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ESTUDOS AFRICANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA: OLHARES SOBRE A LEI 10.639/03 ESTUDOS AFRICANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA: OLHARES SOBRE A LEI 10.639/03 E STU D O S A FR IC A N O S, H ISTÓ R IA E C U LTU R A A FR O -B R A SILEIR A: O LH A R ES SO B R E A L EI10.639/03 E STU D O S A FR IC A N O S, H ISTÓ R IA E C U LTU R A A FR O -B R A SILEIR A: O LH A R ES SO B R E A L EI10.639/03 ESTUDOS AFRICANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA: OLHARES SOBRE A LEI 10.639/03 ESTUDOS AFRICANOS, HISTÓRIA E CULTURA AFRO-BRASILEIRA: OLHARES SOBRE A LEI 10.639/03 E STU D O S A FR IC A N O S, H ISTÓ R IA E C U LTU R A A FR O -B R A SILEIR A: O LH A R ES SO B R E A L EI10.639/03 E STU D O S A FR IC A N O S, H ISTÓ R IA E C U LTU R A A FR O -B R A SILEIR A: O LH A R ES SO B R E A L EI10.639/03 FRANK MARCON HIPPOLYTE BRICE SOGBOSSI FRANK MARCON HIPPOLYTE BRICE SOGBOSSI ORGANIZADORES FRANK MARCON HIPPOLYTE BRICE SOGBOSSI FRANK MARCON HIPPOLYTE BRICE SOGBOSSI ORGANIZADORES 9 7 8 8 5 3 7 1 0 0 5 9 2 I S B N 8 5 3 7 1 0 0 5 9 - 5 APOIO Mediação pedagógica, a Lei 10.639/03 e a experiência UNIAFRO/UFS Movimento negro e educação: alguns subsídios históricos Práticas pedagógicas e identidades étnicas A cultura afro-brasileira na escola através de projeto: limites e possibilidades O passado que teima em ser presente: uma abordagem sobre o livro didático no trato da questão quilombola Religiões afro-brasileiras e africanas: experiências de ensino Apontamentos para o estudo das religiosidades afro-brasileiras na escola Afro-brasilidade, educação básica e a Lei 10.639/03: vozes veladas, veludosas vozes... Frank Marcon Petrônio Domingues Maria Batista Lima Marcelo Santos Edmilson Suassuna da Silva Hippolyte Brice Sogbossi Genésio José dos Santos Martha Sales Costa Everaldo José Freire ISBN 1 Estudos africanos, história e cultura afro-brasileira: olhares sobre a Lei 10.639/03 2 3 Frank Marcon Hippolyte Brice Sogbossi (Organizadores) Estudos africanos, história e cultura afro-brasileira: olhares sobre a Lei 10.639/03 4 UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Reitor Josué Modesto dos Passos Subrinho Vice-reitor Angelo Roberto Antoniolli EDITORA DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE SERGIPE Conselho Editorial Ricardo Oliveira Lacerda de Mello (Coordenador do Programa Editorial) Alceu Pedrotti Antonio Ponciano Bezerra Maria Augusta Mundim Vargas Mário Everaldo de Souza Miguel André Berger Terezinha Alves Oliva projeto gráfico, diagramação e impressão Staff Art Marketing e Comunicação www.staffart.com.br capa Escultura de Nzinga Mbandi Foto de Frank Marcon, Luanda - Angola, 2003 revisão Everaldo José Freire Frank Marcon E82e Estudos africanos, história e cultura afro-brasileira: olhares sobre a Lei 10.639/03 / organização, Frank Marcon; Hippolyte Brice Sogbossi. – São Cristóvão: Editora UFS, 2007 112p. 1. Cultura afro-brasileira. 2. Lei nº 10.639/03. 3. Educação - Práticas pedagógicas. I. Marcon, Frank. II. Sogbossi, Hippolyte Brice. Todos os diretos reservados ao NEAB - Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade Federal de Sergipe São Cristóvão - SE neab@ufs.br ISBN: 85-871-1082-9 5 Ela queria sair para um outro mundo, eu queria desembarcar numa outra vida. Farida queria sair de África, eu queria encontrar um outro continente dentro de África. (MIA COUTO) 6 7 SUMÁRIO APRESENTAÇÃO I PARTE - ESTUDOS Mediação pedagógica, a Lei 10.639/03 e a experiência UNIAFRO/UFS Frank Marcon Movimento negro e educação: alguns subsídios históricos Petrônio Domingues Práticas pedagógicas e identidades étnicas Maria Batista Lima II PARTE - REFLEXÕES E RELATOS A cultura afro-brasileira na escola através de projeto: limites e possibilidades Marcelo Santos O passado que teima em ser presente: uma abordagem sobre o livro didático no trato da questão quilombola Edmilson Suassuna da Silva Religiões afro-brasileiras e africanas: experiências de ensino Hippolyte Brice Sogbossi Apontamentos para o estudo das religiosidades afro-brasileiras na escola Genésio José dos Santos Martha Sales Costa Afro-brasilidade, educação básica e a Lei 10.639/03: vozes veladas, veludosas vozes... Everaldo José Freire III PARTE - DOCUMENTOS Lei Federal 10.639/03 Resolução do CNE, n. 01, de 17 de junho de 2004 15 25 41 61 71 81 87 95 09 103 105 8 9 Em maio de 2006, em nome do NEAB, da Universidade Federal de Sergipe, encaminhamos ao edital UNIAFRO/MEC/SESU, um projeto de curso de aperfeiçoamento em “Estudos africanos, história e cultura afro-brasileira” que, aprovado, foi oferecido em duas edições concomitantes entre setembro 2006 e fevereiro de 2007, em igual formato e conteúdo. Uma versão foi realizada na capital, Aracaju, e outra no interior do estado, na cidade de Itabaiana. Cada edição contou com a carga horária de 180 h/a de atividades presenciais, divididos em seis módulos disciplinares de 30 h/a cada. Foram eles: 1) Historiografia e história da África; 2) África: cultura e política; 3) Educação e relações étnico- raciais; 4) Religiões afro-brasileiras; 5) Africanos no Brasil; e 6) Metodologia do ensino de estudos sobre a África e cultura afro-brasileira. Os conteúdos foram ministrados pelos professores Fernando Aguiar, Frank Marcon, Genésio José dos Santos, Hippolyte Brice Sogbossi e Ulisses Neves Rafael, todos da própria UFS e ligados ao NEAB. O curso foi realizado semanalmente nas sextas-feiras e sábados e contou com a participação de monitores, que auxiliaram os professores titulares na elaboração, planejamento e condução das aulas. Entre os principais objetivos do curso, a meta era a de capacitarmos e qualificarmos 60 profissionais do ensino nas áreas das licenciaturas de Ciências Sociais, Educação Artística, Geografia, História, Filosofia, Letras e Pedagogia, vislumbrando um caráter metodológico e de conteúdo interdisciplinar, conforme sugerem as indicações do parecer do Conselho Nacional de Educação 03/04 e da resolução do Conselho Nacional de Educação 01/04. Para além de qualquer perspectiva etnocêntrica, estivemos preocupados em demonstrar como é possível e fundamental promovermos a escola e a sala de aula como lugares de reconhecimento e de valorização da cidadania, incentivando o respeito à diversidade no combate à evasão escolar, ao preconceito e à discriminação racial. Levamos em consideração, portanto, a produção do conhecimento respeitando também às multidimensionalidades das posições dos sujeitos escolares com relação ao gênero, à religiosidade, ao linguajar, ao estatuto APRESENTAÇÃO 10 social, às relações familiares, às características regionais, às relações de trabalho, bem como, às próprias auto-referências étnicas, raciais e culturais de identificação e diferença. Este livro é parte materializada do resultado de algumas das reflexões realizadas no decorrer das nossas atividades como pesquisadores colaboradores do NEAB, como professores do curso UNIAFRO e como seus monitores e alunos. A relação entre educação e práticas de ensino voltadas para a construção da cidadania e da alteridade, aliados ao conteúdo de historia da África e das populações afro-brasileiras foram priorizadas como ponto de convergência e coerência entre os diferentes capítulos aqui desenvolvidos. Na primeira parte, denominada “estudos”, os capítulos foram escritos por professores que já vêm há tempos desenvolvendo algum tipo de pesquisa sobre a relação entre ensino e estudos das populações africanas no Brasil. Na segunda parte, denominada “reflexões e relatos”, os capítulos foram escritos a partir de alguns exercícios de monitores, professores e alunos do curso UNIAFRO, sobre algumas realidades escolares em Sergipe ou, ainda, com o intuito propositivo de pensar e articular conteúdos sobre a realidade social, cultural e a história local dos afro-descendentes à prática pedagógica, fornecendo subsídios para usos didáticos. Na terceira parte, que denominamos “documentos”, incluímoso texto da Lei 10.639/03 e alguns trechos da resolução do Conselho Nacional de Educação co-relacionados a ela, que consideramos leitura obrigatória aos professores que desejam iniciar qualquer tipo de aproximação com o tema. Com esta publicação, intentamos tornar acessíveis, ao maior número possível de professores da rede básica escolar e do ensino superior, o conteúdo de nossas experiências conjuntas sobre o assunto. É importante mencionar que durante todo o curso de aperfeiçoamento estivemos preocupados em considerar as singularidades regionais do estado de Sergipe e a procedência dos nossos alunos. O curso contou com o apoio da secretaria de educação do governo do estado e das secretarias municipais de Itabaiana e Aracaju, possibilitando a participação de professores da capital e de cidades do interior. Aproveitamos para agradecer às referidas secretarias, bem como, ao MEC/SESU pelo financiamento, através do edital UNIAFRO/2006. Aos professores do curso, já nominados anteriormente, agradecemos pelo engajamento e pela qualidade do trabalho desenvolvido sem remunerações extras e em horários de finais de semana, alheios às suas obrigações regulares como docentes. Também agradecemos aos alunos do curso, que depois de jornadas semanais extenuantes em suas escolas, compareceram sempre estimulados aos nossos encontros de atividades intensivas, às sextas-feiras e 11 sábados. E, principalmente, agradecemos aos monitores Alan Max Vieira dos Santos, Christiane Falcão, Edmilson Suassuna, Isabel Cristina de Sousa Menezes e Martha Sales Costa, pela presteza, dedicação, ética e paixão com que nos auxiliaram nas atividades didático-pedagógicas, sempre atentos, também, a participação efetiva nas atividades relacionadas aos conteúdos ministrados. Que a leitura deste livro possibilite usos pedagógicos práticos e novas reflexões sobre a relação entre o ensino e os estudos sobre as populações africanas e cultura a afro-brasileira. Frank Marcon e Hippolyte Brice Sogbossi Coordenadores do projeto UNIAFRO (NEAB/UFS) 12 13 I PARTE ESTUDOS 14 15 1 Doutor em Antropologia Social, pela UFSC, e professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Mediação pedagógica, a Lei 10.639/03 e a experiência UNIAFRO/UFS Frank Marcon1 A maneira de os professores se comportarem em sala de aula, de entenderem como devem ser ministrados os conteúdos, como deve ser o método de ensino, bem como o material didático utilizado, tem uma correlação muito estreita com as concepções teóricas das diferentes disciplinas da área de humanas (antropologia, artes, filosofia, geografia, história, literatura e sociologia) e o entendimento que a sociedade, o governo, a escola e o próprio professor fazem dela. Em tempos de discursos globalizantes, por um lado, ou etnicamente centrados, por outro, e da proliferação de conquistas de direitos por diferentes grupos sociais historicamente oprimidos, temos de apreender a lidar com os diferentes discursos, as diferentes concepções de mundo e as diferentes culturas, com instrumentos pedagógicos eficazes na produção do conhecimento e ao mesmo tempo capazes de respeitar o desenvolvimento das diferenças para que façamos da nossa prática pedagógica um exercício de mediação na produção do conhecimento. Talvez o nosso mais recente desafio, como professores, seja compreendermos e absorvermos em nossas práticas que a sociedade é formada por pessoas que pertencem a diferentes grupos culturais (no sentido social mais amplo da palavra) e que por isto possuem suas próprias práticas e memórias, igualmente valiosas no contexto da produção do conhecimento sobre si mesmo e sobre o mundo. Por isto, precisamos estar atentos às questões conceituais, como quando falamos de “África” ou de “raça”, por exemplo. (APPIAH, 1997). Segundo alguns críticos contemporâneos, a noção de “África” está carregada de estereótipos, é uma invenção do “Ocidente”, assim como a própria noção determinista e biológica de “raça”, que no uso corriqueiro serviu e serve para indicar o fenótipo de quem não é o “branco”, muitas vezes revelando situações preconceituosas. Por outro lado, como contraponto, também é preciso desconstruirmos a idéia de uma unidade africana primordial. O que significa pensar o continente africano não como um bloco homogêneo, mas em suas diferenças culturais e regionais. Interessa, por exemplo, o estudo das diferenças e das especificidades da África e de sua histórica relação com o passado escravista do Brasil; bem como, da África pré-colonial e suas diferentes contribuições culturais, econômicas e políticas; da África das especificidades dos colonialismos europeus, nos séculos XIX e XX; da África dos processos de descolonização; da África contemporânea em suas particularidades nacionais, étnicas, 16 religiosas e sociais; e da África dos trânsitos, do tráfico, das diásporas e dos diálogos contemporâneos com o Brasil. Para tanto, por um lado, é necessário reconhecermos que a historiografia colonial africana é extremamente eurocêntrica e, por outro lado, reconhecermos que a historiografia africana pós-colonial tende a elaborações nacionalistas. Além do mais, no Brasil, também foram dadas diferentes ênfases, pela produção sociológica e historiográfica, sobre as influências e contribuições das culturas e da população negra ou afro-descendente à sociedade brasileira, a depender, muitas vezes, de concepções influenciadas pelo discurso racializado, hierarquizador e nacionalista, com base em estereótipos a partir do corpo, do parentesco, da moral, da cultura ou da origem social, a depender da época, dos interesses e das concepções em jogo. Com a experiência de ter compartilhado com outros colegas do NEAB/UFS a autoria e a coordenação do Curso de aperfeiçoamento UNIAFRO, bem como ter ministrado dois dos seus módulos, o primeiro denominado Africa: cultura e política e o segundo Metodologia do ensino de estudos sobre a África e cultura afro-brasileira gostaria de apontar para algumas reflexões e relações entre a prática pedagógica e as proposições da Lei 10.639/03. Neste capítulo, concentro-me numa análise sobre a “mediação” como postura pedagógica, procurando ao mesmo tempo realizar algumas observações sobre a troca de experiências entre os professores, os monitores e os alunos durante o Curso. A experiência do curso UNIAFRO Vislumbrando uma avaliação das atividades desenvolvidas durante o curso UNIAFRO, fora solicitada aos alunos, como atividade de conclusão: a produção de um artigo que contemplasse a discussão dos conteúdos que ministramos e a reflexão sobre as possibilidades metodológicas de trabalho no Ensino Básico. Tal texto deveria fazer uma reflexão crítica sobre o contexto escolar em sua relação com as proposições da Lei 10.639/03 e do parecer CNE 03/04, bem como, apontar para inovações no trabalho com o conteúdo, indicando novas possibilidades metodológicas que vislumbrassem posturas pedagógicas de mediação. Isto quer dizer que esta foi também uma oportunidade de mostrar a estes professores-alunos que eles são capazes e responsáveis por intervir no processo de planejamento e gestão das dinâmicas de ensino- aprendizagem, mesmo porque, quando se deixam abater pela apatia, são eles os responsáveis pela repetição de um quadro secular de injustiças sociais e, neste caso, do preconceito e da hierarquização étnico-racial. A pedagoga Roseli Fontana (1996), em seu livro A mediação pedagógica em sala de aula, nos mostra como algumas estratégias de ensino, que priorizam as vivências do cotidiano social dos alunos e do próprio contexto escolar, vão possibilitando processos 17 2 Sobre a relação entre linguagem, discurso e poder, ver: Roland Barthes, Mikhail Bakhtin, Michel Foucault e Vigotsky. 3 Ana Lígia de Farias, Bruno Abud, Cleones dos Santos, Edson Oliveira, Elisângela Reis, Gilza Silva, José Nascimento, Josineire Menezes, Kelton Abreu, Luís dos Santos, Maria Helena Santos, Marizete Sousa, Mateus Santos e Tiago Santos. interativos mediadores da aprendizagem (professor – aluno – pedagogo – comunidade),através de conhecimentos necessários à formação do cidadão. Fontana (1996) nos diz que é esta a escola que devemos priorizar. Neste sentido, as noções do senso comum apreendidas na vida comunitária devem ser desmistificadas pela aquisição de conceitos mais elaborados, que a escola tem como função sistematizar e tornar acessíveis ao aluno, sempre respeitando as diferentes experiências de cada um. A informação e o conteúdo tornam-se aqui mediados por um processo cognitivo que é de responsabilidade da comunidade escolar. A questão é: como realizar esta mediação numa perspectiva da cidadania, em que todos estejam incluídos, sejam ouvidos e respeitados? A mediação, neste sentido, é uma postura pedagógica e devemos levar em consideração que ela está articulada à ordem dos discursos, ao campo das linguagens, como processos comunicativos que engendram poder.2 No caso específico, aqui em questão, estas são reflexões sobre como incluir aí os estudos sobre culturas e populações negras ou afro- descendentes no Brasil, bem como, são reflexões sobre a problematização das formas de racismo e exclusão nas escolas e na sociedade brasileira, para que possamos tornar eficazes nossos objetivos de superação, promoção e respeito à cidadania plena, às diferenças, à integração e acessibilidade de todos. Durante o curso UNIAFRO, as duas turmas de professores-alunos, de Aracaju (SE) e Itabaiana (SE), apesar de suas especificidades, foram nos apresentando algumas características comuns no que diz respeito à identificação de problemas escolares relativos ao tratamento do conteúdo de história da África, cultura afro-brasileira e a questão do racismo. A maioria diagnosticou a invisibilidade do conteúdo ou um tratamento aparentemente superficial e maniqueísta, ao mesmo tempo em que nos descreviam a presença significativa de afro-descendentes em suas salas de aula. A partir do reconhecimento de tais problemas, eles começaram a construir suas reflexões propositivas sobre o assunto. Para sistematizar aqui algumas de suas contribuições, que resultaram em seus artigos de conclusões do Curso, estarei dividindo o conjunto dos seus trabalhos em blocos temáticos, que considero os mais significativos. 1) Reflexões sobre a relação entre historiografia e conteúdo. 2) Reflexões sobre metodologias e currículo escolar. 3) Reflexões sobre o livro didático. 4) Reflexões sobre o racismo na escola. No primeiro bloco, sobre “a relação entre historiografia e conteúdo”, os textos de Aldenize Santos da Paz, Ana Rita Ribeiro, Anderson Tavares dos Santos, Acácia da Silva, Bruna Mota de Jesus, Daniela Santos, Elialda Menezes, Gilmara Santana Santos, Ivaneide Oliveira, Ivanira Amaral, Kátia Mendonça, Mara Lima, Marizete Cunha e outros3 18 fizeram revisões bibliográficas críticas a alguns conteúdos de história da África colonial e de história dos africanos no Brasil; Rildo Mendonça e Sandra Santos foram mais específicos, priorizaram principalmente discussões sobre a importância da inclusão da oralidade como fonte para os estudos de história da África e dos africanos no Brasil, ressaltando duas temáticas: o mundo lúdico e religioso dos afro-descendentes e a memória oral sobre a escravidão e os primeiros anos após ela (ambos no sentido de priorizar situações locais). No segundo bloco, sobre “metodologias e currículo escolar”, os textos de Maria Adenilza Santana e Maria Gorett Silva Santos fizeram críticas aos entraves da inclusão efetiva do conteúdo de história da África no currículo escolar, Anderson Tavares, Elenilde dos Santos, Flávio de Oliveira e Margareth de Menezes destacaram metodologias de histórias de vida e memória oral como alternativas necessárias à inclusão desse conteúdo; Isabella Corrêa, Joselita Guimarães, Maria Cândida Sampaio e Marta Helena Sampaio destacaram metodologias de visitação aos museus, às cidades e às festas tradicionais, como espaços de interação e integração com os universos locais da cultura dos descendentes de africanos; Bárbara Lima de Souza e Paulo Andrade trabalharam com a proposta da utilização de músicas carnavalescas, como narrativas contemporâneas sobre o passado, elaboradas pelas populações negras no Brasil; Rosilene Souza Mártires apontou para possibilidade do uso de objetos e símbolos do cotidiano das crianças na construção de um processo de auto-identificação, deles próprios, com elementos do conteúdo; Silvana Silva Souza trabalhou criticamente com as possibilidades de uso da imagem em sala de aula, seus problemas e desafios. Na maioria dos casos deste bloco, a questão do trabalho com “conceitos” esteve transversalmente presente. No terceiro bloco, “reflexões sobre os livros didáticos”, Aline Ferreira da Silva, Vanderson de Góis Santos, Daniela Bezerra, Iranilse Gomes de Jesus, José Gicelmo Albuquerque, Jucinara de Almeida Santos, Maria das Graças Albuquerque, Mony Santos, Thaís Paixão Francisco e outros analisaram alguns livros didáticos de ensino fundamental e médio na área de artes, geografia, história, língua portuguesa (literatura) e sociologia. Na maioria dos casos, com raras exceções, apesar de os livros serem de edições recentes (após a publicação da Lei 10.639/03), as análises destacaram o problema da invisibilidade do negro ou mesmo que os livros estão carregados de formas de tratamentos pedagógicos inadequados, que perpetuam estereótipos hierarquizadores e visões negativas sobre a África contemporânea, a história, a cultura e a população afro-brasileira, bem como, que não discutem a fundo o racismo, nem trazem uma perspectiva contemporânea sobre direitos humanos e acesso à cidadania. O que é mais grave, é que nenhuma das diferentes áreas das licenciaturas escapou a este problema e alguns dos livros utilizados nas análises têm uma inserção hegemônica em várias escolas públicas e privadas. No último bloco, sobre “o racismo na escola”, Betânia Tavares, Carmem Lúcia 19 Pereira, Deleides Santana, Maria Cristina de Melo, Maria Paes Santana, Maria de Fátima Santana, Maria Rizo dos Santos, Maria Sônia Menezes, Rita de Cássia Santos e Telma Reis Vieira, demonstraram como o espaço escolar, em Sergipe, também reproduz o racismo, mesmo sem percebê-lo, e que este espaço está repleto de situações discriminatórias, onde diretores, psicólogos, professores e funcionários maus preparados legitimam hierarquias sociais e étnico-raciais, bem como, impõem valores religiosos, morais e cívicos aos alunos, sem prestar atenção as suas especificidades e contextos sociais. Destaco aqui, que o exercício de reflexão destes professores-alunos sobre suas práticas e o cotidiano escolar, foi fundamental para que eles pudessem compreender que uma postura pedagógica mediadora é interventora ativa no processo ensino- aprendizagem. Além do mais, os exemplos e a criatividade das reflexões, também estimuladas pela mediação de debates conjuntos sobre os temas de seus interesses, durante o Curso, corroboraram para um aprendizado mútuo. O conteúdo numa “perspectiva-problema” Ainda norteado pela postura pedagógica da mediação, acrescento que há estratégias fundamentais de trabalho do conteúdo com o que denomino agora de “perspectiva-problema”. Isto quer dizer, partir de questões situadas, contextualizadas desde as realidades espacialmente localizadas ou contemporâneas dos nossos alunos, com o intuito de nos aproximarmos da produção de um conhecimento que respeita as diferenças “do” local em relação aos conhecimentos universais, bem como, as diferenças “no” local, que é o espaço das alianças e dos conflitos sociais. Nesta concepção, o professor também exerce o papel de mediador na produção do conhecimento, apontando para o desenvolvimento de processos educativos atentos às múltiplas realidades e valorizando diferentes capacidades e concepções culturais de mundo. Para incluirmos a temática da Lei 10.639/03, por exemplo, poderíamos começar nos questionando onde está a África em sala de aula? Já vivenciamos situações de racismo velado ou direto na escola? Estamos atentos às contribuições cognitivas e culturais, práticas ou simbólicas,que os próprios alunos podem dar à construção do conhecimento no ambiente escolar? Tentar responder a questões como estas podem originar bons pontos de partida para uma “perspectiva- problema”. Problematizar é também articular o ensino à prática da pesquisa na escola, tão fundamental ao processo de desenvolvimento cognitivo crítico de crianças e jovens. Sabemos que o ponto de partida de uma pesquisa é sempre um problema, assim como o roteiro de procedimentos para resolvê-lo é o projeto. Na elaboração do projeto precisamos seguir no mínimo quatro pontos: a descrição deste problema, os objetivos, 20 a metodologia e a justificativa de relevância da pesquisa. Trabalhar o conteúdo da escravidão, da África, do racismo, das diferenças culturais e sociais, da cidadania, da religiosidade, do lúdico, do trabalho, do político, entre outros, através da elaboração de projetos de pesquisa em conjunto com os alunos, possibilita a articulação do conteúdo ao