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JARDIM, João. Pro dia nascer feliz., Filme. 2005. Pedro Santos Pavioti Vicentin O filme "Pro dia nascer feliz" de João Jardim, filmado entre abril de 2004 e outubro de 2005, transforma um recorte num panorama geral da educação no país que, infelizmente, ainda parece atual. Através de um olhar atento para não somente às pessoas: alunos, pais, professores e diretores - mas também, à estrutura, João Jardim nos faz enxergar o duro abismo entre classes, a maneira que isto afeta ao acesso, a permanência de jovens na escola e a garantia do direito à educação. Na primeira escola apresentada, Estadual Cel. Souza Neto, em Manari, Pernambuco, o percorrer da câmera neste espaço de uma escola pública, serve como denuncia à estrutura inviável em que esta funcionava em Pernambuco. A fala de outra jovem, Valéria, de 16 anos, também marca a perversidade de uma estrutura, que é por ela percebida e expressada através de sua sensível e poética fala: "Geralmente, aqui a gente nem tem chance de sonhar" (9’57s). Em seguida, Valéria lê seu poema, que normalmente, sequer é acreditado como seu, pelos professores: "Eu poderia ser uma adolescente normal, se não tivesse uma família formada por onze pessoas. Eu deveria ter sido uma criança normal, se não fosse as responsabilidades que eu cumpria. Eu deveria gostar do que faço, se não fosse obrigada a fazer. Eu deveria frequentar ambientes de lazer, se não tivesse que trabalhar. Eu deveria reclamar quando dizem algo que eu não gosto, se não tivesse inspiração para descrever cada situação. Eu poderia reivindicar quando sou julgada injustamente, mas calo-me e a humildade prevalece. Eu deveria ter uma péssima impressão da vida, se não fosse a paixão que tenho pela arte de viver". (10’43s) Escola Estadual Cel. Souza Neto. Município de Manari, Pernambuco. (7’23s) Como contraponto à esta narrativa da dura realidade daqueles que, ainda que interessados, possuem uma engrenagem que lhes dificulta o acesso e permanência na escola, mais à frente no filme, somos apresentados ao Colégio particular Santa Cruz, no Bairro Alto de Pinheiros, em São Paulo. Frequentado por uma seleta elite, salta aos olhos no percorrer da câmera de João Jardim, a não-aparição de qualquer pessoa negra nas filmagens. Sendo o único colégio particular apresentado no documentário, os momentos em que sua estrutura é mostrada, a disparidade entre a(s) juventude(s) é explicitada. As jovens do colégio que falam no filme, chegam a pontuar sua visão sobre o assunto. Ciça, jovem de 16 anos, começa falando e logo é interpelada pela colega Mariana, de mesma idade. Por último, Maísa, também de 16 anos, conclui. Aqui, as falas são apresentadas na ordem citada: Olha, eu não sou uma pessoa que vou lá na favela ou convivo com (eles) (...) mas eu tenho um pouco de contato (...) Tento ver, se saio na rua, aquele menino que está ali pedindo bala e não só falar que ‘é um cara querendo mexer (comigo)’ e fechar a janela. (Mas você) continua na bolha, só que a bolha é transparente. Tem que sair dela e fazer alguma coisa. A gente realmente vive numa realidade privilegiada. Mas se você for conversar com uma pessoa que supostamente está fora da bolha, você vai ver que ela é igual a você. Então, acho que é uma ilusão que a gente cria. (53’35s a 54’25s). Colégio Santa Cruz, Bairro Alto de Pinheiros, São Paulo. (51'33s - 1:06:59s) A distância que se escancara na fala dessas jovens é sintoma do abismo entre as classes e seu acesso à educação. Na realidade destas jovens, os problemas relacionados à educação estão na imensa pressão e exigência enfrentadas, traduzidos também na expectativa que um cidadão de classe alta tem de se tornar um “alguém”, uma pessoa de destaque na sociedade. Enquanto as ‘Valérias de Pernambuco’ sequer conseguem que seus cansados professores reconheçam sua sensibilidade para escrita, Ciça, que nos introduz à escola falando de sua dificuldade em entender o que “fará da vida”, ao final do documentário, vemos que estava cursando Engenharia na USP. Anteriormente à esta escola