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A sociedade como interação simbólica Herbert Blumer A visão da sociedade humana como interação simbólica tem sido mais seguida do que formulada. Algumas afirmações parciais desse teor, em geral fragmentadas, podem ser encontra das em trabalhos de diversos intelectuais .proeminentes, alguns da própria sociologia, alguns de outras áreas. Entre os primeiros, podemos citar Charles Horton Cooley, W . I. Thomas, Robert E. Parks, E. W . Burgess, Florian Znaniecki, Ellsworth Faris e James Mickel Williams. Entre os intelectuais de outras áreas que não a sociologia, podemos citar W illiam James, John Dewey e George Herbert Mead. Nenhum deles, em minha avaliação, apresentou uma descrição sistemática da natureza da vida humana de grupo a partir do ponto de vista da interação simbólica. Mead se destaca, entre eles, por ter exposto claramente as premissas fundamentais dessa abordagem; mas ele não desenvolveu suas implicações me todológicas para o estudo sociológico. Os estudiosos que tentam descrever a posição da interação simbólica podem facilmente tra çar esboços diferentes. O que pretendo apresentar deve ser visto como minha versão pessoal. Meu objetivo é expor as premissas 76 Estudos sobre interação: textos escolhidos básicas desse ponto de vista e desenvolver suas consequências me todológicas para o estudo da vida humana de grupo. O termo “interação simbólica” se refere, evidentemente, à na tureza peculiar e característica da interação que ocorre entre seres hu manos. Essa peculiaridade consiste no fato de que os seres humanos interpretam ou “definem” as ações uns dos outros, em vez de simples- mente reagir a elas. Sua “reação” não se dá diretamente às ações dos outros; ao contrário, é baseada no significado atribuído a essas ações. Assim, a interação humana é mediada pelo uso de símbolos, pela in terpretação ou pela atribuição de significado às ações dos outros. Essa mediação equivale à inserção de um processo de interpretação entre o estímulo e a resposta, no caso do comportamento humano. O simples reconhecimento de que os seres humanos inter pretam as ações uns dos outros como meio de agir entre si tem permeado o pensamento e a obra de muitos estudiosos da con duta humana e da vida humana de grupo. Entretanto, poucos dedicaram esforços à análise das implicações dessa interpretação para a natureza do ser humano ou da associação humana. Em geral, contentam-se com o mero reconhecimento de que a “in terpretação” deve ser captada pelo estudioso ou com a simples percepção de que os símbolos, como as normas ou os valores culturais, devem integrar suas análises. Apenas George Herbert Mead, em minha avaliação, tentou examinar as implicações do ato de interpretar para a compreensão do ser humano, da ação humana e da associação humana. Os pontos essenciais de sua análise sao tão perspicazes e profundos, e tão importantes para o entendimento da vida humana de grupo, que gostaria de expô- -los, mesmo que brevemente. O ponto-chave da análise de M ead é que o ser humano tem um self. Essa ideia não deve ser posta de lado como esoté rica ou passar despercebida como óbvia e, portanto, indigna de atenção. Ao declarar que o ser humano tem um self, Mead tem em mente, principalmente, que o ser humano pode ser objeto A sociedade como interação simbólica 77 cias próprias ações. Ele pode agir em relação a si mesmo assim como age em relação aos outros. Cada um de nós tem familia- \7 ridade com ações desse tipo, nas quais o ser humano se zanga f ) consigo mesmo, repreende a si mesmo, se orgulha de si, discute consigo mesmo, tenta estimular a própria coragem, diz a si v y mesmo que deveria “fazer isso” ou não “fazer aquilo”, define objetivos para si mesmo, assume compromissos consigo mesmo e planeja o que vai fazer. Que o ser humano age em relação a si mesmo dessas e de inúmeras outras maneiras é uma questão de fácil observação empírica. Para reconhecer que o ser humano pode agir em relação a si mesmo, não é preciso qualquer en cantamento místico. Mead entende essa capacidade do ser humano de agir em relação a si mesmo como o mecanismo central com o qual o ser humano encara e age com seu mundo. Esse mecanismo permite ao ser humano fazer indicações para si mesmo das coisas à sua volta e, assim, orientar suas ações por aquilo que observa. Q ual quer coisa da qual um ser humano esteja consciente é algo que ele está indicando para si mesmo - o tique-taque de um reló gio, uma