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Revista-Borda-N 1-1

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Revista de Psicanálise
n. 1
 
Editorial 
 
Eis aqui mais uma edição da nossa revista. Com ela, reafirmamos nosso 
compromisso com a transmissão da psicanálise sob os moldes de uma escrita que se 
pretende acessível e aberta ao debate. Ela sai em abril de 2020, em um momento 
gravíssimo de pandemia global, quando nossa comunidade analítica se depara com a 
urgência de revisitar seus fundamentos e suas instituições a fim de suportar a demanda de 
atendimentos on-line. Nossa aposta teórica, trabalhada no corpo dessa revista, não poderia 
vir em outra ocasião. Servimo-nos de uma pergunta, tão importante quanto banal, para 
reinterrogar a matéria, a substância, daquilo que constitui a nossa prática. “O que faz um 
psicanalista?” é o questionamento que abrimos sem pretender, jamais, fechar. Que se 
conclua uma escrita, isso é oferta bem distinta. É isso que se apresenta aqui: dez artigos 
que, partindo de pontos, por vezes, absolutamente divergentes, demonstram um esforço 
localizado para sustentar uma proposta que em muito os ultrapassa. Desde a lógica até a 
topologia, da linguística à antifilosofia, esforçamo-nos para incluir questões do nosso 
cotidiano clínico, dúvidas relativas ao manejo transferencial e obviedades que, como 
poderão notar, nada têm de evidentes. E, então, cabe a ocasião de lembrar que o grupo 
Borda se define por sustentar uma leitura que para uns pode inclusive ser considerada 
como hermética. Claro, em hipótese alguma julgamos ter a pretensão de falar sobre tudo, 
para todos. Mas, para aqueles que se interessem pelos temas e propostas que trabalhamos, 
aí está. Sirvam-se. 
Com efeito, ao embarcar na leitura dos artigos a seguir, há de se levar em 
consideração a ambiguidade própria à pergunta que lançamos. O que ele, o analista, faz, 
se confunde com o que o faz, e esse é o paradoxo que lança cada um de nós ao abismo de 
sustentar uma prática fundada sobre a total falta de garantias. Reconhecer isso deveria 
nos catapultar em direção ao franco debate teórico com nossos pares e colegas e, nunca, 
jamais, nos isolar. Essa é uma lição desse abril de 2020, no qual um grupo de psicanalistas 
que, em sua maioria, não se conhecem pessoalmente, sustentam seus trabalhos pela 
virtualidade que, hoje, suporta a inteireza do nosso ofício. 
 
 
 
 
Sumário 
 
O inconsciente não existe ................................................................................................ 3 
Augusto Corrêa Vaz de Melo 
Introdução ao sujeito do inconsciente ........................................................................... 14 
Lucas C. S. Pires 
Função e campo do analista no ato analítico.................................................................. 24 
Ramiro Faria de Melo e Souza 
O lugar do analista e seu manejo: prudência na prática clínica...................................... 44 
Priscilla Ribeiro G. Costa 
O que acontece numa análise? ....................................................................................... 53 
Bruno Oliveira 
Qual geometria para a psicanálise? ............................................................................... 62 
Jefferson Weyne Silva Soares 
O inconsciente como coisa e o inconsciente como estrutura de linguagem: diferenças 
teórico-epistemológicas entre Freud e Lacan ................................................................ 79 
Jessika Gomes do Carmo 
Construções em análise: a imprecisão teórica enquanto resistência do analista ........... 90 
Camila Q. Kushnir 
O setting discursivo ..................................................................................................... 100 
Pedro Henrique de Oliveira Costa 
O dinheiro na clínica e na formação psicanalítica ....................................................... 122 
Paulo Henrique de Oliveira Arruda 
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
O inconsciente não existe 
 
Augusto Corrêa Vaz de Melo 
augustomelo76@gmail.com 
 
Comecemos esse texto com uma espécie de compromisso. Nossa tese se propõe 
sobre um motivo lateral, mas não menos importante, qual seja: há de se transmitir o que 
fazemos da maneira mais clara possível. Essa é uma diretriz que tentaremos perseguir. 
Com efeito, convém partir do acordo estabelecido ao fim do último artigo: não há 
psicanálise sem o suporte do pensamento matemático (VAZ DE MELO, 2020). Agora 
cabe dizer um pouco mais sobre essa proposta. 
Em primeiro lugar, pensemos a matemática como um discurso que se articula 
assentado sobre peças mínimas. Em termos técnicos, trata-se de axiomas. Entendemos 
aqui o tecido axiomático como uma condição necessária à formação de qualquer que seja 
o pensamento e, por conseguinte, ao método de construção de objetos. Axioma vale como 
o tijolo primeiro de um edifício e como a regrinha de ouro que se deve aceitar para entrar 
na partida e conduzir o jogo. Isso tudo de modo extremamente resumido serve para dizer 
que a psicanálise se vale das matemáticas para declarar que haveria, no nosso ofício, um 
punhado de regrinhas que funcionam como operadoras de todo e qualquer movimento 
que fazemos. A tarefa é estabelecer, com essas premissas básicas, a inteireza de nosso 
trabalho. Chamemos como quisermos: conceitos, fundamentos, conceitos fundamentais, 
axiomas… tanto faz. Se uma psicanálise depende do pensamento matemático, tal como 
estou propondo, isso se dá porque partimos dessa forma de acordo inicial, por sobre um 
conjunto limitado de axiomas. Mas ora, por quê? Guardemos a pergunta por enquanto. 
Avancemos ao lembrar que a interrogação que colocamos como condutora desta 
revista é “o que faz um psicanalista?”. Então, eis a resposta sem rodeios: um analista faz 
o inconsciente. O que poderia nos atrapalhar e nos complicar um pouco é que um analista, 
aquele que faz o inconsciente, só aparece porque fez um inconsciente. Mas esperemos um 
pouco para entender isso. De todo modo, cabe uma interrogação aqui: como assim, ele 
faz o inconsciente? Coloquemos os pingos nos “is”. O inconsciente é o que se deduz 
daquilo que alguma pessoa fala para outra, dado que esse outro tem como tarefa ler algo 
aí, nessa mesma fala, orientado por uma chave de leitura muito específica. 
Reparem, de partida cabe reconhecer nessa definição que a condição mais 
fundamental para haver inconsciente é a linguagem. Sem linguagem não há inconsciente. 
Mas qualquer linguagem? Não. Trata-se de um experimento de fala em condições 
3
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
artificiais. Se não há fala, não há psicanálise. A isso se soma que deve haver ao menos 
duas pessoas envolvidas na efetivação de uma análise. É necessário, também, que haja 
uma operação sobre o que é dito. Trata-se de um segundo passo que estabelece uma 
fronteira radicalmente arbitrária, sobre a qual nos debruçaremos aqui. 
É verdade, reconheço que essa proposta pode de fato parecer um pouco esquisita. 
Como assim nós “fazemos” o inconsciente? Ele está lá onde sempre esteve, não é? Ora, 
uma pessoa sonha, comete lapsos de fala e até padece por causas “desconhecidas” – 
menos para nós que sabemos que se trata aí do inconsciente. Portanto, nada mais claro e 
evidente. 
Mas reparem também no seguinte: a nossa crença mais imediata, enquanto 
praticantes da “arte” psicanalítica, é de que o inconscientede fato existe. Ele é de cada 
um. As pessoas têm, cada uma em seu mais profundo âmago-interior-subterrâneo, um 
inconsciente para chamar de seu. É uma propriedade privada que se formou em 
decorrência da nossa constituição enquanto seres no mundo. Chegamos inclusive a dizer 
que se trata de uma evidência empírica. Nós o observamos em alguém1. É claro, nós 
analistas o explicamos porque somos dotados dessa espécie de proficiência que 
adquirimos quando nos consultamos com um outro analista. Somos analistas, então, 
devido ao fato de sermos mais esclarecidos ou advertidos dessa evidência cabal, 
justamente porque passamos pela mesmíssima experiência que empregamos com nossos 
analisandos. E, claro, essa experiência se daria com alguém que, por sua vez, também 
passou pela mesma iniciação. E assim por diante. Já sabemos onde isso vai dar, não? Não 
parece causar espanto nenhum encontrarmos gente, por aí, dizendo que a formação do 
analista se constrói como uma árvore genealógica. 
Mas, ora, essa concepção de inconsciente é essencialista. E ela, apesar de ser nossa 
forma mais comum de lidar com a coisa – coisa freudiana, diria Lacan –, está não só 
equivocada, como também pode ser radicalmente perigosa. Claro, essa pode muito bem 
ser a proposta freudiana e, portanto, talvez necessitasse de um melhor desenvolvimento 
que não caberia nas linhas deste texto. Mas em nenhuma hipótese pode ser a que se 
organiza ao redor da noção de significante – que foi pensada por Lacan, mas isso é, hoje, 
indiferente. Me explico. 
Se entendemos – ou melhor, postulamos – o inconsciente como uma existência de 
fato, se ele é um dado concreto/essencial da realidade de cada um de nós, um analista 
 