estímulo e à relativização do que é relevante coletivamente para o aprendizado. Como propostas metodológicas de pesquisa, podemos utilizar entrevistas sobre histórias de vida, sobre a memória de grupos sociais, religiosos, rurais, urbanos, etários, étnicos, políticos e de classe, o trabalho de observação de campo do espaço da rua, do bairro ou da cidade, as pesquisas em jornais e revistas antigas ou atuais, as pesquisas em arquivos públicos e privados, além do uso da imagem, como: fotografia, filmes e artes plásticas, assim como outras expressões narrativas: romances, artigos científicos, letras de música, etc. Mas, para tanto, é preciso aprender a dominar algumas destas técnicas de pesquisa para que possamos envolver com responsabilidade os alunos. Isto só se adquire na capacitação, no domínio bibliográfico e na experimentação. Mediação e o uso da imagem em sala de aula Os conteúdos de história da África e cultura afro-brasileira também podem ser trabalhados com uma infinidade de expressões comunicativas que ultrapassam a aula expositiva e o uso do livro didático. O texto, a oralidade, a imagem e a música são algumas destas possibilidades. Talvez a linguagem que cause maior fascínio e que prenda mais a atenção de nossos alunos nos dias de hoje seja a imagem. Os livros didáticos também estão repletos delas e nossas práticas de ensino recorrem cada vez mais à necessidade de trabalhos com filmes, fotografias e ilustrações. No entanto, o uso indiscriminado da imagem pode ser um embuste que mascara uma concepção tradicional de ensinar. Na prática do ensino, a imagem (ilustração, fotos, filmes), bem como o texto ou o áudio devem servir à mediação criativa do professor em sala de aula. A imagem (que é o caso específico ao qual me dedico agora) deve ser explorada contextualizando-se a própria produção: seu fazer e suas intencionalidades. É importante darmos relevância às significações produzidas pelos alunos, bem como abstrairmos o caráter autoritário da imagem como documento ou monumento. Também é importante prestarmos atenção ao recorrente mau-uso da imagem no ensino, pois de tanto serem repetidas algumas delas se tornaram canônicas, legitimando “verdades” e estereótipos sobre os grupos sociais e sobre o passado. Como, por exemplo, quando se trata da presença ou da história do negro no Brasil, as principais imagens utilizadas são aquelas das situações degradantes da escravidão: o negro trabalhando a ferros, o negro apanhado, o negro servindo. Enquanto imagens sobre a família negra, sobre as práticas festivas, sobre a 21 religiosidade e sobre suas criações culturais são invisibilizadas. Nos livros didáticos, as ilustrações se tornam os ícones que reforçam a idéia do texto e muitas destas imagens repetidas tornam-se imagens padrão, ícones ligados a conceitos-chaves de nossa vida social, intelectual e moral. É necessário, portanto, abstrairmos do documento e da imagem o caráter autoritário e absolutista de informação que a sociedade em que vivemos lhe atribuiu. De onde vem esta imagem? Quem a fez e quais seus valores? Quem são os protagonistas da cena? Com que objetivos ela foi elaborada? Tais questões devem ser realizadas como parte da tarefa de mediação do professor em sala de aula. Cabe ressaltar que as imagens são portadoras de, no mínimo, duas temporalidades, como qualquer outra forma de linguagem, e é preciso levar em consideração os aspectos da produção da imagem e dos seus usos em determinados contextos didáticos. Não há, pois, como resgatar o passado ou “demonstrar” o presente sem dar novos sentidos às imagens que nos chegam. Elas são sempre impressões de um grupo ou de um indivíduo sobre um tempo, um lugar ou uma situação. Por isto, é importante conhecermos os diferentes suportes da comunicação, aprendermos as dinâmicas de cada linguagem (vídeo, tv, fotografia, desenho), nos aproximarmos criticamente dos sentidos da reprodução de algumas imagens canônicas, percebermos que as imagens são ao mesmo tempo o recurso didático (enquanto suporte) e a linguagem que utilizamos (enquanto comunicação). Antes de utilizarmos imagens na educação é imprescindível, como parte do planejamento das aulas, que façamos o exercício de respondermos a nós mesmos algumas perguntas. Qual o tema de estudos ou problemática a ser estudada a partir do uso de um filme, fotografias, gravuras, desenhos ou pinturas? Qual a relação de interesse, de proximidade e distanciamento destas imagens com meus alunos? Que objetivos claros espero alcançar? Tenho um roteiro bem planejado e definido de trabalho? Quais os fatores positivos e negativos (os resultados enfrentam sempre esta dicotomia) deste uso? Como farei a avaliação? Se estas questões tiverem respostas satisfatórias, não estaremos obedecendo a uma ditadura da imagem no processo contemporâneo de cognição, mas abrindo possibilidades para uma leitura crítica, construtora de significados em que os próprios alunos sejam os seus sujeitos. Provocações finais O estudo do conteúdo de África e das populações africanas no Brasil, bem como as questões contemporâneas e discussões sobre diversidade, cidadania, identificação e combate ao racismo, encontram um cenário escolar comum, que geralmente é originado a partir de problemas primários como a falta de projetos e planos de ensino coerentes e apropriados às especificidades locais, como foi levantando em algumas ocasiões pelos 22 4 Generalizo esta experiência para outras além dos alunos do curso em Sergipe. Por exemplo, no ano de 2005 ministrei cursos sobre a mesma temática em algumas cidades do interior do estado de Santa Catarina e as observações por parte dos professores quanto aos problemas com o planejamento e os projetos eram muito semelhantes. professores alunos no Curso.4 Além disto, o problema é que quando escritos, tais projetos e planos são engavetados e quase nunca retomados durante o ano para reflexões mais aprofundadas e avaliações sobre o andamento das atividades, bem como, quase nunca são discutidos amplamente com o grande grupo de docentes e a partir das contribuições de toda a comunidade escolar. Outro problema é que as metodologias são aplicadas seguindo modismos pedagógicos e de forma a ignorar a coerência com os próprios objetivos propostos na formalidade dos planos de ensino que dificilmente logram êxito. Neste sentido, a Lei Federal 10.639/03, o parecer CNE 03/04 e a resolução CNE 01/04 não encontram um contexto adequado para sua absorção, debate e aplicação. Uma coisa é a formalidade da Lei, outra coisa muito diferente é a sua absorção em situações reais e adequadas. Eu diria que para aqueles que estão convencidos de que é importante começarmos por algum lugar para mudarmos tal quadro, um caminho interessante são as posturas pedagógicas da mediação e, neste sentido, uma proposta de atividade mais imediata para a escola e para os professores é a de que se reúnam, leiam e estudem a Lei 10.639/ 03 e os textos dos pareceres do CNE, bem como, estudem alguma bibliografia pertinente, apresentem alguns problemas da sua realidade escolar, relativos ao tema, atribuama eles questões de fundo conceituais e produzam coletivamente planos de ação, destacando problemas, objetivos e estratégias. Não há como tornar eficiente o disposto na Lei 10.639/03, sem a sensibilização da comunidade escolar, o esforço coletivo e sua efetiva participação no processo. Referências bibliográficas APPIAH, Kwame Anthony. Na casa de meu pai. 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A idéia central é mostrar que a educação sempre esteve presente na agenda desse movimento, sendo concebida como um recurso de importância capital para combater o racismo e garantir a integração do negro na sociedade. Os negros no Brasil têm passado por uma miríade de dificuldades na área educacional. Eles lideram as estatísticas em matéria de evasão escolar, repetência e analfabetismo. Quando comparados aos brancos, também levam desvantagens quanto ao ingresso, à progressão e conclusão do ensino fundamental e médio (Hasembalg e Silva, 1990). Esse círculo vicioso, porém, não é novo. Desde a época da escravidão, o negro enfrentava obstáculos nessa área. Vale lembrar que os escravos eram desprovidos dos direitos sociais e políticos mínimos, uma vez que a Constituição de 1824 não lhes garantia o exercício da cidadania. Eles sequer eram alfabetizados. Talvez isso ocorresse porque os senhores tinham noção de que saber ler e escrever era uma ferramenta que, nas mãos dos escravos, poderia ser manejada em prol de sua liberdade. Em 4 de janeiro de 1837, o presidente da Província do Rio de Janeiro, Paulino José de Sousa, sancionou uma lei proibindo “os escravos, e os pretos africanos, ainda que sejam livres ou libertos”, de freqüentar as escolas públicas de “instrução primária” (apud CUNHA, 1999, p. 87). Em 28 de setembro de 1871, foi aprovada a lei do Ventre Livre. Estabelecia que, a partir dessa data, os filhos de escravos que nascessem no Império seriam considerados livres. Tais crianças ficariam com os pais até a idade de oito anos, quando os senhores de escravos poderiam entregá-las às instituições estatais e receber uma indenização, ou mantê-las consigo até os vinte anos, utilizando seus serviços como forma de retribuição pelos gastos que tiveram com seu sustento. No caso das crianças negras que foram entregues às instituições estatais, houve iniciativas, seja da parte do governo ou de certos setores das elites que procuravam oferecer-lhes educação básica (FONSECA, 2002). Não se deve, entretanto, superestimar a importância dessas iniciativas que, além de serem deficientes do ponto de vista educacional, jamais se universalizaram. Em 1878, o governo do Império realizou uma reforma no sistema de ensino. 5 Doutor em História/USP. Professor Adjunto da Universidade Federal de Sergipe (UFS). Colaborador do NEAB/UFS. 26 Por meio de decreto, ficou estabelecido que “nos cursos noturnos poderão matricular- se, em qualquer tempo, todas as pessoas do sexo masculino, livres ou libertos, maiores de quatorze anos”. Porém, o benefício do decreto não se estendia aos escravos (PERES, 1995; CUNHA, 1999, p. 90). A distância entre o dispositivo legal e a prática era um outro problema. Muitos negros “livres” e “libertos” continuaram sendo proscritos da educação pública. Esse quadro só foi alterado com a abolição da escravatura, em 1888, e a implantação da República, em 1889. Movimento negro e educação: primeira fase (1889-1937) Será que a nova ordem político-social garantiu o acesso imediato do negro à escola? Todas as evidências indicam que não (GONÇALVES, 2000, p. 328). George Andrews assinala que os “afro-brasileiros” passaram a viver em estado de exclusão nessa fase. Eles eram “excluídos seja politicamente em decorrência das limitações da República no que se refere ao sufrágio e a outras formas de participação política; seja social e psicologicamente, em face das doutrinas do racismo científico e da ‘teoria do branqueamento’; seja ainda economicamente, devido às preferências em termos de emprego em favor dos imigrantes europeus” (ANDREWS, 1991, p. 32). No campo educacional, a situação não foi diferente. O negro se manteve afastado dos bancos escolares ou quando teve acesso a eles foi com muitas dificuldades. Havia escolas – públicas e privadas, leigas e religiosas – que, além de colocar restrições aos negros, simplesmente lhes vetavam a matrícula. Para reagir a esse quadro de exclusão, de um lado; e preconceito e discriminação raciais, de outro, um grupo de “pessoas de cor” formou uma série de associações, com perfis distintos: clubes, entidades beneficentes, grêmios literários, centros cívicos, jornais e até mesmo organizações políticas. Em São Paulo, apareceram o Clube 13 de Maio dos Homens Pretos (1902), o Centro Cultural Henrique Dias (1908), a Sociedade União Cívica dos Homens de Cor (1915); no Rio de Janeiro, o Centro da Federação dos Homens de Cor; em Pelotas (Rio Grande do Sul), a Sociedade Progresso da Raça Africana (1891); em Lages (Santa Catarina), o Centro Cívico Cruz e Souza (1918). De caráter notadamente cívico, cultural ou recreativo, as associações do incipiente movimento negro exerceram um importante papel de mobilização e conscientização raciais da população de ascendência africana (GONÇALVESe SILVA, 2000, p. 138-139). Do ponto de vista educacional, tais associações denunciavam o analfabetismo e a precariedade da escolarização dessa população. Mas não ficaram apenas no plano da denúncia. Muitas delas empreenderam algum tipo de ação educativo-cultural em suas dependências, como apresentações musicais, encenações teatrais, sessões de recitais de poesias, cursos, palestras. Havia aquelas que mantinham aulas noturnas e bibliotecas. 27 Foi o caso, por exemplo, da Feliz Esperança, de Pelotas, no Rio Grande do Sul. Desde o final da década de 1880, essa associação era considerada um “baluarte da representação negra”, condição que vai manter até sua extinção, por volta de 1917 (LONER, 1999). Emergiram também associações negras que abriram escolas. Uma delas foi a Sociedade Amigos da Pátria, de São Paulo. A escola chamava-se Progresso e Aurora. Fundada no dia 13 de maio de 1908, era dirigida por Salvador Luís de Paula, um negro ex-ativista do movimento abolicionista. Não se têm maiores detalhes de sua dinâmica interna. Com efeito, sabe-se que Progresso e Aurora foi o estabelecimento de ensino voltado para a “população de cor” de maior longevidade nas primeiras décadas do século XX. Por dificuldades financeiras, fechou suas portas em 1929.6 De 1926 a 1929, o Centro Cívico Palmares cerrou fileiras nas lides contra o “preconceito de cor”. Uma de suas principais iniciativas foi a instituição de uma escola que, à luz das demais do gênero, tinha uma estrutura pedagógica um pouco mais sólida. Funcionando na sede da associação, as aulas ocorriam no período diurno e noturno. Ensinava-se a ler, escrever e contar, bem como Gramática, Geografia, História, Aritmética, Geometria, entre outras disciplinas (DOMINGUES, 2004, p. 353). Mantendo ainda uma biblioteca e sediando palestras de cunho cultural, o Centro Cívico Palmares reverberou o amadurecimento dos movimentos sociais do meio negro em São Paulo, tendo sido o embrião da Frente Negra Brasileira. Das associações de recorte racial dessa fase, a Frente Negra Brasileira (1931-1937) foi a que amealhou maior grau de organização e estruturação, sendo, sem sombra de dúvida, a mais importante. Ela se destacou pelo tempo em que permaneceu ativa, pelo número de adeptos, pelas realizações e, também, pela quantidade de atividades que desenvolveu. A Frente Negra Brasileira (FNB) se expandiu em ritmo acelerado, reunindo no seu apogeu mais de sessenta “delegações” (sucursais) distribuídas pelo interior de São Paulo e por outros Estados, como Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo, além de inspirar a criação de entidades homônimas em Pelotas (no Rio Grande do Sul), Salvador e Recife. Sua organização político-administrativa era complexa e diversificada. Havia centralização do poder e predominava uma rígida estrutura hierárquica (FERNANDES, 1978; PINTO, 1993; DOMINGUES, 2005). Para impulsionar os projetos específicos, a FNB instituiu vários departamentos, sendo o maior e mais importante o de Instrução, também chamado de Departamento de Cultura ou Intelectual; responsável pela área educacional da agremiação. Convém observar que o conceito de educação articulado pelo movimento negro naquela fase era amplo, compreendendo tanto a escolarização quanto a formação cultural e moral do indivíduo. A palavra “educação” era usada freqüentemente com esses dois sentidos. Já a palavra “instrução” tinha um sentido mais específico: de alfabetização ou 6 Progresso. São Paulo, 26/09/1929, p. 7. 28 escolarização. A “instrução” foi uma das questões mais pautadas da FNB. Em quase todas as edições do jornal da FNB, A Voz da Raça, encontra-se alusão ao quadro de carência educacional da população negra e à necessidade de ela se instruir. Em editorial o jornal alardeava: “Oh pais! Mandai vossos filhos ao templo da instrução intelectual – ‘a escola’, não os deixeis analfabetos como dantes”.7 O primeiro grande projeto do departamento de Instrução foi a criação de um curso de alfabetização, em 1932. Era, em princípio, destinado a todos os negros (“menores e adultos”), associados ou não à entidade, no período noturno. A partir de 1934, a FNB passou a oferecer também o curso primário. Francisco Lucrécio informa que o curso primário estava organizado em três séries distintas, com cada sala de aula correspondendo a uma série. Já Marcelino Felix (2001, s/p) sugere que o curso tinha duração de três anos, adotava um sistema multisseriado, qual seja, várias séries funcionando dentro de uma mesma sala mista (de meninos e meninas) - fato incomum para a época. Não se sabe qual era o número exato de salas de aula, bem como o de alunos atendidos. Em agosto de 1936, tem-se referência a “mais de 200 alunos” nas escolas primárias e no curso de “Formação Social”.8 Aliás, este foi um outro curso oferecido pela FNB. Tudo indica que ele não era regular e constava de conferências a respeito de assuntos da atualidade, questões históricas, sociais, e, principalmente, moral e cívica. Ainda que de maneira pouco articulada, as lideranças frentenegrinas começaram a forjar um posicionamento crítico em face do sistema de ensino, não só em relação ao tratamento que os professores e a escola davam aos alunos negros, mas também quanto aos conteúdos escolares. Conforme nota Regina Pahim Pinto (1993, p. 251), as lideranças frentenegrinas não realizaram críticas sistemáticas, mas revelaram que tinham uma noção de que as escolas da rede de ensino eram pouco receptivas ao alunado negro e que os professores tinham uma postura discriminatória. Um outro projeto da FNB no terreno educacional foi a organização de uma biblioteca. Os livros eram adquiridos principalmente por meio de doações dos associados. Os dirigentes frentenegrinos ainda cogitaram formar um centro de estudo e um “Clube dos Intelectuais”. As atividades educacionais da FNB não ficaram circunscritas à cidade de São Paulo. Várias sucursais mantiveram escolas ou cursos de alfabetização. No caso de Muzambinho, em Minas Gerais, ocorreu algo excepcional: a “escola primária” da delegação da Frente Negra foi reconhecida oficialmente e municipalizada em 1937. Vale assinalar que a FNB não era a única organização do movimento negro que mantinha projetos educacionais na década de 1930. O Clube Recreativo 28 de Setembro, 7 A Voz da Raça. São Paulo, 17/06/1933, p. 3. 8 A Voz da Raça. São Paulo, 08/1936, p. 4. 29 da cidade de Jundiaí, por exemplo, mantinha em suas dependências uma escola, chamada “Cruz e Souza”. Por sua vez, o Centro Cívico José do Patrocínio, da cidade de São Carlos, criou “escolas de alfabetização e de instrução profissional”. Nessa mesma cidade, o Grêmio Recreativo Flor de Maio também abriu uma escola, disponibilizando cursos de ensino primário (atual primeiro ciclo do ensino fundamental). Raul Joviano Amaral asseverava que as “Sociedades Beneficentes” ou “Clubes da gente de cor” levava a efeito seu trabalho de “instrução” em condições precárias de instalação, ressentindo-se da falta de “apoio material”; as aulas eram ministradas em “salinhas acanhadas, com bancos toscos e mesas de caixão, isso mesmo custeado por bolsa de particulares”. Por essa razão, ele considerava necessário o “auxílio do governo”.9 Em 10 de novembro de 1937, com o apoio das Forças Armadas, Getúlio Vargas determinou o fechamento do Congresso Nacional e anunciou em cadeia de rádio a outorga de uma nova Constituição da República. A “polaca”, como ficou conhecida, foi inspirada nas constituições fascistas da Itália e da Polônia. A partir de sua vigência, ficou praticamente regulamentada a ditadura do Estado Novo; foram suprimidos direitos civis e muitas das liberdades individuais. Em 2 de dezembro de 1937, um decreto aboliu todas as organizações dos movimentos sociais, declarando-as ilegais. Como conseqüência, a FNB encerrou suas atividades, alguns meses antes das comemorações dos cinqüenta anos da Abolição, em 1938. Apesar de todas as dificuldades enfrentadas pela escola frentenegrina, sua experiência histórica constitui um capítulo de resistência da população negra antesua exclusão (ou inclusão marginal) no sistema de ensino das primeiras décadas do período republicano. Nessa primeira fase do movimento negro, é possível perceber como os vários grupos enfatizavam, senão priorizavam sua atuação na esfera educacional. Acreditava-se que os negros, à medida que progredissem no campo educacional, teriam mobilidade social, seriam respeitados, reconhecidos e valorizados pela sociedade mais abrangente. A educação também teria assim o poder de anular o preconceito racial e, em última instância, de erradicá-lo. Movimento negro e educação: segunda fase (1945-1964) O Estado Novo (1937-1945) caracterizou-se por ter suprimido os direitos democráticos e instaurado uma violenta repressão política no País, o que inviabilizou qualquer movimento contestatório. No seu crepúsculo, porém, reapareceu o movimento negro organizado. Dessa fase, uma das principais entidades foi a União dos Homens de Cor (UHC), fundada por João Cabral Alves, em Porto Alegre, em janeiro de 1943. Já no primeiro artigo do estatuto, a entidade declarava que sua finalidade central era “elevar o 9 A Voz da Raça. São Paulo, 23/06/1934, p. 2. 30 nível econômico, e intelectual das pessoas de cor em todo o território nacional, para torná-las aptas a ingressarem na vida social e administrativa do país, em todos os setores de suas atividades” (apud SILVA, 2005, p. 177). A UHC era constituída de uma complexa estrutura organizativa. Chama a atenção sua escalada expansionista. Na segunda metade de 1940, ela abriu sucursal ou teve representantes em dez Estados da Federação (Minas Gerais, Santa Catarina, Bahia, Maranhão, Ceará, Rio Grande do Sul, São Paulo, Espírito Santo, Piauí e Paraná), estando presente em inúmeros municípios do interior. Somente no Estado do Paraná, a UHC mantinha contato com vinte e três cidades, em 1948. Em linhas gerais, sua atuação era marcada pela promoção de debates na imprensa local, publicação de jornais próprios, serviços de assistência jurídica, médica e participação em campanhas eleitorais. Uma outra importante área de atuação da UHC foi a educacional, pois já no estatuto essa questão era pautada. Na sessão intitulada “Nossas Reivindicações”, ficou consignado: “3o. – Enquanto não for tornado gratuito o ensino em todos os graus, sejam admitidos brasileiros de cor como pensionistas do Estado, em todos os estabelecimentos de ensino superior do país, inclusive estabelecimentos militares” (Idem, p. 178). Tudo leva a crer que essa foi a primeira vez que uma organização do movimento negro reivindicou por parte do Estado brasileiro a adoção daquilo que posteriormente ficou conhecido como políticas de ações afirmativas. Em entrevista publicada no jornal Folha da Tarde, de Porto Alegre, de 31 de janeiro de 1946 - e republicada no jornal Quilombo - o presidente da UHC, João Cabral Alves, declarava que uma das finalidades da organização era “manter moços e moças em cursos superiores, concedendo-lhes roupa, alimentação, etc, para que possam concluir os estudos”.10 Portanto, a preocupação da UHC não era apenas com o acesso, mas também com a permanência das “pessoas de cor” no ensino superior. A organização medrou múltiplas campanhas de alfabetização no meio negro, constando, inclusive, que ela tenha conseguido realizar o sonho de construção de uma escola, em Porto Alegre. Embora sem o mesmo grau de penetração que a UHC teve na “população de cor”, o Teatro Experimental do Negro (TEN) foi um outro grupo importante dessa fase. Fundado no Rio de Janeiro, em 1944, tinha Abdias do Nascimento como sua principal liderança. A proposta inicial era formar um grupo teatral apenas com atores negros, mas paulatinamente o TEN adquiriu uma dimensão maior: publicou um jornal, Quilombo, organizou conferência, congresso, promoveu concursos de beleza, inaugurou um centro de pesquisa e um museu. A educação não foi esquecida pelo grupo. Pelo contrário, ela cumpriu um papel relevante na sua estratégia de luta contra o “preconceito de cor” (MULLER, 1994; 1999; NASCIMENTO, 2003, p. 289-292; 10 Quilombo. Rio de Janeiro, dezembro de 1948, p. 3. 