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1 Editor Renato Carlos de Menezes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Assistente de Edição Felipe Morais de Melo - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Miguel Pereira Neto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Márcio Adriano Tavares Fernandes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Marinho Brandão Santos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conselho Editorial Drª. Maria da Conceição Fraga - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Miguel Pereira Neto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Carlos de Menezes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Renato Marinho Brandão Santos - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Conselho Consultivo Drª. Ana Teresa Marques Gonçalves - Universidade Federal de Goiás (UFG). Drª. Anita Waingort Novinsky - Universidade de São Paulo (USP). Dr. Angelo Adriano Faria de Assis - Universidade Federal de Viçosa (UFV). Drª. Anne-Marie Pessis - Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Dr. Durval Muniz de Albuquerque Júnior - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Drª. Julie Antoinette Cavignac - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). 2 Drª. Maria Dulce Barcellos Gaspar de Oliveira - Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Drª. Maria Emília Monteiro Porto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Drª. Margarida Maria Dias de Oliveira - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Normalização Miguel Pereira Neto - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Revisão de Texto Felipe Morais de Melo - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Projeto/Editoração eletrônica Márcio Adriano Tavares Fernandes - Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Figura da Capa Cleopatra Testing Poisons on Condemned Prisoners Alexandre Cabanel 1887 3 SUMÁRIO Apresentação 05 Resenha Abolição da escravidão em Mossoró 09 Adultério e cotidiano: Lísias I para Além do público/privado 14 Algumas reflexões sobre o populismo e suas relações com a política externa independente 24 4 Dos Atos Parodísticos: A execução da performance paródica na experiência da travestilidade 42 Estudos de gênero e pederastia ateniense 74 Homens também fazem isso? Reflexões sobre uma nova face do turismo sexual e da prostitução 88 Mulheres do nordeste paulista: modernidade feminina em Ribeirão Preto-SP durante a Belle Époque Caipira. 113 O pensamento civilizador e a cultura historiográfica brasileira no século XIX 128 Quando o amor vira crime: práticas discursivas acerca da sexualidade dos populares em Teresina (1900-1920) 148 5 APRESENTAÇÃO Sexo e Poder Este número da revista Fazendo História reúne artigos que abordam de diferentes perspectivas, a partir de eventos e temporalidades diversas, a relação entre sexo e poder. Talvez inicialmente cause estranhamento que uma revista que reúne trabalhos de estudantes e profissionais da história trate de um tema que comumente é associado à natureza, dado que os historiadores se debruçariam sobre aquilo que seria da ordem da cultura, sobre aquilo que seria fruto das ações humanas e que seriam mutáveis ao longo do tempo, e não é assim que tradicionalmente a natureza e, portanto, o corpo humano e o sexo são vistos. A natureza, como tal, seria ahistórica, seria imutável em suas leis e funcionamento, seria distinta dos homens, justamente, por constituir um sistema fechado e imanente, do qual o homem é apenas mais uma peça, obedecendo a princípios imutáveis ao longo do tempo. Talvez seja este o primeiro aspecto que recobre de importância este número da revista Fazendo História, o fato de que os artigos aqui reunidos tomam a natureza como uma possibilidade para os homens, mas não como uma determinação. A própria idéia de natureza humana é datada, emerge por volta do século XVIII, sendo uma noção culturalmente produzida. Podemos aprender com estes trabalhos que a natureza é também uma fabricação humana, a começar da própria palavra, do próprio conceito de natureza, que tem significados, que possui diferentes descrições e concepções ao longo da história. O mesmo se dá com as noções de corpo e de sexo. O corpo humano tem uma dimensão biológica que não pode ser negada, mas este conjunto de órgãos e funções só constituem um corpo a partir da percepção daqueles que têm corpos humanos, percepção que se diferencia em cada cultura e em cada época histórica. O corpo não é visto, pensado, dito, conceituado da mesma forma, em todas as épocas e lugares, o corpo é valorado, é percebido esteticamente, é investido eroticamente de diferentes maneiras, dependendo da sociedade ou da cultura em que está inserido. O que pode um corpo? O que é um corpo? O que é um corpo belo, desejado, desejável, um corpo saudável? A estas questões os homens e as mulheres deram respostas distintas, a depender do contexto sócio-cultural em que se encontravam. A partir do século XIX o corpo humano passou a ter um centro de significação em torno do qual passaram a girar as preocupações médicas, jurídicas, as falas íntimas, as atitudes das famílias, a vida de cada um: o sexo. Aquilo que Michel Foucault chamou de dispositivo da 6 sexualidade, ou seja, um conjunto de saberes, instituições, regras, leis, normas, ações, que passaram a girar em torno da prática do sexo, dotaram esta atividade de uma importância que ela não possuiu em sociedades anterior. A sociedade moderna ocidental passou a ter uma verdadeira obsessão em relação a tudo que envolve a prática do sexo. Notadamente com a psicanálise, a sexualidade, a forma como praticamos sexo, com quem o fazemos, de que maneira o valoramos ou pensamos passou a ser revelador e definidor da própria identidade de cada um. O sexo passou a ser o umbigo do ser, ele passa a ser interrogado como sendo o lugar onde se aloja a verdade mais interior, mais recôndita de cada um. Se queremos saber quem somos precisamos ir ao analista e com ele interrogarmos a nossa vida sexual; se queremos saber quem é o outro de quem nos aproximamos basta sabermos mais sobre sua sexualidade. Ao mesmo tempo em que não paramos de dizer que somos reprimidos sexualmente, o sexo não sai da cabeça de cada um, é um dos assuntos mais discutidos e debatidos, seja na vida privada ou na vida pública, um assunto que incita e excita a uma proliferação de discursos, de saberes, de práticas, que em nome do seu controle ou não, não fazem mais do que proliferarem as referências e as preocupações com esta temática. Justamente porque achamos que o sexo é natural, ele seria uma dádiva da natureza, justamente porque ele seria o cerne da reprodução e, portanto, da vida humana, ele seria este lugar onde encontraríamos o nosso mais íntimo segredo, aquele lugar onde se alojaria a nossa verdade mais básica. O sexo seria este significante nuclear a partir do qual desvelaríamos as verdades de cada um e de cada relação. No entanto, a teórica feminista Judith Butler vai advogar que o sexo é também uma criação social e cultural, o sexo seria uma criação das relações sociais, ele seria implantado nos corpos, a partir da valoração, classificação, da hierarquização feita a partir da anatomia com que este corpo nasce. Se a teoria de gênero já afirmava que ninguém nasce masculino ou feminino, que todos se tornam masculinos e femininos através do processo de socialização, que todos aprender a ser masculinos e femininos, e esta aprendizagem é histórica e culturalmente situada, Butler vai defender que o mesmo se passa com o sexo. Aprendemos a tomar a anatomia com que nascemos como um destino, como uma imposição de dados papéis, de dados lugares de sujeito, de dadas maneiras de ser e de se comportar. Se nascercom um pênis não define a masculinidade daquele corpo, que pode inclusive desenvolver uma identidade feminina, como é o caso daqueles nomeados de transexuais, para Butler nascer com um pênis ou uma vagina não define sequer que este ser venha a ser sexuado, ou seja, que venha a se ver como portador de um dado sexo, que tenha obrigatoriamente que praticar o sexo. O portador de um sexo pode decidir nunca usá-lo ou, até mesmo, modificá-lo através de práticas cirúrgicas ou de mutilação. Somente a centralidade cultural que damos ao sexo faz pensar que este é uma realidade incontornável, onde 7 residiria nossa alegria, nossa felicidade, nosso bem estar psíquico e social. Mas através de que mecanismos, através de que processos o sexo ou o gênero é implantado nos corpos. Tanto a incorporação de um sexo, como de um gênero passa pela subjetivação de normas, valores, hábitos, costumes, formas de ver, formas de pensar, de dados códigos éticos, eróticos e estéticos que circula em dada sociedade. Esta incorporação se dá através das relações sociais, das relações com outros corpos, com instituições, que veiculam saberes e exercem coações e coerções, que produzem discursos, que usam do convencimento e da sedução para sujeitarem e promoverem a subjetivação dos códigos sociais dominantes, bem como também de atitudes e formas de ser e pensar desviantes em relação a eles. Mesmo o desvio em relação ao que é dominante não se encontra numa posição de exterioridade ao que é definido como conforme a norma, como o normal, é um produto da relação com ele do embate e da resistência a ele, que não se processo do exterior, mas do interior dele mesmo. Este processo de constituição de corpos e de subjetividades tem, portanto, como elementos determinantes os saberes e