1 Há, inclusive, aqueles que observam e interpretam o inconsciente em expressões corporais! 
4
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
seria precisamente aquele que melhor lidaria com os efeitos imediatos dessa realidade. E 
notem – esse passo é simples, mas vejam a dinâmica que isso de fato produz –, o analista 
jovem, chamemos assim aquele que começou a atender há pouco tempo, este só pode ser 
alguém que, invariavelmente, sofre com profundas dificuldades no seu ofício. Mas, por 
quê? Em geral, trata-se de alguém que acredita piamente – assim lhe é transmitida a coisa 
– que ainda não ultrapassou uma barreira que corresponde a um melhor se virar com o 
seu próprio inconsciente e com o de seu analisando. Óbvio, leva tempo. Ele ainda não 
chegou ao famigerado momento da “travessia do fantasma”, logo, não parece possível ao 
jovem analista “se autorizar por si mesmo”. E, como nosso jovem, além de se dobrar aos 
ritos sagrados, acredita que cada um tem o seu próprio inconsciente, a ele cabe se policiar 
no seu fazer clínico para que seu próprio inconsciente não atrapalhe tanto, nem acabe por 
se confundir com o do seu paciente. Reparem que nosso colega não chegou ao ponto onde 
é possível se dizer analista, mas mesmo assim ele mantém uma clínica ativa e atende às 
vezes muitas pessoas. Ora, mais uma das inúmeras contradições do nosso campo. Não 
nos autorizamos a sermos analistas, mas recebemos pacientes. Fazemos o que com isso, 
então? 
De todo modo, o que vale reparar, por enquanto, é que o inconsciente pensado 
dessa maneira acaba por se situar como uma grande de uma assombração. Ao que parece, 
há um perigo eminente na condução do tratamento dos nossos analisandos, e o analista, 
então, só poderia ser um tipo de caça fantasmas. Digo isso, também, porque geralmente 
nos confrontamos com a pergunta do que fazer na clínica para evitar uma sorte de 
acontecimento desastroso, tal como uma explosão. Bem como diante de uma bomba 
relógio saída de filmes de Hollywood, o analista se vê em plena sudorese, prostrado em 
frente a um monte de fios – ou seriam nós? –, tendo que cortar o correto a fim de desarmar 
a perigosa ameaça e salvar a humanidade – sempre é o vermelho que devemos cortar! 
Isso sob a pena de poder causar danos irreparáveis na subjetividade do outro que lhe 
consulta. O analista, além de ser um bom caça fantasmas, também deve ser um expert em 
desarmar bombas – isso faz de um sintoma uma bomba-fantasma! Mas, é claro, ele assim 
deve ser porque passou por um intenso – e caríssimo – processo de “aprendizagem”, que 
mais se parece com uma iniciação eclesiástica, com alguém mais experiente, mais sabido. 
Então, porventura, em um dado momento, acredita-se, nosso aspirante acaba por se 
encontrar plenamente qualificado para analisar eficazmente. 
Insisto. Dentro dessa concepção, tudo que se diz em uma análise, tudo que se faz, 
tudo que o paciente traz, gestos que faz, roupa que usa, espirros entre as palavras, tosse, 
5
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
a maneira que falta à sessão, a forma como se justifica, ora, tudo carrega necessariamente, 
por detrás de sua aparência – semblante, como costumamos ouvir – o inconsciente. Agora 
vejam, essa ideia que chamei essencialista só pode resultar em uma espécie de paranoia. 
Não é incomum ouvir colegas dizendo terem medo de produzir surtos psicóticos em seus 
pacientes com as suas intervenções. 
Outro efeito dessa maneira de pensar o inconsciente é que, se temos por um lado 
o jovem que ainda não aprendeu direito a se situar nessa loucura, há, no extremo oposto, 
o analista experiente. Na nossa comunidade de analistas, existem aqueles que chamam a 
atenção de muitos com suas intervenções pirotécnicas, que mais se parecem com algo 
saído de um livro de poesias de tão incríveis. São aqueles que alimentam a eterna fantasia 
de que há um momento muitíssimo específico para dizer o que de fato tem que ser dito, 
ou mesmo para encerrar a sessão sem dizer absolutamente nada, onde, por fim, se 
produziriam efeitos espantosos na subjetividade dos analisandos. Esse analista pode 
muito bem ter lido todos os seminários e escritos, ou não. Não faz muita diferença para 
nós porque em geral acabamos por não saber bem do que é feita essa aura quase mística 
que os rodeia e, com efeito, acabamos por apostar nossas fichas nesse que dribla a 
“castração”. Inclusive, temos um nome para essa nossa sideração em relação a essas 
pessoas que extraímos da nossa bagagem teórica e usamos sem pudor. Trata-se da 
transferência. Nos vemos encantados, ou “transferidos”, com essas figuras que 
transmitem seus casos e ficamos nos perguntando como diabos vamos poder fazer as 
mesmas coisas. Que dia vou ser capaz de dizer essas coisas encantadoras para os meus 
analisandos? Ora, como todos os caminhos levam a Roma, aqui acabamos nos reenviando 
para a exigência cabal da formação de um analista: haja análise! 
É fato, tem muita gente por aí que anda profundamente angustiada com essa 
maquinaria que se desprende dessa simples evidência do inconsciente com sendo algo em 
si mesmo. Claro, isso também convém para manter em funcionamento não só as 
supervisões, mas também os ambientes dos consultórios dos analistas “experientes” 
sempre povoados. Ao que parece, testemunhamos o surgimento dessa outra função de 
uma análise, qual seja: lidar com os efeitos do inconsciente e seu manejo pelos próprios 
analistas. Vou para análise não porque algo na minha vida anda mal, mas porque tenho 
profundo horror das consequências possíveis e, talvez, inevitáveis da minha clínica2. Ora, 
haveria uma saída diferente para isso? 
 
2 Vale lembrar que Lacan não cansou de criticar a ideia de análise didática. 
6
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site:bordalacaniana.com 
 
A chave do problema aqui é a noção de existência. Reparem que mencionei uma 
clínica que diz que o inconsciente existe e que um analista deve saber o que fazer com 
ele. E nada mais coerente que propor um tratamento que se dê na direção de o analisando 
também aprender a “saber-fazer” com o seu próprio inconsciente. É o famoso caso da 
responsabilização subjetiva. É uma ideia simples e completamente plasmada pelo senso 
comum lacaniano. A coisa está ali, determinando minha vida. Tenho que me 
responsabilizar pelos efeitos que advém daí. Curioso que não dizemos coisas como “seja 
seu próprio analista!”, talvez porque não queremos nossos consultórios vazios. Aliás, 
mais um tabu: o fim de uma análise, mas deixemos isso para depois. 
 Ora, na contramão dessa proposta tão poderosa e, convenhamos, predominante, 
diria que, com Lacan, há de se afirmar com todas as letras que o inconsciente não existe. 
Pelo menos não de fato. E é aqui que podemos fazer bascular a hipótese de que a novidade 
trazida por Lacan, esse conceito radicalmente diferente de significante, é este que induz 
a existência do objeto com o qual lidamos. Em termos muito gerais, o significante 
lacaniano, e vale dizer que ele não tem nada a ver com o de Saussure, é o operador 
existencial do inconsciente3. Se o inconsciente não existe como dado da nossa realidade, 
ele se estabelece como fato lógico. E esse é o caráter realmente subversivo do seu ensino. 
Trata-se, então, de uma torção, que chamarei antifilosófica. O inconsciente não 
poderia jamais ser necessariamente algo essencial e dado, pois se configura como algo de 
natureza lógica. Depende de uma operação artificial e arbitrária, de uma intervenção que 
toma o discurso comum – as palavras, frases, pontos – e o transforma em significante, 
onde se pode escrever e ler a dimensão do inconsciente. Eis uma forma de entender por 
que o estatuto do inconsciente é ético, não ôntico (LACAN, 1964/2008). É ético, porque 
depende da limitação de um marco teórico e da sua aplicabilidade prática. Estou falando 
do já popular “ato analítico”. 
Como vimos acima, vale lembrar que a psicanálise de Lacan se assenta sobre uma 
hipótese teórica que tem como articuladores alguns axiomas necessários ao 
funcionamento da nossa clínica. Trata-se da “hipótese de que o indivíduo que é afetado 
pelo inconsciente é o mesmo que constitui o que chamo de sujeito de um significante, o 
que eu enuncio sob essa fórmula mínima: ‘um significante representa um sujeito para 
outro significante’” (LACAN, 1972-73/2010, p.271). Notem, não há clínica sem o apoio 
 
