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ARTICULAÇÕES ENTRE A PSICOLOGIA
SOCIAL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS NA ASSISTÊNCIA SOCIAL
Líljan Rodrigues da Cruz Neuza Maria de Fátima Guareschj
Para analisar as interfaces da Psicologia Social com as políticas públicas na Assistência Social, discutimos, primeiramente, a constituição do social como objeto de conhecimento no campo de intervenção das ciências humanas e a especialidade da Psicologia com o objetivo de desnaturalizar o social. Em seguida, analisamos as interfaces da Psicologia Social com as políticas públicas na Assistência Social, bem como a inserção da Psicologia neste campo, lançando alguns desafios.
O social como objeto de conhecimento
Cena um: Primeiro dia de aula no curso de Psicologia. A professora olha a lista de presença e vê que são 60 alunos, ou melhor, são 56 alunas e 4 alunos. Sem surpresa, apresentase e pergunta aos acadômicos: "Por que vocês escolheram fazer Psicologia?" Surpresos, os dedos, paulatinamente, começam a subir e as respostas rompem o silêncio, inicialmente tímidas, logo o eco encoraja outras: "Eu gosto de ajudar as pessoas", "Sempre gostei de resolver os problemas das minhas amigas", "Eu Cany bém sempre gostei de ajudar os outros'
Cena dois: Dois anos depois, no primeiro dia de aula da disciplina Psicologia Social, a professora pergunta aos alunos: "O que estuda a Psicologia Social"? "É' a psicologia que não vê o ser humano como individual"; "É a psicologia que trabalha com
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grupos, na comunidade"; "E a psicologia que considera o con texto social e histórico"; 'Não é a psicologia que trabalha para a população carente?"
Estas imagens fazem parte do cotidiano dos professores e professoras de Psicologia e, certamente, nossas respostas enquanto acadêmicas foram similares. Ora, se é necessário nomear uma psicologia de "social", é porque há, no mínimo, outra que não é social. Logo nos vem à cabeça o antônimo: individual. Este raciocínio simplista e dicotômico (individual/social) parte da premissa de que a Psicologia Social é um campo de atuação da Psicologia. Para discutir esta questão recorremos ao competente trabalho de Rosane Neves da Silvai , em sua tese do doutoramento, que a partir da estratégia genealógica sugere que ao invés de a psicologia explicar o social, é o social que explica o surgimento da Psicologia. Importante, primeiramente, conhecer a intenção da pesquisa genealógica proposta por Michel Foucault.
Esta se propõe a desnaturalizar os conceitos, situando as condições singulares que propiciaram sua criação. O trabalho genealógico não busca a origem, mas a análise da proveniência e da emergência de saberes, práticas, de seus diferentes confrontos e produções. Proveniência designando "descoberta das marcas sutis, singulares" que formam redes de diferenciação, atentando para "o que se passou na dispersão que lhe é própria", demar cando "os acidentes, os ínfimos desvios" (FOUCAULT, 2001: 20 21). A proveniência "agita o que se percebia imóvel, fragmenta o que se pensava unido; ela mostra a heterogeneidade do que se irnaginava em conformidade consigo mesmo" (p. 21). Já a emer gôncia seria a análise do surgimento e da proliferação "das forças em seus jogos e lutas", do suas entradas em cena, de como elas 'passam dos bastidores para o teatro", Portanto, ninguém pode reivindicar uma emergência, não há urn responsável por ela, esta sempre se produz nos encontros, por acidentes, por situações únicas em lugares e tempos específicos, numa relação complexa, num emaranhado de jogos de forças e acontecimentos. Produ-
1. Referimo mn_os à tese intitulada "Cartografjas do social: esl,ratégias dc produção do ccv nhocimento" , defendida no ano de 20011 no Programa de Pós-Chaduação cm Educação da Universidade Federal do Rio Grande do SIII, sob orientação de Malgareth Schàtter.
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Ções e práticas que geram marcas e produzem sujeitos, como, por exemplo, crianças e adolescentes em situação de risco so cial, famílias vulneráveis e instâncias de intervenção; como aplicação de medidas de proteção social e serviços de acolhimento institucional.