as relações de poder que se espalham pelo corpo social. A invaginação do fora, do social, que constituem as subjetividades, os sujeitos, sujeitos que são dobras do arquivo de enunciados e de gestos que compõem uma dada realidade social, ela se dá através da pressão das forças, se dá à medida que os corpos se colocam em relações de poder que pressionam e seduzem corpos e almas para serem de dadas formas, para terem dados desejos, para quererem ser de dadas maneiras, para terem dado sexo, para serem masculinos ou femininos, para serem heterossexuais ou homossexuais. Este processo não se dá da mesma forma em todos os tempos, daí porque interessa aos historiadores saber como se deslocou ao longo do tempo certas formas de ser, certas maneiras de valorar e conceber o masculino e o feminino, o macho e fêmea. É matéria da historiografia as diferentes maneiras como as sociedades humanas trataram de seus corpos, os enfeitaram, os marcaram, os tornaram belos, como se relacionaram com o sexo, como o praticaram, como sobre ele criaram tabus, medos, desejos, prescrições, códigos de conduta, como a partir dele se constituíram dado imaginário, dadas instituições. Como o sexo foi tema de distintas intervenções médicas, religiosas, jurídicas, éticas, estéticas. Interessa ao historiador saber como os corpos foram implicados em atividades econômicas, político-militares, de adestramento, em atividades lúdicas e procriativas. Interessa os distintos discursos sobre o corpo e o sexo, mas também as diferentes práticas que dão vida e a realidade a estes dois conceitos. Como o sexo implica sempre uma relação, nem que seja imaginária, com outros corpos, o sexo implica também o exercício e, ao mesmo tempo, a paixão do poder. O sexo se articula o 8 tempo todo com gestos, atitudes, práticas e desejos de domínio e de posse, mas também de subserviência, obediência e servidão. Como toda relação, a relação sexual implica negociação, consensos e conflitos, satisfação e insatisfação, regozijo e revolta. Em todas as práticas e discursos que envolvem o sexo em nossa sociedade está presente o poder em suas múltiplas faces, em suas múltiplas formas de exercício e de vontade. O sexo é, entre nós, uma das maneiras, inclusive de submeter, de explorar, de torturar outras pessoas, assim como também uma maneira de agradar, conquistar, se doar a outras pessoas. Portanto, convido a todos os leitores a entrar em contato, através da leitura dos artigos que compõem este número da Fazendo História, com algumas das múltiplas formas com que a relação entre sexo e poder se manifestou ou se manifesta na sociedade brasileira e, potiguar em particular. Que estes artigos tenham o poder de oferecer prazer e conhecimento para seus leitores, que ler esta revista seja quase um gozo. Durval Muniz de Albuquerque Júnior 9 Resenha BRAZ, Emanuel Pereira. Abolição da escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato. Mossoró: Fundação Vingt-un Rosado, 1999.1 Érica Lidiane Amorim Ferreira2 A presente obra a ser analisada aborda diversos aspectos que levam ao público leitor a oportunidade de conhecer melhor a história da cidade de Mossoró, um dos centros urbanos mais relevantes economicamente do Rio Grande do Norte. A obra proporciona uma importante compreensão sobre o envolvimento da elite intelectual local com um dos maiores acontecimentos inseridos no contexto histórico regional-nacional: a abolição da escravidão. A abolição da escravidão é analisada a partir de uma relação com a história local, regional e nacional. Nessa relação, o autor dialoga com outros historiadores e identifica abordagens diversas e até contraditórias a respeito desse fato histórico, então, incidem as análises mais significativas, as quais revelam a manipulação da história e a fabricação de fatos e personagens com a finalidade de criar mitos e de influenciar o imaginário social para a perpetuação de idéias e crenças que valorizam e reforçam as relações de poder em Mossoró. Desde o início da colonização do RN até as comemorações e acontecimentos mais contemporâneos, aos quais Mossoró serve de palco, têm-se despertado diversas curiosidade, que provavelmente devem ter suscitado no autor o desejo de produzir a obra em tela. A questão da “Abolição da Escravidão” em Mossoró foi muito bem discutida por Emanuel Braz tanto na parte introdutória do livro quanto nas três partes subseqüentes. Podemos, então, perceber que o autor busca compreender a real importância dos acontecimentos através de uma reconstituição das suas origens e 1 Emanuel Pereira Braz nasceu em Pernambuco, possui graduação em História pela Universidade Federal de Pernambuco e fez mestrado em Ciências Sociais pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Ele é professor titular no Departamento de História da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte e atualmente está à frente da direção da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais da mesma instituição. Lecionou por cerca de dez anos em instituições de ensino particulares e públicas nos antigos 1º e 2º graus. 2 Formada em História pela Universidade do Estado do Rio Grande do Norte – UERN. 10 formas de manutenção dos mesmos. A ênfase que é dada pelo autor à questão da Abolição em Mossoró se dá pelo fato de essa ser a realização ou o acontecimento mais importante dos seus antepassados para com a cidade. Sendo assim, o poder executivo local é o principal agente mantenedor desse processo de (re)construção cultural da cidade. O fato de Mossoró ter abolido a escravidão cinco anos antes da Lei Áurea não significa que a cidade se utilizava majoritariamente da mão-de-obra escrava e sim, muito pelo contrário, que o seu numerário negro-escravo3[3] era considerado insignificante se comparado às condições dos contextosregional e nacional. Num primeiro momento – mais especificamente no primeiro capítulo – as análises do autor referem-se às origens da sociedade local, ou seja, de Mossoró. Há uma busca de fundamentação das explicações acerca do título da obra em cima da compreensão das diversas condições que propiciaram o estabelecimento e crescimento da população local e de como se deram as relações sócio-econômicas e políticas que a posteriore favoreceriam o crescimento da cidade de Mossoró até os dias atuais. Dentre as condições que podem ser citadas, dá-se destaque, principalmente, para os aspectos climáticos que desfavoreciam o cultivo da cana-de-açúcar – uma das principais atividades do Brasil Colônia – nas áreas não litorâneas do norte (nordeste) do Brasil e que, por sua vez, favoreciam atividades como a criação de gado no interior do continente, impulsionando, assim, o comércio que emergiu em algumas regiões como, foi o caso de Mossoró, levando o autor Celso Furtado a afirmar que: sendo a criação nordestina uma atividade dependente da economia açucareira, em princípio era a expansão desta que comandava o desenvolvimento daquela. (FURTADO apud BRAZ, 1999:24). É a partir da segunda metade do século XVIII que são datados o avanço e a criação de muitas fazendas de gado às margens dos rios Mossoró e Upanema, a exemplo das fazendas Barrocas e Santa Luzia, dentre outras. O autor relata-nos características e fatos relativos à escravidão e à participação do escravo nas atividades econômicas, assim como a preocupação da então burguesia agrário-comercial quanto à organização do espaço urbano e à projeção da cidade para além de uma dessas fronteiras. É além de uma dessas fronteiras que vai surgir a causa de muitas das mudanças e/ ou acontecimentos que virão a ocorrer 3 O número de escravos registrados em Mossoró em 1883 era de 86, segundo registro da Coletoria Estadual. 11 na futura cidade de Mossoró vindos da província do Ceará. No segundo capítulo do livro, veremos uma preocupação mais veemente quanto aos motivos ou condições que propiciaram o avanço das idéias abolicionistas em Mossoró. Daí é que surge a “necessidade” de se dar um maior destaque à cidade de Mossoró, focando, de forma especial, a realização da abolição da escravidão na mesma, tornado feito heróico e pioneiro. É nesse capítulo que vão ser pormenorizados os registros das primeiras tentativas de comemoração do 30 de setembro. A propagação do movimento abolicionista em Mossoró teve aceitação devido ao fato dos proprietários de escravos não recearem perder seu patrimônio, pois os mesmos já tinham a atividade comercial como base de sustentação de suas riquezas. Por esse motivo, se importavam pouco ou nada se perderiam ou não seus escravos, tampouco se seriam indenizados ou não em troca das libertações. A criação de símbolos, tradições, adoção de ideais estrangeiros, nomes de ruas, praças, bairros, etc foram práticas constantes na história de Mossoró. O surgimento de instituições como a Sociedade Libertadora Mossoroense4[4] e o Clube dos Espártacus serviu muito bem aos interesses abolicionistas, para que não houvesse, por exemplo, o abandono da causa libertária. Personagens representativos, como Rafael Mossoroense, foram criados (as) para melhor simbolizar o 30 de setembro de 1883, ou seja, nada melhor do que um escravo ser liberto nessa data e depois vir a ser presidente do Clube dos Espártacus, cuja criação ocorreu logo após o advento do movimento abolicionista mossoroense, servindo, assim, como uma espécie de simbologia de heroísmo e pioneirismo. Das figuras notáveis que vieram do Ceará para implementar na província do RN as idéias já tão bem trabalhadas por eles lá, podemos citar o famoso Almino Affonso, que, dentre outros nomes, teve importante participação na construção histórico-política mossoroense. Ao passarmos para o terceiro e último capítulo, o autor denotará suas mais reais 4 Entidade fundada pelos abolicionistas com o intuito de fazer a campanha abolicionista ganhar representatividade, passando a atuar com maior eficácia no sentido de libertar a cidade de Mossoró da escravidão. Ver em Emanuel P. BRAZ, Abolição da Escravidão em Mossoró: pioneirismo ou manipulação do fato, p.48. 