3 Aos desavisados, aqui há uma imprecisão que não pode passar batida. Há uma diferença importante e 
nada trivial entre inconsciente e sujeito do inconsciente. Aquilo que se produz pelo ato significante é o 
sujeito. O inconsciente é o saber que resulta daí. Tal precisão fica para uma outra ocasião. 
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Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
do conceito. Se não emprego nossa noção básica e seu correlato operacional, não pode 
haver experiência com o inconsciente. Isso derroga a pregnância da dimensão sensível e 
imediata. 
Nessa medida, não há maneira de sustentar o que quer que seja sem o suporte, ou 
mediação, da teoria. Essa é uma leitura lacaniana que podemos rastrear, se quisermos, até 
Hegel. Mas o mais evidente operador dessa aposta é Koyré, epistemólogo de suma 
importância para o projeto de ciência que Lacan visou estabelecer. De todo modo, o que 
interessa para a nossa discussão é que o inconsciente, desde o pensamento organizado 
pelo significante, é um artifício produzido pontualmente por uma leitura. Nesse caso, 
trata-se de uma intervenção no discurso – e pelo discurso analítico –, que, sob condições 
artificiais, gera a coisa com a qual trabalhamos. Nós damos um sentido novo ao que se 
traz como material de sessão, ou seja, ao que um analisando nos diz. Dessa maneira, a 
vulgata “um charuto pode ser só um charuto” deve ser entendida tal qual: um charuto 
nunca é mais do que um charuto, senão em condições especiais onde se interroga pelo seu 
sentido, pela sua identidade, sob a finalidade radical de um tratamento. 
Um significante não é algo imediatamente dado. Ele é um construto experimental. 
Nós o induzimos artificialmente junto com o inconsciente. E, embora essa seja uma 
proposta um tanto ousada, ela se dá caso aceitemos a sua premissa – se não for o caso 
temos outro tipo de clínica! Lembremos então do que se trata. Para Lacan, trata-se, sim, 
de um axioma: 
 
axioma que é aquele que avancei da última vez: que o significante – esse 
significante cuja função temos aqui definido, de representar um sujeito para 
outro significante – esse significante, o que representa ele em face dele mesmo, 
de sua repetição de unidade significante? Isto está definido pelo axioma de que 
nenhum significante – mesmo se ele está, e mui precisamente quando ele está 
reduzido a sua forma mínima, aquela que chamamos a letra – não poderia se 
significar a ele mesmo4 (LACAN, 1966-1967/2008, p.29). 
 
O significante, que tem por função representar um sujeito para outro significante, 
tem como substrato axiomático a especificidade de não poder significar a si mesmo. 
Reparem que qualquer palavra, frase ou pontuação que chamemos de significante, nunca, 
jamais, podemos inferir daí seu significado. Estamos sempre diante da urgência de 
estabelecer uma relação. Então não pode haver só um significante, pois sua definição 
 
4 Aos não advertidos, vale consultar o livro do matemático Paul Halmos (1960, Teoria ingênua dos 
conjuntos. Rio de Janeiro: Editora Ciência Moderna, 2001). Trata-se de um famoso texto de teoria dos 
conjuntos. Não se espantem ao encontrar a mesma definição axiomática por lá. Inclusive, no quesito “não 
há universo de discurso” (LACAN, 1966-67/2008, p.24), é de lá que isso vem. Seria o significante o nome 
lacaniano para os conjuntos da matemática? 
8
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
intrínseca depende, necessariamente, de um segundo. Por si só, um significante não quer 
dizer absolutamente nada. Em suma, não há um sem dois. 
Uma pessoa que fala em sessão, ou mesmo em qualquer ocasião, julga dominar a 
intenção de produzir sentido no que fala. Nós analistas, porque postulamos a dimensão 
do inconsciente dessa maneira muito peculiar, avaliamos que uma pessoa não tem morada 
confortável no que fala. Que, quando fala, já não está mais onde [isso5] falou. E essa nossa 
hipótese teórica chamamos de inconsciente. Claro, isso se suporta, de maneira prática, no 
manejo dos significantes. E é por isso que dizemos que um analista lê o que escuta. Trata-
se de uma operação de segunda ordem, onde acrescentamos algo lá onde não havia nada. 
Bom, isso produz algumas alterações no entendimento comum sobre nosso ofício. Ou ao 
menos deveria. 
Reparem, não há neutralidade do analista. A fantasia de que deveríamos zelar por 
um bom distanciamento entre o nosso inconsciente e o do analisando não tem lugar nessa 
definição que Lacan propôs. E isso por um motivo bem claro. Não há essa separação. Só 
há um inconsciente em jogo numa análise. Um inconsciente que se conta, ou ainda, se 
quisermos, um saber insabido, que se articula por haver sido produzida uma relação entre 
(ao menos) dois significantes. E esse é resultado de uma intervenção que tem como baliza 
nosso axioma acima mencionado. O oposto de uma psicanálise neutra é, portanto, uma 
clínica comprometida. Sempre que interpretamos estamos forçando uma barra, fazendo 
consistir algo radicalmente artificial e, porque não, impróprio. Estamos dentro dacoisa, 
dos pés à cabeça. Lembremos o bom e velho Freud quando, para ele, uma análise seria 
justamente o que se passa por sobre uma neurose de transferência. 
Outro aspecto que parece ser decisivo é o seguinte: se na proposta clínica exposta 
acima nós tínhamos que lidar com a consistência real – leia-se real de realidade – do 
inconsciente, agora trata-se de uma posição que depende da sustentação de marcos 
teóricos mínimos para que ela, a clínica, sequer se estabeleça. E aqui, como salientei 
antes, estamos no campo da lógica. Notem que, se antes era necessário que o inconsciente 
estivesse em cada ação, ato de fala, gesto e etc., agora sua realidade efetiva é radicalmente 
contingente. Dito de outro modo, se antes a coisa não podia não estar ali, agora, dado que 
depende de uma operação arbitrária, pode se fazer presente, ou não. 
Essa não é uma proposta que nos faria mais indiferentes ou mesmo cínicos em 
relação ao inconsciente. Não se trata de algo que nos retira a responsabilidade pela 
 
5 Ça parle. Isso fala, diria Lacan. 
9
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
condução das análises. Mas de fato estamos diante de uma maneira de pensar a clínica 
que retira o véu da assombração. É como nos desenhos de Scooby-doo, onde se tira o 
lençol de cima do fantasma para podermos ver o que – ou quem – está de baixo. O detalhe 
capcioso é que não vamos encontrar o velho zelador da casa supostamente mal 
assombrada. Não se trata aqui da verdade como desvelamento. Não há ser por debaixo! 
De fato, não encontramos absolutamente nada. E talvez a coisa pode até se anunciar como 
ainda mais assustadora, é verdade. Ora, se não tem nada por debaixo do véu, o que fazer? 
Bom, a sugestão lacaniana parece ser a de passar de caça fantasmas, ou de experts em 
desarmar bombas, a lógicos6. 
E mais uma vez o pensamento matemático7 pode nos socorrer. Quando falou que 
a lógica é a ciência do Real (LACAN, 1972/2003), a intenção de Lacan era demonstrar 
que a realidade efetiva, tal qual a que nos relacionamos de maneira mais ingênua, essa 
mesma onde apontamos a existência do inconsciente, bom, esta não serve para nossos 
propósitos. A categoria de Real surge para indicar a existência na medida em que esta 
depende de um Outro, mais precisamente, da estrutura significante. E aqui entra em 
função a radical novidade que Lacan parece encontrar nas matemáticas. Vejamos como 
ele diz: 
 
é preciso crer que a matemática, durante séculos, prescindia de qualquer 
questionamento a esse respeito, uma vez que só tardiamente, e por intermédio 
de uma interrogação lógica, ela deu um passo nessa questão que é central 
quanto à verdade, isto é, como e por que há o um. Vocês me desculparão, não 
sou o único. Há o um, ao redor desse Um gira a questão da existência. Já fiz 
algumas observações a esse respeito, isto é, de que a existência nunca foi 
abordada como tal antes de uma certa época e que se levou tempo para extraí-
la da essência. (...) É aí que começa algo que pode nos interessar. Trata-se de 
saber o que existe. Não existe senão o Um – com essa pressa ao nosso redor, 
sou forçado aqui também a me apressar – a teoria dos conjuntos é a 
interrogação: por que “há o um”? (LACAN, 1971-1972, p.120). 
 
Aquilo do que se trata nessa leitura é a maneira pela qual a matemática pôde 
refazer a pergunta pelo estatuto da existência, desde a teoria dos conjuntos, extraindo-a 
da essência. Há um não quer dizer nada além disso. Ou seja, o um se conta dentro de uma 
estrutura que exige ao menos dois, sendo o dois a estrutura significante, o Outro. 
 