batida na porta, a chegada de um amigo, a observação feita por um colega, o reconhecimento de que tem uma tarefa a cumprir ou a percepção de que está resfriado. Inversamente, qualquer coisa da qual ele não esteja consciente é, ipso fa c t o , algo que não está indicando para si mesmo. A vida consciente do ser humano, do momento em que acorda até a hora em que vai dormir, é um fluxo contínuo de autoindicações - anotações so bre as coisas com as quais lida e leva em consideração. Isso nos dá, assim, uma imagem do ser humano como um organismo que se defronta com seu mundo com um mecanismo para fazer indicações para si mesmo. É esse o mecanismo envolvido na in terpretação das ações dos outros. Interpretar as ações dos outros é apontar para si mesmo que a ação tem.esre ou aquele sentido, esta ou aquela natureza. De acordo com Mead, a consequência de se fazer indicações para si mesmo é da maior relevância. Essa relevância se dá por 78 Estudos sobre interação: textos escolhidos duas razões. Em primeiro lugar, indicar uma coisa é retirá-la de seu ambiente, mantê-la à parte, dar-lhe um significado ou, nos rente de um estímulo; em vez de ter uma qualidade intrínseca que age sobre o indivíduo e pode ser identificada separadamente dele, jeto é um produto da disposição do indivíduo para agir, e não um estímulo anterior que suscita o ato. Em vez de um indivíduo cer cado por um ambiente repleto de objetos preexistentes que atuam sobre ele e suscitam seu comportamento, a imagem correta é que ele constrói seus objetos com base em sua atividade contínua. Em qualquer um de seus inúmerosjLtos — sejam menores, como se ves tir, ou maiores, como se organizar para uma carreira profissional - , o indivíduo está designando objetos diferentes para si mesmo, dando-lhes significado, julgando sua adequação para sua ação e ' . tomando decisões com base nesse julgamento. É isso que quer ^ dizer “interpretação” ou agir com base em símbolos. <£) A segunda implicação importante do fato de que o ser hu mano faz indicações para si mesmo é que sua ação é construída, e não uma mera descarga. Qualquer que seja a ação na qual está envolvido, o ser humano procede apontando para si mesmo as coisas divergentes que devem ser levadas em conta no curso de sua ação. Ele precisa observar o que quer fazer e como fazê-lo; precisa apontar para si mesmo as diversas circunstâncias que talvez sejam úteis para sua ação e aquelas que podem obstruí-la; precisa levar em consideração as exigências, expectativas, proibições e amea ças à medida que surgem na situação na qual está agindo. Sua ação é construída passo a passo por meio desse processo de au- toindicarão..OJndivíduo humano junta coisas diversas e guia sua ação levando-as em conta e interpretando sua relevância para a termos de Mead, transformá-la num objeto. Um objeto - isto é, qualquer coisa que um indivíduo indique para si mesmo - é dife- sua qualidade ou significado lhe é atribuído pelo indivíduo. O ob- A sociedade como interação simbólica 79 ação futura. Não há qualquer exemplo de ação consciente ao qual isso não se aplique. O processo de construção da ação por meio de indicações feitas para si mesmo não pode ser compreendido por meio das ( O categorias psicológicas convencionais. O processo é diferente e não se resume àquilo que costuma ser referido como o “ego” — da Çj mesma forma como é diferente de qualquer outra concepção que - entenda o s e l f t m termos de montagem ou organização/A autoin- A dicaçãoé um processo comunicativo móvel no qual o indivíduo 5 observa coisas, avalia-as, dá-lhes significado e decide agir com base D nesse significado. O ser humano se posiciona diante do mundo, ^ ou diante dos “outros”, com esse processo, e não com um mero ego. Além disso, o processo de autoindicação não pode ser toma do como parte das forças, sejam externas ou internas, que se su- ( põe agirem sobre o indivíduo para produzir seu comportamento. \Pressões ambientais, estímulos externos, impulsos orgânicos, de sejos, atitudes, sentimentos, idéias e outras coisas semelhantes não recobrem ou explicam o processo de autoindicação. jTal processo se posiciona diante dessas coisas na medida em que o indivíduo as aponta para si mesmo e interpreta seu surgimento ou expressão, observando dada exigência social que lhe é feita, reconhecendo uma ordem, notando que está faminto, percebendo que deseja comprar algo, tornando-se ciente de determinado sentimento, consciente de que não gosta de comer em