros, Choay ressalta a posição de Marcello Piacentini que che- gou a propor a “museificação” dos tecidos antigos, isolando-os da vida contemporânea. Quanto às intervenções, merece destaque o projeto de Charles Buls para a Grande Place de Bruxelas, considerado por Choay como o paradigma da “conservação urbana museal” (“Introduction”, op. cit., p. 13; A Alegoria…, op. cit., p. 192). Analogamente, sobre o mesmo projeto de Buls, Marcel Smets afirma que os edifícios da praça, “objetos históricos”, teriam sido tratados como “modelos em tamanho natural, dis- postos num museu ao ar livre constituído pela própria cidade”: “Charles Buls et l’Amorce d’Une Nouvelle Politique Urbaine à la Fin du 19eme Siècle”, em Gianfranco Spagnesi (org.), L’Architettura delle Trasformazioni Urbane 1890-1940, Roma, Centro di Studi per la Storia dell’Architettura, 1992, p. 79. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 72 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 73 escala e a capacidade original das antigas estruturas. A intervenção “microcirúrgica” do “desbastamento” con- sistia na adaptação e no saneamento, sem prejuízo para o patrimônio urbano, por meio da abertura de espaços, da supressão de obstáculos visuais e da realização de demolições controladas dos aportes construtivos con- siderados superficiais, tanto na parte interna quanto na área externa das edificações, com intuito de abrir novas visuais e facilitar a iluminação e a ventilação16. Tal so- lução conciliaria três fatores essenciais: a desobstrução da circulação local, a conservação do aspecto artístico e o atendimento das necessidades higiênicas17. Apesar de o método do desbastamento sugerir de- molições apenas quando estritamente necessárias – se os edifícios estivessem em estado muito precário ou se as vias fossem muito estreitas, por exemplo – a aplicação dessas prerrogativas encerrou certas dificuldades. Por um lado, o próprio traçado estreito configurava um im- portante documento histórico e fator essencial na defini- ção dos valores ambientais de determinados agrupamen- 16. Um exemplo considerado bem sucedido é o projeto para Bergamo Alta, no qual o arquiteto Luigi Angelini, inspirado em Giovannoni, realizou uma intervenção sensível de desbastamento, recorrendo a poucas demolições e permitindo a conservação do aspecto original do centro antigo. Cf. Lucio Santoro, Restauro dei Monumenti e Tutela Ambientale dei Centri Antichi, Cava dei Tirreni, Di Mauro, 1970, p. 23. Sobre outros projetos baseados nas proposições giovannonianas, consultar: G. Carbonara, op. cit., p. 240; Andrea Pane, “Dal Monumento all’Ambiente Urbano: La Teoria del Diradamento Edilizio”, em Stella Casiello (org.), La Cultura del Restauro: Teorie e Fondatori, Venezia, Marsilio, 1996, p. 293-314. 17. Gustavo Giovannoni, Vecchie Città…, op. cit., p. 248. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 73 31/01/12 14:53 74 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos tos; por outro, os limites do que poderia ser considerado aporte construtivo superficial não estavam claros, assim como os critérios a serem empregados na construção de novas obras ou completamentos. Como consequência, foram feitas várias intervenções supostamente baseadas nesse método, mas que não garantiam a conservação do patrimônio urbano conforme preconizara Giovannoni, provocando a demolição de grandes parcelas urbanas e a substituição de edificações consideradas inexpressivas por reconstruções em estilo18. A abordagem de Giovannoni encerrava uma constan- te alternância entre escalas de intervenção – do detalhe ao edifício-monumento, do edifício ao ambiente-monumento –, sempre buscando uma comunicação harmoniosa entre os seus diferentes níveis. As considerações quanto ao desbastamento construtivo, portanto, não se limitaram aos escritos sobre urbanismo. Em seus estudos voltados à restauração dos monumentos, o autor reserva grande espaço para a dinâmica urbana associada às intervenções de restauro, uma vez que considera, como temos visto, todo o tecido urbano antigo como um único monumento. Dessa forma, os procedimentos de preservação e restauro indicados para as parcelas urbanas seriam análogos àque- les indicados para os monumentos individuais. Quanto 18. Nesse sentido podemos citar os trabalhos de demolição do bairro de Santa Croce, em Florença, realizados contemporaneamente ao projeto de Bergamo Alta, porém sem a mesma sensibilidade. O projeto resultou na demolição de vários edifícios, posteriormente reconstruídos ex novo. L. Santoro, op. cit., p. 23. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 74 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 75 ao procedimento do desbastamento, classificado como “restauro de liberação”, Giovannoni alerta para o perigo de avançar nas demolições para além do que considera estritamente necessário, deixando-se levar pela “obses- são do isolamento”, que tanto preocupara Sitte e Buls. Tal prática, considerando a dinâmica urbana, alteraria as relações compositivas entre as massas construídas e prejudicaria o efeito estético do conjunto urbano. Outros temas relativos ao restauro de liberação são aqueles urbanísticos. A liberação pode compreender edifícios secundários insignificantes, que ocultem o monumento: mas frequentemente desvia-se, no desejo de isolá-lo, e honrá-lo, num grande espaço e, com isso, altera as condições exteriores da arquitetura, feita para visuais limitadas, para efeitos de contraste, para associação da obra maior com outras menores19. Quanto às ações específicas de restauro, Giovan- noni elabora uma releitura da teoria de Camillo Boito e mantém grande fidelidade aos seus pressupostos reite- rando a ideia de “teoria intermediária” entre as proposi- ções de Viollet-le-Duc e John Ruskin20. Consolidava-se, portanto, a apreensão do monumento como documento histórico e a compreensão do caráter temporal do res- tauro, a partir da valorização de todas as estratificações 19. G. Giovannoni, Il Restauro dei Monumenti, Roma, Cremonese, [1939?], p. 72. 20. Para as posturas de ambos os autores, consultar: J. Ruskin, op. cit.; Eu- gène Emmanuel Viollet-le-Duc, Restauração, Cotia (SP), Ateliê Editorial, 2000. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 75 31/01/12 14:53 76 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos históricas do monumento e da necessidade de evidenciar a atuação contemporânea sobre ele. Nesse sentido, Gio- vannoni considerava o “restauro estilístico” – preconi- zado sobretudo por Viollet-le-Duc –, como uma atitude anticientífica devido às falsificações geradas e à negli- gência com relação aos aportes construtivos de diferentes épocas21. Tais intervenções, apesar de superadas pelas teorias modernas, seriam ainda prejudiciais pois esta- riam muito vivas “na semiconsciência e na semicultura do povo, que ainda é atraído pela perigosa fórmula do retorno ao tipo antigo”22. Não obstante certa carga de elitismo contida na ideia de uma “semiculturapopular”, a crítica de Giovannoni é perspicaz e aponta para o pe- rigo do uso indiscriminado dos refazimentos em estilo. Por outro lado, também não apoiava a construção de edificações modernas junto às antigas. Apesar de defen- der que os novos edifícios e intervenções apresentassem as características projetuais contemporâneas, Giovan- noni duvidava que a arquitetura de então, ou seja, a ar- quitetura do movimento moderno, fosse realmente a ex- pressão de sua época, posição que lhe rendeu numerosas 21. Algumas correntes da historiografia do restauro classificam as posturas de Giovannoni como “restauro científico” ou “restauro filológico”. Ao reela- borar as teorias de Boito, Giovannoni propõe uma classificação de tipos de restauro: de consolidação, de recomposição (anastilose), de liberação, de completamento e de renovação. Defendia a fundamentação rigorosa dos projetos de restauro e dava maior atenção ao valor documental e histórico em detrimento da configuração estética da obra. G. Carbonara, op. cit., p. 234-240. 22. G. Giovannoni, Il Restauro…, op. cit., p. 28. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 76 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 77 críticas23. Admitia o emprego da arquitetura e da técnica moderna em alguns casos e sob certas condições, como nas intervenções de consolidação, por exemplo, onde estariam presentes “nas formas meramente construtivas sem intenção de arte, como pilastras e esporões, e nos esquemas estruturais do organismo, manifestos ou es- condidos, que dão nova estabilidade aos monumentos”24. No entanto, quando fosse necessário construir adições, estas deveriam adotar linhas simplificadas e, no caso de completamentos, a alternativa para fugir das hipóteses duvidosas e restabelecer o efeito de conjunto seria o em- prego das chamadas “zonas neutras”. Suas considerações quanto às adições construtivas, portanto, geraram e ainda geram grandes polêmicas. Essa suposta neutralidade é um dos pontos da teoria giovannoniana