particular, conhecemos Keila, jovem de 16 anos que estuda na Escola Estadual Parque Piratininga II, em Itaquaquecetuba, 50km da cidade de São Paulo. Na primeira fala de uma professora sobre o município, diz que “Piratininga é a periferia da periferia” (35’39s). Keila relata ter sofrido de enorme apatia, cogitado até mesmo que “morrer seria a solução” (46’20s). Entretanto, reitera a importância da fala de sua Profª. Celsa, que a encorajou a não desistir e, através de um projeto na Escola de produção de fanzines, possibilitou que Keila reencontrasse uma motivação para viver (46’48s). Keila, entretanto, diferentemente de Ciça ou Thaís do Colégio Santa Cruz, ao ser acometida por severas dúvidas e paralisante torpor, não possuía o tempo e arcabouço social necessário para que fizesse valer seus sonhos. A realidade se impôs e ao terminar o ensino médio em 2004, apesar do gosto pela poesia, ingressou num trabalho fabril, dobrando calças. Ao ser entrevistada um ano depois de formada, reconhece sutilmente o peso quase-determinante que sua realidade social infligiu: “Não tenho momentos para sentir alguma coisa de crítica. (...) Hoje em dia, não consigo. Falta alguma coisa (...) gostava da escola. (...) Hoje em dia, é só do trabalho-para-casa, da casa-para-o-trabalho”. (46’04s). A professora responsável por este momento na Escola, de recuperação da autoestima e gana de viver de Keila, a Celsa, é um dos bons gatilhos que o documentário levanta sobre o papel que o docente tem em sala de aula e na sociedade. Responsável por até mesmo um aconselhamento difícil de uma aluna com tendências suicídas, Celsa aparece novamente no documentário após uma fala da diretora, Fátima, sobre os professores que faltam: Nós temos um grupo de professores eventuais - cobrir a falta dos que eventualmente vão faltar. Sempre há faltas, há dias que faltam poucos, há dia que faltam mais. A legislação é permissiva, dá direito para que o professor falta sem que isso prejudique sua carreira (38’51s) Como se denegasse a fala flertadora-com-a-punição da diretora, Celsa nos dá um comovente e, infelizmente, ainda tão atual relatodo que é o trabalho dos professores na sociedade capitalista, orientada por um perverso neoliberalismo: Falto por cansaço. Ser professor e estar envolvido mesmo com a profissão, com eles, com os alunos, é uma carga física e mental muito grande. É mais do que um ser humano pode suportar. (...) Faço terapia, tenho que ir ao psiquiatra porque não dá. Você se envolve com os problemas deles e nem sempre tem o retorno. Às vezes você entra numa sala de aula, você é mal recebido pois o professor ainda é visto como o inimigo. Existe um abismo muito grande entre professor-e-aluno, professor-e-diretor. A impressão que tenho é que ninguém se entende. (...) O papel do professor na sociedade é muito importante, só que ninguém dá essa importância. Então, quando se abandona o profissional, ele tende a deixar pra lá. O professor perdeu a dignidade, (...) não temos a dignidade para trabalhar. O Estado deixa tudo jogado, não tem ninguém para (acompanhar). Maquia-se muito as coisas. (39’28s) A potente fala de Celsa evidencia aspectos que apontam na direção correta para o diagnóstico político que resulta na disparidade de qualidade, acesso e permanência dos jovens nas escolas do país. Ao mencionar o papel determinante da omissão do Estado, Celsa nos indica que este processo de desvalorização do ensino se trata, na verdade, de um projeto político. Tanto a fala da diretora Fátima sobre a escola ter tido bons resultados no ENEM (37’38s), quanto a fala de Dona Nenê, Diretora da Escola de Inajá, que diz: "eles, com certeza, quando são avaliados, seus conceitos são insatisfatórios” (12’42s), funcionam como um prognóstico de uma doença implementada pela reforma neoliberal na educação, a partir dos anos 1990 no Brasil, que Luiz Carlos de Freitas (2018) esclarece: Em vez de cuidar da remoção das condições que impedem o setor público de ampliar sua qualidade (por exemplo: instalar turmas menores, eliminar o professor horista, combater a pobreza, entre