companhia de alguém a quem despreza ou de que está pensando em fazer determinada coisa. Ao indicar essas coisas para si mesmo, o indivíduo se coloca -çj diante delas e pode reagir a elas, aceitando-as, rejeitando-as ou q transformando-as de acordo com o modo como as define ou in- C5 terpreta. Seu comportamento, por consequência, não é um resul- H tado de coisas como pressões ambientais, estímulos, motivos, ati- Ar tudes e idéias, mas, em vez disso, surge da forma como interpreta A e lida com essas coisas na ação que está construindo. O processo 0 ( de autoindicação pelo qual a ação humana é formada não pode ' 80 Estudos sobre interação: textos escolhidos ser explicado por fatores que antecedem o ato. Ele existe por si só e deve ser aceito e estudado como tal. É por meio dele que o ser humano constrói sua ação consciente. Ora, Mead reconhece que a formação da ação pelo indiví duo por um processo de autoindicação sempre se dá num contexto social. Isso é tão vital para a compreensão da interação simbólica que precisa ser cuidadosamente explicado. Basicamente, a ação em grupo toma a forma de um encaixe entre linhas individuais de ação. Cada indivíduo alinha sua ação com a dos outros verificando o que estão fazendo ou pretendem fazer - isto é, entendendo o significado de seus atos. Para Mead, isso se faz quando o indivíduo “assume o papel” dos outros — seja o papel de uma pessoa específica ou o papel de um grupo (o “outro generalizado” de Mead). Ao assumir esses papéis, o indivíduo busca determinar a intenção ou o objetivo dos atos dos outros. Ele forma e alinha sua ação com base nessa inter pretação dos atos dos outros. É esse o modo fundamental pelo qual a ação de grupo ocorre na sociedade humana. Esses são os traços essenciais, em minha visão, da análise de Mead das bases da interação simbólica. Tais traços pressupõem que a sociedade humana é formada por indivíduos que têm se lv es (isto é, que fazem indicações para si mesmos); que a ação indivi dual é uma construção e não uma descarga, sendo construída pelo indivíduo por meio da observação e interpretação das caracterís ticas das situações nas quais age; que a ação de grupo ou coletiva consiste no alinhamento das ações individuais, realizado pela in terpretação ou consideração, pelos indivíduos, das ações uns dos outros. Uma vez que meu objetivo é apresentar, e não defender, a posição da interação simbólica, não tentarei, neste ensaio, susten tar as três premissas que acabo de indicar. Desejo apenas dizer que elas são fáceis de verificar empiricamente. Não conheço qualquer exemplo de ação humana de grupo ao qual todas não se apliquem. Desafio o leitor a encontrar ou imaginar um único exemplo n a qual não se encaixem. A sociedade como interação simbólica 81 Quero agora apontar que as visões sociológicas da socie dade humana em geral divergem claramente das premissas que expus como subjacentes à interação simbólica. De fato, a maior parte dessas visões, principalmente as que estão na moda hoje, não veem ou tratam a sociedade humana como interação simbólica. Comprometidas, da maneira como tendem a ser, com alguma for ma de determinismo sociológico, adotam imagens da sociedade humana, dos indivíduos e da ação de grupo que não combinam com as premissas da interação simbólica. Gostaria de falar um pouco sobre as principais linhas de divergência. O pensamento sociológico raramente reconhece ou trata as sociedades humanas como compostas por indivíduos que têm selves. Em vez disso, assumem que os seres humanos são apenas organismos com algum tipo de organização, e que reagem a forças que atuam sobre eles. Em geral, embora não exclusivamente, es sas forças residem na composição da sociedade, como no caso de “sistema social”, “estrutura social”, “cultura”, “posição de sta tu s”, “papel social”, “costume”, “instituição”, “representação coletiva”, “situação social”, “norma social” e “valores”. O pressuposto é que o comportamento das pessoas como membros d e um a so c ied a d e é uma expressão do efeito que esses tipos de fatores ou forças exer cem sobre elas. Essa é, obviamente, a posição lógica necessaria mente assumida quando o estudioso explica o comportamento das pessoas, ou fases de seu comportamento, em termos de um ou outro desses fatores sociais. Os indivíduos que compõem uma sociedade humana são tratados como os meios pelos quais esses fatores operam, e a ação social desses indivíduos é vista como uma expressão desses fatores. Essa abordagem ou