12 intenções de rastrear a história local, buscando localizar as ações e as formas instituídas sócio-politicamente na busca de uma maior valorização e preservação de um dos fatos considerados mais relevantes para a história de Mossoró, repita-se, a Abolição dos Escravos. Acentuando, principalmente, a questão da exaltação do pioneirismo, algo que vem sendo alimentado desde a segunda metade do século XIX, como se Mossoró necessitasse disso para poder manter o seu status quo de cidade próspera do interior do Rio Grande do Norte. A obra de Emanuel Braz enfatiza bastante a participação determinante da Loja Maçônica “24 de Junho”, que formava e mantinha quase que a totalidade dos líderes abolicionistas do então nascente e crescente movimento que se sobressaía no Estado de meados de 1880 em diante. No ano de 1883, os membros da Loja Maçônica já antecipavam as primeiras alforrias de escravos em Mossoró, que beneficiaram quarenta escravos. O curioso é que essa quantia correspondia a quase a metade do numerário de escravos registrados de Mossoró. Comprovamos, com isso, que as primeiras alforrias ocorridas em Mossoró datam antes mesmo do estatuto oficial do movimento abolicionista ocorrer, ou seja, antes mesmo da criação ou fundação da Sociedade Liberdade Mossoroense. Foi após a criação da já citada Sociedade que a campanha abolicionista passou a ter uma maior representatividade, consolidando, desse modo, o processo de libertação da escravidão em Mossoró que, por sua vez, se deu de forma rápida, pois, desde o seu início até o seu ápice, passaram-se apenas cerca de dez meses. A concepção de pioneirismo na cidade fez com que a população mossoroense passasse a crer no heroísmo dos abolicionistas, criado e recriado ao longo de uma extensa trajetória histórica que compreende construções e reconstruções das tradições, que se concretizaram no espaço público através de placas nomeando as ruas da cidade, outras identificando a residência onde morou algum abolicionista, construção de monumentos como a Estátua da Liberdade e o Pantheon aos abolicionistas, este último foi construído à entrada principal do Museu Municipal Lauro da Escóssia. Na intenção de reavivar na mente do povo a valorização dos personagens e fatos relacionados com a abolição da escravidão em Mossoró é que veio surgir a iniciativa de um membro da família Rosado (a principal família política de Mossoró), o então prefeito municipal Jerônimo Vingt Rosado Maia (1952 a 1956), que incentivou amplamente as pesquisas no sentido de reconstituir e propagar tudo que 13 fosse relacionado ao acontecimento da abolição escrava em Mossoró. E não foi só no poder público municipal que a família Rosado atuou (e atua), mas também nas esferas estadual e federal, sendo só a partir da década de 50 do século XX que vem a ocorrer uma participação mais efetiva quanto à perpetuação do fato (da Abolição) no sentido de dar um sustentáculo mais sólido para a manutenção do poder da chamada “Oligarquia Rosado”. Os jornais locais,como O Mossoroense e a Gazeta do Oeste, também foram elementos de extrema importância para a perpetuação das comemorações abolicionistas em Mossoró e região, levando ao conhecimento das massas os depoimentos de grandes nomes do cenário político norte- rio-grandense, como, por exemplo, o ex-governador do estado, José Agripino Maia, e outros que, juntamente com os jornalistas dos dois jornais citados, ajudaram e muito contribuíram para uma espécie de re-leitura dos eventos comemorativos do 30 de Setembro em Mossoró, o que contribuiu com a construção de mitos e com a valorização de personagens - heróis da história local. O livro do autor Emanuel Braz consiste numa obra muito bem elaborada, em que o mesmo se utilizou de ótimas referências teórico-metodológicas dialéticas que muito contribuíram para uma abordagem clara e objetiva que pode facilmente atingir o grande público e não somente a comunidade acadêmica. Braz ilustrou de uma forma muito coerente o seu livro, levando ao público não só fotografias importantes, mas também depoimentos coletados em entrevistas que muito endossaram os fatos abordados em seu estudo, proporcionando, dessa maneira, uma leitura instigante e agradável ao mesmo tempo. 14 Adultério e cotidiano: Lísias I para Além do público/privado5 Fábio Augusto Morales Soares Graduado em História pela Universidade de São Paulo e mestrando em História Social pela mesma universidade. Resumo: Baseado em uma análise de um discurso jurídico da Atenas Clássica, este artigo discute a relação entre História e vida cotidiana, apontando alguns caminhos em que a dicotomia estrutura/ação poderia ser pensada dialeticamente, na direção de uma superação da fragmentação predominante nos estudos históricos contemporâneos. PALAVRAS-CHAVE: Adultério; cotidiano; marxismo. Abstract: Based on an analysis of an classical Athenian forensic speech, this article discuss the relation between History and everyday life, pointing out some ways in which the dichotomy “action/structure” could be thought dialectically, towards a overcoming of the fragmentation prevailing in contemporary historical studies. Keywords: Adultery; everyday life; Marxism. 5 Este texto é parte da pesquisa de mestrado financiada pela FAPESP, intitulada “A democracia ateniense pelo avesso: metoikoi, identidade e cotidiano em Lísias”, sob orientação do Prof. Dr. Norberto Luiz Guarinello (USP). 15 1. A traição Comecemos pela história de uma traição na polis de Atenas do século IV a. C. Durante algum tempo, Eufileto se sentiu um marido de sorte. A vigilância necessária dos primeiros tempos de casado se tornou, após o nascimento da criança, uma íntima confiança: casado com uma mulher sábia e frugal, pai de uma criança sadia, senhor de uma casa estável – a vida parecia agradável a Eufileto. Mas eis que uma desgraça traria outras: a mãe de Eufileto morre; e durante o funeral, sua esposa é vista por Eratóstenes, homem que, no futuro, causaria a ruína de Eufileto sendo amante de sua esposa. Com a ajuda de uma escrava, Eratóstenes, o amante, corrompeu a esposa de Eufileto, e cometia o crime na própria casa do marido traído. A esposa de Eufileto não tinha pouca imaginação: se antes marido e mulher dormiam em quartos de andares diferentes (o marido embaixo, a mulher em cima), a esposa, alegando riscos que a criança corria no descer escadas, inverteu a ordem, e enquanto Eufileto dormia tranquilamente no quarto de cima, o amante entrava no quarto térreo da esposa. Certa vez, Eufileto desconfiou do abrir e fechar de portas à noite: a esposa disse que era devido à falta de óleo para lamparina do bebê, e que havia ido ao vizinho pedir óleo emprestado. Eufileto acreditou, pois, segundo ele mesmo diria, não era dos maridos mais espertos. Mas, depois de um certo tempo, a inconsciência de Eufileto teria fim: uma mulher de idade avançada, que havia sido desprezada por Eratóstenes, revela a trama ao marido traído. Perturbado, Eufileto carrega sua escrava, cúmplice da traição, para a casa de um amigo, e a interroga: a escrava primeiro nega tudo absolutamente, mas após Eufileto pronunciar o nome “Eratóstenes”, ela desmaia; depois, ajoelhada, implora o perdão. Eufileto o concede, mas sob uma condição: ele queria o flagrante do adultério, e a escrava deveria promovê-lo. Quatro dias depois, voltando da lavoura, Eufileto é avisado pela escrava de que Eratóstenes está em sua casa; Eufileto sai a procura de amigos, encontra-os, arma-se, e retorna. Ao invadir o quarto, com as testemunhas, vê sua mulher deitada com Eratóstenes. Imediatamente, esmurra o adúltero, que, suplicante, implora o perdão em troca de dinheiro. Eufileto, impassível, diz: “Não serei eu que te matarei, mas a lei de nossa cidade” – e mata Eratóstenes. A morte de Eratóstenes não seria o fim dos problemas de Eufileto: a família do falecido o processaria, alegando que existiam desavenças anteriores entre os dois, e que Eufileto teria 16 armado a situação de adultério para justificar o assassinato. Eufileto, então, realizaria sua defesa diante de um tribunal ateniense pronunciando um discurso que, segundo a tradição, teria sido escrito por Lísias, meteco ateniense filho de Céfalo e que, ainda segundo a tradição, exercia a profissão de logógrafo. *** O discurso Sobre o Assassinato de Eratóstenes, primeiro que aparece no Corpus Lysiacum, se tornou célebre para os que tentam acessar aspectos das relações de gênero e da sexualidade da sociedade ateniense do período clássico. Tradicionalmente, o texto é usado como indício das práticas sociais de reclusão da mulher dentro do oikos: a mulher-esposa deveria ficar trancada dentro de casa, sem contato com nenhum outro homem a ser seu marido e filhos, pois sua função era exclusivamente reproduzir a família. Recentemente, o discurso começou a ser interpretado no sentido oposto: a argumentação de Eufileto seria parte de uma ideologia de controle sobre a mulher, necessária justamente porque a mulher não era controlada; o adultério era apenas o indício de uma vida social intensa da mulher ateniense, que incluía festivais e rituais religiosos, relações de amizade e vizinhança etc. O presente texto, ainda que passe pela questão do gênero, procura um caminho diferente de análise. Partindo do fato (discursivo) de que Eufileto matou Eratóstenes, em seu oikos, em nome da lei da polis, a interpretação aqui proposta procura discutir as noções de “público” e “privado”, chamando atenção para as limitações desta dualidade, e experimentando as possibilidades da noção de “vida cotidiana” para a construção de uma visão mais complexa das formas de sociabilidade na sociedade ateniense clássica, em particular as relações entre o sujeito de dentro e o sujeito de fora do oikos. Façamos, pois, um recuo teórico sobre o tema da “História do cotidiano”, para depois retornarmos ao documento e, simultaneamente, à sociedade ateniense. 