Para pensar como o social se constituiu como objeto do conhecimento e campo de atuação das ciências humanas e, especificamente, da Psicologia, Silva (2004) propõe que passemos a encarar o social como um problema e não como uma evidência. Como assim? Abandonar a ideia do social como natural e trínseco ao humano. Nas palavras da autora, "quando deixarnos de considerá-lo como uma evidência e passamos a constituí-lo como um campo problemático, vemos que o social é essencialmente um objeto construído e produzido a partir de diferentes práticas humanas e que não cessa de se transformar ao longo do tempo" (SILVA, 2004: 13). Cada formação histórica possibilita a emergência de determinada problemática que produz, concomitantemente, uma configuração específica do social. Logo, "em que momento o social passa a ser formulado como um problema que requer um tipo de intervenção específica?" (p. 13).
Silva (2004) aponta o momento em que disfuncionalidades deixam de ser resolvidas nas relações cotidianas informais e começam a demandar intervenções formais. Para Castel (1998), havia na sociedade pré-industrial formas de relacionamento no meadas por ele de societais, "a qualificação geral das relações humanas enquanto se referem a todas as formas de existência coletiva" (p. 48), Uma sociedade sem social seria aquela regida pela sociabilidade primária, ou seja, "por um sistema de regras que ligam diretamente os membros de um grupo a partir de seu pertencimento familiar, da vizinhança, do trabalho e que tecem redes de interdependência sem a mediação de instituições cíficas" (p. 48). Por outro lado, para o autor, o social caracterizase por "uma configuração de práticas especializadas a partir de uma falha nas assistências não especializadas ou primárias" (p. 48). Assim, nas relações societais, uma criança órfã era inserida na rede de proteção próxima, como uma família na redondeza. Lembremos os chamados filhos de criação, tão comuns e bemdescritos em estudos antropológicos, exemplo onde relações sociais informais davam conta das "disfunções" , ao passo que hoje
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temos a intervenção de instituições e profissionais específicos (inclusive psicólogo) para o estatuto da adoção.
Silva (2004) afirma que a primeira configuração do social está vinculada ao campo social assistencial: intervenções que visam a proteção e integração de indivíduos carentes pertencentes a um mesmo território e que são incapazes de trabalhar. Quando as categorias consideradas carentes e/ou incapazes de trabalhar já não são absorvidas nas relações informais, equipamentos institucionais são criados, como asilos, orfanatos e hospícios. mos dizer que emerge um fenómeno nomeado como "as pessoas que precisam de ajuda", Enquanto evidência, ou seja, quando outras pessoas (e instituições) ajudavam e davam conta dos cessitados, não havia problema. Passa a ser um problema quando tais soluções são insuficientes e algum campo do conhecimento toma a questão como seu objeto de estudo. É nesse momento que o campo social assistencial configura-se como um objeto de estudo da Psicologia Social. Até a metade do século XIX a problematização do social estava relacionada às formas de intervenção decorrentes da relação entre trabalho e pauperismo, conformando uma lógica assistencialista, na qual o foco centrava-se na assistência de uma parcela da população que não conseguia subsistência por meio do trabalho (SILVA, 2004).
Nesse sentido, o assistencialismo parece estar atrelado à psicologia bem antes de falarmos em políticas sociais públicas como campo de investigação da Psicologia Social. Se recorrermos às cenas iniciais do texto, "ajudar as pessoas" antecede ao próprio ingresso na faculdade de Psicologia.
Para compreendermos a segunda configuração do social, Silva (2004) sugere que resgatemos a instauração da noção de direitos que ocorre na transição de uma organização feudal para a emergência do Estado-nação. Desde sua origem, o Estado ta-se para o fortalecimento da ordem burguesa, promovendo açÕes para suaconsolidação, onde a Revolução Industrial e a Revolução Francesa são determinantes para esse processo, cujo princípio é o da acumulação e o fundamento é a propriedade privada dos Ineios de produção. Sendo assim, o século XVIII instaura a chamada era dos direitos civis, necessários à ordem burguesa, pois era preciso liberdade de ir e vir para vender a força dc trabalho,
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bem como ter a garantia de segurança em relação a propriedade privada. Podemos dizer que os direitos civis se referem à dade e à igualdade perante a lei (PEREIRA, 2006). Contudo, Silva (2004) sinaliza para uma lição fundante da República, não confundir o "livre acesso ao trabalho" com o "direito ao trabalho". Segundo Castel (1998), ao impor as leis do mercado ao conjunto da sociedade, dá-se um processo de destruição da forma específica de regulação social, mediada pelo Estado, fazendo com que paire uma ameaça que coloca em primeiro plano a temática da vulnerabilidade.