6 Não pode passar despercebido que traduzimos erroneamente para português o “fantasme” de Lacan por 
fantasma, onde deveria vir corretamente a fantasia. Nossa tradução é o melhor índice do nosso medo com 
a coisa. 
7 Nesse parágrafo e em toda a proposta do presente texto, lógica e matemática aparecem em conjunção, às 
vezes se confundindo por completo. Esse parece ser um problema aberto por Lacan, mas infelizmente pouco 
abordado ao longo do seu ensino. Em ocasiões, sua posição é de que a matemática deveria ser logicizada - 
como queria Frege - e, em outros momentos ele sequer reconhece uma distinção. Essa não é a posição do 
autor, mas sua discussão pormenorizada ficará para outra ocasião. 
10
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.com 
 
Por fim, o inconsciente não existe. Ele ex-siste. “O verbo ‘existere’ significa 
‘surgir, sobressair’. Literalmente, a palavra significa ‘estar fora de’, ‘destacar’. Aquilo 
que existe se destaca, ele se destaca dos outros objetos por meio de suas características” 
(GABRIEL, 2016, p.58). A palavra também indica algo que se coloca de pé, que se firma. 
Que surge a partir de algo firme. Depende de uma instância de onde se o fundamenta. O 
inconsciente não existe por si mesmo e a despeito de nós. Podemos até dizer que ele está 
lá desde sempre, desde que se o deduza a posteriori, dentro de um campo muito 
específico. Eu posso, depois de passar por uma análise, dizer que meu problema sempre 
foi um desejo reprimido em razão da minha estrutura familiar. Ou ainda dizer que sempre 
me relacionei com meus pares românticos em razão de um encontro fortuito. Mas esse 
saber não estava dado antes. E é por isso que seu estatuto é exclusivamente lógico. Então, 
antes de nos consternar e nos assombrar com a “evidência” fantasmática do inconsciente, 
deveríamos pensar que há uma outra proposta, muito menos intuitiva, que pode servir 
para organizar um pouco melhor nossa tarefa do dia a dia clínico. 
Lembremos, também, que a teoria dos conjuntos à qual Lacan se refere leva em 
consideração os trabalhos de Cantor e Frege. A proposta em jogo no projeto aberto por 
ambos, para os fins da nossa argumentação, implica a conceitualização do zero e do 
infinito. Em linhas muito gerais, para Lacan, trata-se do passo dado pela ciência ao 
sustentar que a sua operação é de produzir uma escrita do Real e, portanto, dar um lugar 
para o vazio. Essa ciência tão diferenciada que Lacan insiste ser condição para a 
psicanálise é, então, a formalização do nada, daquilo que “não existe”. Por isso mesmo 
ele pode falar de “insubstância” e reler – ou seria desler? – a “coisa” kantiana como 
“acoisa” dele, Lacan. Ora, quando um analista intervém na fala de um analisando, por 
exemplo, está forçando a nomeação de um ponto de vazio, produzindo um contorno para 
esse saber que não se sabia até então. Se isso ocorre, se essa intervenção produz marcas 
que podem ser lidas e retomadas em outro momento, tal como um texto – eis o saber 
insabido como rébus –, ali podemos dizer que houve um analista. Note que dizer que o 
analista é uma função é também fazê-lo depender desse aparelho lógico. Em suma, jamais 
somos analistas. Apenas podemos constatar que fomos, em uma dada análise, com um 
dado analisando, em um pontual instante. E assim fomos para não ser mais depois. É 
intervalar, como um suspiro que nunca podia ter acontecido senão depois de alguém notar. 
E, quando isso tudo ocorre, se cura. 
Em resumo, e agora com mais elementos técnicos para melhor definir a coisa, o 
inconsciente é o saber que se produz em razão dessa leitura, dado que se leva em 
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consideração o buraco, o abismo que abrimos na estrutura, isso que justamente damos o 
nome próprio de sujeito do inconsciente. Esse abismo, enfim, deve guardar íntima relação 
com a ideia limite de Real, ou seja,com a conjectura lógica de que essa estrutura é 
incompleta. 
Esta me parece uma proposta clínica radicalmente subversiva, onde o que se faz 
depende de uma reforma no entendimento. Com ela podemos garantir uma espécie de 
eficácia sem sucumbir à fantasmagoria assustadora que se produz ao redor da noção mais 
básica da nossa prática. Agora, se estamos falando da raiz do nosso ato, da razão por 
detrás da nossa clínica, assentados em outra maneira de pensar que não a mais usual da 
nossa comunidade, haveria ainda lugar para ideia de que, para poder operar aí, é preciso 
mais e mais análise? Tem lugar, também, para ainda se sustentar uma concepção 
ritualística e essencialmente cronológica das nossas formações? Ou mesmo para pensar 
que o que temos a fazer é unicamente responsabilizar nossos analisandos por algo que 
eles carregam no âmago de seus seres? Fica a provocação. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
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LACAN, J. (1964). O seminário, livro 11. Os quatro conceitos fundamentais da 
psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar, 2008. 
 
LACAN, J. (1966-1967). O Seminário, livro 14. A lógica do fantasma. Seminário 
inédito, Recife, 2008. 
 
LACAN, J. (1971-1972). O Seminário, livro 19. O saber do psicanalista. Seminário 
inédito. 
 
LACAN, J. (1972). O aturdido. In: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 
2003, p. 448-497. 
 
LACAN, J. (1972-1973). O Seminário, livro 20. Encore. Rio de Janeiro: Escola Letra 
Freudiana, 2010. 
 
VAZ DE MELO, A. C. Questões preliminares a todo tratamento possível do Matema. 
Do terrorismo dogmático à lógica cosmopolita. Revista Borda, Rio de Janeiro, n.0, p.41-
53, 2020. Disponível em: <https://bordalacaniana.com/wp-content/uploads 
/2020/01/Borda-N.0.pdf>. 
 
 
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https://bordalacaniana.com/wp-content/uploads/2020/01/Borda-N.0.pdf
 
 
 
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Introdução ao sujeito do inconsciente 
 
Lucas C. S. Pires 
psicologolucaspires@gmail.com 
 
“Estamos aqui ainda a amestrar os ouvidos ao termo sujeito.” 
(LACAN 1951[1966]/1998, p.214) 
 
Quando falamos estamos sujeitos à polissemia de sentidos e não há meios para 
escapar disso. Ter a mesma nacionalidade ou falar o mesmo idioma não garante que não 
haverá equívocos e desencontros, o que exige certo esforço de nossa parte na tentativa 
de minorá-los o máximo possível para comunicar algo. Esse esforço também se faz 
necessário e é de suma importância quando estamos em um campo teórico, para que 
seja possível o debate de ideias calcadas em um conceito que seja de conhecimento de 
todos. Na Física, por exemplo, quando se fala nas três leis de Newton, os praticantes 
dessa área têm noção do que se trata e conseguem tecer discussões a respeito, pois são 
conceitos bem delimitados. Agora, quando olhamos para o campo da Psicanálise, o 
mesmo movimento talvez não seja possível, mesmo olhando para uma única vertente 
dela. Entre os lacanianos não há um consenso sobre a definição de conceitos 
fundamentais como inconsciente, real, pulsão, objeto a, sujeito, entre outros. Estamos 
em uma Babel1 com cada um falando um idioma diferente sem conseguir estabelecer 
um ponto de partida, um marco zero teórico em comum. O problema aqui é que sem 
isso não conseguiremos avançar o debate teórico, visto que nem estamos conseguindo 
ter um debate de fato. 
Para poder falar em uma teoria lacaniana é necessário que façamos certas 
delimitações, caso contrário ficaremos perdidos em um senso comum sem fim ou presos 
a tudo o que é sensível. Essas delimitações são importantes também para saber qual é o 
nosso objeto de trabalho e para poder desenvolver uma prática minimamente séria, 
pautada em um rigor teórico. Mas o que isso quer dizer? Façamos um exercício de 
pensamento. Ao lançarmos uma moeda que possui dois lados, cara e coroa, quais os 
resultados possíveis? Ou teremos cara ou teremos coroa. Partindo dessa premissa 
inicial, temos apenas essas duas possibilidades de conclusão. É um pequeno exemplo, 
mas a forma de raciocínio é similar quando partimos de uma premissa teórica inicial, de 
um axioma, e cabe a nós utilizar raciocínios e argumentos lógicos para deduzir e chegar 
 
1 Cf. https://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_de_Babel 
14
https://pt.wikipedia.org/wiki/Torre_de_Babel
 
 
 
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até às últimas implicações lógicas possíveis. Sendo assim, algumas conclusões são 
possíveis enquanto outras não são, e está tudo bem! 
Frente a isso, a proposta deste artigo é trazer algumas delimitações e possíveis 
chaves de leitura presentes na teoria lacaniana – lembrando que esta é calcada em quatro 
disciplinas que são linguística, lógica, topologia e antifilosofia – para, quiçá, fazer uma 
introdução sobre nosso objeto de trabalho e estudo que é o sujeito do inconsciente, e 
assim apresentar eventualmente uma saída para essa situação babélica que persiste em 
pleno 2020. 
Primeiro, é preciso dizer que Lacan era francês e, portanto, falava e escrevia em 
francês. Ao longo de seu ensino podemos ver a presença da palavra sujet2 (sujeito, em 
francês), que é uma palavra comum do idioma e possui alguns significados: 1) indivíduo 
ou pessoa; 2) “estar sujeito a…”, uma relação de dependência; 3) assunto, tema ou 
matéria; 4) elemento da gramática que faz a ação de um verbo em uma frase. Lacan se 
utilizou dos vários significados da palavra sujet, tal como podemos ver nesse exemplo 
da versão francesa do seminário sobre “L'Angoisse” [A Angústia] (1962-1963), edição 
da Staferla, na lição de 14/11/1962: 
 
Je vais vous parler cette année de l’angoisse. Quelqu’un qui n’est pas du tout 
à distance de moi dans notre cercle, m’a pourtant l’autre jour laissé 
apercevoir quelque surprise que j’aie choisi ce sujet [assunto] qui ne lui 
semblait pas devoir être d’une tellement grande ressource. (LACAN, lição 
14/11/1962) 
 
E podemos comparar com o mesmo trecho dessa vez na versão em português do 
seminário (1962-1963/2005): 
 
Vou falar-lhes este ano da angústia. No entanto, um dia desses notei em 
alguém que não é nada distante de mim em nosso círculo uma certa surpresa 
por minha escolha deste assunto, que não lhe parecia ser de tão grande 
potencial. [grifo nosso] (LACAN, lição 14/11/1962, p.11) 
 
A leitura e o entendimento do texto requerem o trabalho de tentar definir qual 
sentido de sujet, em francês, está sendo utilizado em cada trecho. Porém, nos deparamos 
com parte dessa confusão na tradução para o português, pois as ocorrências do termo 
“sujeito” são indiscriminadas, não levando em consideração a diferença entre sujeito do 
inconsciente ou pessoa. Esse esforço não pode ser legado ao acaso ou à vontade, já que 
é preciso avaliar o contexto do parágrafo, ou parágrafos, onde a palavra se encontra, 
sendo bem vinda e necessária a postura de “um leitor não modesto” (COSTA, 2020). 
 