2. Cotidiano e História A História da vida cotidiana, tradicionalmente ligada à história da vida privada desde o antiquarianismo, passou por uma profunda mudança de sentido a partir da segunda metade do século XX, por influência, principalmente, das obras do sociólogo francês Henri Lefebvre, da 17 filósofa húngara Agnes Heller e do historiador francês Michel de Certeau. A obra que pode ser considerada inaugural para a reorientação dos estudos sobre o cotidiano é o primeiro volume da Critique de la vie quotidiènne de Henri Lefebvre6, e que seria continuada em mais dois volumes (publicados em 1961 e 1968). Filósofo de formação, Lefebvre desenvolveu estudos em diversas áreas, notabilizando-se particularmente nos estudossobre a cidade: para o autor, depois de 1950, as contradições do capitalismo se tornaram espaciais, urbanas: contra a apropriação do espaço urbano pelos cidadãos se colocava a alienação da cidade em termos de reprodução capitalista do espaço. A automação, aceleração e burocratização da vida urbana tendia a alienar violentamente a vida cotidiana (“colonizada” pelo capital, na expressão de Guy Debord), que passava a se associar ao banal, automático, entediante, sem sentido. Em todo momento, Lefebvre procura marcar a historicidade desta “banalização do cotidiano”: assim, por exemplo, a rotina de uma família, o trabalho de um artesão, o cotidiano escolar, são ações que podem ser plenas de sentido. Entretanto, na cidade do capital, surge a cotidianidade: ao cotidiano pleno de estilo no mundo das obras, apropriadas pelos sujeitos por meio da criatividade, se opõe (historicamente) uma cotidianidade alienada no mundo dos produtos, expropriados dos sujeitos por meio da produtividade. Mas, é importante ressaltar que a análise da vida cotidiana em Lefebvre é sempre uma análise crítica, que procura as fissuras nas lógicas de dominação: daí o caráter dialético do cotidiano, pois, se por um lado é a manifestação máxima da alienação, por outro é o lugar da negação desta alienação, o lugar da apropriação da cidade pelos moradores contra o capital. Uma segunda corrente de crítica cotidiano importante é a de Agnes Heller, da escola marxista de Georg Lukács, que propõe uma Sociologia da Vida Cotidiana7 que dê conta da relação entre as atividades humano-genéricas (o trabalho, a arte, o sentimento) e a vida cotidiana do homem particular. A vida cotidiana, para a autora, é o momento da reprodução do homem em sua particularidade, mas que contem a generalidade: o cotidiano de uma costureira seria definido pelas atividades necessárias para que ela se reproduza como costureira, como por exemplo o costurar, que é a particularização de uma atividade humano-genérica, o trabalho. Para Heller, todos os homens de todas as sociedades viveriam uma vida cotidiana. A especificidade do capitalismo era de que, segundo a autora, a reprodução das estruturas capitalistas se realizava no cotidiano negando a realização das capacidades humano-genéricas dos indivíduos, que se alienariam para o capital; desse modo, a negação do capitalismo, para Heller assim como para Lefebvre, seria uma revolução 6 LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Paris: L’Arche Editeur, 1958. 7 HELLER, Agnes. Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Península, 1977. 18 cotidiana. No campo da historiografia, um dos mais importantes trabalhos sobre o cotidiano é a obra dirigida por Michel de Certeau, A Invenção do Cotidiano, de 19948. Debatendo principalmente com a análise do poder de Michel Foucault (as obras de Lefebvre e Heller aparecem apenas tangencialmente), Certeau argumenta que, oposta às estratégias de dominação (operadas no nível macro pelas instituições e no micro pelos dispositivos e técnicas do poder), existe uma vasta gama de táticas de resistência, de apropriação e modificação dos regimes de controle: o estudo histórico do cotidiano se propõe a abordar as redes de “anti-disciplina”, de “anti-poder”, como táticas de praticantes. Assim, por caminhos diferentes daqueles de Lefebvre e Heller, Certeau erige a vida cotidiana como categoria de análise por meio da idéia de luta, de contradição. *** A apropriação da crítica do cotidiano tem sido feita, no Brasil, particularmente pelos esforços da sociologia e da geografia urbana, de inspiração fortemente lefebvriana9; somente nos últimos tempos, a historiografia brasileira tem se voltado para o tema do cotidiano, inspirada principalmente na obra de Agnes Heller e Michel de Certeau. Superando a naturalização do cotidiano como vida privada, a historiografia brasileira do cotidiano tem se voltado para as historicidades apagadas ou submetidas, revelando assim rupturas ou possibilidades de rupturas das estruturas mais gerais das diferentes sociedades. Dois estudos inovadores que podem ser citados nesta direção, dentro da historiografia brasileira, são: a tese de Marta Mega de Andrade, que trata das relações entre espaço e vida cotidiana na sociedade ateniense clássica, e o artigo de Norberto Guarinello, que discute a crise da historiografia e relação entre cientificidade da história e história do cotidiano, M. de Andrade, em seu A vida comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica10, procura construir uma história do cotidiano na sociedade ateniense marcando a sua especificidade: a 8 CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. 9 MARTINS, J. de S. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Hucitec, 2000. 10 ANDRADE, Marta Mega de. A Vida comum – espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. 19 sociedade ateniense seria passível de uma história do cotidiano pois esta sociedade apresentaria o “cotidiano” como dimensão da vida social (outras sociedades não teriam, necessariamente, uma “vida cotidiana”). O “cotidiano ateniense”, para a autora, estaria inserido dentro e além da articulação entre as dimensões públicas (koinos, associado ao espaço cívico da polis) e privadas (idios, associado ao oikos) da vida social: o fundamento está a identificação que a autora faz entre o termo kath’oikian (“vida comum”, “vida doméstica”, mas que ultrapassa a casa) como “vida cotidiana”, a qual incluiria uma gama de interações entre grupos sociais que iriam além dos cidadãos chefes de oikoi – as mulheres, os estrangeiros, os escravos, assim como os cidadãos, enfim, os habitantes da polis se relacionariam na vida cotidiana, no espaço habitado. A vantagem da abordagem pelo cotidiano, segundo a autora, seria a de que, contra as estratégias ideológicas de controle e dominação do corpo cívico sobre os habitantes como um todo da cidade, apareceria ao historiador um campo de táticas de resistência que colocariam em cheque as ideologias cívicas. No artigo “História científica, História contemporânea e História Cotidiana”, Norberto Guarinello11 discute a suposta “crise da História” por meio da crítica das formas historiográficas de viés eurocêntrico, cujo colapso levaria consigo, segundo ainda um viés eurocêntrico, as possibilidades de leituras totalizantes, entregando a historiografia à fragmentação e incomunicabilidades das áreas do saber histórico. Contra esta inevitabilidade da fragmentação, o autor propõe a construção de uma história do cotidiano em termos de reprodução do passado (o “trabalho morto” das sociedades) e produção do novo, articulando assim as estruturas e as ações humanas num fluxo contínuo, cujas dimensões não se autonomizariam a não ser na análise. O cotidiano seria, portanto, uma categoria de análise dos “presentes” da história, dos momentos nos quais as determinações (estruturas) se conjugariam com a liberdade relativa (as ações) nas sociedades humanas: a história do cotidiano, por um lado, ao invés de abandonar as formas históricas mais gerais, as colocaria à prova demonstrando tanto sua artificialidade quanto a sua necessidade no procedimento historiográfico; por outro lado, abriria novas possibilidades para a discussão da liberdade e da necessidade na história. As abordagens de Andrade e Guarinello, exprimem, de uma certa maneira, a oposição entre generalidade e especificidade que vimos entre Lefebvre e Heller. Se Andrade marca a especificidade das categorias de cotidiano em cada sociedade como modo de acesso a uma 11 GUARINELLO, Norberto Luiz. “História Científica, história contemporânea ehistória cotidiana”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 2004, v. 24, n. 48, p. 13-38. 