31 ROMÃO, 2005). Uma liderança feminina do TEN, Maria Nascimento, discorria: Pela educação é que havemos de conquistar igualdade moral, intelectual, cultural, artística, econômica e política. Quando todo negro souber ler e escrever teremos dado o passo mais decisivo para a nossa própria recuperação. Enfim, educar e alfabetizar a população dos morros é uma forma de libertar e emancipar a gente negra. Porque a ignorância, o analfabetismo, é a forma mais terrível de escravidão.11 Uma outra atividade levada a cabo pelo TEN foi justamente o curso de alfabetização, transcorrido entre outubro de 1944 e meados de 1946. Além de atacar o analfabetismo, um problema crônico da população negra, o curso visava a proporcionar qualificação mínima para a participação do indivíduo na companhia teatral, afinal, havia a necessidade de se saber ler para decorar e encenar as peças. As aulas aconteciam em salas cedidas pela União Nacional dos Estudantes (UNE), localizada no bairro do Flamengo. A coordenação do curso ficou nas mãos de Ironides Rodrigues, um então estudante de Direito. Ministravam-se aulas de Português, História, Aritmética, Educação Moral e Cívica, História e Evolução do Teatro, alternando com lições sobre “folclore afro-brasileiro” e história do negro. O TEN tinha noção dos problemas espinhosos com os quais os negros se deparavam na vida educacional do País. Uma ativista do grupo, Guiomar Ferreira de Mattos, escreveu um artigo na revista Forma, apontando a presença de preconceitos raciais nos “livros escolares”, particularmente nos de histórias infantis (MATTOS, 1966, p. 136-137). Haroldo Costa, por seu turno, denunciava os “educandários” que não permitiam o ingresso de alunos “de cor”. Essa prática também incidiria nos estabelecimentos de ensino mantidos pela Igreja Católica e nas instituições oficiais: “ninguém desconhece os tremendos obstáculos que encontra o jovem negro quando se inscreve para prestar exame vestibular ao Instituto Rio Branco (Ministério das Relações Exteriores); ou no exame de admissão às escolas militares superiores”. Costa argumentava que, mesmo vencendo a barreira da linha de cor, o negro não era bem acolhido pelas escolas: Quando o diretor de um estabelecimento de ensino não pode proibir a entrada de um aluno negro no corpo discente do seu educandário, e a veia de seu preconceito entra em efervescência, ele move-lhe uma perseguição durante o decorrer do curso, promove seu alijamento psicológico, dificulta-lhe o que houver de mais banal; enfim, tudo faz crer que há uma campanha subterrânea e organizada visando anular as aspirações do negro que deseja estudar.12 11 Quilombo. Rio de Janeiro, 01/1950, p. 11. 32 Independentemente do fato de Haroldo Costa ter exagerado quando afirmou que existia uma espécie de conspiração dos diretores na rede de ensino para vetar ou obstaculizar o progresso educacional do contingente negro, o fato é que o “preconceito de cor” fazia parte do universo escolar, sob vários aspectos: desde professores e colegas de turma que tratavam os alunos negros de maneira diferenciada, passando pelo material didático e paradidático, os quais veiculavam uma série de estereótipos raciais, até a existência de um currículo de orientação eurocêntrica, o que emasculava, pois, a possibilidade de discussão a respeito da história e cultura afro-brasileiras. Em 1951, veio ao lume a Associação José do Patrocínio, em Belo Horizonte. Seu fundador, Antonio Carlos, era um ativista remanescente das organizações negras paulistas (GONÇALVES, 2000, p. 338). Um dos objetivos da agremiação era proporcionar “instrução” para as “pessoas de cor”. Com esse espírito, oferecia em sua sede aulas de Português, Matemática; disponibilizava uma biblioteca de assuntos “afro- brasileiros” e realizava palestras periódicas. Em 1954, um grupo de afro-paulistas formou a Associação Cultural do Negro (ACN). Localizada no centro de São Paulo, teve Geraldo Campos de Oliveiracomo primeiro presidente. Sua direção era composta de uma Diretoria Executiva, com sete membros e um Conselho Superior, presidido inicialmente por José Correia Leite. No auge, a ACN reuniu em seus quadros cerca de 700 pessoas. Publicou um jornal, O Mutirão, editou os “Cadernos de Cultura”, patrocinou um ciclo de conferências batizado de “Os Encontros de Cultura Negra”, montou uma biblioteca e articulou um projeto educacional. A agremiação abrigava vários departamentos, sendo o mais importante deles o de “Educação e Cultura”. Segundo Clóvis Moura (1983, p. 59), a ACN chegou a abrir uma escola que ministrava cursos de “alfabetização e madureza”. A partir desse apanhado geral da segunda fase do movimento negro, verifica-se como a educação, muitas vezes, foi concebida como a panacéia para todos os males que afetavam a população de ascendência africana no Brasil. Além de principal arma na “cruzada” contra o “preconceito de cor”, a escolarização era tida como instrumento de qualificação do negro para o mercado de trabalho e pleno exercício da cidadania, visto que o direito ao voto era uma prerrogativa exclusiva das pessoas alfabetizadas. Movimento negro e educação: terceira fase (1978-?) A instalação da ditadura militar, em 1964, provocou uma retração do movimento negro. Seus ativistas eram estigmatizados e acusados de conspirarem um problema que supostamente não existia, o racismo no Brasil. Em virtude disso, a discussão pública 12 Quilombo. Rio de Janeiro, 12/1948, p. 4. 33 sobre a questão racial ficou arrefecida. A reorganização política do protesto negro somente aconteceu no final da década de 1970, no bojo da ascensão dos movimentos populares, sindicais, feministas, gays e estudantis. Um marco desse processo foi o nascimento do Movimento Unificado Contra a Discriminação Racial, em 1978. Já nesse ano a organização aprovou estatuto, carta de princípio e programa de ação. No ano seguinte, realizou o Primeiro Congresso, reunindo delegados do Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Espírito Santo, de São Paulo, Minas Gerais e da Bahia. Nesse Congresso seu nome foi alterado para Movimento Negro Unificado (MNU). Na carta de princípios, conclamava-se pela “defesa do povo negro em todos os aspectos políticos, econômicos, sociais e culturais”. Com a perspectiva de unificar a luta anti-racista em escala nacional, o nascimento do MNU significou um marco na história do protesto negro. Uma das preocupações da entidade foi a de intervir na esfera educacional. Já no seu programa de ação, preconizava- se uma educação voltada para os interesses do “povo negro e de todos os oprimidos”. Em Salvador, um grupo de mulheres – que depois contribuiu na fundação da seção local do MNU – empreendeu um trabalho de alfabetização de adultos pelo método Paulo Freire, no bairro da Fazenda Grande do Retiro. Uma das integrantes do grupo, Arani Santana, relata: “nós tínhamos consciência do que éramos capazes. Que era através da educação que poderíamos fazer alguma coisa” (apud SILVA, 1988, p. 14). Contudo, a principal bandeira desfraldada pelo MNU e pelo conjunto do movimento negro brasileiro nessa fase foi a da inclusão de conteúdos programáticos referentes à história da África e da cultura afro-brasileira nos currículos das escolas. A partir de uma reflexão teórica, o sociólogo e ativista negro, Manoel de Almeida Cruz, lançou de forma pioneira as bases de uma “pedagogia interétnica”. Em 1979, o Núcleo Cultural Afro-Brasileiro, do qual Manoel Cruz fazia parte, organizou o I Seminário Experimental de Educação Interétnica, nas dependências do Instituto Cultural Brasil- Alemanha, em Salvador. No ano seguinte, o Núcleo promoveu o II Seminário de Educação Interétnica. Como resultado, formou-se uma comissão que elaborou um currículo escolar multicultural, sendo adotado no “pré-primário” de uma escola no Vale das Pedrinhas, um bairro da periferia de Salvador. Várias atividades desse projeto pedagógico experimental procuravam incorporar a cultura afro-brasileira por meio da música, da dança, da modelagem, do teatro e dos contos (CRUZ, 1989, p. 85). Em Porto Alegre, foram realizados o I e o II Encontro Nacional sobre a “Realidade do Negro na Educação”, em 1984 e 1985, respectivamente. Depois da redemocratização política do País, em meados da década de 1980, iniciou-se uma tendência de atomização do movimento negro. Emergiram dezenas, quiçá, centenas de grupos por todo o País. Além da introdução de disciplinas fundamentadas na história e na cultura do negro nos currículos escolares, esses grupos passaram a reivindicar do governo cursos para os professores se qualificarem, numa prática de ensino multirracial e 34 poliétnica, e uma revisão dos livros didáticos, a fim de eliminar deles a veiculação de idéias e imagens negativas acerca do negro (CUNHA JR., 1996; SILVA, 1997; JESUS, 1997). Foi nesse contexto que floresceram alguns projetos pedagógicos alternativos, como o do Ilê Aiyê, em Salvador, baseado no “patrimônio cultural africano” (SIQUEIRA, 1996, p. 158). Na década de 1990, o MNU entrou em crise e perdeu muito de sua força política. Simultaneamente, muitas das múltiplas organizações negras espargidas pelo país se especializaram, acentuando a tendência de incidirem em frentes específicas. Um exemplo disso foi o Núcleo de Estudos Negros (NEN), de Florianópolis. Embora nascendo com o propósito de militar em vários domínios, foi na educação que o grupo enfatizou suas ações, impulsionando debates, oficinas e encontros com educadores, negros e brancos. Em parceria com a Secretaria de Educação da cidade de Rio do Sul, em Santa Catarina, o NEN colaborou num projeto com os professores da rede de ensino municipal durante nove meses. O projeto incluía a discussão sobre a falta de referências bibliográficas e didático-pedagógicas acerca do negro, a necessidade de uma prática de ensino que levasse em conta a pluralidade racial, o reconhecimento de posturas discriminatórias no espaço escolar e as formas de combatê-las (LIMA, 1997, p. 87-88). Também apareceram aquelas organizações negras com um caráter eminentemente educacional, como a Associação Afro-Brasileira de Educação Cultural e Preservação da Vida (1990), em São Paulo; a Cooperativa Steve Biko (1992), em Salvador; o Educafro (1993), no Rio de Janeiro. Nessa fase, ocorreu uma outra mudança: o movimento negro assumiu de modo crescente a política de focalizar o acesso à universidade. Em função disso, o dilema colocado passou a ser: como aumentar o índice de estudantes negros na universidade? Uma das alternativas experimentadas foi a de montar cursos pré- vestibulares para negros e carentes. Em São Paulo, o primeiro deles foi o do Núcleo de Consciência Negra (NCN) da Universidade de São Paulo (USP). Criado em 1994, o curso iniciou-se com uma turma de 140 alunos, dos quais no mínimo 70% eram “negros ou mestiços”. As aulas ocorriam de segunda à sexta-feira, no período noturno. Como a finalidade não era tão-somente preparar os alunos para serem aprovados no vestibular, mas também conscientizá-los das questões raciais, nos sábados eram ministradas palestras por professores da USP ou convidados do movimento negro, no espaço de uma disciplina denominada Cidadania e Consciência Negra (DOMINGUES, 2002, p. 223). A partir do final da década de 1990 e início da década posterior, as atenções do movimento negro foram canalizadas para o debate em torno das ações afirmativas, sobretudo na sua versão mais polêmica, o programa de cotas para negros nas universidades públicas. Um marco desse processo foi a aprovação pela Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro, em 2002, da reserva de 40% das vagas para 35 alunos negros no vestibular da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e da Universidade Estadual do Norte Fluminense (UENF). Não obstante, o fato de maior impacto referente ao tema do negro e educação, no início desse terceiro milênio, foi a sanção por parte do Presidente da República da Lei 10.639, em 9 de janeiro de 2003, instituindo a obrigatoriedade do ensino sobre História eCultura Afro-Brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Em 10 de março de 2004, o Conselho Nacional de Educação aprovou as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Depois de décadas de ativismo dessa terceira fase, o movimento negro conseguiu que o Estado brasileiro atendesse uma de suas reivindicações precípuas na esfera educacional.13 Resta agora saber se a Lei 10.639 será implementada concretamente nas escolas ou não passará de letra morta. Isso, porém, só a história revelará. Na estratégia de luta do movimento negro, a educação - tanto como sinônimo de instrução (ou seja, de escolaridade), quanto no sentido amplo, incluindo as manifestações de conotação cultural - ocupou um papel de destaque. Ela foi vista, ora como um mecanismo capaz de equiparar os negros aos brancos, conferindo-lhes oportunidades iguais no mercado de trabalho, ora como uma condição básica para a integração e conseqüente mobilidade social, ora como “instrumento de conscientização por meio do qual os negros aprenderiam a história de seus ancestrais, os valores e a cultura de seu povo, podendo a partir deles reivindicar direitos sociais e políticos, direitos à diferença e respeito humano” (GONÇALVES, 2000, p. 337). Em outros termos, a educação sempre foi considerada o caminho mais eficaz para a redenção dos problemas da população de ascendência africana. Na primeira e segunda fase de existência no pós-Abolição, o movimento negro abriu pequenas escolas, realizou trabalhos de alfabetização, devotando atenção especial ao ensino fundamental. Já na terceira fase, o movimento preconizou políticas públicas educacionais específicas em benefício do segmento negro; hodierno, ele pugna por uma escola mais sensível à diversidade racial e pela democratização do acesso ao ensino superior, mediante as ações afirmativas (cursos pré-vestibulares para negros, cotas, etc.). Referências bibliográficas 13 Ao avaliar a aprovação da Lei 10.639, de 2003, Sales Augusto dos Santos (2005, p. 34) afirma: “Os movimentos sociais negros, bem como muitos intelectuais negros engajados na luta anti-racismo, levaram mais de meio século para conseguir a obrigatoriedade do estudo da história do continente africano e dos africanos, da luta dos negros no Brasil, da cultura negra brasileira e do negro na formação da sociedade nacional brasileira”. Trata-se de uma avaliação equivocada, pois foi só a partir de sua terceira fase (1978-?) que o movimento negro brasileiro passou a esposar a inclusão nos currículos escolares de uma disciplina específica para tratar das questões raciais Portanto, essa reivindicação não tinha “mais de meio século” em 2003. 36 ANDRADE, Rosa Maria T. e Eduardo Fonseca (orgs.) (2002). Aprovados! Cursinho pré- vestibular e população negra. São Paulo: Summus. ANDREWS, George Reid (1991). O protesto político Negro em São Paulo (1888- 1988). Estudos Afro-Asiáticos, Rio de Janeiro, n. 21, pp. 27-48. AZEVEDO, Celia Maria Marinho de Azevedo (2004). “Para além das ‘relações raciais’: por uma história do racismo”. In: Anti-racismo e seus paradoxos: reflexões sobre cota racial, raça e racismo. São Paulo: Annablume, pp. 107-126. AZEVEDO, Thales (1996). As elites de cor numa cidade brasileira: um estudo de ascensão social & classes sociais e grupos de prestígio. 2. ed. Salvador: EDUFBA. 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Este texto traz uma reflexão sobre a participação das práticas didático-pedagógicas na forma como as crianças dos anos iniciais de escolaridade vivenciam e expressam suas identidades étnicas. Para isso, inicialmente apresento um panorama conceitual com algumas das concepções de identidades étnicas; em seguida, apresento um breve levantamento das pesquisas sobre o tema das identidades étnicas e dos preconceitos nos anos iniciais de escolaridade, de modo especial na educação infantil. E, para finalizar, apresento algumas das práticas observadas no campo da pesquisa que originou este trabalho e as contribuições que essas práticas trazem para a ampliação da perspectiva anti-racista na educação. Ter os conceitos de infância, identidade étnica (na perspectiva afrodescendente) e práticas escolares como eixos temáticos do trabalho, me levou a pensar na infância na perspectiva do ser descendente de africano no Brasil. Essa criança como sujeito de uma infância específica, como criança afrodescendente. Uma infância que desde cedo vivencia, conforme demonstram os dados estatísticos, uma predominância de dificuldades e precariedade nas condições concretas de vida (PAIXÃO, 2000; KAPPEL, 2003), bem como em relação à agressão simbólica nas relações estabelecidas nos diversos espaços sociais, inclusive na educação (GONÇALVES, 1985; CAVALLEIRO, 2000; LOPES, 1987 e outros/as). Nas duas últimas décadas têm-se ampliado os debates sobre a infância e suas problemáticas, sendo que as crescentes mazelas sociais, entre elas: as desigualdades sociais, o agravamento da violência e a complexidade nas relações evidenciam, cada vez Práticas pedagógicas e identidades Étnicas: apontamentos de um estudo com crianças no cotidiano escolar14 Maria Batista Lima15 14 Este texto faz parte da Tese de Doutoramento em Educação, da autora, defendida em 11/ 04/2006, pela PUC-Rio, sob a orientação da Profª Sônia Kramer. A referida reflexão parte de pesquisa realizada entre agosto de 2004 e agosto de 2005 em uma escola do Município de Duque de Caxias, no Rio de Janeiro. 15 Profª Adjunta da Universidade Federal de Sergipe, membro do NEAB-SE e do Projeto Diálogo entre Povos (RJ) / Drª em Educação Brasileira pela PUC-Rio, Mestre em Educação pela UERJ-RJ. 42 mais, a centralidade da infância no campo desses debates. Também as identidades e suas dinâmicas têm se fortalecido como foco de crescente problematização. Ambas as temáticas são mediadas pelas novas formas culturais vividas entre o global e o local. Amplia-se a discussão sobre a formação identitária da população nos aspectos étnico, de gênero, regionalidade, entre outros. Debates apontam para a importância da escola como espaço de formação dessas identidades, já que nela as crianças passam parte do seu tempo interagindo numa relação de aprendizagem. Suas práticas, vivenciadas pelos diferentes sujeitos (crianças e adultos) são espaços de interação e produção sócio-cultural. Foi a partir dessa compreensão que busquei entender o papel das práticas da escola na formação identitária das crianças a partir das interações entre os sujeitos (crianças e crianças/ crianças e adultos) e com os artefatos em uso nesse espaço. A pesquisa, um estudo de caso, foi realizada numa escola que atendia ao último ano da educação infantil, os três anos do ciclo de alfabetização e a 3ª. e 4ª. séries, tendo como foco o último ano da educação infantil e os anos do ciclo de alfabetização. Aí foram observadas as relações das crianças entre si e destas com os adultos, principalmente as professoras e as dirigentes e atendentes de turno. Foram acompanhadas de forma direta três turmas – uma da educação infantil/1º ano do ciclo, uma do 1º/2º ano do ciclo e outra do 2º/3º ano do ciclo16 -, sendo que essas observações se deram tanto no contexto mais amplo da escola (recreio, corredores e murais, refeitório, entrada e saída, etc.) como nas atividades em sala de aula (propostas pelas professoras e/ou pela pesquisadora). Também foram tomados como dados da pesquisa as produções “das” e “para as” crianças, bem como as dinâmicas realizadas com as crianças, além de cinco entrevistas coletivas e oito entrevistas individuais com as crianças e entrevistas a nove adultos que convivem com essas crianças (as três professoras das turmas observadas nessa fase, a professora da sala de leitura, uma auxiliar administrativa, uma auxiliar de turno, uma orientadora pedagógica, uma orientadora educacional e a diretora). Para discutir as práticas tomei como referencial os trabalhos de Bakthin (1992), e Certeau (2002) como autores que permitem pensar sobre o lugar de onde se fala e se escuta, como também sobre as possibilidades das práticas como espaço de formação, de reprodução e de transformação das relações sociais. Para discutir as concepções de identidades e identidades étnicas utilizei principalmente os aportes teóricos de Menezes (1982), Sodré (1983,1999) e Munanga (1999), além de Banton (1998, 2000), Cashmore (2000), Guimarães (1999) e Ferreira (2000). Metodologicamente, articulei a contribuição do campo sócio-histórico com as contribuições da antropologia buscando compreender “a totalidade que se revela na particularidade” (KRAMER, 2003), a partir do diálogo 16 A indicação de duas turmas de anos diferentes no mesmo espaço deve-se ao fato da pesquisa ter sido desenvolvida em anos letivos diferentes (2004/2005), portanto a turma de educação infantil em 2004 tornou-se de 1º ano do ciclo em 2005 e assim sucessivamente. 43 com as práticas, sentidos, composições e recomposições do micro-espaço em que se constitui o cotidiano (CERTEAU, 2002, p. 42). A partir do referencial teórico- metodológico fundamentado, principalmente em Bakhtin na perspectiva histórico- social e Geertz e Ginzburg como suportes metodológicos de cunho antropológico, busquei conhecer o objeto de estudo, situando-o no contexto das práticas como espaço político de negoci(ação) dos sujeitos, onde são tecidos os fios das transformações mais amplas. As hipóteses centrais do trabalho consistiam em acreditar que: o fato de uma instituição educacional inserir a pluralidade cultural como eixo da sua proposta curricular poderia implicar em um avanço significativo na convivência com as diferenças em suas práticas; e que as micro-práticas desse espaço poderiam contribuir para políticas institucionais mais amplas, tanto em nível de escola quando de rede escolar. Os estudos realizados mostraram as possibilidades de efetivação de tais hipóteses pela ação concreta dos sujeitos da pesquisa. Identidades étnicas: apontamentos de um campo conceitual Uma parte de mim é todo mundo: outra parte é ninguém: fundo sem fundo. Uma parte de mim é multidão: outra parte estranheza e solidão. Uma parte de mim pesa, pondera: outra parte delira. Uma parte de mim almoça e janta: outra parte se espanta. Uma parte de mim é permanente: outra parte se sabe de repente. Uma parte de mim é só vertigem: outra parte, linguagem. Traduzir uma parte na outra parte — que é uma questão de vida ou morte — Será arte?17 Falar de identidade é falar da multiplicidade que compõe o ser humano. Trata-se de entender quem somos, por que assim o somos e o que isso representa na nossa relação com os outros seres humanos. E como seres humanos podemos ser/ter tantas dimensões simultâneas com predominâncias em diferentes momentos. E o mais complexo é que esse estado de ser articula-se com o estar que se constrói na relação com tantos outros. Eu sou quem sou porque sou filha de Ester, tataraneta de holandeses e de Osvaldo, bisneto de africanos. Ambos são quem são porque suas histórias fazem parte de coletivos históricos que dão significados a esse ser individual. Coletivos significados socialmente pelo que significou ser holandês e ser africano na história brasileira e sergipana, pois como disse Meneses (1992, p. 183). “A identidade é sempre socialmente atribuída, socialmente mantida e também só se transforma socialmente”. Foi a partir dessa concepção que delineei a minha compreensão do polifônico e polissêmico conceito identidade, pois sendo a identidade étnica também dinâmica e socialmente constituída em um tempo e espaço histórico, compreendo ser esse tempo 17 De Ferreira Gullar, em “Traduzir-se”. 