ponto de vista nega, ou ao menos ignora, que os seres humanos têm se lv es - que eles agem fazendo indicações para si mesmos. Consequentemente, o s e l f não entra no quadro por meio da introdução de itens como impulsos orgânicos, motivos, atitudes, sentimentos, fatores sociais internalizados ou componentes psicológicos. Esses fatores psíco- 82 Estudos sobre interação: textos escolhidos lógicos têm o mesmo sta tu s que os fatores sociais mencionados: são vistos como fatores que atuam sobre o indivíduo e produzem sua ação. Eles não fazem parte do processo de autoindicação. O processo de autoindicação se posiciona diante deles, assim como se posiciona diante dos fatores sociais que atuam sobre o ser hu mano. Praticamente todas as concepções sociológicas da socieda de humana não reconhecem que os indivíduos que a compõem têm se lv es no sentido anteriormente descrito. Em conformidade com isso, essas concepções sociológicas não encaram as ações sociais dos indivíduos na sociedade huma na como construídas por eles por meio de um processo de inter pretação. Em vez disso, a ação é tratada como um produto de fatores que atuam sobre e através dos indivíduos. O comporta mento social das pessoas não é visto como construído por elas por intermédio de uma interpretação de objetos, situações ou ações dos outros. Se a “interpretação” tem algum lugar, é como mera expressão de outros fatores (como os motivos) que precedem o ato e, de forma coerente, desaparece como um fator autônomo. Em decorrência disso, a ação social das pessoas é tratada como um fluxo direcionado para o exterior ou uma expressão de forças que atuam sobre elas, e não como atos construídos por pessoas por meio de suas interpretações das situações em que se encontram. Tais observações sugerem outra linha importante de dife- rença entre as visões sociológicas em geral e a posição da interação simbólica. Esses dois conjuntos de visões diferem quanto ao lugar em que alojam a ação social. Na perspectiva da interação simbó lica, a ação social está situada em indivíduos que agem, os quais encaixam suas respectivas linhas de ação entre si por meio de um processo de interpretação; a ação de grupo é a ação coletiva desses indivíduos. Em oposição a essa visão, as concepções sociológicas geralmente alojam a ação social na ação da sociedade ou em al guma unidade social. Há incontáveis exemplos disso. Deixem-me citar alguns. Algumas concepções, ao trataras sociedades ou os A sociedade como interação simbólica 83 grupos humanos como “sistemas sociais”, encaram a ação de gru po como expressão de um sistema, seja em estado de equilíbrio ou num esforço para alcançá-lo. Ou, então, a ação de grupo é concebida como expressão das “funções” de uma sociedade ou de um grupo. Ou, ainda, é vista como expressão, voltada para o exterior, de elementos alojados na sociedade ou no grupo, como exigências culturais, propósitos societais, valores sociais ou tensões institucionais. Essas concepções típicas ignoram ou bloqueiam uma visão da vida de grupo ou da ação de grupo como composta por ações coletivas ou concatenadas de indivíduos que buscam dar conta de suas situações de vida. Quando são minimamente reco nhecidos, os esforços das pessoas para desenvolver atos coletivos para dar conta das situações são incluídos no jogo de forças subja centes ou transcendentes alojadas na sociedade ou em suas partes. Os indivíduos que compõem a sociedade ou o grupo se transfor mam em “veículos” ou em meios para a expressão dessas forças; e o comportamento interpretativo pelo qual as pessoas formam suas ações é visto como mero elo imposto no jogo dessas forças. Essa indicação das linhas de divergência deveria ajudar a esclarecer a posição da interação simbólica. No restante desta dis cussão, gostaria de esboçar de forma mais completa o modo como a sociedade humana surge em termos de interação simbólica e apontar algumas implicações metodológicas. A sociedade humana deve ser vista como consistindo de pesso as que agem, e a vida da sociedade, como consistindo de suas ações. As unidades atuantes podem ser indivíduos separados, coletividades cujos membros estão agindo juntos numa busca comum ou organi zações agindo por delegação. Exemplos para cada uma dessas pos sibilidades: consumidores individuais num mercado, um grupo de teatro ou uma equipe de missionários, e uma corporação de negócios ou uma associação profissional nacional. Não há qualquer atividade empiricamente observável numa