em que notamos com clareza a priorização da conservação documental dos monumentos e conjuntos urbanos e a renúncia por qualquer expressão contemporânea. Não obstante sua relevante afeição pelos estudos de estética urbana, a recorrência à neutralidade certamente não contribuía para a fruição estética dos tecidos preservados. Essa 23. Carbonara ressalta, porém, que o próprio conceito de “arquitetura moder- na” nesse momento, comportava grandes contradições. E, em defesa de Giovannoni, afirma ainda que a incompatibilidade por ele evocada entre o novo e o antigo, hoje pode ser revista com maior equilíbrio e distan- ciamento histórico. A recusa apontada poderia ser encarada mais como uma incompatibilidade entre as naturezas muito díspares da arquitetura tradicional e dos elementos construtivos e linguagens “modernas”, do que necessariamente como uma negação do moderno enquanto estilo. G. Carbonara, op. cit., p. 238. 24. G. Giovannoni, Il Restauro…, op. cit., p. 30-31. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 77 31/01/12 14:53 78 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos questão, em particular, seria um dos principais alvos das críticas ao método de Giovannoni, anos mais tarde, como se depreende dos estudos de Giulio Carlo Argan25, Agnoldomenico Pica26, entre outros. Além da considerável repercussão na elaboração de planos diretores e no caminho traçado pela pró- pria legislação italiana concernente às matérias do urbanismo e da tutela27, no início do século, as teorias 25. Ver, sobretudo: Giulio Carlo Argan, “Urbanistica e Architettura”, Le Arti, 1939. Nesse texto Argan tece considerações a respeito das teorias urba- nísticas da época e faz críticas, mesmo que não diretamente identificadas, ao verdadeiro alcance de métodos como o desbastamento construtivo, afirmando que a conservação excessiva de “documentos de uma antiga tradição”, pode criar “preliminares intransgredíveis ao posterior desen- volvimento”. O autor preocupa-se em legitimar a arquitetura moderna como expressão artística contemporânea e defender a sua inserção em ambientes antigos, por meio de um pensamento urbanístico que não fosse meramente teórico e, sim, ancorado na representatividade cultural do presente. 26. Em artigo datado de 1943, Agnoldomenico Pica tece considerações de grande atualidade e defende que o encontro entre o antigo e o novo é, na verdade, uma questão de projeto, uma questão de postura crítica, sensibi- lidade artística e de precisão projetual. O autor apresenta argumentos con- trários às teorias de Giovannoni e problematiza certos limites teóricos – a predileção pelos aspectos científicos da intervenção, tanto no monu- mento individual quanto no tecido urbano, e as soluções urbanísticas baseadas na separação entre a nova e a velha cidade, por exemplo –, que constituiriam o centro dos debates sobre a conservação urbana logo após a Segunda Guerra Mundial. “Attualitá del Restauro. I Monumenti Antichi sul Tavolo dell’Urbanista”, Costruzioni, 1943, anno XVI, n. 182. 27. Giovannoni participou de comissões de estudo para subsidiar a formula- ção de leis, sendo considerado, ao lado de Virgilio Testa e Alberto Calza Bini, um dos protagonistas das discussões em torno dos instrumentos legislativos urbanos no início do século XX. Segundo Giuliani, a atividade de Giovannoni estaria presente nos conteúdos das leis n. 1089, de 1o. de junho, sobre a tutela dos bens de interesse histórico e artístico, e n.1497, de 29 de junho, sobre a proteção das belezas naturais, dos parques, dos Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 78 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 79 de Giovannoni contribuiriam significativamente em âmbito internacional, como podemos observar nos te- mas debatidos durantes o XII Congresso Internacional de Habitação e dos Planos Diretores e na Conferên- cia Internacional sobre Conservação e Restauração dos Monumentos Históricos, da qual resultara a Carta de Atenas de restauração, de reconhecida inspiração giovannoniana, assim como a Carta Italiana de Res- tauração, também formulada a partir dos princípios acordados nessa Conferência. Durante o XII Congresso Internacional de Habi- tação e dos Planos Diretores, em 1929, estudiosos e urbanistas de diversos países – dentre os quais Raymond Unwin, Joseph Stübben, Luigi Piccinato e o próprio Gio- vannoni – estiveram reunidos em Roma para discutir, entre outros temas, a questão da atuação nas cidades históricas para adaptá-las