44 e espaço articulado a uma configuração social de grupo. Para Sodré (1983, 1999) as identidades afrodescendentes são construções múltiplas, complexas, social e historicamente (re)construídas com base nos dispositivos de matrizes africanas; dispositivos processados nas relações sócio-culturais, políticas e históricas que se deram a partir do seqüestro dos nossos ancestrais africanos para o Brasil. Desse modo, as identidades são imbricadas na semelhança, na identificação com o outro e estão no contexto das relações sociais, sendo continuamente construídas a partir de repertórios culturais históricos de matrizes africanas, na vivência em sociedade. Sua existência tem as marcas das relações processadas ao longo dos séculos. As formulações de Sodré (1999, p. 34), explícitas na citação abaixo, completam a percepção de identidade: Dizer identidade é designar um complexo relacional que liga o sujeito a um quadro contínuo de referências, constituído pela intersecção de sua história individual com a do grupo onde vive. Cada sujeito singular é parte de uma continuidade histórico- social, afetado pela integração num contexto global de carências naturais, psicossociais e de relações com outros indivíduos, vivos e mortos. A identidade de alguém, de um “si mesmo”, é sempre dada pelo reconhecimento do “outro”, ou seja, a representação que o classifica socialmente. Sodré estabelece uma relação simbólica e histórica ao articular a dinâmica de constituição identitária às referências ancestrais vividas no cotidiano da formação social brasileira, enfatizando a relevância do reconhecimento social na construção da identidade dos sujeitos. Isso aponta a importância, não só da positivação do “eu” para a auto- estima e o desenvolvimento, mas da explicitação do “nós” a partir dos referenciais ancestrais positivos nos diversos âmbitos onde essa participação tem sido ocultada. Por isso faz-se pertinente problematizar os conceitos de raça e etnia para situar o conceito de identidade étnica. O termo etnia é originário de ethnikos, do grego, onde foi utilizado para designar povo ou nação. Contemporaneamente ainda conserva seu sentido básico na medida em que se refere a grupos que têm um determinado grau de consciência e solidariedade, constituído por pessoas conscientes de possuírem origens e interesses comuns. É um termo utilizado para englobar diferentes respostas de vários tipos de grupos. Cashmore (2000, p. 198-202) aponta algumas características e situações que configurariam a definição de grupos étnicos, entre elas destaco aquelas que se aproximam do contexto histórico da afrodescendência no Brasil: a) a etnia surge como um fenômeno cultural, mas é uma resposta às condições materiais, ou seja, um grupo étnico não se constitui com um despertar espontâneo de pessoas que repentinamente resolvem abraçar 45 a necessidade de expressão por intermédio de um grupo, ele é sempre uma reação às condições; b) o grupo étnico também pode ser impulsionado pela necessidade de ocupar espaços políticos, surgindo assim fortes organizações políticas que defendem e representam os interesses de seus grupos; c) a etnia nunca está desvinculada dos fatos de classes, embora contemporaneamente ela esteja sempre mais adquirindo relevância na sociedade; d) a constatação de que a força da etnia está no valor subjetivo que ela possui entre os membros do grupo, assim, a etnia é tão real quanto os indivíduos que desejam que ela seja18; e) o crescimento étnico pode se dar como mecanismo de defesa ou como uma nova construção no interior do grupo; f) a consciência étnica pode ser avivada com o objetivo de servir à propósitos imediatos, como instrumento para fins explicitamente definidos (é o caso, por exemplo, do movimento chicano, onde vários grupos de mexicanos tomaram consciência de sua condição comum19). Desse modo, o conceito de etnia centra-se numa consciência das diferenças nas relações e interações de determinados grupos culturais ou raciais com membros de outros grupos20. E o seu uso, bem como o uso dos conceitos de afrodescendência e de identidade afrodescendente, se dá sem perder de vista o conceito de raça como categoria historicamente engendrada na relação com a afrodescendência e do racismo como instrumento de desigualdade nos diversos espaços e âmbitos da sociedade brasileira. Afrodescendência e etnia são conceitos político-culturais, elaborados a partir da relação histórica de uma ascendência africana diversa; ascendência marcada pela trajetória de luta e exploração no âmbito do escravismo e do racismo e pelos referenciais processados nessa trajetória, demarcada pelas raízes históricas, sócio-culturais e políticas e pelas relações estabelecidas tanto nas ancestralidadesdistantes como nas vivências contemporâneas. (CUNHA JR., 1998; SODRÉ, 1983, 1999). A raça, por sua vez, é definida por Guimarães (1999) como “um conceito que denota tão-somente uma forma de classificação social, baseada numa atitude negativa frente a certos grupos sociais”; portanto, segundo este autor, existe como conceito sociológico e não biológico. Entretanto, entendo que a referência de raça social apresenta dificuldades, pois tem o limite da avaliação do legado africano, ou seja, não basta o reconhecimento de que uma idéia de raça constitui o racismo, mas ter a visão de que a 18 Um exemplo típico desta característica da etnia é o movimento rastafari (surgiu na Jamaica, em 1930, com o líder Marcus Garvey), cujos vínculos que os mantém unidos funda-se na concepção de uma antiga África, unida e gloriosa. “O fato de que muitas das idéias defendidas pelos rastas possam estar equivocadas não enfraquece de modo algum os vínculos étnicos, uma vez que eles os consideram significativos e estruturam sua vida cotidiana em torno desses vínculos” (CAHSMORE, 2000, p. 200). 19 No movimento chicano, um dos destaques foi o líder César Chavez (1927-1993), que incitou os trabalhadores agrícolas a criar uma forte união de trabalho embasada na etnia (CAHSMORE, 2000, p. 199). 20 Carvalho, 1999, p. 83, a partir da definição de etnia de Sandra Wallman. 46 história da população afrodescendente é muito mais ampla do que este racismo. Estando as identidades relacionadas, não só ao conhecimento, mas também ao reconhecimento social, elas são elementos políticos e históricos, constituídas a partir do passado de escravizados e nos dias atuais com os repertórios de base africana dessa população. Identidades cujas vivências foram e são mediadas pelas condições sociais concretas que inseriram e mantiveram a maioria dessa população entre os pobres, miseráveis, subempregados, desempregados, analfabetos e despossuídos em geral; quadro que indicia que no campo das relações étnicas, no Brasil, há uma política de não- representatividade da população afrodescendente, o que implica em identidades não- manifestas, em benefícios negados e em dignidade aviltada. Como argumenta Cunha Jr. (1998, p. 52): As restrições sociais e de representação de que somos alvo dão um contorno de identidade ao grupo social (...) O racismo brasileiro utiliza o critério étnico para definir as possibilidades de representação dos afrodescendentes na sociedade. Cria as ideologias capazes de produzir as exclusões, as participações minoritárias. Produz o material de sua justificativa, legitimação e manutenção. Combina as formas ideológicas com as outras violências num processo de dominação, em que classe, etnia e gênero definem as possibilidades dos grupos sociais afrodescendentes nas estruturas de classes sociais. O conceito de identidades afrodescendentes traz não somente a problemática da existência ou inexistência de uma ou várias identidades particulares, mas também a problemática do significado político delas, como nos aponta Apiah (1997), ao falar sobre a historicidade, as afinidades culturais e a multiplicidade identitária cuja expressão brota da relação com o outro, no contexto das africanidades. E, esse significado político passa pela via do conhecimento histórico, que nos é possibilitado pelo encontro com o outro, pois como diz Bokar apud Bâ (1982, p. 218) “se queres saber quem sou, se queres que te ensine o que sei, deixa um pouco de ser o que tu és”. As pesquisas sobre identidades étnicas e preconceitos na educação Falar sobre a relação das identidades étnicas com os preconceitos na escola implica contextualizar a vivência das crianças em interação com outras crianças e adultos, com situações e materiais. Faz-se necessário contextualizar o que significam historicamente essas identidades no contexto das relações étnicas brasileiras. E, para isso, é pertinente nos apropriarmos do que se tem produzido nesse campo de estudo. Destaco como marco inicial no campo do cotidiano escolar do ensino 47 fundamental, o trabalho de Gonçalves (1985) “O silêncio, um ritual pedagógico a favor da discriminação racial: um estudo da discriminação racial como fator de seletividade na escola pública de 1ª a 4ª série”, no qual o autor aponta a omissão do professor sob a forma do silêncio como instrumento de reprodução da discriminação. Para o autor esse ritual do silêncio se dá em duas vias: na negação dos valores ligados à história e à cultura de base africana e na postura de não-intervenção nas agressões e/ou isolamentos em relação às crianças. Silva (1987)21 também é pioneira no campo do cotidiano ao realizar um estudo sobre “A discriminação do negro no livro didático”, apontando como a ideologia do branqueamento e da democracia racial influi e se manifesta na prática em sala de aula, e quão negativo isso se torna como empecilho para uma educação democrática, emancipatória, desconstrutora das desigualdades historicamente sedimentadas. Ao reproduzir as concepções minorizantes dos repertórios culturais afrodescendentes (referenciais e fatos históricos, manifestações culturais e religiosas, referências lingüísticas, potencial e produção intelectual, imagem dos (as) afrodescendentes) essa prática educativa destrói a auto-estima e despotencializa as possibilidades de alunos(as) afrodescendentes. Em 1987 foi publicado o caderno 63, da Fundação Carlos Chagas, com o tema Raça Negra e Educação. O Caderno foi um marco nos estudos sobre a afrodescendência e educação, pois abordou diversos aspectos da temática, com vários trabalhos sobre infância e adolescência (ROSEMBERG, 1987; GONCALVES, 1987; CUNHA JR., 1987; PEREIRA, 1987; LOPES, 1987). Os “Cadernos do Núcleo de Estudos Negros (NEN)”, de Santa Catarina, com oito volumes publicados entre 1997 e 2002, também trazem trabalhos sobre afrodescendência, educação e práticas referentes à diversidade brasileira (étnica, regional e de gênero) em várias áreas disciplinares. Destaco a seguir alguns desses trabalhos que enfocam especificamente a educação infantil: Pereira (1987) aponta as desigualdades de atendimento da demanda e da qualidade do atendimento para crianças afrodescendentes da educação infantil e do ciclo inicial do ensino fundamental. Articula o fator étnico ao fator econômico, salientando que mesmo quando este segundo é superado, o espaço escolar ainda teria empecilhos para a criança afrodescendente, seja dificultando o seu ingresso nesses espaços educacionais com estruturas mais qualificadas, seja na forma de lidar com essa criança no cotidiano. O trabalho de Cavalleiro (2000) versa sobre racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Realizado em uma escola de educação infantil da cidade de São 21 Essa obra é fruto da dissertação de Mestrado em Educação da autora que no ano de 2001 defendeu tese de doutorado re-avaliando a questão da afrodescendência no livro didático e apontando os avanços que a questão apresenta. 48 Paulo, o estudo aponta como elementos expressivos desse racismo na escola: o material pedagógico, negadores e deturpadores das identidades, da representação e dos valores culturais da população afrodescendente; o universo semântico pejorativo e a distribuição desigual de afeto em relação à criança afrodescendente; entre outros. Segundo a autora, o racismo ainda predomina nas relações do espaço escolar, sendo que as crianças identificadas como negras recebem menor atenção e expressão de afeto por parte dos professores e professoras, bem como vivenciam situações de inferiorização por parte das crianças consideradas brancas, sendo que segundo ela: “as crianças estão tendo infinitas possibilidades para a interiorização de comportamentos e atitudes preconceituosas e discriminatórias contra o negro” (p. 97). Godoy (1996) que em sua pesquisa de mestrado A representação étnica por crianças pré-escolares – um estudo de caso à luz da teoria piagetiana analisa, por meio da linguagem verbal e do desenho, a forma como crianças entre 5 anos e 6 anos e 11 meses se vêem etnicamentee como elas vêem outras crianças, sendo que o foco do estudo, nesse caso, foi a percepção e relação das crianças com as identidades negras. O estudo apontou que o papel do educador e da educadora é fundamental para que a criança consiga desenvolver sua identidade étnica mediada por uma valorização positiva tornando-se um adulto isento de preconceitos em relação aos outros e a si mesmo. Valente (1995) enfatiza no seu trabalho Proposta metodológica de combate ao racismo nas escolas a importância da educação infantil como base da formação dos conceitos que embasam o desenvolvimento do ser humano em suas diferentes dimensões, inclusive na construção e vivência da identidade étnica. A autora analisa tal relação a partir de trabalhos desenvolvidos em escolas de educação infantil de Campo Grande (MS), nos quais a auto-estima das crianças é trabalhada a partir de atividades de valorização das diferenças. Outra experiência positiva é descrita por Machado (2002). Trata-se de um trabalho que analisa o papel da experiência pedagógica do Ilê Opô Afonjá, de Salvador-BA, na formação de conceitos identitários das crianças e de convivência com a alteridade. Néri da Silva (1999) analisa os mecanismos de construção e sustentação de ideologias racistas e sexistas que se processam no cotidiano das relações sociais entre educadoras de creches do município de Niterói-RJ e as crianças com as quais trabalham. A partir dessa análise ela aponta como, nessas interações, os estereótipos constituídos no imaginário social das profissionais acabam por balizar ações inferiorizantes em relação às crianças. Kappel (2003), por sua vez, em um estudo sobre a situação da criança no quadro sócio-demográfico brasileiro, analisa, a partir de dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra Domiciliar) e dos resultados dos censos escolares, as desigualdades nos aspectos da saúde, da situação econômica e, de modo especial, no atendimento da 49 criança na educação infantil. A autora aponta, ao tratar sobre a taxa de escolarização das crianças de zero a seis anos, a menor incidência desse atendimento para a população afrodescendente, tanto no grupo de zero a três anos, como no grupo de quatro a seis anos. Tece ainda, a partir dos dados utilizados, considerações que vão de encontro à imagem de infância romantizada, indicando que lugar esta criança ocupa e que perspectiva tem na sociedade atual, com suas contradições. Essas contradições apontam para a especificidade da criança afrodescendente nesse contexto. Esses trabalhos compõem apenas uma parcela do que o conjunto de pesquisas sobre a temática afrodescendente tem indiciado: a existência de um rico conjunto de repertórios culturais afrodescendentes silenciados, negados e ignorados na educação escolar dos diversos estados brasileiros, práticas que têm sustentado a cultura do racismo e dificultado o desenvolvimento educacional e social dos afrodescendentes. Mas também apontam as possibilidades que se abrem a partir das experiências positivas que se ampliam pelo Brasil afora pela ação de sujeitos históricos adultos e crianças em suas práticas cotidianas. Um olhar sobre as práticas: aprendendo a ouvir Uma política educacional antidiscriminatória não pode reduzir-se a uma série de lições ou unidades didáticas isoladas destinadas ao estudo dessa problemática. Não podemos dedicar apenas um dia por ano à luta contra os preconceitos raciais e à marginalização. Um currículo democrático e respeitador de todas as culturas é aquele no qual estão presentes estas problemáticas durante todo o curso escolar, todos os dias, em todas as tarefas acadêmicas e em todos os recursos didáticos. (SANTOME, 1998, p. 150). Neste tópico, limitada pelo espaço destinado ao capítulo, apresento apenas algumas das observações realizadas durante a pesquisa, enfatizando os diálogos estabelecidos e os murais produzidos na turma de educação infantil, 1º. ano do ciclo de alfabetização. As práticas escolares constituem o conjunto de ações e relações que se processam no cotidiano escolar. São fazeres e saberes cotidianos que superam as dicotomias: objetivo/subjetivo, certo/errado e social/individual. As observações revelam a dificuldade das professoras em lidar com os diferentes níveis de aprendizagem, bem como com os conflitos étnicos que acontecem no dia-a-dia. Porém, essa dificuldade não tem imobilizado esses sujeitos e a aprendizagem que os diálogos das práticas proporcionam. Apesar dessa dificuldade as práticas continuam acontecendo e produzindo cultura, transformando-se pela ação dos sujeitos concretos. A fala da professora sobre sua percepção do efeito do estereótipo representado pelo xingamento racista reflete a 50 trajetória dessa relação: Eu sei... até porque eu tenho um aluno à tarde que eu chamei para conversar. E eu não sabia que isso machucava tanto porque... foi até o meu aluno Pablo... Ele falou com os olhos cheios d’ água: Ah, professora, eu bati nele porque ele me chamou de macaco e eu não gostei. Aí eu conversei com a turma, que as pessoas nascem e são diferentes fisicamente, mais claras, mas escuras, com a pele assim, assada. Mas que isso não quer dizer que ela seja melhor ou pior. Eu conversei e conversei sobre tudo isso, sobre as diferenças e a importância do respeito, de ter que respeitar o outro acima de qualquer coisa. Seja homem, mulher, criança, idoso, tem que se respeitar, se dar o respeito e respeitar o outro... (ANETE, entrevista individual, 22/03/2005, p. 4, grifo meu). A ação da professora, estabelecendo o diálogo com a turma aponta as possibilidades ampliadas no cotidiano, pois essa mesma professora, meses antes, dissera não problematizar algumas questões para não aumentar o preconceito. O que lhe permitiu essa mudança de postura? Talvez possamos levantar algumas hipóteses, entre elas que as interações das práticas cotidianas fizeram parte dessa dinâmica de se fazer a cada dia na relação com tantos outros. Falarei, agora, de algumas dessas práticas desenvolvidas com as turmas: murais, oficinas e dinâmicas realizadas, bem como as intervenções advindas dessas atividades. Os murais ocupam um lugar de destaque na escola. Existem no espaço externo das salas de aula seis murais, sendo um na entrada da escola e os outros cinco distribuídos nas paredes, nos espaços entre as salas de aula. O primeiro mural é de organização da ETPA22 e os demais são de uso das turmas numa escala semanal. São artefatos nos quais se observa a forma como os referenciais imagéticos se apresentam no contexto da escola, sejam como espaço de exposição de atividades propostas pelas professoras em sala de aula, seja como lugar de exposição de visões de mundo e de sujeitos da equipe escolar. São alguns desses trabalhos que comento a seguir. Explorando o tema família _ Será que todas as famílias são formadas do mesmo jeito? Por quê? (...) (Profª Anete) _ O que faz um grupo de pessoas ser uma família? (...) _ Porque nem todas as famílias são iguais? _ Porque a minha família tem a minha avó e a dele não (Jô); _ Porque meu pai não mora com a gente, então não é da minha família (Tony); _ Porque umas são grandonas e outras pequenas... Por que uma tem pai e outra não, 22 (Equipe Técnico - Pedagógica e Administrativa) 51 como a da Mirella que o pai foi embora (Júnior); _ Mas quem ‘tá’ longe também não é da família, tia? _O que é que vocês acham? (Profª Anete) _ Acho que é... ah, eu acho que sim. (Carlos) _ Não, tem que tá junto. (Luci) _ Meu pai tá lá em outro lugar e é meu pai, é da minha família. _ O meu tá longe, mas não é da família. Ele nem liga prá gente... (Pablo). _ (...) _ É tia. Eu sei de uma... Tem a Tatá, da minha rua. A mãe dela, de verdade morreu e o pai era traficante lá no morro. Aí a vó dela deu ela quando era novinha para a mãe e o pai dela de agora. _ Pois é, então: tem várias formas de família... Como nós podemos ver nos trabalhos de vocês. Tem famílias grandes, pequenas, com mãe, com pai, com avós, com tios, muitas formas e todas muito boas. Nós temos que aprender a amar todas elas, gostar, seajudar, isso sim que é importante. Isso que faz das pessoas que se juntam para viver, uma família; certo? (Profª Anete). (Turma da Profª Anete, DC23, abril de 2005, p. 149) Este foi um trabalho com o tema família a partir da exploração dos desenhos das famílias realizados pelas crianças de educação infantil/1º ano do ciclo. Um debate se estabeleceu durante a exploração coletiva do cartaz com os trabalhos, levando as crianças a refletirem sobre as diversas organizações familiares de uma forma bem contextualizada. A condução da professora foi bastante sensível em relação à questão, apontando para as diversas perspectivas colocadas pela vivência. A cor da ternura: como se define a beleza... _ E então, o que vocês estão vendo? _ Um menino e uma menina. _ E como são esse menino e essa menina. Como é o menino? _ Pequeno...Bonito...Tá com a mãe. _ E a menina? Como ela é? _ Parece com ela? (...) Com a Raíssa... É a irmã dela. Ela é pretinha... _ Ela é morena, assim. Não é pretinha que se diz. _ Bonita? _ Hum... Mais ou menos... Ela tá brincando com o menino. _ E as mães deles, o que estão fazendo? _ Tão procurando eles...(...) 23 Diário de Campo. 52 _ E como elas estão? _ Muito brabas! _ Essa tá muito feia! (Refere-se à mãe da menina). (Raiane) _ Por que ela tá feia? _ Porque ela é feia! Tem uma cara assim e um cabelo feio! (Faz uma careta!). (Raiane) (Turma da Profª Anete, DC, maio de 2005, p. 157). O diálogo estabelecido durante a atividade aponta como desde muito pequenas as crianças desenvolvem nas relações cotidianas juízos de valor referentes às identidades e seus repertórios culturais, mesmo que não consigam ainda expressar um discurso argumentativo em relação a esses juízos. Raiane aprendeu muito cedo o padrão de beleza da sociedade onde nasceu. E esse padrão culturalmente transmitido via mídia, relações cotidianas, literatura, etc. se constitui em repertório das identidades vividas. Ou, seja, essas relações e artefatos se tornam referenciais da dinâmica social de construção identitária. Em se tratando das identidades afrodescendentes, a forma como este sentido estésico24 é atribuído aos referenciais de base africana, por ação ou omissão, se traduz em negativização da própria identidade da criança e conseqüentemente em prejuízo para sua auto-estima. Noutra atividade (Como se define beleza 2) realizada agora com gravuras de revistas, com imagens de pessoas de sexo, idade e etnias diferentes, as crianças deveriam escolher imagens para representar diferentes referenciais de beleza, inteligência, feiúra, maldade e bondade. Foi desenvolvida uma entrevista coletiva a partir dessas atividades. A atividade levou a percepção de como a imagem da pessoa negra ainda se encontra negativizada nas mentalidades das pessoas, tanto negras como não negras, pois a maioria das crianças atribui as características positivas às pessoas brancas. Apesar disso, um diálogo registrado durante a realização do trabalho aponta como isso pode ser modificado pela escola não só com a ampliação da valorização efetiva da diversidade étnica em imagens de livros, vídeos, revistas, mas também com a valorização dos sujeitos concretos dessa diversidade através da valorização de profissionais, crianças e seus familiares, como referenciais positivados na ação pedagógica. _ Essa aqui parece inteligente... _ Ela também é bonita. _ Pode ser sabida! Bonita não! Ela é assim... _ Acho ela bonita! Ela parece com tia Mabel. E a tia Mabel é bonita! _ Mas essa outra 24 Segundo Sodré (1983), a questão do racismo brasileiro, direcionado aos afrodescendentes, não se vincula apenas ao estético (físico), mas se concentra em um sentido estésico, vinculado ao sentido negativo atribuído a tudo que tem relação com a África. O que ilustra nossa percepção do sentido de cultura menor, de conhecimentos menores, atribuídos aos repertórios afrodescendentes. 