20 complexidade maior da relação entre dominação e resistência, Guarinello pensa as estruturas do cotidiano, o “trabalho morto” transmitido aos “presentes”, para no cotidiano alocar as tensões entre estrutura e ação (existentes em todas as sociedades). Resta pensar se é possível conciliar estas duas abordagens do cotidiano, ou seja, se é possível uma história do cotidiano que dê conta deste duplo sentido do termo: de um lado, o cotidiano como “todos os dias e cada dia”, categoria temporal (os “presentes” históricos) e ontológica (reprodução do trabalho morto e produção do novo, em qualquer sociedade), e de outro lado, o cotidiano como “vida comum”, dimensão específica da vida social de determinada sociedade, lugar de realização das tensões entre grupos sociais em luta (de representações e de práticas). Tal projeto, que seria uma refundação da história do cotidiano a partir dos caminhos já indicados (do trabalho morto historiográfico, pode-se dizer), é obviamente ambicioso demais tanto para as dimensões deste texto quanto, e principalmente, para as minhas limitações teóricas e documentais. Procurarei aqui, somente, indicar possibilidades de análise a partir do documento mencionado no início do texto, o discurso Sobre o assassinato de Eratóstenes de Lísias. 3. Lísias I e as estratégias do cotidiano O evento referido pelo discurso, assim como o próprio discurso (em sua realidade sonora possível assim como sua realidade material textual), são condensações de processos históricos que apresentam temporalidades e ritmos diferentes. Quanto ao evento, podemos notar alguns processos que, precedendo a ação, a condiciona assim como informa a ação subjetiva: em primeiro lugar, uma moral específica, que coloca a mulher em posição de objeto diante do homem que deve, se marido, protegê-la, se amante, seduzi-la, e que determina que, se a culpa da sedução é do amante, a desonra social cai sobre o marido; em segundo lugar, o sistema jurídico da polis, que, diante da desonra moral do marido traído, permite a este a remissão por meio do assassinato do sedutor; em terceiro lugar, a oposição entre público e privado, cuja constituição está intimamente ligada à história da polis, que sustenta a prerrogativa jurídica e moral do cidadão diante dos não- cidadãos (cidadãos iguais entre si no público, superiores aos não-cidadãos no privado); em quarto lugar, a cultura material da habitação ateniense, que abria possibilidades tanto de controle quanto de resistência ao controle (o caso do marido que vigia dormindo no térreo, ou da mulher que engana o 21 marido convencendo-o a dormir no segundo andar); em quinto lugar, as relações sociais de vizinhança, relações que são socialmente territoriais, e que servem de argumento tanto para a traição da mulher (a esposa de Eufileto justificava o abrir e fechar de portas à noite dizendo que ia aos vizinhos pedir óleo para a lamparina do bebê, quando se tratava da entrada e saída do amante) quanto para efetivação das prerrogativas legais do cidadão sobre seu oikos (os amigos de Eufileto como testemunhas); em sexto lugar, os rituais de culto e funerários, que tanto reforçavam a identidade familiar do cidadão quanto abriam possibilidades de contatos entre membros de oikoi diferentes (a esposa de Eufileto e seu futuro amante); em sétimo lugar, a instituição da escravidão doméstica, como ponto de ligação do mundo externo e interno do oikos (a organização dos encontros adúlteros), assim como eixo de reprodução da ordem (a confissão da escrava a Eufileto); entre outros processos que poderiam ser citados. Quanto ao discurso em si, podemos notar a existência de processos mais gerais como o sistema jurídico ateniense e a centralidade da oração, o desenvolvimento da retórica tanto para articular o discurso quanto para camuflar esta articulação intencional, a existência de escritores profissionais de discursos jurídicos, trabalho no qual a ausência de cidadania não era restritiva (Lísias era meteco em Atenas, e se notabilizou como logógrafo); entre outros processos. Ou seja, o discurso e suas referências não brotaram do nada, em uma sociedade “zerada”, mas dialogam com o trabalho morto social que se apresenta na complexidade de processos não-simultâneos condensados em um momento, o cotidiano, palco do diálogo entre estrutura e ação. Assim, tanto Eufileto quanto sua esposa e o amante agiam a partir de processos que os precediam, e que eram contraditórios: a cotidianidade era o momento da reprodução destes processos. Por outro lado, o discurso de Lísias é uma via privilegiada de acesso a uma dimensão da vida social que ultrapassa o público e o privado, a cidade e a casa, ao mencionar os diversos pontos de contato entre os habitantes de Atenas: os rituais fúnebres, as relações de vizinhança, os encontros no mercado e no campo. Quando Eratóstenes observou a esposa de Eufileto no funeral de sua mãe, se tratava da vida pública ou privada? Quando Eufileto convocou amigos para dentro de sua casa, público ou privado? Este espaço de indiferenciação entre público e privado, que se misturam e ao mesmo tempo não esgotam a sociabilidade, é justamente o cotidiano ateniense, específico da democracia: quando a democracia institui (tanto ideologicamente quanto legalmente) a oposição público e privado, ela abre a brecha para a dimensão da vida comum, doméstica, cotidiana. Do ponto de vista da vida cotidiana da sociedade ateniense presente no texto, importa menos quem é e 22 quem não é cidadão, e bem mais quem entra e como entra na casa: o texto trabalha o tempo todo sobre o tema do controle do cidadão sobre o seu oikos, o controle sobre o movimento – oposto à entrada ilegal do amante sob a direção da mulher, se coloca o convite dos amigos para a realização da justiça da polis sob a direção do marido. A decisão sobre o movimento entre fora e dentro da casa aparece aqui não mais como prerrogativa do cidadão, mas como espaço de tensões e possíveis conflitos – se nos lembrarmos que o autor do texto, Lísias, era um meteco ateniense, ou seja, um não-cidadão que habita dentro da cidade dos cidadãos, a questão do movimento se torna ainda mais expressiva: o amigo de Eufileto que entra na casa promove a justiça e restabelece a honra – pode-se pensar uma construção metafórica das relações entre cidadãos e metecos na forma de Eufileto e seus amigos. Enfim, esta cotidianidade específica da sociedade ateniense, como dimensão da vida que contem as relações sociais entre os habitantes da cidade para além das diferenciações estamentais (cidadãos e não cidadãos), mas se relaciona com ela, pressupõe os processos históricos mais amplos, o trabalho morto social, para a sua constituição: a “vida comum”, cotidiana ateniense, pressupõe a democracia ateniense enquanto realidade institucional. Diríamos, assim, que a vivência deste cotidiano social de habitantes se dá num momento que reproduz transformando as estruturas mais amplas, ou seja, um momento que presentifica o trabalho morto – o cotidiano como reprodução sócio-temporal. A análise do discurso de Lísias em questão pela via da história do cotidiano abre a perspectiva da leitura das tensões que atravessam a sociedade ateniense em conflitos não necessariamente coincidentes, mas que se estruturam na produção do cotidiano. Tais tensões exigem uma leitura integrada, posto que a sua fragmentação de acordo com os vários setores do conhecimento (a lingüística, a crítica literária, a sociologia, a antropologia, o direito, a geografia etc) perderia o próprio movimento do fluxo social, que, como vida cotidiana,diferencia-se para manter a unidade. Isto significa dizer que, para além da escolha entre a fragmentação incomunicável do saber e uma interdisciplinaridade artificial12 (Grespan, 2004) baseada na colagem de conhecimentos distintos, o estudo da vida cotidiana, em seu duplo sentido, social-específico e histórico-ontológico, pode recolocar para a historiografia a questão da totalidade. Referências: 12 GRESPAN, J.L. “O lugar da História em tempos de crise”. In: Revista de História, (USP), São Paulo, 2004, v.151, pp. 9-27. 23 Fonte: LÍSIAS. “Speech I: On the murder of Eratosthenes”. In: Lysias. London: William Heinemann (The Loeb Classical Library), 1960. Translated by W. R. M. Lamb. ______. “Sur le meurtre d’Eratosthènes”. In: Lysias, Discours I. Paris: Les Belles Lettres, 1967. Traduit par L. Gernet e M. Bizot. Bibliografia: ANDRADE, Marta Mega de. A Vida comum – espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica. Rio de Janeiro: DP&A, 2002. CERTEAU, Michel de. A Invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1994. COHEN, D. “The social context of adultery at Athens”. In: CARTLEDGE, P., MILLET, P. and TODD, S. Nomos: essays in Athenian law, politics and society. Cambridge: Cambridge University Press, 1990. pp. 147-166. FOUCAULT, Michel. História da sexualidade (v. 2): o uso dos prazeres. Rio de Janeiro: Graal, 1994. GRESPAN, J.L. “O lugar da História em tempos de crise”. In: Revista de História, (USP), São Paulo, 2004, v.151, pp. 9-27. GUARINELLO, Norberto Luiz. “História Científica, história contemporânea e história cotidiana”. In: Revista Brasileira de História, São Paulo, 2004, v. 24, n. 48, p. 13-38. HELLER, Agnes. Sociología de la vida cotidiana. Barcelona: Ediciones Península, 1977. LEFEBVRE, Henri. Critique de la vie quotidienne. Paris: L’Arche Editeur, 1958. MARTINS, J. de S. A sociabilidade do homem simples. São Paulo: Hucitec, 2000. MESQUITA, Z. e BRANDÃO, C. R. (orgs.). Territórios do cotidiano: uma introdução a novos olhares e experiências. Porto Alegre/Santa Cruz do Sul: Editora da UFRGS/Edunisc, 1995. 