2 Cf. <https://dicionario.reverso.net/portugues-frances/sujeito/forced> e <https://www.le-dictionnaire.com 
/definition/sujet>. 
15
https://dicionario.reverso.net/portugues-frances/sujeito/forced
 
 
 
Revista Borda - n. 1, abril de 2020. Site: bordalacaniana.comSomado a isso é preciso destacar quando que o sentido se refere ao sujeito do 
inconsciente, e para isso precisamos verificar do que se trata esse conceito. 
Quando não temos noção clara do que nos guia e nos orienta, ou seja, nossas 
premissas e nossos axiomas, ficamos sem saber qual é o nosso objeto de estudo e 
trabalho, e muito menos como operar na clínica, uma vez que é o arcabouço teórico que 
gera uma clínica específica. Dessa forma, nosso foco não é empírico, dado que “o 
verdadeiro móbil de uma estrutura científica é sua lógica, não sua face empírica” 
(LACAN, 1967/2006, p.58). Precisamos de uma delimitação, de uma redução, como 
podemos ver nessa citação do texto “A ciência e a verdade”: 
 
O status do sujeito na psicanálise, acaso diremos que no ano passado o 
fundamentamos? Chegamos a estabelecer uma estrutura que dá conta do 
estado de fenda, de Spaltung em que o psicanalista o situa em sua práxis. 
Essa fenda, ele a reconhece de maneira como que cotidiana. Admite-a na 
base, já que o simples reconhecimento do inconsciente basta para motivá-la e 
que, além disso, ela o submerge, por assim dizer, em sua constante 
manifestação. Mas, para que ele saiba o que acontece com sua práxis, ou 
simplesmente que a dirige em conformidade com o que lhe é acessível, não 
basta que essa divisão seja para ele um fato empírico, nem tampouco que o 
fato empírico tenha-se constituído em um paradoxo. É preciso uma certa 
redução, às vezes demorada para se efetuar, mas sempre decisiva no 
nascimento de uma ciência; redução que constitui propriamente seu objeto. É 
isso que a epistemologia se propõe definir em cada caso e em todos eles, sem 
que se haja mostrado, pelo menos a nosso ver, à altura de sua tarefa [grifo 
nosso] (LACAN, 1966/1998, p.869). 
 
Me parece que é preciso resgatar a delimitação do nosso objeto para que seja 
mais clara nossa práxis. Aqui pretendo arremeter contra o que me parece ser o principal 
problema em torno do sujeito, que é a confusão entre sujeito e indivíduo. No trecho 
acima temos que o sujeito na psicanálise se trata de um sujeito dividido, e aqui já 
podemos ver a diferença a partir da palavra, uma vez que indivíduo3 quer dizer aquilo 
que não é possível dividir, que é indiviso: uma unidade. Me parece contraditório pensar 
que duas coisas diferentes são iguais, porém precisamos avançar mais em nossa 
investigação. Ainda em “A ciência e a verdade” podemos extrair que há equívoco em 
tentar igualar sujeito a algo encarnado em um corpo: 
 
Seja como for, afirmo que toda tentativa, ou mesmo tentação - nas quais a 
teoria em curso não deixa de ser reincidente - de encarnar ainda mais o 
sujeito é errância: sempre fecunda em erros e, como tal, incorreta. Como 
também encarná-lo no homem, o que equivale voltar à criança [grifo nosso] 
(p.873). 
 
 
3 Cf. <https://www.dicio.com.br/individuo/>. 
16
https://www.dicio.com.br/individuo/
 
 
 
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E expressa que precisamos distinguir o sujeito que nos interessa do indivíduo 
biológico: 
 
Em suma, reencontramos aqui o sujeito do significante, tal como o 
articulamos no ano passado. Veiculado pelo significante em sua relação com 
outro significante, ele deve ser severamente distinguido tanto do indivíduo 
biológico quanto de qualquer evolução psicológica classificável como objeto 
da compreensão [grifo nosso] (p.890). 
 
Não é o biológico aquilo que nos interessa, sendo necessário distingui-lo 
severamente do sujeito do significante, que abordaremos em breve. Seguindo essa linha, 
podemos ver no seminário “De um Outro a ao outro” (1968-1969/2008), na lição de 
14/05/1969, que mais uma vez é apontada uma distinção entre sujeito de um lado e 
pessoa, dessa vez, do outro: 
 
É mensurável a distância entre o que define um sujeito e o que se sustenta 
como uma pessoa. Isso significa que é preciso distingui-los com muito rigor. 
Qualquer espécie de personalismo em psicanálise é propício a todas as 
confusões e desvios. Aquilo que se marca como sendo a pessoa em outros 
registros, ditos morais, não pode ser situado em outro nível, na perspectiva 
psicanalítica, senão o do sintoma. A pessoa começa ali onde o sujeito está 
ancorado de maneira diferente da que lhes defini, ali onde ele se situa de 
maneira muito mais ampla, aquela que faz entrar em jogo o que sem dúvida 
se situa na origem do sujeito, isto é, o gozo [grifo nosso] (p.308). 
 
Lacan com frequência nos chama a atenção em seu ensino para a importância do 
rigor em nosso meio. Isso se dá porque sua base para a epistemologia da ciência sempre 
foi Koyré, chamado por Lacan de “nosso guia” (LACAN, 1966/1998, p.870). Tal base 
rompe com o empírico, como já mencionado, e foca no rigor, devido à noção de ciência 
moderna postulada pelo epistemólogo. 
Nos deparamos com distinções entre sujeito e indivíduo, pessoa, organismo ou 
corpo biológico desde o período inicial do ensino de Lacan como, por exemplo, na lição 
de 17/11/1954 do seminário “O eu na teoria de Freud e na técnica da psicanálise” 
(1954-1955/2010): 
 
O sujeito como tal, funcionando como sujeito, é algo diferente de um 
organismo que se adapta. É outra coisa, e para quem sabe ouvi-lo, a sua 
conduta toda fala a partir de um outro lugar que não o deste eixo que 
podemos apreender quando o consideramos como função num indivíduo, ou 
seja, com um certo número de interesses concebidos na aretê4 individual 
(p.19). 
 
 
4 Relativo à virtude. Cf. <https://pt.wikipedia.org/wiki/Aret%C3%AA>. 
17
https://pt.wikipedia.org/wiki/Aret%C3%AA
 
 
 
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Vemos a mesma insistência em seminários localizados no período final de seu 
ensino, como o seminário sobre “O Sinthoma” (1975-1976/2007), na lição de 
11/05/1976: 
 
Vocês precisam perceber que o que eu lhes disse sobre as relações do homem 
com o seu corpo atém-se inteiramente ao fato de o homem dizer que o corpo, 
seu corpo, ele o tem. Dizer seu já é dizer que ele o possui, como se fosse, 
naturalmente, um móvel. Isso nada tem a ver com qualquer coisa que permita 
definir estritamente o sujeito, que, por sua vez, só se define de modo correto 
na medida em que é representado por um significante junto a outro 
significante (p.150). 
 
A teoria não diz que não há um corpo ou que ele não existe. É claro que ele 
existe e faz parte da consistência do imaginário, porém esse corpo não é o que nos 
interessa enquanto objeto de estudo e sim o sujeito que é representado por uma relação 
entre ao menos dois significantes. Por algum motivo insistimos em pessoalizar, em 
personificar, em dar corpo físico ao sujeito. Entretanto, segundo Lacan (1968/2006), 
 
o sujeito de que se trata nada tem a ver com que é chamado de subjetivo no 
sentido vago, no sentido do que mistura tudo, nem tampouco com o 
individual. O sujeito é o que defino no sentido estrito como efeito de 
significante. Eis o que é um sujeito, antes de poder ser situado, por exemplo, 
nesta ou naquela das pessoas que se acham aqui no estado individual, antes 
mesmo de sua existência de viventes [grifo nosso] (p.89-90). 
 