às exigências da vida moder- na. Na ocasião, as observações de urbanistas oriundos de diversos países evidenciaram que os temas em debate no contexto italiano encontravam considerável ressonância em outros países, sobretudo europeus, sendo até mesmo difícil identificar o quanto esse contexto geral de indaga- ções gerava a circulação de ideias, ou o quanto as mes- jardins e da paisagem, ambas de 1939, bem como na Lei de Urbanismo n. 1552, de 1942, que orientou as escalas de planejamento e estabeleceu a hierarquia de planos diretores (A. Giuliani, op. cit., p. 23). Francesco Gurrieri, Silvio Van Riel, Mario Paolo Semprini, Il Restauro del Paesag- gio: Dalla Tutela delle Bellezze Naturali e Panoramiche alla Governance Territoriale / Paesaggistica, Firenze, Alinea, 2005, pp. 12-23. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 79 31/01/12 14:53 80 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos mas foram impulsionadas pelas teorias de Giovannoni28. Mas um ponto é claro: o tema da intervenção na cidade histórica ganhava espaço como problema urbanístico. Além da discussão sobre a necessidade de repensar a abrangência dos planos diretores, de modo a considerar bairros antigos e novos como um único organismo29, também mereceu destaque a questão do embate entre o antigo e o novo, entre a preservação e a modernização, reservando-se especial atenção para os impactos da ur- banização sobre as arquiteturas menores, tema caro a Giovannoni30. 28. Sobre intervenções nas cidades antigas,além da contribuição italiana representada principalmente por Giovannoni, Piccinato e Piacentini, destacaram-se ainda as contribuições dos ingleses H. P. Lafontaine, mem- bro do RIBA (Royal Institute of British Architects) e Patrick Abercrombie, professor da Universidade de Liverpool, bem como do francês Marcel Poëte e do alemão Joseph Stübben (cf. Atti del XII Congresso Internazio- nale dell’Abitazione e dei Piani Regolatore, Roma, 1929, pp. 5-488). 29. Destacam-se, por exemplo, os dizeres de Luigi Piccinato sobre a neces- sidade de integrar as várias escalas de intervenção em um único plano diretor que considerasse a cidade como um organismo único: “Os planos diretores de sistematização dos antigos bairros devem ser estudados não como uma organização isolada, separada do quadro geral da cidade, mas como organização compreendida e resolvida em harmônica relação com o próprio plano geral […]”. “Ainda mais perigosa e mais grave é a falta de uma visão global e unitária de um plano geral de transformação que conduza a totalidade do desenvolvimento urbano, precedendo, com suas soluções de conjunto, o estudo das soluções de detalhes”(Luigi Piccinato, Atti del XII Congresso…, op. cit., vol. III, pp. 104-105; vol. I, pp. 343). 30. Foram debatidos os problemas enfrentados em alguns países e a insufici- ência normativa das legislações então empregadas para intervir na cidade histórica. Geralmente pautadas por instrumentos de expropriação que propunham o reloteamento dos bairros considerados insalubres, muitas das legislações em vigor não garantiam a preservação do patrimônio urba- no, principalmente da chamada arquitetura “menor”. Pelo contrário, além de provocar grandes demolições, impulsionavam práticas agressivas de Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 80 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 81 Na Conferência de Atenas, de 1931, reunião or- ganizada pelo Escritório Internacional de Museus da Sociedade das Nações (Office International des Musées, Société des Nations) e primeira conferência internacio- nal de peso sobre o tema da conservação e restauração de monumentos, a questão dos conjuntos urbanos foi abordada, principalmente, a partir das considerações apresentadas por Giovannoni, recebidas no conjunto das demais proposições como elementos de grande novidade31. A partir de um discurso centrado em ques- tões conceituais e de método, Giovannoni apresentou o progressivo caminho em direção ao entendimento do valor patrimonial de inteiras zonas urbanas, para as quais seriam aplicadas medidas de conservação e restauro equivalentes àquelas voltadas aos monumentos individuais, reafirmando, nesse sentido, os princípios de Camillo Boito, com destaque para a necessidade de contemporizar com bom senso as teorias adeptas da valorização imobiliária. Dentre os exemplos citados, temos a lei Adickes, na Alemanha, voltada para a expropriação de áreas cujos edifícios eram considerados “sem valor”. Em Colônia, um