24 ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O POPULISMO E SUAS RELAÇÕES COM A POLÍTICA EXTERNA INDEPENDENTE Charles Sidarta Machado Domingos Mestrando em História na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Resumo: Este artigo procura elaborar uma reflexão sobre o uso do conceito de Populismo para o período da experiência democrática no Brasil (1945-1964) e suas conexões com a Política Externa Independente (1961-1964). Devido a atualidade das discussões sobre o conceito de Populismo alguns pontos ainda são bastante polêmicos, dentre eles o papel do carisma e da manipulação dos trabalhadores. A partir de uma releitura dos autores clássicos sobre a temática, procuramos dialogar com as novas interpretações acerca do fenômeno populismo, em especial com aquelas que negam seu uso e existência, procurando observar seus avanços e seus limites. Por fim, propomos como possibilidade de conclusão a utilização do conceito de Nacionalismo para o período estudo nos limites deste artigo. Palavras-chave: Populismo; Nacionalismo; História Política. Introdução De uma forma geral, os mais renomados historiadores e cientistas sociais brasileiros optaram por analisar as relações políticas, econômicas, sociais e culturais durante o período de 1945-1964 no Brasil dentro dos marcos conceituais do populismo. A partir dessa perspectiva é que 25 se faz necessário, portanto, analisar a validade tanto da gênese e da consolidação da Política Externa Independente, quanto o seu indutor – o governo João Goulart – como elementos integrantes desse modelo teórico. O conceito de populismo, embora fortemente consolidado na historiografia, traz alguns problemas de interpretação que merecem ser aqui tratados. Em sua coletânea de ensaios13, Francisco Weffort o relaciona ao período compreendido entre a Revolução de 1930 e o golpe de Estado de 1964. No entanto, dado o ínterim de 1937-1945 ter sido palco da ditadura do Estado Novo, o autor estabelece como sendo a partir de 1945 que o povo tem possibilidades de intervenção política, pois é a partir desse momento que “qualquer político que pretendia funções executivas com um mínimo de autonomia em relação aos grupos de interesses localizados no sistema partidário, deveria, embora de maneira parcial e mistificadora, prestar contas às massas eleitorais.”14 Mesmo que por muitos momentos Weffort observe que o populismo tem suas raízes a partir de 1930, ele declara que “o populismo manifesta-se já no fim da ditadura e permanecerá uma constante no processo político até 1964”.15 Se o autor não deixa dúvidas quanto ao momento de seu término, seu início é passível de muitas discussões. Por isso, optamos por tratar como populismo, para efeitos desta análise, o período que se estendeu de 1945 com o fim do Estado Novo até o golpe civil-militar de 1964, período esse denominado por Octavio Ianni como “democracia populista”.16 1. Desmembrando um conceito polissêmico Como todo conceito histórico explicativo, também a denominação populismo obedece ao critério da polissemia, quer dizer, da imprecisão ou fluidez de limites passíveis entre as tentativas de aproximação entre modelos teóricos generalizantes e as conjunturas históricas. Assim, para além da abordagem crítica a propósito de sua periodização histórica, é preciso abordar ao que, de fato, o fenômeno se refere. A respeito de certa visão esquemática do 13 WEFFORT, Francisco. O populismo na política brasileira. 5ª ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003. 14 Idem, p. 20. 15 Idem, p. 23. 16 IANNI, Octavio. O colapso do populismo no Brasil. 2ªed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971, p. 54. 26 conceito, Weffort o critica por “não termos como distinguir, por exemplo, entre o populismo de Vargas e o de Quadros”.17 Esse uso irrestrito do conceito, permitindo que ele seja capaz de designar todas as distintas vertentes políticas do período, criticado por Weffort, também será alvo de nossas críticas ao analisar a obra de... Weffort. O autor em questão, a partir da análise do caso concreto do Estado de São Paulo e de duas lideranças importantes dos setores conservadores daquele Estado (Adhemar de Barros e Jânio Quadros)18 os equivale a mesma cultura política de tradição nacionalista, pois segundo Francisco Weffort: “entre o populismo dos demagogos e o reformismo nacionalista de 1964 sempre existiram afinidades profundas de conteúdo”.19 Mais uma vez o autor deixa dúvidas. Embora o “reformismo nacionalista de 1964” seja facilmente identificado como o período do Governo João Goulart, a quem ele se refere exatamente quando faz menção ao “populismo dos demagogos”? A definição é muito ampla. Embora explicitamente abarque Adhemar de Barros e Jânio Quadros, ela dá margem para a inclusão de Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek (JK), em razão tanto da generalização possível segundo suas próprias palavras, quanto seu marco temporal de 1945-64. Ou seja, o populismo se transforma numa miscelânea incapaz de definir com precisão práticas e projetos políticos distintos. Parece-nos que, ao tentar definir um modelo de populismo para o Brasil, ele segue à risca a máxima de Antonio Salles: “modelo, como todos sabem, vem a ser algo que não é, mas que a gente imagina que é, para ver como seria se fosse”.20 Porém, de toda a obra de Francisco Weffort – de inegáveis méritos, caso contrário não estaríamos aqui discutindo-a – aquilo que nos parece o mais problemático, é a confusão entre os conceitos de populismo e nacionalismo, sendo o segundo incorporado pelo primeiro. Embora Weffort venha tratando os dois conceitos como ideologias distintas, ele evidencia que entre elas há “afinidades de parentesco”.21 Logo, abre já nessa assertiva um campo de possibilidades de comparações entre as duas ideologiasque sugere haver mais semelhanças do que diferenças entre elas. 17 WEFFORT, op.cit, 2003, p. 26. 18 Idem, p. 30-37. 19 Idem, p. 38. 20 SALLES, Antônio. Memória da atmosfera: grades e nós. In: GUEDES, Paulo Coimbra; SANGUINETTI, Yvonne (orgs.) UFRGS: Identidade e Memórias (1934-1994). Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1994, p. 251. 21 WEFFORT, op.cit., 2003, p. 25. 27 Mesmo ainda garantindo a existência de diferenças ideológicas,22 Weffort aponta como pontos semelhantes o fato de os ideólogos do nacionalismo estabelecerem um “esforço político por realizar a mesma idéia mítica do povo-comunidade que aparece em todas as formas de populismo”.23 A razão disso seria ocultar os tensionamentos e contradições de classes ao nível do discurso político ideológico, com a intenção de possibilitar maior coesão interna para implementação de políticas que, com certo grau de legitimidade, defendessem a idéia presente em ambas ideologias de um compromisso entre as classes, uma acomodação de interesses, cedendo, mediante pressões do “povo” – o que Weffort diz ser o equívoco original do nacionalismo24 – as ganhos ao trabalho em detrimento do capital. Se não há pontos que levantem maior polêmica na comparação feita por Francisco Weffort das semelhanças, o mesmo não pode ser dito em relação as diferenças sustentadas por este autor entre os conceitos. Segundo o autor, o populismo é espontâneo, tem suas origens diretamente nas massas, prescindindo da importância dos partidos políticos. Afere isso, mais uma vez, a partir do exemplo de Jânio Quadros25e procura estabelecer essa generalização como condição importante ao populismo. Já o nacionalismo diferia, pois o reformismo nacionalista foi também espontaneísta, porém em forma mais elaborada. Diferentemente do populismo, expressão tópica da ascensão das massas e de sua incorporação ao regime, o nacionalismo foi a sua expressão global e emerge, portanto, diretamente do Estado.26 Com relação a essa citação, cabem algumas críticas: o conceito de nacionalismo passa a sofrer adjetivações (“reformismo nacionalista”), o que possibilita uma maior divisão do conceito e que pode levar a algumas dúvidas com relação ao momento exato ao qual o autor pretende se referir. Sendo o populismo amparado nas massas que ascendem, terão elas a mesma ascensão em todo o território do país? A pergunta é pertinente, pois se o nacionalismo é global – por ser amparado diretamente no Estado – ele sim tem abrangência sobre todo o país, portanto, caso a 22 WEFFORT, op.cit., 2003, p. 38. 23 Idem, p. 40. 24 Idem, p. 39.25 Idem, p. 41. 26 Idem, p.42. 28 generalização seja procedente, não haverá diferenças entre eles, enquanto Weffort ainda afirma que elas existam. Além disso, um nacionalismo que venha direto do Estado, tem sua denominação, em tese, mais correta enquanto nacional-estatista, e não reformismo nacionalista, que pode ser encarado como sinônimo de nacional-reformismo. Além disso, ainda dentre as diferenças sustentadas por Weffort entre os dois conceitos, ele afirma que ao nacionalismo faltam lideranças pessoais fortes e organização partidária.27 Se falta organização partidária, o nacionalismo não pode diferir do populismo, visto que esse prescinde dos partidos políticos, pois está amparado diretamente na relação entre a massa e o líder. Mesmo com algumas figuras de destaque como Leonel Brizola, Miguel Arraes, Francisco Julião e Almino Afonso, os nacionalistas carecem de um líder, pois esses “sempre se limitaram a regiões, como os dois primeiros, ou a funções parciais como os dois últimos.”28 O argumento regional contrasta nitidamente com os exemplos de Jânio Quadros e Adhemar de Barros. Através dessas diferenças muito pontuais, e com pontos de semelhança cada vez mais intensos, Weffort muda, de maneira muito tímida, seus argumentos de que populismo e nacionalismo são dois conceitos particulares e reorganiza sua conceituação, assimilando o nacionalismo ao populismo, pois “nascido no âmbito do Estado, o nacionalismo tornou-se um populismo teórico”29, logo passando a esfera de um “populismo nacionalista”.30 A simbiose entre os conceitos está realizada, e com ela surge uma indistinção. Weffort acaba realizando aquilo que ele mesmo criticava: usa irrestritamente o conceito de populismo, permitindo que ele seja capaz de designar todas as distintas vertentes da política brasileira. Com isso, haveria um populismo de direita, dos demagogos, simbolizado por Jânio Quadros, Adhemar de Barros, e talvez Getúlio Vargas. E outro, de esquerda, no qual constem talvez Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, mas com certeza João Goulart, Miguel Arraes, Leonel Brizola, Francisco Julião e Almino Afonso. Há, dessa maneira, uma fundição de dois conceitos originalmente distintos, o que permite que Luiz Alberto Moniz Bandeira faça a seguinte proposição Além do mais, as teorias sobre o populismo, disseminadas, sobretudo em São 27 WEFFORT, op.cit., 2003, p. 42 28 Idem, p. 44. 