Não se trata de algo próprio de uma pessoa, de algo subjetivo, e tampouco tem 
relação com algo que seja individual e, portanto, não há aqui a ideia de que cada um tem 
um inconsciente. Essa não é uma premissa para nós, e partimos de outro lugar. O sujeito 
que nos interessa é aquele que é efeito de significante e de suas articulações. É 
importante destacar que o significante aqui distingue-se do significante da linguística de 
Saussure. Enquanto o segundo está em relação direta com o significado,onde um 
invoca o outro, significando algo, o primeiro, que é o significante na psicanálise, está 
esvaziado de significado já que a barra que os separa (S/s) é intransponível. Um 
significante enquanto tal não significa nada. Isso quer dizer que se temos apenas um ele 
não significa nada e muito menos produz uma significação, um sujeito do inconsciente. 
Um significante aqui representa um sujeito para outro significante, o que demonstra que 
precisamos articular ao menos dois (S1 → S2) para produzir o sujeito. 
Podemos encontrar diversas vezes essa definição de que um significante 
representa um sujeito para outro significante ao longo do ensino de Lacan, como nos 
seguintes exemplos: 
 
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Isso permite adiantar uma formulação que lhes apresento como uma das mais 
primordiais. É uma definição do que é designado como “elemento” na 
linguagem. Isso sempre foi designado como “elemento”, mesmo em grego. 
Os estóicos chamaram-no de “significante”. Enuncio o que o distingue do 
signo: é que o “significante é o que representa o sujeito para outro 
significante”, não para outro sujeito (LACAN, 1967/2006, p.45-46). 
 
Tal qual em: 
 
Pois o que define um significante é o fato de ele representar um sujeito não 
para outro sujeito, mas para outro significante. Essa é a única definição 
possível do significante enquanto algo diferente do signo. O signo é algo que 
representa alguma coisa para alguém, mas para o significante é algo que 
representa um sujeito para outro significante (LACAN, 1976, p.206). 
 
Mais uma vez: 
 
O registro do significante institui-se pelo fato de um significante representar 
um sujeito para outro significante. Essa é a estrutura, sonho, lapso e chiste, de 
todas as formações do inconsciente. E é também a que explica a divisão 
originária do sujeito (LACAN, 1964/1998, p.854). 
 
E ainda: 
 
Há estruturas – não poderíamos designá-las de outro modo – para caracterizar 
o que se pode extrair daquele em forma de sobre o qual me permiti, ano 
passado, enfatizar um emprego particular – quer dizer, o que se passa em 
virtude da relação fundamental, aquela que defini como sendo a de um 
significante com outro significante. Donde resulta a emergência disso que 
chamamos sujeito – em virtude do significante que, no caso, funciona como 
representando esse sujeito junto a um outro significante (LACAN, lição 
26/11/1969, 1969-1970/2007, p.11). 
 
Em muitas outras citações podemos encontrar essa definição canônica de 
significante, porém não quero deixar o artigo excessivamente extenso. Até aqui já temos 
algumas premissas para poder pensar o sujeito do inconsciente. Vale ressaltar que se um 
significante enquanto tal não significa nada, uma frase como “o paciente repete muito o 
significante x”, que escutamos com frequência, não faz sentido dentro dessa lógica, pois 
é necessário que se articule ao menos dois significantes. Ademais isso denota o 
equívoco frequente em confundir significante com palavra. Uma palavra pode ser um 
significante, porém um significante não é necessariamente uma palavra. Ele é aquilo 
que representa um sujeito para outro significante, e com isso um significante pode ser 
desde uma palavra, frase, até todo um discurso de uma sessão. 
Agora uma pergunta: se mudamos os significantes que estão articulados isso 
altera o sujeito do inconsciente? Pense no caminho que percorremos até aqui e tente 
responder antes de continuar. O analista lê o discurso e intervém nele destacando 
trechos, elevando-os à categoria de significante e dessa maneira opera através da 
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articulação desses significantes. Quando mudamos um dos significantes que estão 
articulados isso produz um sujeito diferente. Isso é parte do tratamento. Alteramos 
aquilo que é efeito de linguagem, de um discurso, de um dizer, de significantes e não a 
pessoa/indivíduo que está em nossa frente. Dessa forma outro equívoco que podemos 
localizar é dizer que a pessoa é histérica, sendo que “a histérica é um efeito, como todo 
sujeito é um efeito (...) e desse fato constitui um discurso” (LACAN 1976b/2016, p.59). 
Passamos a não mais nos referir a uma pessoa neurótica, mas sim a um discurso 
neurótico. Discurso que causa efeitos específicos. 
Parte da proposta que apresento aqui como uma introdução ao sujeito do 
inconsciente implica certa delimitação necessária, como vocês podem ver. Acredito que 
devemos acrescentar essa delimitação em nosso vocabulário também e fazer diferente 
de Lacan, que utilizou de forma indiscriminada o termo “sujeito”, se quisermos começar 
a ter alguma clareza dentro desse assunto. Proponho o uso do sujeito apenas para 
quando for o sujeito do inconsciente, e se for necessário falar de pessoa ou indivíduo 
utilizar uma dessas outras opções. Temos que trabalhar com o que implica a nossa 
proposta teórica, como podemos ver no seguinte trecho do texto “Situação da 
psicanálise e formação do psicanalista em 1956”: “Exercendo-se a técnica da 
psicanálise na relação do sujeito com o significante, o que ela conquistou de 
conhecimentos só é situável ao se ordenar a seu redor” [grifo nosso] (LACAN, 
1956/1998, p.475). 
Recuar após a delimitação ser feita seria algo contraproducente. O interessante 
para que possamos ter um trabalho com rigor e estabelecer o debate de ideias é nos 
ordenar ao redor dessa redução. Talvez assim possamos atenuar a confusão o máximo 
possível, além de minorar o tempo gasto. É importante deixar claro que não há garantias 
e isso se trata de uma aposta para tentar reduzir o campo, como dito no início. 
Estamos no campo da linguagem e a leitura se torna um exercício importante 
para o analista operar no discurso pela articulação dos significantes. Assim como o 
nosso sujeito não deve ser confundido com a pessoa que fala, ele não deve ser 
confundido com os pronomes pessoais de uma frase, o que seria equivalente ao engano 
anterior. Este exercício de leitura que visa produzir o nosso sujeito passa pelo caminho 
da lógica matemática. Desse modo sua redução é possível, uma vez que 
 
um sujeito segundo a linguagem é aquele que conseguimos depurar com 
grande elegância na lógica matemática. Salvo que resta sempre alguma coisa 
a citar que é de antes. O sujeito é fabricado por um certo número de 
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articulações produzidas e de onde ele caiu como fruto maduro da cadeia 
significante (LACAN, 1967/2006, p.53-54). 
 
Quando recebemos alguém que nos procura para tratamento utilizamos hipóteses 
para deduzir a lógica do caso a partir do discurso que se estrutura em sessão, daquilo 
que analista e analisando conversam. Pela lógica, o que nos interessa é a forma do 
argumento e não o seu conteúdo, pois esse último pode variar de inúmeras maneiras 
enquanto a forma se mantém. De articulação em articulação vamos decifrando a lógica 
do caso enquanto se produz um sujeito a cada articulação diferente. 
Outro ponto relativo à linguagem que merece esclarecimento diz respeito à dupla 
“sujeito do enunciado” e “sujeito da enunciação”, termos que estamos acostumados a 
ouvir, porém vamos ver o que encontramos a respeito para auxiliar na delimitação e, 
consequentemente, em nossa comunicação dentro do campo teórico: 
 
Por que introduzi a função de sujeito como algo distinto do que é do âmbito 
do psiquismo? Não posso fornecer verdadeiramenteuma teoria sobre isso, 
mas quero mostrar-lhes como isso se liga à função do sujeito na linguagem, 
que é uma função dupla. Há um sujeito que é o sujeito do enunciado. É fácil 
reparar nisso. Eu [Je] quer dizer aquele que está falando agora no momento 
em que digo eu. Mas o sujeito nem sempre é o sujeito do enunciado, pois nem 
todos os enunciados contêm eu. Mesmo quando não existe eu, mesmo quando 
vocês dizem “está chovendo”, há um sujeito da enunciação, há um sujeito 
mesmo que não seja perceptível na frase. Tudo isso permite representar 
muitas coisas. O sujeito que nos interessa — sujeito não na medida em que 
faz o discurso, mas em que é feito por ele, e inclusive feito como um rato — é 
o sujeito da enunciação [grifo nosso] (LACAN, 1967/2006, p.45). 
 