53 já é bonita! Ela pode ser elegante! (Turma da Profª Anete, DC, nov. 2004, p. 127 ) O diálogo transcrito indica que ainda há uma tendência de se relacionar as qualidades mais valorizadas às pessoas brancas e, por conseguinte, se atribuir características de menor valor social às pessoas vistas como afrodescendentes. Mas também indicam a importância de se ter referenciais presenciais para que, na interação e reflexão, as crianças aprendam a valorizar essa diversidade da qual fazem parte, pois a presença da professora Mabel como referencial de competência e de um lugar social hierarquicamente valorizado, sendo negra, parece levar as crianças a questionarem esse lugar que se naturalizou como lugar de negro(a). A realidade do corpo profissional da escola também é uma imagem a ser lida pelos sujeitos no dia-a-dia das relações. “Pintando como na África” foi uma atividade desenvolvida em 24 de novembro de 2004, na oficina com as crianças de cinco e seis anos. A Profª da sala de leitura trabalhou o livro Bruna e a Galinha d’Angola, de Gercilga de Almeida. O livro é apresentado como “uma homenagem às raízes negras do Brasil” e através de um pano colorido trazido da África pela avó de Bruna, narra-se uma lenda africana que envolve uma menina e a Galinha d’Angola Conquém. Além da referência positiva à África e às artes e características afrodescendentes brasileiras presentes nas imagens, permite trabalhar com a questão das relações entre as pessoas, da solidão, muitas vezes gerada pelo preconceito e da amizade como algo a ser construído. As gravuras são bem definidas e o texto é leve, curto e com linguagem simples. A profª contou a história de forma bem interativa, com adivinhações sobre os personagens e fatos da história. Ela conversou com as crianças sobre coisas da África a partir da história e em seguida a turma confeccionou um painel em guache denominado “Pintando como na África” e este foi exposto no corredor. Esse trabalho aponta que as crianças nascem abertas à diversidade, sem preconceitos, e vão aprendendo-os nas relações sociais das quais participam desde o nascimento. Essa aprendizagem se dá tanto pelas linguagens faladas e escritas, como visuais, musicais, corporais, etc, sendo que é através dessas linguagens que aprendemos a dar sentido às coisas e a nós mesmos. Estes artefatos são instrumentos didáticos das práticas cotidianas da escola. Assim, se a escola oferece à criança um ambiente que expresse o respeito e a valorização das características e referências ligadas aos diversos sujeitos do seu contexto, cumprirá seu papel de formação para a diversidade. Um dos instrumentos desse ambiente é o acervo de literatura infantil. Como indicam Lima (2001) e Andrade (2001), os personagens e valores presentes na literatura infantil se tornam referências para o fortalecimento da auto-estima da criança, influindo, portanto, na constituição de sua identidade. Considerando-se que a literatura, bem como os demais artefatos didático- pedagógicos são instrumentos de efetivação do currículo em processo, na escola, 54 considero a pertinência de pensar, também, em como essas práticas compõem o currículo, tendo os sujeitos e suas identidades como elementos que fazem parte desse contexto, já que, como disse Silva (2004, p. 150), o currículo é lugar, espaço, território. O currículo é relação de poder. O currículo é trajetória, viagem, percurso. O currículo autobiografia, nossa vida, curriculum vitae: no currículo se forja nossa identidade. O currículo é texto, discurso, documento. O currículo é documento de identidade. Pensando no papel do currículo na vida dos sujeitos aos quais a escola se compromete em formar, penso no papel desse currículo real, instituído a partir das ações cotidianas das relações entre profissionais e educandos, numa interação com as práticas didáticas, que se concretizam a partir de escolhas, escolhas que se constroem no dia-a-dia, na dinâmica do exercício do olhar sobre a sociedade, os conhecimentos e, principalmente, sobre os sujeitos desse mundo chamado cotidiano escolar. Algumas considerações Os depoimentos evidenciam a importância do diálogo entre os sujeitos do contextopedagógico para potencialização e transformação das práticas, uma transformação que tem como ponto de partida a demanda da comunidade escolar a partir da interação com essa comunidade, da escuta para as suas necessidades. Essas necessidades e essa escuta ficam explícitas na referência da Profª Pâmela à mudança de postura das crianças em decorrência das práticas em sala de aula e na fala da Professora Rosa sobre as interações na turma. Acontecimentos inicialmente invisíveis, desconsiderados e, posteriormente, visibilizados com o diálogo. É esse caminhar que possibilita novas ações. Finalizando, compartilho a mensagem da Abayomi sobre as possibilidades do cotidiano a partir da ação dos seus sujeitos. Como sujeito principal dessa mediação, a professora, mas, também, como protagonistas, essas crianças que estão no dia-a-dia, agindo, pensando, criando... Enfim, vivenciando essas práticas: Tem que ensinar para o colega que não pode fazer isso. Ninguém é melhor ou pior por ser branco ou ser preto. As pessoas são diferentes. Todas as cores são bonitas, todas as pessoas são boas ou ruins e às vezes é boa numa hora e faz uma coisa errada depois. Tem que ensinar isso, tem que perguntar se ele gostaria que as pessoas implicassem com ele. (...) E também pode trazer coisas dos negros para a gente aprender, porque todo mundo acha que só precisa aprender coisas dos brancos. E o negro tem muita 55 coisa também. (Abayomi, DC, 10 nov. 04, p. 118). Como Abayomi, acredito na força da reflexão e das práticas como caminhos capazes de propiciar o aprender para o respeito à diversidade, para a formação de crianças e adultos que vejam o ser humano como ser digno e respeitado em todas as suas diferenças, em sua humanidade similar e características singulares. Referências bibliográficas ALMEIDA, Gecilda de. Bruna e a Galinha d´ Angola. Rio de Janeiro: Pallas, 2003. ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Construindo a auto-estima da criança negra. In: MUNANGA, Kabengele. Superando o racismo na escola. Brasília-DF: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Fundamental, 2001. APIAH, Kwame. Na Casa do Meu Pai: A África na filosofia da cultura. 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Cadernos de Pesquisa, nº 93, 1995. 59 II PARTE REFLEXÕES E RELATOS 60 61 O historiador italiano Carlo Ginzburg, em sua obra Mitos, Emblemas, Sinais: morfologia e história, mais precisamente no capítulo denominado de “Sinais: raízes de um paradigma indiciário”, descreve um modelo de pesquisa que denomina de indiciário. Este paradigma tem como característica principal a observação, o levantamento e a interpretação de dados normalmente negligenciados por um pesquisador que leva somente em consideração os fatos mais facilmente observáveis (GINZBURG, 1991). Foi com o auxílio destes procedimentos metodológicos, ou seja, com a observação de pormenores, a identificação de indícios, o questionamento dos silêncios e o estabelecimento de relações entre os acontecimentos aparentemente irrelevantes, que o historiador italiano conseguiu construir a biografia de um moleiro chamado Menocchio e revelou importantes aspectos da cultura européia do início da Idade Moderna (GINZBURG, 1998). Este método foi sendo aperfeiçoado durante algum tempo e foi utilizado na pintura, na semiótica, na filologia e em outras ciências humanas. Atualmente, principalmente a partir do modelo proposto por Ginzburg, o método indiciário é bastante utilizado pelos seguidores da chamada História Cultural. De acordo com a sua gênese e constituição, defendo que é possível aplicá-lo em outros campos do conhecimento, como, por exemplo, no campo da didática ou da prática de ensino mais gerais. Este método é fundamental aos professores de História, para que aprendam a observar os pormenores, identificar os indícios, coletar os resíduos, perceber os gestos, questionar os silêncios e “desnaturalizar” o convencional. Mais especificamente, podemos relacionar tais estratégias ao ensino da História da África e da cultura afro-brasileira no ambiente escolar, por exemplo. Neste caso, o “método indiciário” também é utilizado aqui como uma lente que disciplina o “olhar” do educador sobre o ensino da cultura afro-brasileira. Segundo Carlo Ginzburg, “ninguém aprende o ofício de conhecedor ou de diagnosticador limitando-se a pôr em prática regras preexistentes. Nesse tipo de conhecimento entram em jogo (diz-se normalmente) elementos imponderáveis: faro, golpe de vista, intuição” (1991). Neste sentido, se compreendermos a sala de aula enquanto um ambiente em que os atores se apropriam, produzem e fazem circular A cultura afro-brasileira na escola através de projeto: limites e possibilidades Marcelo Santos25 25 Aluno do curso UNIAFRO, 2006. Professor de história no ensino básico. 62 conhecimentos sobre a cultura afro-brasileira, as situações não previstas nos textos normativos podem ser identificadas pelo “faro” do professor e utilizadas para que, dentre outras coisas, ele reflita sobre sua prática pedagógica. “A escola não é o lugar da rotina e da coação e o professor não é agente de uma didática que lhe seria imposta de fora” (JULIA, 2001, p. 33). Historicamente as ações do Estado voltadas para a escolarização da população negra foram insatisfatórias. “Não é preciso muito esforço para constatar a precariedade da situação educacional desse segmento étnico”26. Da mesma forma é fácil constatar que a discriminação racial e social sofrida por negros e negras é uma das características do Estado brasileiro. Neste texto, dispensamos a utilização de tabelas e gráficos que apontam a situação desigual em que vive a maioria dos afro-descendentes no Brasil27. Para combater as desigualdades étnicas e sociais no Brasil, existe uma série de dispositivos normativos que recomendam ou determinam de forma direta ou indireta o ensino de história da África e da cultura afro-brasileira. A Constituição Federal de 1988, as Leis de Diretrizes e Bases da Educação, os Parâmetros Curriculares Nacionais e a Lei 10.639/03, são alguns dos exemplos. A Constituição do Brasil, no seu artigo 242, inciso primeiro, determina que “o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro”28. A LDB no artigo 26, inciso quatro, estabelece que “O ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro, especialmente das matrizes indígena, africana e européia”29. Finalmente a lei 10.639/03, no seu artigo 26-A, torna obrigatório o ensino de história da África e cultura afro-brasileira30. Os dispositivos normativos elencados não surtiram, até o momento, os efeitos desejados pelo poder público, isto porque “no momento em que uma nova diretriz redefine as finalidades atribuídas ao esforço coletivo, os antigos valores não são, no entanto, eliminados como por milagre, as antigas visões não são apagadas, novas 26 Apesar da existência de algumas iniciativas do Estado no sentido de promover a escolarização da população negra, no geral, elas foram, durante o Império e boa parte da República, insatisfatórias , levando alguns setores da sociedade a suprir parte das deficiência no setor. Ver: GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. Negros e Educação no Brasil. In: LOPES, Eliane Marta e GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. p.325-346 27 Diversos são as instituições que constam a presença do preconceito étnico ou racial no Brasil. O IBGE, é uma dessa instituições. 28 OLIVEIRA, Cláudio Brandão de (org). Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2002. p.154. 29 CARNEIRO, Moacir Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva: artigo a artigo. Petrópoles: Vozes, 1998. p. 91. 30 Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira. Brasília. 2005. p 35 63 restrições somam-se simplesmente às antigas” (JULIA, 2001, p. 23). Isso significa dizer que a eficácia dos textos normativos que estabelecem a igualdade entre negros e brancos, por exemplo, é limitada pelo preconceito racial construído ao longo dos séculos na história do Brasil. Entretanto, não queremos menosprezar as ações afirmativas propostas pelo Estado brasileiro, mas, temos que observá-las enquanto provocadoras de um debate necessário em busca de soluções duradouras que, no entanto, estão na sua fase inicial. É mais fácil mudar as leis do que modificar práticas culturais. A escola, segundo a legislação educacional, tem um papel fundamental no combate aos vários tipos de preconceito e na formação dos cidadãos. Seguindo essa orientação e com o propósito de promover a valorização da cultura afro-brasileira, realizamos o projeto “I mostra da cultura afro-brasileira do colégio Izabel Siqueira”, no mês de novembro de 2006. A execução das etapas deste projeto evidenciou, como veremos adiante, uma série de questões e de “indícios” que nos forçou a refletir com maior profundidade sobre a problemática do ensino da cultura afro-brasileira. A “Escola Municipal Izabel Siqueira Santos” está situada no Povoado Bomfim, município de Divina Pastora, estado de Sergipe, e atende aos alunos do EnsinoFundamental. Em média as turmas têm 25 alunos. O projeto teve como público prioritário as turmas entre 5ª e 8ª séries. Situada na Bacia do rio Cotingüiba, que outrora desenvolveu intensa atividade de plantação de cana-de-açúcar, baseada no trabalho escravo (DINIZ, 1991), Divina Pastora é carente de estudos sobre a sua história cultural. Sendo assim, são louváveis todas as ações que iluminem parte da história cultural de seu povo, principalmente dos homens e mulheres negras, descendentes dos escravos que trabalharam nos canaviais e engenhos deste município. Vejamos algumas situações interessantes que ocorreram durante a execução do projeto e que ilustram os dilemas enfrentados pelos professores ao trabalharem na “I mostra da cultura afro-brasileira da Escola Izabel Siqueira”. Com passos decididos a mãe de uma aluna se dirige à coordenadora da escola e pergunta: “por que vocês permitem que o professor de História ensine coisas do demônio aos alunos?”. Um dia depois, aparece, na mesma escola, uma senhora negra com uma criança no colo, solicitando a um filho–de-santo uma reza, que aliviasse o sofrimento de sua netinha. Dias antes, o professor de Português narra a dificuldade de encontrar uma aluna que interpretasse a personagem “Pretinha” e alunos que interpretassem o papel de escravos na peça “Escrava Isaura”. Em outro momento, numa sala de aula, ao expormos a necessidade de conhecermos a cultura afro-brasileira, um aluno afirmou que não era negro e sim “moreninho”, portanto, alegava que a discussão não lhe interessava. A partir das situações elencadas no parágrafo anterior, é possível levantarmos 64 uma série de questões: 1) Quais foram as “coisas” ensinadas pelo professor que causaram uma situação de reprovação da mãe de uma aluna? 2) O que chamou a atenção de uma avó na escola? 3) Por que alguns alunos se negaram a representarem determinados personagens numa atividade escolar? 4) Por que a recusa do aluno em assumir uma identificação negra? Antes de esboçarmos respostas para as questões formuladas, descreveremos as fases de elaboração do projeto e sua execução. Nas nossas aulas, eu, que sou professor de História da escola em questão, e o professor de Língua Portuguesa observamos algumas brincadeiras desagradáveis e preconceituosas de alguns alunos em relação aos colegas negros, que são a grande maioria dos que compõem a comunidade escolar. O mais grave é que muitos alunos não se reconheciam enquanto negros. Insatisfeitos, pensamos numa forma de puxar a discussão sobre o preconceito racial e tentarmos desenvolver atividades que contribuíssem para a elevação da auto-estima dos discentes. A forma encontrada foi através da realização de um projeto. Como esse projeto poderia motivar os alunos e alcançar nossos propósitos? Pensamos que a saída estava na diversificação de atividades que contemplassem e estimulassem as habilidades dos educandos. Assim, decidimos adotar como atividades: procedimentos de leitura e discussões de textos, pesquisas bibliográficas, debates, estudos dirigidos, elaboração de exposições, dramatizações, visitas técnicas e atividades relativas à dança. Dividimos o projeto em três temas e definimos as atividades que seriam desenvolvidas em cada um dos momentos. No primeiro tema intitulado “a fé: religião afro-brasileira”, priorizamos as atividades de apresentação de dança africana, candomblé, confecção de uma exposição sobre as religiões afro-brasileiras e comidas típicas afro- brasileiras. O tema seguinte foi denominado de “capoeira: luta e diversão”, aqui as atividades foram de elaboração de uma peça sobre o mestre “Pastinha” (ANSELMO e MARTINS, 1998), apresentação de grupo de capoeira, elaboração de uma maquete de um engenho, confecção de uma exposição sobre a capoeira e a história do Brasil e uma apresentação de grupos de capoeira formados por pessoas da comunidade e alunos. Finalmente, o último tema foi chamado de “Preconceito versus igualdade” e contava duas dramatizações das peças “Escrava Isaura”31 e “Pretinha”32, juntamente com algumas palestras. Sabemos que o sucesso de um projeto na escola começa pela sua elaboração. Esta deve ser feita, preferencialmente, envolvendo a comunidade escolar, partindo das suas necessidades e de acordo com o “projeto político-pedagógico” da escola. Mas, o 31 Baseada na obra A escrava Isaura, de Bernardo Guimarães. 32 Baseada no texto de Júlio Emílio Braz, Pretinha, Eu. 65 que fazer quando a escola ainda não tem seu projeto-político definido? A comunidade escolar “naturaliza o convencional”, ou seja, parece entender o preconceito como algo natural e a cultura afro-brasileira como um apêndice da cultura brasileira? Entendemos que os professores como agentes mais experientes no processo de ensino-aprendizagem devem tomar determinadas iniciativas, como identificar ou criar momentos privilegiados de estudo sobre o tema. Nesta perspectiva, os professores de História, Arte e Língua Portuguesa da escola em questão decidiram elaborar o referido projeto, definir estratégias de ação e apresentá-lo à comunidade escolar. Obviamente, ao concebermos o projeto não o fizemos de forma a colocá-lo numa “camisa de força”. Deixamos à possibilidade de modificá-lo, de acordo com os interesses dos agentes envolvidos e das condições materiais disponíveis. Pensamos o projeto em dois momentos: o da execução das atividades e da sua culminância com a Semana da Consciência Negra. O primeiro momento teve início no mês de setembro e terminou em novembro, o outro, foi realizado nos dias 21 e 22 de novembro33 com a apresentação dos trabalhos pelos envolvidos. A avaliação foi feita a cada fase do projeto com o propósito de observarmos o desenvolvimento dos alunos e definirmos as ações seguintes34. Em cada uma das fases procuramos dar atenção às “falas”, às “atitudes” e às “ausências” dos alunos ao se depararem com velhas e novas situações. Na fase inicial, da elaboração e apresentação do projeto, observamos como os diferentes agentes se apropriaram da “idéia”. Aparentemente35, os alunos, os professores e a equipe técnica ficaram entusiasmados, porém, quando da sua execução, alguns professores não realizaram determinadas atividades alegando falta de tempo, a direção fez alguns cortes de material afirmando que certos gastos eram “desnecessários”36 e 33 Pensamos como data inicial da culminância do projeto o dia 20, que iria coincidir com o Dia da Consciência Negra, mas por questões operacionais, decidimos transferir o evento para o dia seguinte. 34 O modelo de avaliação adotado foi o defendido por Cipriano Luckesi. Este defende uma avaliação denominada de “diagnóstica”. Esta consiste em “um instrumento de compreensão do estágio de aprendizagem em que se encontra o aluno, tendo em vista tomar decisões suficientes e satisfatórias para que possa avançar no seu processo de aprendizagem.”. (LUCKESI, 1995, p.81). 35 Boa parte das afirmações feitas neste texto são baseadas nas impressões do autor, ancoradas na experiência docente e nas observações diretas dos fenômenos ocorridos durante a realização do projeto, estão, dessa forma, na sua maioria, desprovidas de um rigor científico. O texto tem um caráter meramente exploratório, conseqüentemente, muitas das suas conclusões são, em sua maior parte, conjecturas. 36 Alguns cortes de material comprometeram a realização das exposições e execução de algumas atividades. Confesso que em alguns momentos chegamos a ficar desanimados, assim, compreendemos determinadas justificativas que os professores apresentam ao se recusarem a trabalhar com projetos nas escolas públicas. Às vezes, para a “coisa” funcionar, quando não é de interesse político de determinados gestores, os docentes e discentes fazem determinados sacrifícios, inclusive, apoiando financeiramente projetos e eventos da escola. Talvez, se 66 alguns alunos se negaram a executar determinadas tarefas37. Inicialmente, desenvolvemos atividades referentes às primeiras informações sobre os temas selecionados a partir da leitura de textos e debates. Os textos trabalhadosforam retirados de duas obras: 12 faces do preconceito, organizado por Jaime Pinsky (2006) e Áfricas no Brasil, de Kelly Cristina Araújo (2003). Selecionamos alguns textos e solicitamos a sua reprodução para os alunos. Claro que existem outras opções de textos próprios para o nível dos nossos leitores, mas era o que no momento estava a nossa disposição, pois nem a escola, nem o povoado têm biblioteca. Durante o projeto, após a leitura dos textos, realizamos uma visita de estudo à cidade de Laranjeiras (SE). Nosso propósito foi levar o aluno aos museus, principalmente ao Museu Afro-Brasileiro de Sergipe e a um terreiro de candomblé38. A visita foi supervisionada pelos professores, seguindo um roteiro definido a partir de uma visita que fizemos dias antes à cidade, sem os alunos. Pensamos, na ocasião, que a visita supervisionada favoreceria a compreensão dos alunos sobre a presença da cultura afro- brasileira no estado de Sergipe. Porém algumas questões deixaram de ser trabalhadas anteriormente com os alunos de forma mais esclarecedora, por exemplo, por que visitar museus? O que é patrimônio cultural? Como os patrimônios culturais referentes aos afro-descendentes são vistos? Eles existem? Para falar de patrimônio da cultura dos afro-descendentes é necessário sair do povoado?39. Estas perguntas foram formuladas quando da avaliação efetuada pelos professores e pelos alunos ao retornarmos à sala de aula. Com esse exercício, percebermos que muitos “indícios” foram dispensados, nosso “faro” não funcionou de forma adequada na ocasião. “Por que vocês permitem que o professor de História ensine coisas do demônio aos alunos?”. Esta pergunta foi feita à coordenadora da escola pela mãe de uma das alunas que se recusara a desenvolver atividades relacionadas ao candomblé, no momento em que um grupo de alunos estava ensaiando uma cerimônia específica do candomblé para ser apresentada na culminância do projeto, com o auxílio de um convidado de um terreiro de Aracaju (SE). A coordenadora explicou à senhora que aquela atividade estava inserida num compararmos as despesas que a Secretaria da Educação teve com as comemorações do Centenário da Morte do seu “filho ilustre” Fausto de Aguiar Cardoso, político sergipano e filho de senhor de engenho, com o projeto em foco, observaríamos que o primeiro evento, realizado meses, antes, teve apoio financeiro maior. 37 Neste caso, nos chamou atenção, atividades relacionadas à temática da religião afro-brasileira. Alguns afirmaram, principalmente os alunos evangélicos, que não podiam participar porque era coisas “relacionadas ao diabo”. 38 Todas as fases do projeto foram registradas através de fotografias, filmagem e documentos escritos. Estes registros estão sendo organizados. 39 A idéia de patrimônio cultural e de “lugares da memória” que concebemos aqui é baseada em Abreu e Chagas (2003); Lemos (2004); e Bittencourt (2001). 67 projeto que, dentre outras coisas, visava a proporcionar aos alunos um maior conhecimento da cultura afro-brasileira e o respeito à pluralidade cultural. A resposta foi ignorada pela mãe da aluna que se sentiu bastante incomodada com aquela situação. Após este episódio e levando em consideração os comentários de alguns alunos ao afirmarem que certos pais não permitiriam que seus filhos participassem “daquele negócio”, outros questionamentos eram levantados por nós, professores, a partir destas modalidades de dados “aparentemente irrelevantes”. Pensávamos, será que esclarecemos de forma adequada a presença da religião de matriz africana, ou seja, do candomblé, na sociedade brasileira40? Falamos sobre seu funcionamento, sua história, sua institucionalização e expansão no território sergipano? Será que se levássemos um sacristão ou um obreiro para a escola as críticas a esta atividade seriam tão fortes? Para nossa surpresa, apenas uma das alunas envolvidas na atividade se recusou, por pressão da família, a se apresentar no dia da culminância do projeto. Com o passar do tempo, diminuíram as manifestações contrárias às atividades do projeto. Certamente este foi um dos pontos que nos chamou mais atenção. Principalmente, quando uma senhora negra foi à escola, com sua neta no colo, solicitar ao filho-de-santo uma reza que diminuísse ou retirasse o sofrimento da sua netinha41. A situação acima descrita demonstra a existência de duas questões que em outra oportunidade precisam ser analisadas mais detidamente: o preconceito religioso na escola e a relação escola-família-comunidade. Agora, apresento duas outras situações que nos inquietaram. A primeira foi quando um aluno negro afirmou que era “moreninho” e que por isso não iria discutir questões relacionadas à cultura afro-brasileira. A outra foi a recusa de alguns alunos em representar personagens negros nas peças “Pretinha” e “Escrava Isaura” organizadas pelo professor de Português. Na verdade, no início ficarmos surpresos com a recusa dos alunos e nos fizemos a seguinte indagação: como é possível um aluno negro não reconhecer-se enquanto tal? De acordo com a cor da sua pele e morando num povoado erguido numa área em que outrora se concentravam muitos engenhos de açúcar e cuja mão-de-obra utilizada foi predominantemente e sabidamente a escrava, o que faz com que a criança negue ser negra? Se levarmos em consideração que os alunos estão submetidos a um tipo de cultura a qual denominamos “cultura escolar” e a concebermos enquanto “um conjunto 40 Destacamos o candomblé como um dos elementos presentes na cultura religiosa dos brasileiros, não esquecendo das irmandades negras. Estas, entretanto, não foram objetos da nossa mostra. 41 A senhora foi atendida nas suas solicitações, porém, não deixamos de esclarecer que a pessoa que estava me auxiliando, apesar de ser um filho-de-santo, estava na condição de convidado e a decisão de atendê-la ou não era inteiramente dele. Da nossa parte, apenas questionamos se a criança estava tendo um acompanhamento médico. 