29 Idem, p. 44. 30 Idem, p. 44-45. 29 Paulo, impediam uma interpretação correta do golpe de Estado de 1964 e pura e simplesmente o justificavam. Aplicadas ao governo João Goulart, elas nada explicavam. Pelo contrário, confundiam.31 Assim, na bibliografia clássica sobre a questão, o conceito de populismo pode ser entendido como uma categoria explicativa calcada sobre uma relação baseada em um marco temporal – a democracia populista (1945-1964) – combinado com uma aliança entre diversas classes sociais em razão da crise de hegemonia das classes dominantes, mais a importância da existência de lideranças carismáticas somado a uma eficiente política de massas. Octavio Ianni, em seu trabalho considerado clássico sobre o tema, colocou o estudo em questão dentro do marco denominado “democracia populista (1945-1964)”, pois foi ela que “propiciou a conciliação de interesses em benefício da industrialização e em nome do desenvolvimento nacionalista”.32 Segundo o autor, dentro dessa proposta de desenvolvimento nacionalista podemos entender a “política externa independente [como sendo] uma manifestação relacionada com o tipo de democracia populista em funcionamento no Brasil”, pois “jogava-se com as condições das outras nações, relativamente ao Brasil, procurando obter melhores condições econômicas e políticas, na defesa de uma política econômica nacionalista”33, privilegiando, dessa maneira, o uso do nacionalismo como conceito operacional para o estudo da Política Externa Independente. Ianni ainda percebia como componente importante do período o intercâmbio entre assalariados e empresários, no qual os assalariados têm acesso a uma parcela do poder, mesmo que ela seja “sempre conduzida por outros grupos sociais”34, que não o proletariado. Perspectiva semelhante tem Francisco Weffort em relação aos grupos sociais que sustentavam o populismo, definindo a questão como sendo uma aliança (tácita) entre setores de diferentes classes sociais na qual evidentemente encontra-se sempre ao lado dos interesses vinculados às classes dominantes, mas torna-se impossível de realizar-se sem o atendimento de algumas 31 MONIZ Bandeira, Luiz Alberto. O Governo João Goulart: as lutas sociais no Brasil (1961-1964). 7ªed. revista e ampliada. Rio de Janeiro: Revan, 2001, p.21. 32 IANNI, op.cit., p. 62. 33 Idem, p. 66. Interpolações nossas. 34 Idem, p. 59. 30 aspirações básicas das classes populares, entre as quais a reivindicação do emprego, de maiores possibilidades de consumo e de direito de participação nos assuntos do Estado.35 Percebe-se, assim, uma relativa abertura para o emprego de uso de termos, tais como“aliança”, que demonstram a eficácia de propósitos típicos do nacionalismo, quer seja, a coesão – ou mesmo união – entre diferentes grupos sociais com um objetivo comum: o desenvolvimento econômico-social. 2. Carisma: um conceito operacional? Quanto à existência do fator carisma na composição do modelo populista, tanto Ianni como Weffort observaram na política de massas uma subordinação em relação às lideranças carismáticas, sendo alvos de contestações por Miguel Bodea,36 que analisou o carisma como sendo construído no partido político, e não de qualidades pessoais inatas. Embora Bodea realize um estudo regional, e, portanto, ele mesmo reconheça os limites de sua pesquisa, é possível extrapolar os limites geográficos de suas conclusões, em razão de elas serem aplicadas às figuras de Getúlio Vargas, João Goulart e Leonel Brizola, todos de grande protagonismo nacional no período estudado, no que diferem do caso utilizado por Francisco Weffort em relação a Adhemar de Barros e Jânio Quadros, que à exceção extemporânea do último, não tiveram as mesmas dimensões no território brasileiro, sendo muito identificados com o caso específico de São Paulo. Para Bodea: Na avaliação de todas as carreiras políticas – desde as de Vargas e Pasqualini até as de Jango e Brizola – torna-se patente que nenhum destes líderes teria desenvolvido seu prestígio junto às massas – ao menos no âmbito regional – sem passar pelo crivo do partido, com suas disputas internas [...] Evidentemente, depois de verem sacramentadas suas lideranças e candidaturas no nível partidário, todos estes líderes criaram uma projeção própria de liderança de massa para fora e até 35 WEFFORT, op.cit.2003, p. 85. 36 BODEA, Miguel. Trabalhismo e Populismo no Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 1992, p. 194-195. 31 acima do partido.37 E Miguel Bodea avança em relação à sua própria análise. Percebe um espaço ainda existente nessa construção que se origina nos partidos políticos até a elaboração última do carisma, elemento constitutivo do líder populista. E preenche esse espaço com o papel desempenhado pela estrutura do Estado: Apenas numa terceira fase, e, aí sim, a partir do momento em que o líder partidário assume posições de destaque no aparelho de Estado é que começa a surgir o fator carisma. Os exemplos mais nítidos disto são Vargas, Brizola e Jango. Apenas a partir do exercício da presidência da república, da prefeitura de Porto Alegre e do Ministério do Trabalho, respectivamente, é que se desenvolve, de forma significativa, o aspecto carismático de suas lideranças. Pasqualini – que não assume nenhuma função executiva, ao nível de aparelho do Estado, a partir de 1945, embora respeitado como líder e pensador dentro e fora do partido, nunca chega a assumir a áurea carismática dos demais líderes populares do trabalhismo. O caso gaúcho sugere efetivamente uma interessante relação entre carisma e poder estatal, posterior e acima da consolidação de uma relação líder-partido, partido- massa ou da relação direta líder-massa. O carisma parece, portanto, depender mais da intermediação do Estado que do partido junto à massa.38 Dessa forma, Bodea demonstrou como o suposto carisma das lideranças populistas está vinculado ao papel dos partidos políticos e do uso do Estado, interpretando um fator – anterior e posteriormente a ele ainda utilizado como elemento constitutivo do populismo – para, de forma original, invalidá-lo. Possivelmente Weffort tenha incorporado algumas das críticas à importância do carisma no conceito de populismo, muito presentes em seu artigo de 196639 quando ele centrava sua análise no fenômeno Jânio Quadros: Por outro lado, qualquer comparação mesmo ligeira, entre os estilos de liderança 37BODEA, op.cit., p. 197. 38 Idem, p. 201. 39 WEFFORT, Francisco C. Estado e massas no Brasil. Revista Civilização Brasileira, Ano 1, nº. 7, maio de 1966. 32 de Jânio Quadros e dos demais chefes populistas, evidenciará naquele um estilo mais radical: enquanto os demais tendem para uma dominação do tipo patriarcal que alguma forma de compromisso com algum tipo de estrutura partidária, Jânio Quadros se aproxima da liderança de tipo carismático que nega, de principio, todas as formas estabelecidas do poder. Esta liderança carismática é radical no sentido de que, como estabelece Weber, consiste essencialmente num chamamento à obediência e devoção à pessoa do chefe, e deste modo nega, de principio, todas as normas já estabelecidas. Esta característica irracional da liderança janista, conquanto não resuma todo o seu conteúdo, é dos aspectos mais importantes a considerar na análise.40 Essa passagem (além de duas páginas tratando sobre Jânio Quadros e o fator carisma) é suprimida da nova versão do texto, editada em 2003. Isso pode representar tanto uma economia de páginas para efeitos de editoração, quanto uma revisão do conceito de populismo, diminuindo significativamente a importância do carisma para sua explicação. 3. Política de massas e manipulação Ianni também definiu, a exemplo de Weffort, o populismo como sendo uma “política de massas”. Essas “massas” teriam sido formadas a partir da industrialização do país, processo que teve grande aceleração a partir do modelo de substituição de importações ou “modelo getuliano”41de desenvolvimento, o qual se fundamentava, entre outras bases, na “política externa independente”42. O autor considerou todo o período como tendo na “política de massas um elemento crucial”,43 e percebeu como elemento constitutivo dessas “massas” uma composição entre trabalhadores de origem rural e urbana, o que lhes daria um caráter de passividade. Segundo o próprio autor, “a política de massas funcionou como uma técnica de organização, controle e utilização da força política das classes assalariadas, particularmente o proletariado.”44 Dessa forma, a política de massas para Ianni também tem forte componente de manipulação. O que fica ainda mais claro 40 Idem, p. 150. 