Não devemos confundir o nosso sujeito com aquele que fala. Sendo assim, na 
linguagem não é o sujeito do enunciado que nos interessa. Se não é aquele que fala que 
nos interessa, então não é aquele que enuncia o discurso o nosso alvo. Nosso interesse 
recai sobre aquele que é feito pelo discurso, que é efeito de um discurso, ou seja, o 
sujeito da enunciação. Sujeito esse que não está na frase, mas ao mesmo tempo está lá. 
Por último, quero retomar a ideia trazida quando disse que falamos a partir de 
outro lugar. A partir da teoria baseada em uma geometria euclidiana, que usa uma esfera 
para pensar suas estruturas, concebendo um dentro e um fora, é possível dizer que uma 
pessoa possui um inconsciente em seu interior. Agora, quando passamos para outro tipo 
de geometria, uma geometria não-euclidiana, e passamos a considerar superfícies que, 
portanto, não possuem dentro nem fora, aqui temos outras possibilidades. A figura 
topológica utilizada para descrever o sujeito do inconsciente é a Banda de Moebius, 
figura que possui apenas um lado, uma superfície, por conta de sua torção. Nessa 
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proposta teórica não trabalhamos com significados ocultos ou profundos, mas sim com 
uma superfície de discurso na qual se operam cortes. 
Quero deixar claro que há uma limitação aqui, pois a Banda de Moebius serve 
apenas para isso. Não tem como explicar Real, Simbólico e Imaginário a partir dela, por 
exemplo, e está tudo bem. Não há algo que sirva para tudo. Não faria sentido isso se 
estamos trabalhando com delimitações. 
É sempre bom reforçar que, se trabalhamos com o axioma de que um 
significante enquanto tal não significa nada, então temos pelo menos duas implicações 
aqui: 1) não há como ter significados por trás do significante, pois é necessário fazer 
articulação entre ao menos dois; 2) não há como saber o que significa quando um fala, e 
caímos novamente na necessidade da articulação de significantes. 
Acredito que podemos nos servir da ideia que Lacan apresentou do que ele diz 
que seria o fim, a finalidade de seu ensino: “O fim do meu ensino, pois bem, seria fazer 
psicanalistas à altura dessa função que se chama ‘sujeito’, porque se verifica que só a 
partir desse ponto de vista se enxerga bem aquilo de que se trata na psicanálise” [grifo 
nosso] (LACAN, 1967/2006, p.53). 
Novamente percebemos a importância de ter um ponto de partida teórico quando 
vemos que por essa função que se chama sujeito é possível ter noção daquilo que se 
trata na psicanálise. Reforço que na proposta teórica abordada falamos do sujeito do 
inconsciente, e não de outra coisa. Ou utilizamos os axiomas que possuímos à nossa 
disposição para pensar ou nunca deixaremos a Babel, além de continuar presos à 
necessidade de ter que ouvir um dizendo o que precisamos fazer. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
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Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2006. 
 
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http://staferla.free.fr/S10/S10.htm
 
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Função e campo do analista no ato analítico 
 
Ramiro Faria de Melo e Souza 
ramiro.faria.mes@gmail.com 
 
1. O que é “ato analítico”?: necessidade e fundação 
 
Desde a abertura do Seminário XV a pergunta sobre o ato incomoda Lacan, que, 
por sua vez, se pergunta: tratar-se-á da sessão, da interpretação, do silêncio, da 
transferência? (LACAN, 1967-1968). Em primeiro momento, anuncia que o ato analítico 
é sempre um ultrapassamento. Por conta disso, “é certo que reencontramos o ato na 
entrada de uma psicanálise” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 22/11/1967). 
Não há análise sem ato analítico. O ultrapassamento que está em questão pode ser lido 
sob essa chave: trata-se de inaugurar algo – que estava lá esperando ou não estava? 
Sabemos que o ato é necessário para a psicanálise, mas ela já estaria lá à espera ou, pelo 
contrário, é o ato que a funda e, consequentemente, o sujeito que lhe interessa? 
 
Quando falamos do ato de nascimento da psicanálise - o que há seguramente 
um sentido porque ela apareceu um dia - justamente esta é a questão que se 
evoca: é um campo que ela organiza, sobre o qual ela reina, governando-o mais 
ou menos?; é um campo que existia antes? É uma questão que vale a pena ser 
evocada quando se trata de um tal ato. É uma questão essencial neste momento 
de virada. Seguramente, há todas as chances que esse campo existisse antes. 
Não iremos de modo algum contestar que o inconsciente não fizesse sentir seus 
efeitos antes do ato de nascimento da psicanálise. Mas, de qualquer forma, se 
prestarmos muita atenção, podemos ver quea questão ‘quem o sabia?’ não é, 
talvez, sem alcance aí [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 
15/11/1967). 
 
Propomos ler a pergunta “quem o sabia?” como “quem havia o formulado?”. 
Trata-se, na chave que acreditamos ser coerente com o ensino lacaniano, da aparição, em 
determinado momento da história, de uma hipótese que coloca a existência de algo como 
possibilidade. Nesse sentido, é o ato – enquanto hipótese de que haja inconsciente – que 
coloca a existência da psicanálise, assim como a do sujeito, em jogo. 
Dando continuidade à problemática, Lacan convoca Cantor e Pavlov. Os 
transfinitos estavam lá esperando o matemático desde sempre? O estabelecimento do 
condicionamento estava no cérebro do cachorro? Enquanto realidade bruta, aguardava 
pela mente brilhante que o encontrasse dormente? Segundo Lacan, a questão da 
anterioridade, quando se trata do ato, é inútil: 
 
o que é que supomos já estar lá antes que o descubramos? Se, por todo um 
campo [religioso, no caso, mas também científico], verifica-se que seria, não 
fútil, mas pouco importante pensar que esse saber já está lá esperando-nos 
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antes que o fizéssemos surgir, isso poderia levar-nos a fazer questionamentos 
mais profundos, pois é bem disso que vai se tratar a respeito do ato 
psicanalítico [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 15/11/1967). 
 
Trata-se de uma pergunta superficial. Não importa a realidade anterior, mas a 
fundação de um campo. Fiat lux, disse Ele, e fez-se a luz. “Havia luz antes?” é uma 
pergunta tão infundada no campo religioso quanto “o que há antes do ato?” para a 
psicanálise. Trata-se de uma inauguração. Nesse sentido, o ato orienta-se por suas 
próprias leis, determinando o começo à revelia do que existia antes, pois “designa uma 
forma, um invólucro, uma estrutura tal que, de alguma maneira, suspende tudo que até 
então foi instituído, formulado, produzido como estatuto do ato, à sua própria lei” 
[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 06/12/1967). 
Delineia-se, diante de nós, o caráter rigorosamente autônomo e fundador do ato. 
Dissemos no início que ele também é necessário para que uma análise exista. Essa 
característica não pode ser tratada com ingenuidade. Afirmar que o ato é necessário para 
uma análise significa dizer que, caso o ato não ocorra, não haverá análise possível. Da 
mesma forma, sua falta impossibilita o surgimento do sujeito do inconsciente. Apostar na 
existência do dito sujeito independentemente do ato e contentar-se em esperar sua 
milagrosa aparição implica uma postura realista, que ontologiza justamente aquilo cuja 
existência depende de uma operação. Tal operação, como sabemos, é o ato, que marca 
um começo justamente porque tal início não se inscreve autonomamente: “um ato está 
ligado à determinação do começo, especialmente aí onde há necessidade de fazê-lo, 
precisamente porque não existe” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 
10/01/1968). Dissemos “não se inscreve autonomamente”, mas a questão é mais radical. 
O começo simplesmente não existe sem o ato. Não que ele esteja lá mas não se inscreva. 
Ele rigorosamente sequer existe caso algo não marque seu começo. Essa é a acepção que 
Lacan pretende dar ao “verdadeiro começo” que o ato marca: a instauração de algo que 
não existia, a criação de um mundo, a determinação de algo que se sustenta apenas 
mediante a execução do ato. Aqui – ironicamente – Criação e ciência moderna se 
aproximam. Ao discutir o princípio que o ato inaugura, Lacan afirma que 
 
é concebível que o ato constitua (se podemos exprimir-nos assim, sem aspas) 
um verdadeiro começo, que haja um ato, para dizer tudo, que seja criador e que 
o começo esteja lá. Ora, basta evocar esse horizonte de todo funcionamento do 
ato para se dar conta que evidentemente é aí que reside sua verdadeira 
estrutura, o que é totalmente aparente, evidente, e que mostra a fecundidade, 
aliás, do mito da Criação. É um pouco surpreendente que não tenha surgido, 
de uma maneira agora que seja corrente, admitida na consciência comum, que 
há uma relação certa entre a fratura que se produziu na evolução da ciência no 
começo do século XVII e a realização, o advento do alcance verdadeiro desse 
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mito da Criação (...) Eu não poderia insistir demais nessa observação que, 
como sublinho a cada vez, não é minha, mas de Alexandre Koyré [tradução 
nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 10/01/1968). 
 