sociedade humana que não brote de alguma unidade de ação. Essa afirmação banal precisa ser enfatiza- 86 Estudos sobre interação: textos escolhidos tão notável. Tentar captar o processo interpretativo à distância, como um assim chamado observador “objetivo” e se recusando a assumir o papel da unidade de ação, é se arriscar ao pior tipo de subjetivismo - é provável que o observador objetivo complete o processo de interpretação com as próprias conjecturas, em vez de captá-lo da forma como ele se dá na experiência da unidade de ação que o utiliza. Evidentemente, de modo geral os sociólogos não estudam a sociedade humana em termos de suas unidades de ação. Ao contrário, tendem a encarar a sociedade humana em termos de estrutura ou organização e a tratar a ação social como uma ex pressão de tal estrutura ou organização. Assim, o estudioso fica na dependência de categorias estruturais como sistema social, cultu ra, normas, valores, estratificaçao social, posições de sta tus, papéis sociais e organização institucional. Essas categorias são utilizadas tanto para analisar a sociedade humana quanto para explicar a ação social que nela tem lugar. Há outros interesses centrais dos sociólogos que giram em torno desse tema básico da organização. / Uma linha de investigação vê a organização em termos das fun ções que se supõe que ela desempenhe ./Outra vertente é o estudo da organização societal como um sistema em busca de equilíbrio; aqui, o estudioso procura detectar mecanismos inerentes ao siste- ma/Uma terceira abordagem é a identificação de forças que agem sobre a organização para produzir mudanças; aqui, o estudioso busca, principalmente por meio do estudo comparativo, isolar uma relação entre fatores causais e resultados estruturais./Essas várias perspectivas e interesses sociológicos, hoje tão firmemente posicionados, deixam de lado as unidades de ação de uma socie dade e ignoram o processo interpretativo pelo qual essas unidades constroem suas ações. Essas respectivas preocupações, com a organização, por um lado, e com as unidades de ação, por outro, -defomm-a diferença essencial entre as visões convencionais da sociedade humana e a A sociedade como interação simbólica 87 visão implícita na interação simbólica. Esta última reconhece a presença da organização na sociedade humana e respeita sua im portância. Entretanto, vê e trata a organização de forma diferente. Essa diferença gira em torno de dois pontos principais. Em pri- \ meiro lugar, do ponto de vista da interação simbólica, a organiza ção de uma sociedade humana é a moldura no interior da qual a ação social ocorre, e não o determinante dessa ação. Em segundo lugar, essa organização e suas mudanças são o produto da ativida de das unidades de ação, e não de “forças” que as desconsideram. É preciso explicar brevemente cada um desses dois pontos princi pais de divergência para podermos compreender melhor o que é a sociedade humana em termos de interação simbólica. Do ponto de vista da interação simbólica, a organização social é uma moldura no interior da qual as unidades de ação desenvolvem suas ações. Os traços estruturais, como “cultura”, “sistemas sociais”, “estratificação social” ou “papéis sociais”, defi nem as condições para sua ação, mas não a determinam. As pesso as - isto é, as unidades de ação - não agem em relação à cultura, à estrutura social ou a coisas semelhantes; elas agem em relação a situações. A organização social só entra na ação na medida em que modela as situações nas quais as pessoas agem, e na medida em que fornece conjuntos fixos de símbolos utilizados por elas para, Cf interpretar as situações. Essas duas formas de influência da organi- '<j zação social são importantes. No caso de sociedades estabelecidas -f ' e estáveis, como tribos primitivas isoladas e comunidades campo nesas, a influência com certeza é profunda. No caso das socieda des humanas, em particular das sociedades modernas, nas quais jorram torrentes de situações novas e as velhas situações se tornam instáveis, a influência da organização diminui. É preciso ter em mente que o elemento mais importante diante de uma unidade de ação nas situações é a ação das outras unidades. Na sociedade moderna, com seu entrecruzamento crescente das Unhas de ação, é comum que surjam situações nas quais as ações dos participantes f> o p o )0 d 'o 0 0 0 yj ~h €) K) oDo d £ £ ,C d) (ic \q ue , "* 'V * « n t s« bI d 88 Estudos sobre interação: textos escolhidos \ 0 .) ü O £ .9 tf