68 de normas que definem conhecimentos a ensinar e condutas a inculcar”, além de “um conjunto de práticas que permitem a transmissão desses conhecimentos e a incorporação desses comportamentos” (JULIA, 2001, p. 10), teremos que lembrar que a escola brasileira fez, por muito tempo, uso de estratégias e de práticas culturais preconceituosas que visavam, dentre outras coisas, desvalorizar, por vários motivos, a história e a cultura de milhões de homens e mulheres negras, aí compreenderíamos as posições da mãe da aluna, da negra com a sua netinha de colo e dos alunos que eram solicitados a representarem determinados papéis e se recusavam. A partir destas experiências, será que ainda deixamos escapar “indícios” e “fragmentos” para análise? Talvez ainda não seja possível respondermos imediatamente a algumas questões, mas certamente devemos avançar com os alunos no debate sobre o que é ser negro, sobre quais os elementos constitutivos da identidade cultural de um povo, sempre problematizando estas questões e a forma como apresentamos a cultura dos afro-descendentes na sala de aula. Cabe salientar que os questionamentos que povoaram esse texto foram formulados com maior precisão a partir de um “olhar diferenciado” que construímos nos últimos meses sobre a história da África e da cultura afro-brasileira. Parte da percepção que tivemos sobre estes temas podem ser atribuídas às discussões, aos debates e às leituras de textos realizados durante o curso de aperfeiçoamento em “Estudos africanos, história e cultura afro-brasileira”, oferecido pelo NEAB/UFS, em 2006. A partir daí foi que começamos a pensar de maneira crítica sobre como apresentamos a história da África e dos afro-descendentes aos nossos alunos. Que África é esta? À qual cultura afro-brasileira estamos nos referindo? O que é ser negro no Brasil, em Sergipe e no Povoado Bonfim? Na nossa perspectiva, as respostas para estas e outras questões poderão ser encontradas quando entendermos a importância de o professor procurar compreender a pluralidade cultural e a diversidade étnica existentes naÁfrica e no Brasil. De qualquer forma, o trabalho com projetos é uma das estratégias das quais os professores podem lançar-se mão para o trabalho no manejo com conteúdo de história e cultura afro-brasileiras. Por último, vale dizer que poderíamos ter avançado em outros aspectos. Entre eles, por que não ter solicitado aos alunos a produção de uma História em Quadrinhos a partir dos temas discutidos? Por que não ter incentivado nossos alunos a recolher depoimentos de pessoas idosas negras? Qual o motivo de não termos solicitado aos alunos a elaboração de uma pesquisa sobre o preconceito racial e a situação sócio cultural dos afro-descendentes moradores do povoado, podendo comparar os resultados com pesquisas feitas nas esferas municipal, estadual e federal? Tais questões só emergiram após a conclusão do projeto e apontam para outras possibilidades de trabalho, demonstrando como a prática pedagógica através do projeto tem um caráter crítico, 69 dinâmico e auto-renovador. Referências bibliográficas ABREU, Regina, CHAGAS, Mário (Orgs.). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos. Rio de Janeiro: DP&A, 2003. ANSELMO, Robson, MARTINS, Robson. Capoeira Angola. Aracaju: Textopronto. 1998. ARAÚJO, Kelly Cristina. Áfricas no Brasil. São Paulo: SCIPIONE, 2003. BITTENCOURT, Circe (org.). O Saber Histórico na Sala de Aula. São Paulo: Contexto, 2001. DINIZ, Diana Maria de Faro Leal (coord). Textos para a História de Sergipe. Aracaju: Universidade federal de Sergipe/Banese, 1991. CARNEIRO, Moacir Alves. LDB fácil: leitura crítico-compreensiva: artigo a artigo. Petrópolis: Vozes, 1998. GINZBURG, Carlo. Mitos, Emblemas, Sinais: Morfologia e História. São Paulo: Companhia das Letras, 1991. _________________. O queijo e os Vermes: O cotidiano e as idéias de um moleiro perseguido pela Inquisição. São Paulo: Companhia das Letras, 1998. GONÇALVES, Luiz Alberto Oliveira. Negros e Educação no Brasil. In: LOPES, Eliane Marta e GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. História da Educação. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. JULIA, Dominique. A Cultura Escolar como Objeto Histórico. In: Revista Brasileira de História da Educação. Campinas: Editora Autores Associados, 2001. LEMOS, Carlos A. O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 2004. LUCKESI, Cipriano Carlos. Avaliação da aprendizagem escolar. São Paulo: Cortez. 1995. OLIVEIRA, Cláudio Brandão de (org). Constituição da República Federativa do Brasil. Rio de Janeiro: Roma Victor, 2002. PINSKY, Jaime (org.). 12 faces do preconceito. São Paulo: Contexto, 2006. 70 71 A Lei Federal 10.639, de 09 de janeiro de 2003, busca preencher um vazio dentro do ambiente escolar, no que se refere ao estudo da história e da cultura afro-brasileira, delegando aos programas curriculares das áreas de educação artística, literatura e história do Brasil uma especial atenção ao tema, muito embora esta abordagem deva estar presente em todo o currículo da escola. Os Parâmetros Curriculares Nacionais, em especial o que trata da “Pluralidade Cultural” de 1ª a 4ª série do ensino fundamental (p. 20), destacam que: Historicamente, registra-se dificuldade para se lidar com a temática do preconceito e da discriminação racial/étnica. O País evitou o tema por muito tempo, sendo marcado por “mitos” que veicularam uma imagem de um Brasil homogêneo, sem diferenças, ou, em outra hipótese, promotor de uma suposta “democracia racial”. Os estudos sobre a África, a história e a cultura das populações afro-brasileiras começaram a fazer parte da prática escolar ainda de forma tímida, pois, mesmo com toda a modificação na legislação, necessita-se muito mais de uma mudança do olhar do professor sobre a questão, até então secularmente corroído. É preciso a compreensão de que todo o processo de transformação do currículo a partir da Lei 10.639/03 não é apenas uma tentativa de incluir a cultura e a história afro-brasileira numa sociedade que há muito tempo as excluiu, mas sim estabelecer no processo educativo as heranças culturais e a diversidade étnica da cultura brasileira, possibilitando o diálogo e a participação de todos que a compõem, sem distinções, promovendo os princípios da dignidade, do respeito mútuo e da justiça social. Além do papel do professor, outro ponto crucial, que nos chama a atenção e merece todo um processo de análise sobre a aplicabilidade da Lei Federal 10.639/03, é o livro didático, pois este: [...] é um importante veículo portador de um sistema de valores, de uma ideologia, de uma cultura. Várias pesquisas demonstraram como textos e ilustrações de obras O passado que teima em ser presente: uma abordagem sobre o livro didático no trato da questão quilombola Edmilson Suassuna da Silva42 42 Graduando em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Sergipe e monitor, em 2006, do curso de aperfeiçoamento em estudos africanos, história e cultura afro-brasileira, NEAB/ UFS. 72 didáticas transmitem estereótipos e valores dos grupos dominantes, generalizando temas, como família, criança, etnia, de acordo com os preceitos da sociedade branca [...] (BITTENCOURT, 1997, p. 72). É necessária uma verdadeira revisão conceitual dos livros didáticos que, em geral, relegaram o papel da cultura afro-brasileira e da própria história da África à condição de meras citações ou às comparações estereotipadas quando retratam a fome e a miséria. Muito se avançou, mas é importante também que os autores responsáveis pelas obras didáticas, além dos professores, estejam atentos a toda a discussão atual sobre a questão para que não estejam transmitindo noções engessadas, transferindo o problema não mais, apenas, para o ínfimo espaço dedicado à África e aos estudos afro-brasileiros, mas, também, para como estes aparecem, pois sabemos que as distorções conceituais podem levar às novas formas de discriminação e preconceitos. Sob este aspecto, esta abordagem analisará quatro coleções produzidas depois da Lei 10639/03 e destinadas aos estudantes da 1ª a 4ª série do ensino fundamental, especialmente sobre uma questão atual: as comunidades remanescentes quilombolas. Levaremos em consideração o emprego da Lei em questão, o que dizem os Parâmetros Curriculares Nacionais referentes à pluralidade cultural e ao ensino de história e geografia da 1ª a 4ª série do ensino fundamental e às discussões atuais sobre os remanescentes de quilombos. Remanescentes de quilombos Os quilombos eram considerados pelo rei de Portugal, em resposta à consulta do Conselho Ultramarino, em 1740, como “toda a habitação de negros fugidos que passem de cinco, em parte despovoada, ainda que não tenham ranchos levantados nem se achem pilões neles.” (MOURA, 1987, p. 11). Esta visão de quilombo ou quilombola vigorou por quase três séculos, porém ainda hoje encontramos esta mesma visão sobre o conceito, arraigada no senso comum e em algumas esferas da sociedade, inclusive entre aqueles desavisados autores de livros didáticos. Talvez, por isto, cause estranheza para muitas pessoas, quando os conceitos re-significados de “população quilombola” ou “remanescentes de quilombos” tornam a aparecer nos dias atuais, depois de cem anos da abolição da escravatura no Brasil. É preciso entender que agora o conceito carrega outros significados e é importante que se esclareça por quê. A discussão (re)surgiu quando este tema foi inserido na política pública brasileira com a promulgação da Constituição Federal de 1988, que no seu Art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias diz que “aos remanescentes das comunidades 73 dos quilombos que estejam ocupando suas terras é reconhecida à propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os respectivos títulos”. No intuito de nortear e orientar o conceito de “comunidade remanescente de quilombo”, dirimindo confusões e imprecisões quando o conceito histórico de quilombo é utilizado normativamente da mesma forma que o era nos tempos da escravidão, a Associação Brasileira de Antropologia, em 1994, emitiu o seguinte parecer: Contemporaneamente, portanto, o termo não se refere aresíduos ou resquícios arqueológicos de ocupação temporal ou de comprovação biológica. Também não se trata de grupos isolados ou de uma população estritamente homogênea. Da mesma forma nem sempre foram constituídos a partir de movimentos insurrecionais ou rebelados, mas, sobretudo, consistem em grupos que desenvolveram práticas de resistência na manutenção e reprodução de seus modos de vida característicos num determinado lugar.43 O novo conceito de comunidade quilombola passou a referir-se à população e terras remanescentes de quilombos utilizadas para fins econômicos e culturais, inclusive espaços para fins religiosos e sítios arqueológicos, onde o conceito será atribuído a partir de reconhecimento auferido pela própria comunidade, que auto-reconhece sua condição quilombola. Em 20 de novembro de 2003, entrou em vigor o Decreto Federal n.° 4.887/03, que estabeleceu as novas regras para titulação de terras quilombolas, constituindo os procedimentos para identificação, reconhecimento, delimitação, demarcação das terras ocupadas por remanescentes das comunidades dos quilombos, de que trata o Art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Fruto de uma série de reivindicações antigas por parte da sociedade civil, este decreto instituiu, segundo o Diagnóstico Sócio-econômico-cultural das Comunidades Remanescentes de Quilombos (2004), um novo “caráter fundiário, dando ênfase à cultura, à memória, à história e a territorialidade, uma inovação no Brasil qual seja o reconhecimento do Direito Étnico”. Ou seja, para a comunidade quilombola a questão da terra está implicada por aspectos culturais e históricos, diferentemente da questão da terra para reforma agrária, com significados exclusivamente econômicos. Outro ponto importante trata da questão do auto-reconhecimento da comunidade como quilombola. O §1°, do Art. 2°, do Decreto Federal n.° 4.887/03 estabelece que “para fins deste Decreto, a caracterização dos remanescentes das comunidades dos quilombos será atestada mediante autodefinição da própria 43 Disponível em: <http://www.cpisp.org.br/comunidades/html/oque/ home_oque.html+quilombola+conceito&hl=pt-BR>. Acesso em: 01.set.06. 74 comunidade”. Através deste procedimento evita-se a elaboração do laudo antropológico, que somente será constituído em caso de contestação judicial da condição quilombola da comunidade. A questão quilombola nos livros didáticos Nesta abordagem sobre o livro didático de 1ª a 4ª série do ensino fundamental e os conceitos de comunidades quilombolas, selecionamos quatro coleções da disciplina de história, de duas grandes editoras brasileiras: Pensar e viver e Vivência e construção, da Editora Ática, Marcha criança e Agora eu sei!, da Editora Scipione. Algumas características são comuns em todas as coleções, como a abordagem da questão quilombola que está mais marcante entre os livros da 3ª e 4ª séries e o destaque ao Quilombo dos Palmares quando se trata da resistência ao escravismo. O livro da 3ª série da coleção Marcha criança traz uma exposição retirada da Revista Recreio sobre o que foram os quilombos. Muitos escravos que fugiam de seus senhores escondiam-se nas matas. Ali, fundavam quilombos (povoações, na língua banto). O maior e mais importante deles foi o Quilombo dos Palmares. Foi lá que nasceu Zumbi, o último líder do quilombo. Palmares ficava no atual estado de Alagoas e chegou a reunir cerca de 30 mil pessoas. Resistiu por mais de 100 anos a várias tentativas de destruição. Começou a ser formado no final de 1590 e só foi derrotado em 1694. (MARSICO, 2005, p.99). Esta visão arqueológica de remanescentes quilombolas prevalece até hoje e não devemos nos assustar quando estivermos tratando do assunto e alguém nos disser que eles existem hoje da mesma forma como se apresentavam no passado ou apenas com pequenas modificações. O próprio livro da 4ª série, da mesma coleção, coloca que: Os negros foram escravizados no Brasil pos mais de 300 anos. Durante esse período, eles lutaram muito contra a escravidão. Muitos fugiram das fazendas de café no Nordeste e formaram esconderijos chamados de quilombos. O nome quilombo é originário do idioma banto e significa acampamento, local escondido, conjunto de povoações em que se abrigavam escravos fugidos. Existiram quilombos em vários lugares do Brasil e, ainda hoje, há remanescentes dessas povoações. (MARSICO, 2005, p. 47) É justamente a última frase que resume todo o estereótipo que recai atualmente sobre as comunidades remanescentes de quilombos, quando se afirma que “ainda hoje, 75 há remanescentes dessas povoações”. Voltando à 3ª série, da mesma coleção, os autores prosseguem: Atualmente, cerca de 45% da população brasileira é de descendência africana. Desde o início da escravidão até 1888, quando ela foi abolida, os negros sempre tentaram resistir ao trabalho forçado e formar quilombos. Ainda hoje existem, em quase todo o Brasil, comunidades formadas por descendentes dos antigos habitantes dos quilombos. De acordo com a Lei, elas têm direto às terras que ocupam; no entanto, sofrem ameaças freqüentes de empresas interessadas em explorar os recursos naturais dessas terras (MARSICO, 2005, p. 103). Os autores demonstram um conhecimento incompleto da atual questão quilombola e falham quando tentam levar ao aluno uma visão exclusiva do passado sobre assunto. A própria atividade proposta no final da última citação recai na condução de uma atividade de pesquisa sobre os quilombos na época da escravidão, para ratificar ainda mais esta visão problemática. Em nenhum momento, nesta coleção, encontramos um conceito atual de comunidades remanescentes de quilombos, conforme o parecer da ABA, citado anteriormente. Na coleção Vivência e construção o problema é pouco abordado, porém com indicações mais atuais sobre as comunidades quilombolas do presente, principalmente no livro da 4ª série da referida coleção, no qual os autores sugerem ao professor que: Promova um debate sobre as condições de vida nos engenhos de açúcar para que os alunos compreendam as fugas e a organização dos quilombos como forma de resistência ao trabalho escravo. A atividade favorece um momento importante para trazer o debate sobre o tema para os dias de hoje. (VESENTINI, 2005, p. 64) Os autores poderiam propor uma abordagem mais clara sobre como seria este “debate para os dias de hoje”, pois são muitos os exemplos de abordagens sobre os quilombos na época da escravidão, ao longo dos livros da coleção, faltando indicativos para o professor de que esta questão sofreu mudanças conceituais ao longo do tempo. Pelo menos que se destaque em algum momento que atualmente se tem uma nova visão sobre o que vem a ser uma comunidade quilombola. Na coleção Agora eu sei!, dos mesmos autores da coleção Marcha criança, não encontramos nenhuma abordagem sobre remanescentes de quilombos, já que o tema não foi colocado nos livros da referida coleção, detendo-se apenas numa breve citação sobre o Quilombo dos Palmares. Neste procedimento de análise dos livros didáticos, o destaque ficou por conta 76 da coleção Pensar e viver, que aborda o conceito de remanescente quilombola mais próximo das reflexões sobre o conceito na atualidade, principalmente no livro apresentado para a 3ª série. Você sabia que existem comunidades negras em nosso país que tiveram origem em quilombos? São as “comunidades quilombolas”. Geralmente seus habitantes descendem dos escravos que ali viveram. Hoje as comunidades quilombolas estão presentes em diversos estados brasileiros, como Bahia, Pernambuco, Santa Catarina e São Paulo. Os quilombolas lutam pelo reconhecimento de sua história, pela posse legal de suas terras e por melhores condições de vida. (CHIANCA, 2006, p. 50). Os autores ainda prosseguem sugerindo ao professor atividades sobre os remanescentes quilombolas, indicam sites da internet que tratam sobre a questão, apontam o Art. 68, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e alertam para a nova definição de remanescentes dos quilombos como “grupos sociaiscuja identidade étnica distingue do restante da sociedade” (CHIANCA, 2006, p. 50). Embora percebamos que os livros didáticos ainda avancem timidamente sobre a questão, é importante o fato de que, pelo menos naqueles livros analisados aqui, se registram a existência das comunidades quilombolas, faltando-lhes obviamente um cuidado maior acerca de uma conceituação mais atual e ampla do que vem a ser uma comunidade remanescente de quilombo e não apenas o uso do conceito com base numa réplica mal-feita do passado. Reflexões O importante nesta abordagem é ficar claro para o leitor que muito embora os livros didáticos aparentem contemplar a Lei Federal 10.639/03, é importante um olhar apurado sobre as questões atuais que envolvem o tema. Para isso, é fundamental a análise das propostas contidas nos livros didáticos, pois uma visão deturpada da realidade pode trazer conseqüências futuras irremediáveis e perversas, inclusive despertando novos preconceitos e formas de discriminação. O fato de os livros didáticos, desde 2003, estarem mais atentos às questões da história dos africanos no Brasil, história da África e cultura afro-brasileira, não significa que eles tenham absorvido as principais discussões contemporâneas sobre o assunto. Conforme estabelecem os Parâmetros Curriculares Nacionais, para história e geografia do ensino fundamental (p. 31): A escolha metodológica representa a possibilidade de orientar trabalhos com a 77 realidade presente, relacionando-a e comparando-a com momentos significativos do passado. Didaticamente, as relações e as comparações entre o presente e o passado permitem uma compreensão da realidade numa dimensão histórica, que extrapola as explicações sustentadas apenas no passado ou só no presente imediato. O principal propósito aqui foi alertar aos professores que, assim como a questão quilombola, outros conteúdos e suas formas de abordagem nos livros didáticos precisam ser analisados à luz das reflexões mais aprofundadas das áreas da Antropologia, do Direito, da Educação, da História e da Sociologia sobre temas da atualidade e, assim, verificar como os autores dos livros didáticos estão dialogando com o presente. Afinal, o livro didático está sempre rondando o cotidiano escolar com a aura de autoridade sobre o conhecimento. É preciso relativizarmos o seu uso e sua presença em sala de aula, buscando outros materiais de apoio e lembrando sempre que por trás do livro didático existem percepções de vida elaboradas por sujeitos concretos sobre o mundo. Além do mais, o livro didático não pode ser visto como livro do professor, ele é uma ferramenta de uso em sala de aula e deve ser utilizado ao lado de outras. O exercício de análise sobre o uso do livro didático por parte dos professores deve ser diariamente acompanhado da sua autocrítica para que possamos, assim, transformar a educação numa possibilidade de luta pelo respeito à diversidade sociocultural entre as pessoas. Livros didáticos analisados CHIANCA, Rosaly Braga; TEIXEIRA, Francisco M. P. Pensar e viver. História: ensino fundamental: 1ª série. São Paulo: Ática, 2006. CHIANCA, Rosaly Braga; TEIXEIRA, Francisco M. P. Pensar e viver. História: ensino fundamental: 2ª série. São Paulo: Ática, 2006. CHIANCA, Rosaly Braga; TEIXEIRA, Francisco M. P. Pensar e viver. História: ensino fundamental: 3ª série. São Paulo: Ática, 2006. CHIANCA, Rosaly Braga; TEIXEIRA, Francisco M. P. Pensar e viver. História: ensino fundamental: 4ª série. São Paulo: Ática, 2006. MARSICO, Maria Teresa et al. Agora eu sei! História e Geografia: ensino fundamental: 1ª série. São Paulo: Scipione, 2006. MARSICO, Maria Teresa et al. Agora eu sei! História e Geografia: ensino fundamental: 2ª série. São Paulo: Scipione, 2006. MARSICO, Maria Teresa et al. Agora eu sei! História e Geografia: ensino fundamental: 3ª série. São Paulo: Scipione, 2006. MARSICO, Maria Teresa et al. Agora eu sei! História e Geografia: ensino fundamental: 4ª 78 série. São Paulo: Scipione, 2006. MARSICO, Maria Teresa et al. Marcha criança. História e Geografia: ensino fundamental: 1ª série. São Paulo: Scipione, 2005. MARSICO, Maria Teresa et al. Marcha criança. História e Geografia: ensino fundamental: 2ª série. São Paulo: Scipione, 2005. MARSICO, Maria Teresa et al. Marcha criança. História e Geografia: ensino fundamental: 3ª série. São Paulo: Scipione, 2005. MARSICO, Maria Teresa et al. Marcha criança. História e Geografia: ensino fundamental: 4ª série. São Paulo: Scipione, 2005. VESENTINI, José Willian et al. Vivência e construção. História: ensino fundamental: 1ª série. São Paulo: Ática, 2005. VESENTINI, José Willian et al. Vivência e construção. História: ensino fundamental: 2ª série. São Paulo: Ática, 2004. VESENTINI, José Willian et al. Vivência e construção. História: ensino fundamental: 3ª série. São Paulo: Ática, 2004. VESENTINI, José Willian et al. Vivência e construção. História: ensino fundamental: 4ª série. São Paulo: Ática, 2005. Referências bibliográficas ASSOCIAÇÃO BRASILEIRA DE ANTROPOLOGIA. Relatório elaborado pelo Grupo de Trabalho sobre comunidades negras rurais. São Paulo: 1994. Disponível em: <http:/ / w w w . c p i s p . o r g . b r / c o m u n i d a d e s / h t m l / o q u e / home_oque.html+quilombola+ conceito&hl=pt-BR>. Acesso em: 01.set.06. BITTENCOURT, Circe. Livros didáticos entre textos e imagens. In C. Bittencourt (org.), O saber histórico na sala de aula. São Paulo: Contexto, 1997, pp. 69-90. BRASIL. Constituição (1998). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Senado Federal, 1988. BRASIL. Decreto Federal 4.887, de 20 de novembro de 2003. Regulamenta o processo de titulação das terras de quilombo. Brasília: Senado Federal, 1991. BRASIL. Lei Federal 10.639, de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências. Brasília: Senado Federal, 2003. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros Curriculares Nacionais: História, Geografia. Brasília: MEC/SEF, 1997. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: pluralidade 79 cultural, orientação sexual. Brasília: MEC/SEF, 1997. DIAGNÓSTICO SÓCIO-ECONÔMICO-CULTURAL DAS COMUNIDADES REMANESCENTES DE QUILOMBOS. Brasília: Fundação UnB, 2004. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2005. MOURA, Clóvis. Quilombos – Resistência ao escravismo. São Paulo: Ática, 1987. (Série Princípios) MUNANGA, Kabengele; GOMES, Nilma Lino. O negro no Brasil de hoje. São Paulo: GLOBAL, 2006. – (Coleção para entender). 