Lacan se apoia frequentemente em Koyré para destacar a relação da psicanálise 
com o campo da ciência. Novamente os votos são renovados. Aqui, em uma estranha 
triangulação, ato analítico, mito da Criação e advento da ciência moderna compartilham 
a característica central de constituir um novo começo. Essa é a própria estrutura do ato. 
Chamar ao palco a ciência moderna é uma cena usual na obra lacaniana. Lacan 
procura ressaltar que, tal qual a fórmula de Newton foi um ato que inaugurou um novo 
mundo, também o ato analítico desempenha essa função. O exemplo de Newton é 
primoroso: as maçãs caíam antes de sua fórmula? Caso adotemos uma postura ingênua 
em relação ao corte (ato?) produzido pela ciência moderna, poderíamos de bom grado 
admitir que sim pois, afinal, o que mais elas fariam? Como diria Machado, “o cancro rói, 
roer é seu ofício”. Contudo, se levarmos a argumentação de Lacan – apoiado em Koyré 
– às últimas consequências, podemos afirmar seguramente que as maçãs não caíam de 
modo algum. De acordo com a regência aristotélica, elas apenas se encaminhavam ao 
lugar natural que lhes era prescrito. O ponto convulsivo da questão é: Newton não 
observou as quedas da maçã, como realidade bruta que preexistia à fórmula, para propor 
a gravidade. Hipotetizou a gravidade, produziu a fórmula, daí as maçãs, como objetos 
que se adequavam à fórmula, caíram. A queda das maçãs é um fenômeno que só foi 
autorizado pela escritura da fórmula, pela criação de um campo conceitual que 
demonstrou uma hipótese. Lacan, quando se filia a essa tradição, procura transpor a lógica 
desse pensamento ao campo analítico. O ato não recolhe o que estava no campo e o acusa, 
mas, se sustentado na hipótese fundamental da psicanálise (há inconsciente/há sujeito), 
pode criar o campo no qual o sujeito há de vir. É sobretudo – e provavelmente apenas – 
pelo ato analítico que o sujeito pode aparecer uma vez que ele depende inteiramente desse 
ato. Em suma: o inconsciente não existe sem o ato. Não vai às ruas, não anda pela calçada, 
não está à espreita, esperando ser revelado: ou é produzido ou não existe. 
Pois bem, o ato é fundador e necessário. Ainda que saibamos de sua necessidade, 
permanecemos desavisados de sua operação, ou seja: não sabemos como operá-lo nem 
seus efeitos. Falar do ato é falar de uma ação específica, de um agir qualquer? Já sabemos 
que o ato funda o sujeito – e o campo analítico –, mas de que sujeito estamos falando? 
Lacan dedica os momentos iniciais para dar conta da primeira pergunta que 
elencamos. Sistematicamente tirando do campo da psicanálise qualquer tipo de ação que 
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esteja arraigada em um corpo biológico ou tecido fisiológico, o ato de que se trata em 
psicanálise não se limita a uma ação, ou melhor, a um agir qualquer. Tratando-se de 
psicanálise e, mais especificamente, da emergência do sujeito, o que está em jogo é aarticulação significante. Pouco importa o arco reflexo motor ou qualquer outra matriz 
natural da ação. Em psicanálise, ato é precisamente ato significante e, em seu estatuto, 
nada mais: “o que caracteriza o ato: sua ponta significante, e que sua eficiência de ato, 
que não tem nada a ver com a eficácia de um fazer, é alguma coisa contígua a essa ponta 
significante” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 10/01/68). 
A produção do sujeito que interessa à análise, portanto, não é a de um sujeito 
hipostasiado, significado de si mesmo, mas de um sujeito que só se atualiza enquanto 
dividido (justamente entre um significante e outro, definição célebre de Lacan). Nesse 
sentido, devemos entender o ato significante justamente como a produção da divisão do 
sujeito, ou melhor: a tentativa da extração do objeto (a) como objeto dejeto que 
justamente marca o resto da operação simbólica. Parece-nos que é isso que Lacan tem em 
mente quando fala da destituição do sujeito: 
 
a tarefa à qual o ato psicanalítico dá seu estatuto é uma tarefa que implica já 
nela mesmo essa destituição do sujeito (...) isso se chama castração, que deve 
ser tomada em sua dimensão de experiência subjetiva na medida que em 
nenhuma parte, senão por essa via, o sujeito se realiza exatamente enquanto 
falta [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 17/01/1968). 
 
2. O estatuto do analista 
 
Já falamos sobre a importância do ato para a existência do sujeito do inconsciente 
e da própria psicanálise. Cabe-nos descobrir se ele seria de fato atuado pelo analista, pelo 
analisando, pelo significante ou pelo sujeito – hipóteses momentâneas que elencamos 
para o prosseguimento da argumentação. Ao longo de nossa exposição veremos como 
que a pergunta por um “quem” não se reduz a uma pessoa específica, tampouco a um 
único ator dentre as quatro hipóteses. Um ato analítico é complexo e, portanto, abarca 
uma diversidade de fatores para que ocorra. De toda forma, focaremos nossa investigação, 
neste momento, na responsabilidade do analista. 
Inaugural em nossa argumentação é uma passagem, já em um momento tardio do 
seminário, que choca pela sua simplicidade e aparente mudez conceitual. Em uma das 
últimas lições, Lacan afirma: 
 
a psicanálise, partamos então do que é, no momento, nosso único ponto firme: 
ela se pratica com um psicanalista. É necessário entender "com" no sentido 
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instrumental, ou ao menos eu proponho a vocês que entendam assim. Como se 
dá que exista alguma coisa que só possa ser situada com um psicanalista? 
[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 13/03/1968). 
 
Duas noções contidas nessa passagem são dignas de menção e serão cruciais para 
nossa argumentação. A primeira, menos evidente, é a necessidade do analista para que o 
ato ocorra. A segunda, evidente mas de consequências complexas para nosso propósito, 
é a noção de instrumento. Como tentaremos demonstrar, o analista é imprescindível ao 
ato, contudo não é seu único ator. Não é o único vetor que entra em cena para desencadeá-
lo. É um instrumento: serve a um propósito, se encaixa em um lugar – em uma estrutura. 
Imprescindível, mas localizado, ou melhor: possui uma função necessária, mas um campo 
restrito1. Na mesma lição, Lacan nos dá uma indicação da função desse instrumento: 
 
com efeito, se o que é do saber deixa sempre um resíduo, um resíduo de alguma 
maneira constitutivo de seu estatuto, a primeira questão que se coloca não deve 
ser a propósito do parceiro, daquele que está lá, não digo “ajudante”, mas 
“instrumento” para que alguma coisa se opere, que é a tarefa psicanalisante? 
[tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 13/03/1968). 
 
Se o saber é produzido pelo analisando em associação, o analista marca o resto 
inassimilável que o habita insidiosamente. O psicanalista, que garante a tarefa 
psicanalisante, é um instrumento às voltas com o resto, ou melhor: é a operacionalização 
desse resto da operação do saber. Ora, como pensá-lo, senão a partir da operação do objeto 
resto, objeto dejeto, (a), na lógica dos discursos? 
Como vimos, o ato garante a existência da psicanálise. Ele, por sua vez, necessita 
da função do sujeito suposto saber para que ocorra: 
 
o ato psicanalítico, nós o colocamos como consistindo nisto: suportar a 
transferência – não dizemos quem a suporta: aquele que faz o ato, o 
psicanalista, então, implicitamente – essa transferência que seria uma pura e 
simples obscenidade, diria, redobrada de bobagem, se não lhe restituíssemos 
seu verdadeiro nó na função do sujeito suposto saber [tradução nossa] 
(LACAN, 1967-1968, lição 17/01/1968). 
 
Suportar a transferência de maneira a sustentar um ato significa, para Lacan, dar-
lhe seu estatuto correto a partir de sua referência ao sujeito suposto saber. O analista, 
contudo, sabe que o lugar do suposto saber não existe, ou melhor: o que está em jogo é a 
produção de uma falha nele justamente para produzir a destituição desse lugar 
 
1 Campo que parece tão mais elástico quanto menos estudamos epistemologia. Aberrações como o real do 
coronavírus e a famosa pergunta “O que a psicanálise tem a dizer sobre isso?”, se não chocam pela falta de 
fundamento teórico, tornaram-se tão usuais que já mostram sua verdadeira face insossa. Uma retórica 
sonolenta que, como tal, preza pelos floreios discursivos mais do que pelo rigor e consequência da 
argumentação. 
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privilegiado. Caso o analista regozije-se em ocupar a função de Outro que lhe é 
endereçada pelo analisando, nada se produz. Operando ilusoriamente a função de (A), o 
analista deixa de fazer a única coisa que lhe cabe no momento: promover uma ruptura em 
relação ao lugar da onipotência e marcar o lugar da impossibilidade na estrutura. Trata-
se, pelo contrário, do que Lacan chama de desertificação do ser (désêtre) do sujeito 
suposto saber. Ora, é necessário então que o analista advenha nessa posição que lhe é 
prescrita. É por conta disso que Lacan retoma a célebre frase freudiana “Wo Es war, soll 
Ich werden” (onde Isso esteve, devo Eu advir) para repensá-la de acordo com a 
responsabilidade do analista no ato analítico: “‘lá onde isso esteve’, traduzamos ‘eu devo 
advir’, continuem: psicanalista” [tradução nossa] (LACAN, 1967-1968, lição 
10/01/1968). O analista, portanto, deve advir na estrutura para que um ato se efetive e, 
consequentemente, um sujeito seja produzido. Ele advém justamente ocupando a função 
de resto que marca, no significante, a incompletude, ou melhor, a inconsistência do 
sujeito: 
 
wo $ war, e permitam-me – esse Es –de escrevê-lo com a letra aqui barrada, lá 
onde o significante agia, no duplo sentido de que ele acaba de cessar e ia 
justamente agir, de modo algum soll Ich werden, mas muss Ich, eu que ajo, eu 
que – como dizia outro dia – lanço no mundo essa coisa à qual é possível 
endereçar-se como a uma razão, muss Ich pequeno (a), muss Ich (a) werden, 
eu – daquilo que introduzo como nova ordem no mundo – devo tornar-me o 
dejeto. Tal é a nova forma sob a qual proponho colocar uma nova maneira de 
interrogar em que consiste, em nossa época, o estatuto do ato [tradução nossa] 
(LACAN, 1967-1968, lição 17/01/1968). 
 
Lê-se: onde o analista leu o significante, ele deve advir como (a), dejeto. Fica 
evidente que a participação no ato não depende apenas do analista: é necessário que ele 
ocupe uma função prescrita na estrutura que Lacan investiga nesse seminário. 
Obviamente não há ato, também, sem o discurso do analisando em associação. Ainda que 
não seja responsável

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