outros), essa política não reconhece limites estruturais da ação da escola e prega a definição de “padrões” que permitam a “elevação da régua” nos testes (Sentell, 2018), ou seja, acrescentam mais exigências sem remover os impedimentos que afligem as redes públicas. Nessas condições, mais escolas tendem a falhar, e consequentemente mais escolas se tornam candidatas à privatização por terceirização ou vouchers. Cria-se um “culto à nota mais alta” que tudo justifica: inclusive o fechamento das escolas e sua conversão em escolas terceirizadas, iniciando o processo de constituição de um mercado educacional. (FREITAS, 2018, p.81) Sendo assim, não se trata de, com a constatação do empobrecimento do ensino público como projeto de uma reforma empresarial na educação, negar o poder micro-regulador que o professor, como indivíduo, tem na vida dos alunos. É fato que o tem, e deve sempre fazer uso disso para buscar a conscientização e transformação da vida destas pessoas, como bem estimula Profª Denise em curso de formação de docentes, na Escola Estadual Dias Lima, na Cidade de Inajá, Pernambuco: Nesta sala de aula estamos mais que antiquados. O quadro aqui e vocês aí, só esperando. Então, será que no futuro nós vamos ter a chance de mudar isso? Ou vai continuar desse mesmo jeito porque a nossa realidade é essa? Porque é Pernambuco, porque é Nordeste, porque é Brasil? (...) Nós debatemos todos os dias isso. A vida prática do docente, como você vai se comportar, como será a escola do futuro, como será sua prática pedagógica? De que lado você vai ficar? Do lado do sistema, tapando os olhos e fazendo tudo do mesmo jeito ou você vai ser um educador? (13’51s). Entretanto, faz-se fundamental reiterar que o não reconhecimento do papel da luta de classes como o essencial determinante, ou mesmo não reconhecer o saldo histórico que deságua nas desigualdades enfrentadas hoje, é decerto, um desserviço. Entender os limites do papel do educador não lhe é denegar poder de ação, pelo contrário, é entender que o educador trava uma batalha importante de fomentar o pensamento crítico e a capacidade questionadora. Leandro Konder (2004) bem ressaltou, sem desesperança, a fronteira entre os limites e as potências de quem educa: A atividade do educador era parte do sistema, e portanto não poderia encaminhar a superação efetiva do modo de produção entendido como um todo. O educador não deveria nunca ser visto como sujeito capaz de se sobrepor à sociedade (...) A atividade do educador tem seus limites, porém é atividade humana, é práxis. É intervenção subjetiva na dinâmica pela qual a sociedade existe se transformando. Contribui, portanto, em certa medida, para o fazer-se da história. (KONDER, 2004, p. 14) Conclusão A Escola cumpre um papel preponderante na vida de jovens periféricos, oferecendo a possibilidade de vislumbre de uma vida melhor através da educação. Entretanto, o Estado - guiado por uma ideologia neoliberal, cobra da Escola o atendimento de demandas que não seriam delas. O Estado segue adiante, sem enfrentar os problemas primordiais que estão na raiz da questão: a pobreza, distribuição de renda, condições de trabalho dignas para os docentes etc. Dessa forma, a escola pública segue num processo de sucateamento, parte de uma agenda de reforma educacional. Esta, através dos testes impulsionados pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), coloca-se as avaliações do Programa de Avaliação de Internacional de Estudantes (Pisa) como referência, e finalmente, constata-se a suposta ineficiência da educação pública. Abrindo assim, ainda mais caminho para que se acelere o processo de privatização e fortalecendo, desta forma, a visão de que a educação não é direito, mas uma mercadoria. REFERÊNCIAS FREITAS, Luiz Carlos de. A reforma empresarial da educação: nova direita, velhas ideias. 1ª ed. São Paulo: Expressão Popular, 2018. KONDER, Leandro. “Marx e a Sociologia da Educação”. In: TURA, M. de L. R. (Org). Sociologia para Educadores. Rio de Janeiro: Quartet, 2004.
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