80 81 Raras são as oportunidades dadas ao povo brasileiro no que tange ao conhecimento de parte do seu patrimônio histórico-cultural. O Curso de Aperfeiçoamento em História da África e Cultura Afro-Brasileira, projeto elaborado sob a iniciativa do Prof. Dr. Frank Marcon, no âmbito da lei 10.639/03, e apoiado pelos docentes Prof. Dr. Hippolyte Brice Sogbossi e Prof. Dr. Ulisses Neves Rafael, todos antropólogos do departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de Sergipe, foi aprovado e financiado pela equipe UNIAFRO do MEC/SESu. O projeto se inscreve entre os projetos do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da Universidade Federal de Sergipe. Dentre os cinco módulos oferecidos pelo Curso encontrou-se o de Religiões Afro-Brasileiras e Africanas. O módulo foi ministrado por mim em duas cidades do estado de Sergipe: Itabaiana, no interior, e São Cristóvão, sede principal do campus, e teve uma duração de 30 horas em cada uma das duas cidades. Estive acompanhado durante todo o tempo, pela monitora Christiane Rocha Falcão, aluna de Radialismo, do departamento de Comunicação da Universidade Federal de Sergipe. A contribuição da Christiane foi inestimável, já que as tarefas relacionadas com a disponibilidade da bibliografia do módulo, o controle das presençase, finalmente, a participação efetiva no trato de algumas partes do conteúdo, como durante a introdução sobre a pertinência desses estudos, foram essenciais. Um aluno do curso de Ciências Sociais, oriundo da Guiné Bissau, chamado Abílio Aleluia Có Otaíro Júnior, também participou das atividades conosco. Teve um bom envolvimento com o módulo, pois explicava alguns aspectos de interesse de todos sobre seu país, como sobre as relações de parentesco, religiosidades e etnicidades. Com uma turma já acostumada a ouvi-lo, era só alegria. No módulo de Religiões Africanas e Afro-Brasileiras, tratei de fazer brevemente alguns balizamentos clássicos com ênfase na Sociologia e Antropologia da Religião, no que se refere à produção brasileira do século XX até os nossos dias. A contribuição das línguas africanas na cultura brasileira também teve destaque. Ênfase foi dada ao candomblé e à umbanda como uma evolução diferente de expressões religiosas de origem africana. Foram discutidos artigos e etnografias modelares sobre religiões de origem africana no Religiões afro-brasileiras e africanas: experiências de ensino Hippolyte Brice Sogbossi44 44 Departamento de Ciências Sociais e Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da UFS. 82 Brasil. Nesta lógica, o curso teve como objetivos: estudar a contribuição de Nina Rodrigues, Arthur Ramos, Ruth Landes e Roger Bastide nos estudos das religiões chamadas de afro-brasileiras; analisar e discutir a questão das identidades de gênero nessas religiões e, finalmente, estudar e comentar as principais contribuições de caráter sociológico e antropológico no desdobramento atual das religiões no Brasil. A questão da memória coletiva e do sincretismo religioso teve destaque e esteve presente em todas as discussões em Itabaiana e São Cristóvão. A língua profana e a língua ritual são duas manifestações da cultura de um povo. O português falado no Brasil, além da presença do latim, do grego, do árabe e das línguas faladas pelos primeiros donos do país e, talvez, de mais outras oriundas do ocidente, tem uma presença significante de africanismos incorporados no cotidiano, gerando uma língua original que continua marcando diferenças com outras expressões lingüísticas oriundas dos países da CPLP (Comunidade de Países de Língua Portuguesa). Comecei por Itabaiana, onde estive nos dias 13 e 14 de outubro de 2006, cumprindo a metade do módulo, e nos dias 20 e 21 do mesmo mês, completando o tempo restante. Em São Cristóvão o módulo foi dado durante o mês de novembro. Primeiro, fiz algumas considerações breves sobre a história e a geografia da África, me auxiliando do mapa político do continente. No caso específico das línguas africanas, expliquei o problema ainda não resolvido da sua classificação. Uma explicação sobre a identificação e fundamentação da presença de elementos lingüísticos e culturais de origem bantu e de origem kwa, a partir dos estudos realizados por Yeda Pessoa de Castro, permitiu aos alunos saber que palavras como abadá, axé, acué, abacá, abará, abicú, angu, afoxé, amalá, amassim, axexê, babalaô, agogô, bagunça, caçula, cachimbo, candonga, calundu, encabular (de cabula), moleque, roncó, mocambo, maconha, mondongo, muvuca, muzenza, bunda, cochilar etc... etc..., encontradas tanto na linguagem popular quanto na linguagem do povo-de-santo, além de todos os processos gramaticais de derivação e composição, como é no caso de amolecar, molecada, bagunceira, bundada, encalungar, enquizilar, encabular; e também de construção léxico-semântica, como é no caso de “nascer com a bunda para a lua” (ter muita sorte, nascer empelicado), “ganhar fogo na bunda” (não ser recompensado como esperava), “quem nasceu pra quebrar licuri, morre com a bunda na pedra”(não progredir na vida) “debaixo desse angu tem caroço em carne” (a coisa não é tão limpa como parece), “entornar o angu” (ter malogro, contratempo, plano desmanchado), “barriga de angu” (barrigudo), são de origem africana. Nesse primeiro bloco, os próprios alunos, em ocasiões, pronunciavam espontaneamente o resto da frase ou provérbio, o que indica que há um conhecimento e um interesse sem par no tema. Já quando abordamos os blocos referentes ao Roger Bastide e às religiões africanas, à questão do parentesco, do gênero e da Religião, à questão da “impureza” e da “pureza” dos cultos e, finalmente à do sacerdócio, da sociedade e da política, o peso das 83 leituras por parte da turma de Itabaiana fez-se perceber. Os alunos de Itabaiana mal conseguiam ler os textos indicados, e, muitas vezes, atribuídos a alguns deles. O nível de assimilação dos conteúdos foi razoável, mas não o desejável, devido à falta de acompanhamento das leituras por parte dos alunos. Por exemplo, a participação dos alunos era mais sobre curiosidades de como era isso e aquilo na minha terra (o Benin). Algumas vezes, alunos faziam perguntas dispersas que não tinham a ver com o conteúdo ministrado no momento. Outros tinham mais interesse em receber o certificado ou qualquer declaração, do que se dedicar ao curso, pois inventavam casamentos, problemas de distância, dificuldades de transporte na volta para casa e outros. No caso de São Cristóvão, o curso era para professores da capital, ou seja, Aracaju, mas também havia professores de Barra dos Coqueiros e de Estância. As desculpas para se ausentar ou sair mais cedo eram parecidas. Não obstante, a participação dos discentes foi satisfatória. Se em Itabaiana, praticamente todo o conteúdo foi dado por mim sem apresentação de texto (só foram duas apresentações), já os professores de Aracaju e áreas adjacentes expressaram um grande interesse em apresentar os textos indicados. A participação tornou-se mais ativa, mais animada. Distribuí algumas fotos de cerimônias vodun do Benin. Criativo foi um professor que pesquisou sobre a Lavagem da Conceição, em Aracaju. Este apresentou um vídeo da Lavagem que, como disse a minha monitora Christiane “...trouxe a temática religiosa para mais perto daqueles que desconheciam as expressões da Cultura Brasileira que descendem diretamente das matrizes africanas”. No final, a discussão em ambas as cidades tornou-se mais dinâmica quando os alunos puderam ler artigos sobre sacerdócio, política e poder no candomblé, onde é discutida a questão da participação de políticos nas religiões de origem africana no Brasil, a sua interação com a comunidade em geral e a questão da legitimidade dos terreiros. De maior interesse foi o artigo de Reginaldo Prandi e Antônio Flávio Pierucci sobre religião pagã, conversão e serviço, onde as religiões evangélicas não foram poupadas. Houve uma confissão geral por parte de vários alunos que se resume no seguinte: “nós não sabíamos que as religiões africanas e afro-brasileiras eram tão complexas, tão ricas e para o bem; enfim tão humanas. A imagem que é dada a nós é de coisas caóticas, de magia negra, de feitiçaria e crueldades de todos tipos”. A opinião é de várias pessoas, inclusive de evangélicos. Foram observando também quão limitada é a oferta de informações sobre a cultura africana e afro-brasileira nos livros didáticos adotados por eles, nos ensinos infantil e fundamental. Reconhecem que é importante aprender sobre história africana e a cultura afro-brasileira, pois, é só assim que vamos nos livrar progressivamente dos preconceitos espalhados pela sociedade sobre uma cultura que participou da gestação de uma outra: a brasileira. Gostaria de terminar esta reflexão com um fato que aconteceu comigo no dia 26 84 de janeiro de 2007. Enquanto caminhava, ao redor das 6 horas e meia da manhã, com um senhor de 60 anos que acabei de conhecer no calçadão da “13 de julho”, em Aracaju, este, para orgulho dele de saber que sou natural do Benin, país africano, portanto país irmão do Brasil, e professor na Universidade Federal de Sergipe, decide me apresentar a dois conhecidos seu da mesma faixa de idade. O primeiro, que logo fez uma intervenção, disse mais ou menos nessas palavras: - Africano..., da raça ou da cor mesmo? - Do Benin, país africano,respondo. - Nascido na África? - Na África. - Pois é, lá é um horror... Há guerras tribais o tempo todo. Guerras tribais... Aquele povo não se ama. É um desastre. Gente matando gente e não se entendendo. - .... - Aquele povo e os do Oriente Médio não são gentes. São miseráveis e não têm futuro..., [prossegue]. Tentei explicar que há “donos” e “policiais” do mundo que incentivam conflitos em determinados lugares do mundo, mas pareceu-me que ele não ouviu. De repente, a conversação é interrompida pela tentativa de agressão de um cachorro que passava ao lado dele. Salvou o seu cachorro recolhendo-o... Continuamos caminhando, meu amigo e eu. Expliquei para ele que decidi não dar continuidade à conversa por causa do respeito que eu tinha por ele, e que aquele seu amigo tinha sido indelicado, pelo fato de não conhecer o mundo, por ignorância com relação aos fatos de que falávamos. Este reconheceu e fez entender que nem o pai de uma juíza, como ele é, é livre de preconceitos. Enfim, cenas como essa, nos colocam numa incógnita: como é que um senhor, em pleno século 21, pode acreditar ainda em tudo o que ouve sobre a África, sem o mínimo de espírito crítico. Será que esta postura continuará existindo num mundo globalizado, apesar de todos os esforços realizados para tentar vencer o racismo e preconceitos de todos tipos? Referências bibliográficas BASTIDE, Roger As religiões africanas no Brasil: Contribuição a uma sociologia das interpenetrações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1989, 567 p. COSTA LIMA, Vivaldo da. A família-de-santo nos candomblés jejes-nagôs da Bahia: Um estudo derelações intragrupais. Salvador, Corrupio, 2003, 215 p. LANDES, Ruth “Matriarcado Cultual e Homossexualidade Masculina” A Cidade das Mulheres. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, pp. 283-310. 85 PESSOA DE CASTRO, Yeda Falares Africanos na Bahia. Um vocabulário Afro-Brasileiro. Rio de Janeiro, Academia Brasileira de Letras-Topbooks, 2001, 366 p. PIERUCCI, Antônio Flavio & PRANDI, Reginaldo A Realidade Social das Religiões no Brasil.São Paulo: Editora HUCITEC, 1996 RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. 2a. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1940, 434 p (Brasiliana, 188), Vol. 1. RODRIGUES, Nina. Os africanos no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Brasiliense, 1977. 86 87 O principal foco de irradiação dos negros para a América foi a África Ocidental. “Do Golfo do Guiné (Costa do Ouro e Costa dos Escravos) e, em menor escala, do Senegal e do Congo, saíram as principais remessas de escravo para o Novo Mundo” (VALENTE, 1977, p.4). A disseminação pelo Brasil se fez ao longo da costa, desde o Maranhão até o Rio de Janeiro, sendo os escravos posteriormente levados para o interior, no qual foram aproveitados para a agricultura e mineração. Segundo Artur Ramos apud Valente (1977), existiram três padrões de cultura negra na América: - A cultura FANTI-ACHANTI (originária da Costa do Ouro) - A cultura FON (originária do Benin-daomeano) - A cultura IORUBA (oriunda da Nigéria e com influências banto) Os padrões de culturas negras que sobreviveram no Brasil foram: - Culturas sudanesas compostas por povos iorubá, daomeanos e fanti–achanti e, dentre eles, os que mais se destacaram foram os nagôs, jêje e mina. - Culturas guineano-sudanesas islamizadas representadas pelo grupo fula, mandinga e haussá. - Culturas bantos, representadas pelas inúmeras tribos do grupo angola-congolês e do grupo da contra-costa. Quanto ao estado de pureza, estas culturas já se apresentavam misturadas desde os primeiros tempos de escravidão, na África. “Tão entremisturadas se encontravam umas com as outras culturas negras no Brasil e com culturas não africanas com que se puseram em contacto no novo ambiente, em parte deformadas pela ação dissolvente da vida de escravo, que a sua identificação, por vezes, se tornou bastante difícil” (VALENTE, 1977, p. 6). Foi notável, também, que a sua resistência cultural repercutiu no modo de Apontamentos para o estudo das religiosidades afro-brasileiras na escola Genésio José dos Santos Martha Sales Costa45 45 Genésio José dos Santos é professor do curso de Geografia na UFS, colaborador do NEAB e foi professor do curso UNIAFRO, 2006. Martha Sales Costa é aluna do curso de Ciências Sociais, da UFS e monitora do NEAB no projeto UNIAFRO, 2006. 88 preservar as religiões. Segundo Valente (1977) a manifestação de vida espiritual persiste e é capaz de resistir mais do que qualquer outra à obra de esfacelamento e dissolução imposta, por vezes, pelos conflitos entre culturas. A religiosidade negra O cerne da origem de várias das culturas africanas trazidas para o Brasil esteve no fundamento de suas crenças religiosas: para muitos destes africanos que preservaram a religiosidade, a vida só é possível por conta do equilíbrio de energias (axé) obtidas através da tríade: mundo visível, mundo invisível e forças da natureza, que se complementam. É, portanto, estabelecida uma relação de reciprocidade entre estas forças. Ou seja, embora possuam funções distintas no que se refere à manutenção da vida, são forças interdependentes. É através da relação velho/novo, que se estabelece o princípio da restituição. “O princípio da ancianidade assegura a continuidade, a estabilidade e a permanência política social das instituições que garante os valores de lealdade, cooperação, ajuda mútua e liderança” (LUZ, 2000). Sabemos que o negro trazido para o Brasil provinha de diversos pontos da África: principalmente do Congo, Angola, Benin, Nigéria, entre outros; sabemos, ainda, que possuíam formas de organização política e social diferentes, pois a sociedade africana se organizava em reinos independentes. Assim, suas formas de cultuar os orixás (forças da natureza) também eram distintas, embora com uma base ideológica semelhante, ou seja, o equilíbrio entre os mundos visível, invisível e as forças da natureza. Porém, quando escravizados e trazidos para o Brasil, os negros foram confinados a um mesmo lugar e obrigados a conviver com as suas diferenças. Para resistir ao processo de exploração eles precisavam de algo que lhes desse identidade. Foi, portanto, através da religião que muitos se identificaram como africanos. Culto aos orixás A existência e manutenção da vida social do negro, no Brasil, esteve, muitas vezes, fundamentada na religião, em que prevalecia o princípio da manutenção do equilíbrio entre as forças cósmicas e o mundo concreto, guiados por uma força suprema considerada Deus. Assim, a existência da vida humana só foi possível pelo consentimento de Olorumn (Deus), que para povoar a Terra enviou princípios masculinos e femininos que seguem o sentido de complementação, estabelecendo uma relação recíproca e ininterrupta de conhecimento e aprendizado. Ainda nesta relação, existe a figura do procriado (Exu) que representa a energia que emana da Terra, sendo o responsável pela 89 ligação Orum (céu) e Aiyê (terra). Os orixás representam as forças da natureza, respeitando ainda os elementos que regem o mundo que são a Água, o Fogo, o Ar e a Terra. Segundo o que foi colocado anteriormente, a organização social africana se constituía de uma fragmentação territorial por conta dos diversos reinos que possuíam características próprias. Portanto, a forma de cultuar os orixás também era distinta nos diferentes reinos da África pré-colonial. Após a ocupação do território africano pelos árabes e depois pelos europeus, a religião sofreu a influência muçulmana na região norte-nordeste da África e no restante do continente sofreu a influência das religiões católicas e protestantes. Significa dizer que quando os negros foram trazidos para o Brasil já existira o contato entre estas diferentes manifestações religiosas, aqui acentuadas com o processo escravocrata brasileiro. No Brasil, negros de famílias diferentes eram confinados nas mesmas senzalas. Mas, sua organização política e social e sua forma de cultuar os orixás eram diferentes a depender de suas regiões de origem. Mesmo assim, para resistir ao processoexplorador do senhor da terra era necessário algum elemento que os identificassem, já que possuíam também dialetos diferentes. Essa identidade de resistência foi marcada principalmente pela música, pela dança e pela religião. Podemos então concluir que a religião africana, no Brasil, não pode, por isto, ser considerada como “pura”. Os escravos, vindos de diferentes partes da África, contribuíram para o surgimento de diferentes nomenclaturas e práticas religiosas, a depender do local onde tenham se instalado no território brasileiro: candomblé, na Bahia; xangô, em Alagoas, Pernambuco e Paraíba; tambor, no Maranhão; macumba, em São Paulo; umbanda e quimbanda, no Rio de Janeiro. Além disto, o culto aos orixás foi levado para o sul e o sudeste do Brasil também através da migração interna. No que diz respeito à umbanda, por exemplo, existem posicionamentos diferentes quanto a sua origem, ou seja, há quem afirme que é uma religião genuinamente brasileira, enquanto outros a defendem como de origem africana: origem banto (grupo etno-lingüístico da região meridional da África). Para Helena Teodoro Lopes a umbanda é a “religião de maior expressão no Rio de Janeiro e apresenta similaridades com as religiões tradicionais africanas”. Porém, segundo Fernando Aguiar (Babalaxé do terreiro Abaçá São Jorge da Iyalorixá Marizete Lessa, filha-de-santo de “Nanã”, em Sergipe), a umbanda branqueou a religião africana, fazendo alguns cortes nos rituais originais, pois não realiza, por exemplo, o batuque e a dança. Comunidade-terreiro Uma comunidade-terreiro representa uma réplica da organização social negra, quer dizer, do princípio da ancianidade que rege o movimento, com o mesmo aspecto 90 de complementação, ou seja, restituição de axé. Onde a relação velho/novo estabelece um mútuo de respeito e gratidão. Dentro desta comunidade, o conhecimento está imbricado pelo poder. Poder que é adquirido com a experiência que advém com o tempo de vivência. Todavia, este poder significa obrigação, ao passo que quando se atinge um degrau mais elevado na hierarquia do terreiro, maior, também, é o seu número de obrigações. Para lidar com o axé, força que dinamiza os dois mundos, é necessário preparo e sabedoria. Portanto, essa função é dos mais velhos (sacerdotes) e cabe a eles passarem os ensinamentos para os mais novos, que na comunidade são tratados como irmãos. “As hierarquias são preenchidas de acordo com o poder de axé, inerente a cada membro, desenvolvida em meio aos valores da tradição” (LUZ, 2000). Essa condição de poder não significa, essencialmente, status de privilégios. No culto aos orixás, o poder que lhe é atribuído vem embutido de obrigações, ou seja, quanto maior for seu cargo dentro das comunidades, maiores são as normas que diminuem a esfera de comportamentos possíveis. “Na obrigação, o indivíduo, através da oferenda, e da participação ritual dos mais velhos, estabelece a restituição de axé, necessário ao fortalecimento do pleno desenvolvimento do seu destino” (LUZ, 2000). Dentro da classificação jêje e nagô temos as seguintes ordens hierárquicas: JÊJE Nochê- minha mãe Tochê- meu pai Vichê- meu filho Assise- meu irmão Noviche- minha irmã NAGÔ Iyalorixá- mãe Babalorixá- pai Omo- filho Ebomi- irmã mais velha Iawo- irmã mais nova Dentro de uma comunidade-terreiro temos funções específicas para homens e para mulheres, por exemplo, a colheita é função exclusiva masculina, enquanto que a cozinha é função feminina. Portanto, não podemos afirmar que a religião afro-brasileira é estritamente masculina ou feminina, pois as duas forças se complementam numa comunidade. Contudo, há um aspecto interessante, é facultado o direito de executar funções de ambos os gêneros à pessoa que possuir os dois princípios: seja de natureza 91 biológica ou de natureza cósmica. Ou seja, se o orixá de cabeça tiver o gênero oposto ao do seu filho, é aceitável que desempenhe funções masculinas e femininas, atribuindo-se a ele maiores poderes nesta comunidade. Portanto, nestes casos, a homossexualidade e/ou heterogeneidade é encarada como ponto positivo, não como sacrilégio. Talvez por esta razão seja tão comum observarmos a presença de homossexuais dentro destas comunidades-terreiro. Linguagens e entidades É bom que não nos esqueçamos de evidenciar que o candomblé não é uma religião, ou mesmo, o nome da religião afro-brasileira. O candomblé é a dança e a música, estudadas nos terreiros (onde se pratica o culto dos orixás). Seguindo o princípio da ancianidade, é através da palavra que é feita a transmissão do conhecimento dos mais velhos para os mais novos, que serão tanto melhores quanto maior for sua capacidade de aprendizado e obediência. Os orixás representam as forças da natureza, respeitando as 4 forças que regem o universo: o fogo, o ar, a água e a terra. Os orixás são figuras míticas que representam, por exemplo, a energia que emana da Terra. Os vegetais no ritual Compreender “O segredo das folhas” ou o seu significado, só foi possível a Barros (1993), porque faz parte de uma comunidade-terreiro. “Os vegetais regem a vida dos orixás, o seu conhecimento e o seu emprego é objeto de sigilo, portanto pressupondo um processo iniciático” (BARROS, 1993, p. 38). Os vegetais eram utilizados pelos negros de diversas maneiras: o conhecimento (dos “seus segredos” seguidos das forças dos orixás a quem faziam oferendas) permitia que fossem usados tanto de forma repressiva (como, por exemplo, quando as mulheres negras enfeitiçavam os senhores para ver suas brancas sofrendo de desilusões ou como abortivos para que não crescesse o número de escravos) quanto utilizadas nos rituais de iniciação (BARROS, 1993, p. 39). Os vegetais são tratados com o máximo respeito nas religiões afro-brasileiras, possuindo inclusive um orixá que os representa e é responsável pela sua segurança. Ossãnyn é uma figura mítica, assim como Exu, o procriado, e não foi comprovada a sua existência materializada. Cada orixá possui uma folha que o representa e a Ossãnyn é que foi delegada a função de guardião das folhas. Portanto, para lidar com os vegetais é preciso, antes de tudo, fazer menção a Ossãnyn. A retirada da folha segue um ritual que se inicia no horário apropriado para a colheita, que geralmente é realizado antes do sol 92 sair. A colheita é feita pelos homens. Na entrada da mata deixam-se algumas moedas e pede-se ao guardião para entrar e fazer a colheita. Durante este tempo é preciso estar cantando para o guardião e para o orixá. Deve ser retirado da erva apenas o necessário. Ainda relacionado ao fator horário, caso seja necessário realizar uma colheita noturna, as folhas terão que ser acordadas (cada folha é colocada na palma da mão dando três tapinhas dizendo “acorda”). Um outro aspecto relacionado ao horário é que a depender “a espécie muda de senhor: algumas folhas de Ogum, quando passa do meio-dia, passam a ser de Exu” (BARROS, 1993, p. 40). As ervas têm de ser colhidas de modo especial para que não percam o seu axé (poder). Segundo afirma Barros, elas não devem ser cultivadas, devem ser encontradas dispersas na natureza. Natureza esta que deve ser um componente imprescindível para o terreiro, sendo ela própria sua extensão. Mas, a especulação imobiliária, principalmente na área urbana, torna cada vez mais rara a existência destes espaços naturais, sendo assim permitido o cultivo dos vegetais, com a ressalva de que o procedimento seja o mesmo para qualquer situação. Oralidade e classificação São considerados para a classificação dos vegetais na comunidade jêje-nagô os aspectos: cor, forma, textura, tamanho, cheiro e habitat. “Basicamente, nos sistemas de classificação jêje-nagô são detectados as quatro categorias fundamentais ligados aos compartimentos água, fogo, terra e ar acrescidos de critérios e de diferenciações estabelecidos pelos pares complementares de oposição macho/fêmea, agitação/calma” (BARROS, 1993, p. 97). Sabemos que o cultivo dos vegetais representou a maior força de resistência à aculturação branca, imposta pelos senhores.Assim podemos perceber o valor que Ossânyn representa para a comunidade-terreiro. Todos os ensinamentos numa comunidade são passados oralmente para os aprendizes, dessa forma, percebemos o valor da palavra para o candomblé jêje-nagô. “A preservação destes nomes era o aspecto mais importante, já que assegurava a manutenção das categorias do sistema.” (BARROS, 1993, p. 106) A palavra é veículo e detentora de axé, ela somada a um texto incrementa o seu significado tornando-o mais efetivo e direcionado a seus conteúdos simbólicos abrangentes. As cantigas de ‘folha’ cumprem este papel, circunscrevem os símbolos e os signos, proporcionando uma totalidade dinâmica que desempenha a função dela esperada (BARROS, 1993, p. 111). 