instrumento de expropriação semelhante também teria causado grandes demolições (Atti del XII Con- gresso…, op. cit., vol. III, pp. 107-111). Sobre a inadequação das leis de expropriação na condução dos projetos urbanos no cenário italiano, ver por exemplo: G. Giovannoni, La Urbanistica…, op. cit. 31. Sobre a Conferência de Atenas, ver: Giovanni Carbonara, op. cit., pp. 241- 244. A consulta direta às Atas da Conferência é recurso imprescindível para uma correta apreensão da amplitude de certas temáticas abordadas no evento; amplitude que a concisão e pragmatismo da Carta de Atenas não nos permite notar: La Conservation des Monuments d’Art et d’Histoire, Paris, Institut de la Coopération Intellectuelle, Office International des Musées, 1933. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 81 31/01/12 14:53 82 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos pura conservação e aquelas voltadas às reconstruções em estilo32. Dentre os temas relacionados aos conjuntos urba- nos antigos, emergem como grandes contribuições da representação italiana no evento, com destaque para Giovannoni, a abordagem de questões como a comple- mentaridade entre monumentos maiores e menores, a indissociabilidade entre o monumento e o entorno, a noção de patrimônio urbano e a integração entre conser- vação do patrimônio construído e urbanismo. No que se refere ao tratamento de áreas urbanas, as considerações de Giovannoni e de outros teóricos demarcaram a im- portância de preservar certos aglomerados antigos, não somente para garantir as relações entre o monumento e o seu entorno, mas também devido à importância conferida aos próprios conjuntos. Essa concepção, no entanto, ain- da não alcançara amplo entendimento. Não obstante os avanços conceituais de Giovannoni quanto à valorização de inteiras zonas urbanas consideradas como um único monumento – conceito expresso não somente na Confe- rência, mas ao longo de sua ampla produção teórica –, nas conclusões finais do evento, reunidas na Carta de Atenas, prevaleceria ainda a ideia de ambiente repre- sentativo como entorno de um monumento principal, como “moldura” e contexto para as obras consideradas “maiores”. A Carta, apesar do pioneirismo na formulação 32. G. Giovannoni, “A Restauração de Monumentos na Itália”, texto traduzido nesta edição. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 82 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 83 de princípios e diretrizes, ao menos no que tange à pro- blemática dos conjuntos urbanos, não logrou assimilar a amplitude dos temas abordados no evento. A conferência recomenda respeitar, na construção de edifí- cios, o caráter e a fisionomia das cidades, sobretudo na vizinhança dos monumentos antigos, cuja proximidade deve ser objeto de cuidados especiais. Em certos conjuntos, algumas perspectivas particularmente pitorescas devem ser preservadas33. As diretrizes emanadas pela Carta de Atenas fo- ram adotadas com pequenas adaptações na redação da Carta de Restauração Italiana, bem como na elabora- ção das Instruções para a Restauração de Monumentos, documento complementar redigido por uma comissão formada, dentre outros, por Giovannoni, Longhi, De An- gelis d’Ossat e Calzecchi Onesti. Esses instrumentos normativos indicariam certa oficialização de uma posição cultural que vinha se estabelecendo ao longo de décadas de discussões, contribuindo ainda para a elaboração das novas lei de tutela na Itália34. No que concerne ao valor patrimonial dos tecidos urbanos, a Carta Italiana 33. Carta de Atenas. Escritório Internacional dos Museus, Sociedade das Na- ções, outubro de 1931. O documento é consultável em formato eletrônico na seção Cartas Patrimoniais do sítio do IPHAN (portal.iphan.gov.br) 34. Conforme acenamos em nota anterior a respeito da contribuição de Giovannoni na elaboração da legislação italiana de tutela. F. Gurrieri et al., op. cit., pp. 12-23. Para maiores considerações sobre as Cartas e Instruções citadas, ver: G. Carbonara, op. cit., pp. 241-247. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 83 31/01/12 14:53 84 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos de Restauro retomou a enunciação de Atenas e reservou aos mesmos, portanto, o papel de “condição ambiental” de um monumento principal, alertando, ainda, para a inserção de novos edifícios invasivos, […] que junto com o respeito pelo monumento e por suas várias fases, siga aquele por suas condições ambientais, as quais não devem ser alteradas por isolamentos inoportunos, por cons- truções de novos edifícios próximos invasivos por massa, por cor, por estilo35. Nas Instruções para a Restauração de Monumentos, redigidas em 1938, o texto sugere uma expansão maior do conceito de “ambiente”, aproximando-se da con- cepção giovannoniana de patrimônio urbano, na qual observamos a autonomia figurativa do tecido urbano enquanto composição global, formada por obras “maio- res” e “menores”. Além da atenção aos tecidos antigos como entorno, a preservação proposta pelas Instruçõesestendeu-se aos “complexos construtivos que, mesmo sem possuir particulares elementos artísticos, elevam-se como solução urbanística a um valor histórico e artísti- co”, sugerindo, portanto, a valorização do tecido cons- truído para além do mero caráter de “pano de fundo” de obras excepcionais, ainda que em termos normativos e práticos essa concepção não tenha prevalecido naquele momento. Também a partir de uma clara repercussão 35. Carta Italiana del Restauro 1932, Consiglio Superiore per le Antichità e Belle Arti, Norme per il Restauro dei Monumenti, art. 6. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 84 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 85 do pensamento giovannoniano, o documento propõe o princípio da “neutralidade espacial” na atuação sobre os entornos não mais originais, aspecto normativo que evidencia, uma vez mais, a predileção pela conservação documental, obscurecendo as possibilidades de diálogo estético entre o preexistente e as novas construções36. A preocupação com a inserção de novos elementos em contextos antigos – tema presente tanto na Carta Italiana, quanto nas Instruções –, seria, pois, um dos principais motivos de conflito na elaboração de propostas de intervenção e fulcro de acirrada polêmica. Grande parte da discussão sobre a atuação em parcelas urbanas consolidadas girava em torno da pertinência de inserir construções atuais junto às antigas e de que modo fazê- -lo. A reticência de Giovannoni e de seus seguidores com relação à inserção de arquiteturas de expressão “moderna” teria sido, pois, um dos principais motivos de crítica às suas teorias e às diretrizes normativas delas derivadas. 36. Istruzioni per il Restauro dei Monumenti, Ministero della Pubblica Istru- zione,1938. “Dado que todo monumento coordena o espaço circunstante com a própria unidade figurativa, esse espaço é naturalmente objeto das mesmas cautelas e do mesmo respeito rigoroso que o próprio monumento. É, portanto, excluída categoricamente, por ser arbitrária, a translação de edifícios monumentais, a alteração de ambientes monumentais con- servados nas formas originárias e dos complexos edificados que, mesmo sem levar em conta particulares elementos artísticos, são alçados, como solução urbanística, a um valor histórico e artístico. O isolamento dos edifícios monumentais, não mais inseridos em seu ambiente originário, deve ser guiado pelo princípio de uma absoluta neutralidade espacial e perspéctica, evitando, assim, todas as sistematizações com caráter gene- ricamente monumental e cenográfico”. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 85 31/01/12 14:53 86 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos Notadamente a partir da década de 1940 e, sobre- tudo, após a Segunda Guerra Mundial, o velho dilema da relação antigo-novo assumiria novos contornos: à oposição oitocentista entre conservação e modernização, quando a intervenção do “novo” era diretamente asso- ciada às práticas de desventramento, somava-se agora a gradual consolidação de um conceito de “novo” bem mais amplo e complexo; a afirmação de uma expressão arquitetônica contemporânea, a arquitetura do moder- nismo, que começava a reivindicar a legitimação de seus valores enquanto manifestação cultural e seu respectivo espaço na composição da cidade. Nesse embate, a com- preensão das especificidades do ambiente urbano antigo e a assimilação desse conceito na prática urbana – objeto de estudo de Giovannoni –, acabaria perdendo espaço no discurso urbanístico e, pouco a pouco, seria restrita ao campo disciplinar específico da preservação. Certamen- te, a expansão do conceito de patrimônio histórico e o entendimento das especificidades do patrimônio urbano receberam um impulso decisivo no período do segundo pós-guerra, quando novos questionamentos evidenciaram os limites da conservação prioritariamente documental e a necessidade de buscar respostas numa leitura estética das obras, debates