41 IANNI, op.cit., p. 54. 42 O autor parece considerar a política externa independente como sendo praticada desde o segundo Governo Vargas, associando-a ao “nacionalismo desenvolvimentista” e a “doutrina da chantagem” (IANNI, p. 66). Não concordamos com o autor, por entendermos que a Política Externa Independente é o substantivo próprio das configurações da política 43 IANNI, op.cit.,p.55. 44 Idem, p. 63. 33 quando ele explica a tese de sua obra: “Na verdade, reconstruímos a formação, apogeu e colapso da política de massas, conhecida também como populismo.”45Se a política de massas organiza, controla e utiliza a força política dos trabalhadores, evidentemente ela os manipula. E se a política de massas é sinônimo de populismo, fica claro que neste existe manipulação dos trabalhadores. Talvez o ponto que mais tenha despertado polêmicas nas interpretações sobre o populismo seja a manipulação das massas. Como vimos, para Ianni, a política de massas, portanto, o populismo, funcionou como elemento de manipulação. Weffort avança na análise, ao escrever que “o populismo foi, sem dúvida, manipulação de massas mas a manipulação nunca foi absoluta”,46 sendo preciso e necessário discutir o problema de saber até que ponto os interesses reais das classes populares foram efetivamente atendidos pelos líderes e até que ponto elas serviram passivamente de ‘massa de manobra’ para os grupos dominantes.47 Na busca da resposta a esse problema, Jorge Ferreira, não concordando com a idéia da passividade das massas, assim se manifestou: “Culpabilizar o estado e vitimizar a sociedade, eis alguns dos fundamentos da noção de populismo”.48 Daniel Aarão Reis Filho radicalizou a perspectiva de Ferreira, ao argumentar a existência de um “protagonismo crescente das classestrabalhadoras na história republicana brasileira depois de 1945”.49 Segundo Daniel Aarão Reis Filho, esse “protagonismo crescente das classes trabalhadoras” gerou uma reação dos setores conservadores da sociedade, que se sentiram ameaçados. E essa ameaça tinha uma razão; o que ele definiu como “tradição trabalhista”, que fora constituída no quadro da urbanização e da industrialização do país, sendo caracterizada por: 45 Idem, p. 206. 46 WEFFORT, op.cit., 2003, p. 70. 47 Idem, p. 81. 48 FERREIRA, Jorge. O nome e a coisa: o populismo na política brasileira. In: O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p.63. 49 REIS FILHO, Daniel Aarão. O colapso do colapso do populismo ou a propósito de uma herança maldita. In: O populismo e sua história: debate e crítica. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2001, p. 344. 34 Um programa nacionalista, estatista e popular. [com] Autonomia no quadro das relações internacionais, com a definição do que então se chamava uma política externa independente. [sendo um] Estado intervencionista no campo econômico, regulador, desenvolvimentista. [com] Redes de proteção para os trabalhadores: institutos de aposentadoria e pensões, sindicatos assistencialistas, justiça do trabalho, em cuja administração as lideranças sindicais participavam ativamente: uma cornucópia. Sem contar as empresas diretamente controladas pelo Estado, as estatais, com seus generosos planos de carreira, financiamentos específicos e proteção contra o desemprego.50 Ianni, por sua vez, abriu uma nova vertente no quadro da democracia populista, a do “projeto reformista, amplamente apoiado na política de substituição de importações, como principal artifício tático. Esta é a orientação predominante a partir de 1945”.51 Por reformismo, Ianni definiu uma política capitalista contrária ao imperialismo e ao latifúndio e a favor das reformas de base, rompendo, dessa forma, com a subserviência aos setores externos e com a sociedade tradicional, o que seria a causa do colapso do populismo no Brasil.52 Weffort percebeu que, em dado período do governo João Goulart, a manipulação das massas entrou em crise, isto é, abriu a porta a uma verdadeira mobilização política popular, exatamente quando a economia urbano-industrial começava a esgotar sua capacidade de absorção de novos migrantes e quando se restringiam as margens do redistributivismo econômico. É nessa fase que a temática das reformas de estrutura começa a fazer-se popular.53 Partindo dessa fase, Reis Filho procurou explorar as reformas, associando-as com as lutas nacionalistas (contra o capital estrangeiro, por uma lei rigorosa sobre a remessa de lucros para o exterior, pela afirmação do poder e da cultura nacionais), pela distribuição de renda (aumentos salariais, reforma tributária) e de poder (voto para os analfabetos e para os graduados das forças armadas, controle sobre poder 50 Idem, p. 345. Interpolações nossas. 51 IANNI, op.cit., p. 92. 52 O sentido de reformismo para Ianni é praticamente idêntico ao de tradição trabalhista de Reis Filho, não fosse o 53 WEFFORT, op.cit,2003, p. 85. 35 econômico nas eleições etc).54 Para Reis Filho, isso demonstrava como o ápice da participação das massas populares na vida política nacional, e de forma consciente, dentro de uma lógica trabalhista, ou seja, a lógica daqueles que, dentro do sistema capitalista de produção, estavam inseridos profissional e socialmente, desejando melhores condições de trabalho e de vida. E justamente esse protagonismo popular, na visão de Daniel Aarão Reis Filho, é que vem sendo acobertado pelo epíteto do populismo; nada mais do que uma invenção das forças conservadoras, na tentativa de destruir a tradição trabalhista, “apagando-lhe o nome, rebatizando-a. Foi assim que do trabalhismo se fez o populismo.”55 É importante salientarmos que trabalhismo na perspectiva de Reis Filho é sinônimo de nacional-estatismo56, não tendo relações reais com o conceito de populismo, o qual segundo Jorge Ferreira, não deve ser compreendido como Um fenômeno que tenha regido as relações entre Estado e sociedade durante o período de 1930 a 1964 ou como uma característica peculiar da política brasileira naquela temporalidade, pois sequer creio que o período tenha sido “populista”, mas, sim, como uma categoria que, ao longo do tempo, foi imaginada, e portanto construída, para explicar essa mesma política.57 Nesse sentido entendemos o populismo como conceito construído, para uma finalidade comum a diversos interessados: além da imprensa e de novos sociólogos, agora das universidades, agregaram-se os militares golpistas, a direita civil, a Igreja, os capitalistas, as classes médias 54 REIS FILHO, op.cit., 346. 55 Idem, p. 347. 56“Desde os anos 30 e 40, as classes populares da América Latina e do Brasil constroem tradições nacional-estatistas (no Brasil, trabalhistas). [...] Getúlio Vargas, Juan Perón, Lázaro Cárdenas, Augusto Sandino, Jacob Arbenz, Camilo Cienfuegos, Fidel Castro, João Goulart, Leonel Brizola, entre muitos e muitos outros, apesar de suas diferenças substantivas, que correspondem também às diferenças dos momentos históricos vivenciados, constituem uma galeria de líderes carismáticos, exprimindo uma longa trajetória de lutas sociais e políticas, em grande medida marcadas pelos programas, métodos e estilos de fazer política do nacional-estatismo”. REIS FILHO, op.cit., p. 375. 57 FERREIRA, op.cit. p. 63-64. 36 conservadoras e os crentes na ortodoxia marxista-leninista. Todos, no dizer de Daniel Aarão Reis Filho, tinham contas a ajustar com o grande inimigo: o trabalhismo.58 Dentro desse embate, que foi travado inclusive nas instâncias teóricas, é que a Política Externa Independente estava inserida, pois: Assim, em meio a dois projetos distintos e antagônicos de Estado, ostensiva ou veladamente, a política externa – sobretudo a apropriação ideológica de que foi alvo – desempenhou papel fundamental no debate político. Em suma, tendo sua importância ampliada – muito mais do que queria, muito além do que poderia ser –, a Política Externa Independente viu-se enredada numa trama que, em muito, ultrapassava seus limites. Ela foi o pano de fundo de uma luta política e ideológica bem maior: a “conquista do Estado”, na feliz expressão de Dreifuss.59 O enquadramento da PEI dentre os componentes do modelo populista, assim demonstrado, foi parte de uma estratégia de disputa pelo poder. Embora a corrente historiográfica mais crítica ao populismo ainda não tenha cunhado um conceito capaz de aglutinar de forma mais precisa o conjunto dos anos 1945-1964 – tarefa importante para dar maior fundamentação a seus propósitos – suas ponderações não podem ser ignoradas.60 O primeiro passo para compreender real dimensão histórica da Política Externa Independente é analisá-la dentro de uma nova possibilidade, que não a do populismo, para que, sem deformações modelares, possam ser resgatados seus verdadeiros objetivos; verdadeiros, ao menos, dentro da concepção de cada um dos grupos em disputa nos anos 1950-1960. 58 Idem, p. 121. 59 BARBOSA, Antonio José. Parlamento, política externa e o Golpe de 1964. In: MARTINS, Estevão C.de Rezende (org.). Relações Internacionais: Visões do Brasil e da América Latina (Estudos em homenagem a Amado Luiz Cervo). Brasília: IBRI, 2003, p.272. 60 Segundo Cássio Alan Abreu Albernaz, Angela de Castro Gomes e Jorge Ferreira propuseram o uso das categorias “pacto trabalhista” (p. 50) e “projeto trabalhista” (p.52), respectivamente. Realizando críticas a ambas categorias, o autor propõe o uso de “ sistema político populista” (p. 92-93; 214-215) cunhado por John French. Poderíamos incluir dentre essas alternativas
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