93 É bom ressaltar que há um encadeamento das cantigas, uma puxa a outra, mesmo que o nome da categoria não seja explicitado, todo o seu contexto faz referência a ela. “As cantigas são cantadas em resposta ao pai ou mãe-de-santo que as iniciam e estipulam a ordem desejada. A cerimônia do Ossãnyn geralmente é restrita aos membros do terreiro, momento para transmitir o saber” (BARROS, 1993, p. 122). Considerações finais Os navios negreiros que chegaram entre os séculos XVI e XIX traziam mais do que africanos para trabalhar como escravos no Brasil Colônia. Em seus porões, viajava também uma religião estranha aos portugueses. Considerada feitiçaria, pelos colonizadores, ela se transformou, pouco mais de um século depois da abolição da escravatura, numa das religiões mais populares do país. Não existem estatísticas que dêem o número exato de seus fiéis no país. Os dados variam. Segundo o Suplemento sobre Participação Político-Social da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em 1988, 0,6% dos chefes de família (ou cônjuges) seguiam cultos afro- brasileiros. Um levantamento do Instituto Gallup de Opinião Pública, no mesmo ano, indicou que o candomblé ou a umbanda era a religião de 1,55% da população total do país. São índices muito pequenos se comparados à multidão que lota as praias na passagem de final de ano, para homenagear Iemanjá, a orixá dos mares e oceanos. O principal fator destes índices é o preconceito que está inserido na sociedade, pois os próprios fiéis evitam assumir sua religião, por receio de serem vítimas de preconceitos. A mais célebre mãe-de-santo do Brasil, Menininha do Gantois, falecida em 1986, declarou certa vez ao pesquisador do IBGE que era católica apostólica romana. O quadro religioso no Brasil de hoje caracteriza-se por um processo de conversão complexo e dinâmico, com a incorporação e mesmo criação de algumas novas religiões, às vezes com a passagem de um converso por várias possibilidades de adesão. Segundo Valente (1977), desde o início as religiões afro-brasileiras se formaram em sincretismo com o catolicismo e em grau menor com religiões indígenas. O culto católico aos santos, numa dimensão popular politeísta, ajustou-se como uma luva ao culto dos panteões africanos. A umbanda acrescentou-se às contribuições do kardecismo francês, especialmente a idéia de comunicação com os espíritos dos mortos, através do transe, com a finalidade de se praticar a caridade entre os dois mundos, pois os mortos devem ajudar os vivos sofredores, assim como os vivos devem ajudar os mortos a encontrar, sempre pela prática da caridade, o caminho da paz eterna, segundo a doutrina de Alan Kardec. A umbanda perdeu parte de suas raízes africanas, se espalhou por 94 todas a regiões do país, sem fronteiras entre classe, raça e cor. Mas, não interferiu na identidade do candomblé, do qual se descolou, conquistando sua autonomia. O candomblé também mudou. Até 20 ou 30 anos atrás, o candomblé era religião de negros e mulatos, confinado, sobretudo, à Bahia e a Pernambuco, e aos reduzidos grupos de descendentes de escravos, cristalizados aqui e ali, em distintas regiões do país. No rastro da umbanda, a partir dos anos 1960, o candomblé passou a se oferecer como religião também para segmentos da população de origem não-africana. O processamento religioso afro-brasileiro abriga, assim, um patrimônio humano e cultural que se estende para os campos da música, da dança, da indumentária, do folclore, da cultura popular, da culinária, da relação com a natureza e com a ecologia. O conjunto dessas manifestações está repleto de elementos simbólicos necessários às reflexões sobre a história do negro e da cultura afro-brasileira nas escolas. Neste sentido, é preciso desenvolver práticas lúdico-pedagógicas pertinentes em sala de aula. Em conclusão, notamos que a história do candomblé não é só a história de uma religião, mas também de um povo. A história do candomblé se confunde com a história do Brasil. Referências bibliográficas BARROS, José Flávio. O segredo das folhas: sistema de classificação de vegetais no candomblé jêje- nagô do Brasil. RJ: Pallas, UERJ, 1993. LUZ, Marco Aurélio de Oliveira. Agadá, dinâmica da civilização africano-brasileira. 2° edição, Bahia:EDUFBA, 2000. LOPES, Helena Theodoro. A força vital. In: Humanidades, Consciência Negra. Ed. UNB n° 47 de dezembro de 1999. PRANDI, Rerinaldo. Deuses africanos no Brasil contemporâneo. In Humanidades, consciência negra. Ed. UNB n° 47, dezembro de 1999. 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Sites Consultados: · www.ileaiye.com.br · www.portalorixas.com.br · www.candomble.com.br 95 Alguns anos depois de sancionada a Lei 10.639/03 e dos esforços do governo em propor ou impor inovações no ensino, mais especificamente através das áreas de Educação Artística, de Literatura e História Brasileiras; parece-me que essa tentativa é frustrada por dois fatores, por um lado, o governo parece ignorar que tais discussões não estejam na pauta de quem “faz” a educação básica in loco e, por outro lado, os professores admitem ignorar a Lei ou o que ela significa, como tive a oportunidade de verificar recentemente em seus “discursos”, através de pesquisa realizada junto a quatro professores do ensino básico. É importante salientar que a existência de um documento oficial obrigando os estabelecimentos de ensino a lidar com a temática da Lei não resolve o problema por si e neste sentido, iniciativas como a do MEC, do edital UNIAFRO e do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros (NEAB) da Universidade Federal de Sergipe (UFS) seguramente contribuirão para uma prática eficaz e de acordo com os ditames da Educação Básica. Raramente, até agora, o graduando em licenciatura tem contato com a temática durante o currículo escolar, principalmente se a formação foi anterior à lei ou se cursou algum curso que não tenha sido o de História. Eu cursei Letras e embora tivesse envolvido indiretamente com a questão, só a partir dos cursos de extensão pude sistematizar melhor minha prática docente voltada para a abordagem dos conteúdos que pudessem contribuir para a visibilidade e importância da cultura negra para a formação da identidade brasileira. A resolução nº 1, de 17 de junho de 2004, afirma que essa dinâmica de ensino “será desenvolvida por meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos pelas instituições de ensino e seus professores /.../ atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/200447”. Fica, então, clara a necessidade da participação ativa dos professores nesse processo. O referido parecer é importante porque baliza as diretrizes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e para o ensino de história e cultura afro- brasileira e africana, subsidiando-nos com a explicitação de conceitos lacunares que a lei pela sua própria extensão e objetividade não propicia. Aqui, estou propondo revelar alguns dados coletados in loco por Santos(2006), Afro-brasilidade, educação básica e a lei 10.639/03: vozes veladas, veludosas vozes.... Everaldo José Freire46 46 Aluno do curso UNIAFRO, 2006. Professor do ensino básico da rede pública estadual. 47 Elaborado pela Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) 96 na modalidade oral (gênero sócio-discursivo entrevista), e que constituem objeto de análise deste texto. As entrevistas foram gravadas em áudio, transcritas e vistas na amplitude do processamento textual. Essa dinâmica da coleta de dados foi orientada por mim no contexto da disciplina Produção de Texto III, na Universidade Federal de Sergipe, no segundo semestre deste ano, e, embora sejam os mesmos dados utilizados para outras reflexões, a análise no contexto desse artigo é bastante diferente e segue a tendência de análise para outros recortes de formações discursivas (FREIRE, 2005). As entrevistas foram individuais, realizadas com quatro professores – reconhecidos aqui pelas suas iniciais com letras maiúsculas – que atuam nas redes pública e privada de Sergipe. Suas falas serão analisadas em consonância com Mondada (1997, p. 59), a qual critica a concepção de entrevista como veículo mais ou menos transparente de informações e defende uma concepção intersubjetiva e praxeológica da linguagem. Optei pela quadrangularização das formações discursivas, as quais são analisadas neste texto seguidos dos pressupostos de Dominique Maingueneau e Michel Foucault (explicitados dentro da análise e discussão dos resultados para que o leitor não dissocie o aparato de análise da fundamentação teórica, que embora pertinente, apenas norteia nosso ponto de vista em relação à temática), os quais tratam o discurso como parte das ideologias dos seus enunciadores. A quadrangularização citada anteriormente diz respeito à disposição das formações discursivas em quatro tabelas distintas tendo em vista as quatro seções que foram formuladas seguindo os seguintes critérios: (i) abordagem da situação do negro na atualidade, (ii) práticas pedagógicas que englobam alguma atividade que esteja de acordo com o parecer do CNE 03/04 e atenda aos ditames da Lei, (iii) a relação da escola com a temática e (iv) a importância de iniciativas como a Lei 10.639/03 para a formação de afro-brasileiros e brasileiros que não se auto-declaram negros. Análise dos dados e discussão dos resultados Abaixo, o resultado das respostas dos quatro professores, de diferentes espaços sócio-discursivos (as escolas, tomadas como instituições singulares, privilegiadas para a propagação de idéias e formação de opinião a partir de discursos pedagógicos e materiais didáticos) que foram questionados acerca da situação do negro na sala de aula brasileira, situando como recorte a realidade sergipana (entre aspas destaquei as falas dos entrevistados e grifei algumas das partes com a finalidade de ressaltar elementos discursivos que me permitissem reconstruir os eixos das quatro demandas esboçadas na metodologia). (i) 97 “Aqui na escola eu não vejo ter discriminação porque é uma escola de classe média e baixa, então, a maioria dos alunos que você pode observar são alunos morenos e negros, pelo menos em escola pública, e nessa aqui, eu não vejo a prática de discriminação”. (CSPS) “/.../ Olhe, eu vejo que o negro desempenha o papel dele muito bem, e na sala eu não acho que o negro esteja desmembrado do branco /.../” (JDM) ou “Vejo como outro aluno normal.” (EAAL) Já GC assevera que “nas escolas particulares de classe média alta você ser ou não ser negro não faz diferença, pelo menos isso não é notável /.../” e aponta que a situação do negro é uma questão social. Não é próprio, para o aparato da análise do discurso, tecer comentários positivos ou negativos na emersão dos discursos acerca dos assuntos abordados. Tão somente nos é apropriado reconstruir as marcas discursivas e apontar possíveis caminhos pelos quais essas formações tenham se instaurado, ou seja, os Outros discursos e os discursos dos Outros. Neste sentido, para os professores entrevistados não há preconceito na sala de aula. (ii) Perguntados se conhecem e/ou realizam atividades que contemplam a Lei 10639/03, embora JDM afirmasse não conhecê-la, disse: /.../ eu me baseio no dia-a-dia, através de textos com temática sobre os negros, ponho esses textos em pauta e faço uma abordagem na qual me dirijo mais aos brancos para ele dar um parecer, pois o texto já fala dos negros, os negros só complementam. Eu os equiparo. Esse discurso parece ser desconcertante, principalmente porque quem o enunciou, anteriormente afirmou não haver distinção entre brancos e negros!!! Já CSPS diz “eu ultimamente... eu não abordei, mas a escola sempre faz projetos.” Enquanto EAAL afirma que “atividades sobre o negro falando do racismo, tem, no livro, como atividade temática.” GC diz conhecer a Lei, porém não consegue atrelar nenhuma atividade correlacionada ao proposto pela mesma: Afirma “– Sim.” Respondendo que tem conhecimento da existência da Lei. Ao ser questionado sobre alguma atividade que tenha promovido para contemplá-la, diz: “Nessa lei, exclusivamente não.” Afinal, qual lei estava-se discutindo? A hipótese que lanço é o fato de a Lei seja um documento 98 geral, objetivo, e que o parecer do CNE 03/04, como documento norteador, seja o mais elaborado, mas, também, o menos conhecido e menos trabalhado pelos professores e a comunidade escolar. Como no caso do entrevistado, a Lei é conhecida, o Parecer, não. É um equívoco pensar que saber da existência da Lei é conhecê-la e uma vez ter tido contato com a Lei (o documento), seja o suficiente para colocar em prática as questões pertinentes a ela. (iii) O velamento discursivo, perceptível pelas marcas emersas nos discursos subjacentes à relação da “escola” com a temática da afro-brasilidade, é comparável aos apanhados que faz J. M. Marandin (apud MAINGUENEAU, 1997), ao explorar as tendências semânticas da língua, que ao examinar os empregos do termo camponês num texto escrito, escreve o seguinte: “o conjunto de enunciados com que são construídas estas seqüências parece ser idêntico ao conjunto de enunciados com que é construído o verbete ‘camponês’ no Grand Robert e no Grand Larousse de la langue français. (...)” A evocação do discurso de Marandin passa a fazer sentido neste nosso contexto com afirmações como esta: “/.../ A inclusão social é que é urgente, não a cultural porque com isso o negro não tem problema, basta ver os pagodeiros, os artistas, os atletas, eles gozam de muito prestígio. Não tem a ver com a cor da pele, a questão é a inclusão social /.../ (GC) “Eu acho que não havia necessidade (da Lei) porque antes de existir essa Lei, esse assunto do negro se abordava sem nenhum problema.” (JDM) Seria redutor, como vimos, afirmar que é uma “relação que passa sobretudo pela questão econômica e social.” (CG) “/.../ Os alunos, como muitos são negros, questionam isso, a questão da discriminação /.../” (CSPS) Estas afirmações revelam ambigüidades acerca da relação entre discriminação e racismo no entendimento dos professores. Eles alegam que não existe racismo, mas concordam que existe discriminação social, e que esta afeta os negros, opinando que o conteúdo da Lei não resolve o problema. Fica claro, aqui, o desconhecimento das discussões contidas no Parecer do CNE 03/04, que problematiza conceitualmente tais questões e o entrelaçamento destas (a racial e a social) no Brasil. (iv) Outro indício do que venho tentando dizer é demonstrado na importância dada pelos professores às iniciativas de políticas públicas, como a Lei 10.639/03: “A meu ver não sei se tem tanta importância porque o negro é importante sempre, mesmo sem a Lei, existindo ou não a Lei pra mim ele é importante sempre. Por isso eu nunca dei muita importância à Lei, porque ele sempre executou o papel dele tal qual o 99 branco.” (JDM) Os demais sujeitos não têm dúvidas a respeito da importância da iniciativa do atual governo federal em relação à Lei: “Importante porque todos nós brasileirostemos um pouco de cada raça, são várias culturas.” (EAAL) “Desde que as pessoas saibam [das iniciativas como a Lei 10639/03] e que elas sejam cumpridas, eu acho importante” (CSPS) “Contribuir com a auto-estima é gostar de ser negro, gostar de saber sua história, exigir seus direitos, exigir ser respeitado /.../” (GC) Embora, quando esclarecidos sobre a Lei, os professores reconheçam à sua importância, eles continuam fazendo afirmações pelo desmerecimento de uma intervenção local, justificando que aos seus “olhos o negro sempre teve uma condição estável.” (EAAL). Para finalizar, gostaria de dizer que são afirmações e incoerências como estas que ainda travam transformações mais velozes e dinâmicas com relação à aceitação e à prática de um currículo escolar que inclua conteúdos de história da África, cultura afro-brasileira e relações étnico-raciais, mesmo que passados quatro anos de sancionada a Lei. Os tentáculos silenciosos do racismo à brasileira, arraigados nas mais profundas esferas do social, não deixaram a escola impune às suas influências, que teimam em resistir como o principal entrave às iniciativas de dar-lhe visibilidade como estratégia para combatê-lo. Referências bibliográficas BAKHTIN, M. e VOLOSHINOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: HUCITEC, 1997. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2ª ed., São Paulo: Martins Fontes, 1997. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: língua portuguesa, Brasília: MEC/SEF, 1997. D´AMORIM, Eduardo. África: Essa mãe quase desconhecida. 2. ed. Recife: Edições Horizontes, 1996. FREIRE, Everaldo J. Formação em serviço e concepções prévias dos docentes da educação básica da rede pública de ensino do município de Garanhuns – PE sobre língua(gem), fala e gênero. In: SANTOS, Alfredo Bezerra. (Org.) Anais do II Encontro Sergipano de Educação Básica. São Cristóvão, Universidade Federal Sergipe, Colégio de Aplicação, Núcleo de Estudo, Pesquisa e Extensão em Educação Básica, 2005. pp. 195-205. FREYRE, Gilberto. Casa grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 17.ed. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1975. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro Forense, 1986. LEI DE DIRETRIZES E BASES. LDB. Brasília, 1996. 100 LEI 10.639/2003 de 9 de janeiro de 2003. MACHADO, Ana Maria. Menina bonita do laço de fita. São Paulo: Ática, 1997. MAINGUENEAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 3. ed. 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São Paulo: Martins Fontes, 1991. 101 III PARTE DOCUMENTOS 102 103 Lei Federal 10639/03, de 09 de janeiro de 200348 Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro- Brasileira”, e dá outras providências. O PRESIDENTE DA REPÚBLICA Faço saber que o Congresso Nacional decreta e eu sanciono a seguinte Lei: Art. 1o A Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar acrescida dos seguintes arts. 26-A, 79-A e 79-B: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio, oficiais e particulares, torna-se obrigatório o ensino sobre História e Cultura Afro-Brasileira. § 1o O conteúdo programático a que se refere o caput deste artigo incluirá o estudo da História da África e dos Africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro na formação da sociedade nacional, resgatando a contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil. § 2o Os conteúdos referentes à História e Cultura Afro-Brasileira serão ministrados no âmbito de todo o currículo escolar, em especial nas áreas de Educação Artística e de Literatura e História Brasileiras. § 3o (VETADO)” “Art. 79-A. (VETADO)” “Art. 79-B. O calendário escolar incluirá o dia 20 de novembro como ‘Dia Nacional da Consciência Negra’.” Art. 2o Esta Lei entra em vigor na data de sua publicação. Luís Inácio Lula da Silva 48 Retirado do endereço eletrônico http://www.planalto.gov.br/CCIVIL_03/LEIS/2003/ L10.639.htm#art1. Acesso em 25 de janeiro de 2007. 104 105 Trechos da Resolução nº 1, de 17 de junho de 200449 Institui as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico- Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Art. 1° A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro- Brasileira e Africana, a serem observadas pelas Instituições de ensino, que atuam nos níveis e modalidades da Educação Brasileira e, em especial, por Instituições que desenvolvem programas de formação inicial e continuada de professores. § 1° As Instituições de Ensino Superior incluirão nos conteúdos de disciplinas e atividades curriculares dos cursos que ministram, a Educação das Relações Étnico-Raciais, bem como o tratamento de questões e temáticas que dizem respeito aos afrodescendentes, nos termos explicitados no Parecer CNE/CP 3/2004. Art. 2° As Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africanas constituem-se de orientações, princípios e fundamentos para o planejamento, execução e avaliação da Educação, e têm por meta, promover a educação de cidadãos atuantes e conscientes no seio da sociedade multicultural e pluriétnica do Brasil, buscando relações étnico-sociais positivas, rumo à construção de nação democrática. § 1° A Educação das Relações Étnico-Raciais tem por objetivo a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes, posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-racial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade, na busca da consolidação da democracia brasileira. § 2º O Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana tem por objetivo o reconhecimento e valorização da identidade, história e cultura dos afro- brasileiros, bem como a garantia de reconhecimento e igualdade de valorização das raízes africanas da nação brasileira, ao lado das indígenas, européias, asiáticas. § 3º Caberá aos conselhos de Educação dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios desenvolver as Diretrizes Curriculares Nacionais instituídas por esta Resolução, dentro do regime de colaboração e da autonomia de entes federativos e seus 49 Trechos retirados do endereço eletrônico http://portal.mec.gov.br/cne/arquivos/pdf/003.pdf Acesso em 25 de janeiro de 2007. (O parecer 003/2004, do CNE, também pode ser encontrado na íntegra no mesmo endereço.) 106 respectivos sistemas. Art. 3° A Educação das Relações Étnico-Raciais e o estudo de História e Cultura Afro-Brasileira, e História e Cultura Africana será desenvolvida por meio de conteúdos, competências, atitudes e valores, a serem estabelecidos pelas Instituições de ensino e seus professores, com oapoio e supervisão dos sistemas de ensino, entidades mantenedoras e coordenações pedagógicas, atendidas as indicações, recomendações e diretrizes explicitadas no Parecer CNE/CP 003/2004. § 1° Os sistemas de ensino e as entidades mantenedoras incentivarão e criarão condições materiais e financeiras, assim como proverão as escolas, professores e alunos, de material bibliográfico e de outros materiais didáticos necessários para a educação tratada no “caput” deste artigo. § 2° As coordenações pedagógicas promoverão o aprofundamento de estudos, para que os professores concebam e desenvolvam unidades de estudos, projetos e programas, abrangendo os diferentes componentes curriculares. § 3° O ensino sistemático de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana na Educação Básica, nos termos da Lei 10639/2003, refere-se, em especial, aos componentes curriculares de Educação Artística, Literatura e História do Brasil. § 4° Os sistemas de ensino incentivarão pesquisas sobre processos educativos orientados por valores, visões de mundo, conhecimentos afro-brasileiros, ao lado de pesquisas de mesma natureza junto aos povos indígenas, com o objetivo de ampliação e fortalecimento de bases teóricas para a educação brasileira. Art. 4° Os sistemas e os estabelecimentos de ensino poderão estabelecer canais de comunicação com grupos do Movimento Negro, grupos culturais negros, instituições formadoras de professores, núcleos de estudos e pesquisas, como os Núcleos de Estudos Afro-Brasileiros, com a finalidade de buscar subsídios e trocar experiências para planos institucionais, planos pedagógicos e projetos de ensino. Art. 5º Os sistemas de ensino tomarão providências no sentido de garantir o direito de alunos afrodescendentes de freqüentarem estabelecimentos de ensino de qualidade, que contenham instalações e equipamentos sólidos e atualizados, em cursos ministrados por professores competentes no domínio de conteúdos de ensino e comprometidos com a educação de negros e não negros, sendo capazes de corrigir posturas, atitudes, palavras que impliquem desrespeito e discriminação. Art. 6° Os órgãos colegiados dos estabelecimentos de ensino, em suas 107 finalidades, responsabilidades e tarefas, incluirão o previsto o exame e encaminhamento de solução para situações de discriminação, buscando-se criar situações educativas para o reconhecimento, valorização e respeito da diversidade. § Único: Os casos que caracterizem racismo serão tratados como crimes imprescritíveis e inafiançáveis, conforme prevê o Art. 5º, XLII da Constituição Federal de 1988. Art. 7º Os sistemas de ensino orientarão e supervisionarão a elaboração e edição de livros e outros materiais didáticos, em atendimento ao disposto no Parecer CNE/CP 003/2004. Art. 8º Os sistemas de ensino promoverão ampla divulgação do Parecer CNE/CP 003/2004 e dessa Resolução, em atividades periódicas, com a participação das redes das escolas públicas e privadas, de exposição, avaliação e divulgação dos êxitos e dificuldades do ensino e aprendizagens de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e da Educação das Relações Étnico-Raciais. 108 109 110