que abririam caminho para as elabo- rações conceituais do chamado “restauro crítico”. No campo do urbanismo, contudo, à noção ainda enraizada de ambiente como entorno e às sucessivas intervenções baseadas na velha “obsessão pelo isolamento”, seriam somadas, então, as práticas urbanísticas pautadas pela Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 86 31/01/12 14:53 Gustavo Giovannoni e o Restauro Urbano • 87 consolidação dos princípios do urbanismo moderno – difundidos sobretudo a partir da atuação dos Congressos Internacionais de Arquitetura Moderna37 – segundo os quais as particularidades do patrimônio urbano geral- mente eram relegadas a segundo plano. Ainda que obscurecida pela prática urbanística que se seguiu, a contribuição de Giovannoni permane- ceu presente de forma contundente, seja nas normativas urbana e de tutela na Itália, seja na continuidade das discussões no campo da preservação dos monumentos e, sobretudo, no amadurecimento do restauro urbano. Suas teorias e experiências práticas, alimentadas pelos deba- tes promovidos por seus contemporâneos, antecederam em décadas o estudo do tema em âmbito internacional e abriram caminho para o aprofundamento de conceitos e definição de critérios. Além de subsidiar as discussões que levariam às conquistas teóricas finalmente acor- dadas na Carta de Veneza, de 1964, e em documentos posteriores, como a Declaração de Amsterdam, de 197538; 37. Os CIAM iniciaram-se em 1928, a princípio voltados ao tema da habi- tação e, após 1930, debruçados especialmente sobre os problemas do urbanismo. Objetivavam discutir como os preceitos teóricos da arquite- tura moderna poderiam responder aos problemas causados pelo rápido crescimento urbano. A partir do 4o Congresso, após reuniões, debates e pesquisas, seria elaborada a também denominada Carta de Atenas, datada de 1933, um documento de caráter doutrinário que buscou sintetizar os preceitos do urbanismo moderno, em grande parte marcados pelas ideias de Le Corbusier (cf. F. Choay, O Urbanismo: Utopias e Realidades, São Paulo, Perspectiva, 2003, p. 19). 38. Declaração de Amsterdam, Congresso do Patrimônio Arquitetônico Eu- ropeu, Amsterdam, 1975. A “conservação integrada”, tema central deste documento, segue diretrizes sem dúvida tributárias da aproximação Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 87 31/01/12 14:53 88 • Gustavo Giovannoni. Textos Escolhidos ecos desse debate também estariam presentes na elabo- ração de instrumentos legislativos em diversos países da Europa, a exemplo dos secteurs sauvagardés na França, instituídos em 1962, ou das Conservation Areas, na In- glaterra, criadas pelo Civic Amenities Act, de 1967.39 Um dos grandes legados de sua extensa produção bibliográfica, investigativa e projetual é, sem dúvida, a compreensão da cidade como documento e artefato cognitivo, como organismo vivo e dinâmico. O estudo de sua obra, portanto, reveste-se de especial interesse na atualidade. Diante de transformações urbanas cada vez mais rápidas e agressivas – e da proliferação das inter- venções prefixadas pelo “re” –, apreender o ambiente urbano como sujeito da história e como artefato cultural nos instiga a repensar a própria produção arquitetôni- ca e urbana contemporâneas – e a debater sobre seus ideários, objetivos e contradições. crítica entre preservação e urbanismo, proposta por Giovannoni. O do- cumento propõe a atuação interdisciplinar seja na fase de estudo das preexistências urbanas a serem preservadas, momento em que as análises multidisciplinares fazem-se necessárias, seja nas fases propositiva e executiva, quando se deve buscar um esforço conjunto na elaboração de projetos que atendam adequadamente tanto as exigências da preservação do patrimônio, quanto aquelas do desenvolvimento urbano e territorial. 39. Os secteurs sauvagardés foram instituídos pela Lei Malraux (n. 62- 903/1962). Integrada ao Código de Urbanismo Francês, a Lei orientou a criação desses setores em torno das áreas consideradas de interesse patrimonial, sobreas quais incidiria o Plano Permanente de Preservação e Valorização. Cabe ressaltar que a Lei sobre os Monumentos Históricos, de 1913, já previa a vinculação das ações sobre os bens protegidos e seus respectivos entornos aos planos locais de urbanismo. Gustavo Giovannoni_1a prova.indd 88 31/01/12 14:53 ! http://www.atelie.com.br/livro/gustavo-giovannoni/ http://www.atelie.com.br/livro/gustavo-giovannoni/
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