vfi 3 tf tf %3 r <j) não estão previamente regularizadas e padronizadas. Nesse sen tido, a organização social existente não molda as situações. De forma correspondente, os símbolos ou ferramentas de interpreta ção usados pelas unidades de ação nessas situações podem variar e mudar consideravelmente. Por essas razões, a ação social pode ir além, ou se afastar, da organização existente em qualquer uma de suas dimensões estruturais. A organização de uma sociedade humana não deve ser identificada com o processo de interpretação usado por suas unidades de ação; embora ela afete esse processo, não o contém ou recobre. Talvez a consequência mais notável de se encarar a socieda de humana como organização seja negligenciar o papel das uni dades de ação na mudança social. O procedimento convencional dos sociólogos é: (a) identificar a sociedade humana (ou alguma de suas partes) em termos de uma forma estabelecida ou organiza- J da; (b) identificar algum fator ou condição de mudança que esteja 0 agindo sobre a sociedade humana ou sobre essa sua parte; e (c) (('identificar a nova forma assumida pela sociedade em decorrên cia da atuação do fator de mudança. Essas observações permitem ao estudioso formular proposições com a finalidade de mostrar que determinado fator de mudança, agindo sobre determinada forma organizada, tem como resultado determinada nova formaorganizada. Há inúmeros exemplos dessas proposições, das mais banais às mais refinadas, como, por exemplo, que uma depressão econômica aumenta a solidariedade nas famílias de trabalhadores ou que a industrialização substitui as famílias extensas por famílias nucleares. M inha preocupação aqui não é com a validade dessas proposições, mas com a posição metodológica que pressupõem. Essencialmente, essas proposições ignoram o papel do compor tamento interpretativo das unidades de ação em dado exemplo de mudança, ou então encaram o comportamento interpretativo como coagido pekvTafor de mudança. Gostaria de enfatizar que qualquer linha de mudança social, uma vez que envolve mudan A sociedade como interação simbólica 89 ças na ação humana, é necessariamente mediada pela interpre tação por parte das pessoas afetadas pela mudança - a mudança aparece sob a forma de novas situações nas quais as pessoas têm de construir novas formas de ação. Além disso, em consonância com o que já foi dito, as interpretações das novas situações não são predeterminadas por condições que as antecedem, mas dependem daquilo que é levado em conta e avaliado nas situações reais nas quais o comportamento se forma. As variações de interpretação podem ocorrer prontamente quando unidades de ação diferentes elegem objetos diferentes na situação, ou atribuem pesos diferen tes aos objetos que observam, ou reúnem os objetos em padrões diferentes. Ao formular proposições de mudança social, seria pru dente reconhecer que qualquer linha dessas mudanças é mediada por unidades de ação que interpretam as situações com as quais se deparam. Os estudiosos da sociedade humana terão de encarar a ques tão quanto a se sua preocupação com categorias de estrutura e organização pode ser compatibilizada com o processo interpre tativo pelo qual os seres humanos, individual e coletivamente, agem na sociedade humana. E tal discrepância que flagela esses estudiosos em seus esforços para chegar a proposições científicas do tipo formulado nas ciências físicas e biológicas. Além disso, é também essa discrepância a maior responsável por sua dificul dade em encaixar proposições hipotéticas com novos arranjos de dados empíricos. Há esforços, evidentemente, para superar essas falhas por meio da invenção de novas categorias estruturais, da formulação de novas hipóteses estruturais, do desenvolvimento de técnicas mais refinadas de pesquisa e mesmo da formulação de novos modelos metodológicos de natureza estrutural. Esses esfor ços continuam a ignorar ou a não dar explicações satisfatórias para o processo interpretativo pelo qual as pessoas agem, individual e coletivamente, em sociedade. E permanece a questão de saber se a sociedade humana ou a ação social podem ser analisadas de forma 90 Estudos sobre interação: textos escolhidos 0 bem-sucedida por meio de modelos que se recusam a reconhecer os seres humanos tais como são, a saber, como pessoas que cons tróem a ação individual e coletiva por intermédio de uma inter- i pretação das situações com as quais se deparam.
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