No século XIX ocorre a consolidação da sociedade liberal capitalista, caracterizada pelo livre acesso ao mercado, onde todos os homens são livres e iguais para competir; concomitantemente, a desigualdade social e econômica cresceu, acompanhada por longas jornadas de trabalho e baixos salários, deflagrando a miséria de uma multidão. Ora, a questão social expressava-se na exclusão das pessoas, culminando em manifestações e reivindicações dos trabalhadores por melhores condições de vida e de trabalho, intensificando-se com a crise do capitalismo em 1929.
Para melhor compreensão deste cenário, recorremos à Castel (1998), uma vez que ele caracteriza o estado de pobreza como resultado de várias rupturas de vínculos, e não exclusivamente à questão econômica (moradia, rendimento, higiene). O que produz a vulnerabilidade é o efeito da integração (ou não) pelo trabalho e a inserção (ou não) sociofarmliar. Assim, postula o conceito de desfiliação, que conjuga o estado de precariedade do trabalho com a fragilidade do elo social,
Para Silva (2004), este novo tipo de relação entre a questão do trabalho e a da pobreza evidencia as contradições do modo de produção capitalista. A desregulação da organização do trabalho precipitará o que se convencionou chamar de "questão social" , ou sejaj uma reorganização do mundo do trabalho. A partir disso, começa a esboçar-se a segunda configuração do social, evidenciando um novo problema que põe ern risco o processo de produção de riquezas: o fenómeno das multidões, que ameaça a ordem social* Embora este fenómeno não fosse novidade no século XIX, nesse momento que se torna objeto de estudo específico em função da ameaça crescente de ruptura dos equilíbrios sociais,
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desencadeada pelas contradições inerentes as novas normas da sociedade industrial" (p. 17). Paulatinamente, o social passa a ser um problema para o Estado (e a sociedade) quando este se vê ameaçado de perder o controle da situação em função do fenômeno das multidões que se intensifica. Nesta segunda configuração, o social se torna um objeto de conhecimento, um novo domínio de saber, motivo pelo qual ag multidões se transformam em alvo de investigação.
O fenômeno das multidões certamente desempenhou um papel decisivo nesse processo de objetivação do social não apenas porque ameaçava uma certa "OE dorn social" mas, fundamentalmente, porque suas reivindicações tornavam evidentes as contradições inerentes à dinâmica do projeto liberal. Por esse motivo, as multidões vão se tornar o alvo de uma investigação sistemática (SILVA, 2004: 18).
Não apenas o fenômeno da multidão passa a ser objeto de estudo da psicologia, mas também a violência, a desorganização social. Há "uma complementaridade entre o que chamamos de uma segunda configuração do social e o advento das ciências hu manas e que resulta na emergência de um novo campo de saber que marca a invenção deste território denominado de Psicologia Social" (SILVA, 2004: 18). A autora questiona se é a psicologia que vai buscar o social ou é o social que busca a psicologia,
A ameaça social das multidões se torna um problema que demanda intervenções, tornando o social objeto de conhecimen to para as ciências humanas. A Psicologia, a partir de um con junto de açóes estratégicas, tecnologias, instituições e saberes, vai tentar dar conta deste objeto. Se lembrarmos das respostas dos académicos frente à pergunta "0 que estuda a Psicologia Social?" , elas parecerão coerentes: "É a psicologia que trabalha com grupos, na comunidade"; "Não é a psicologia que trabalha para a população carente...
Não podemos deixar de mencionar que, neste cenário, os direitos políticos também emergiram no século XIX em resposta às terríveis condições de vida da classe trabalhadora, que passou a exigir o direito de organização em sindicatos e de participar da vida política, reservada aos proprietários (PEREIRA, 2006). Já o
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nascimento dos direitos sociais, no século XX, é resultado das lutas enfrentadas pela classe trabalhadora desde o século anterior. Estes se referem ao atendimento das necessidades humanas básicas, como alimentação, habitação, assistência, saúde, educação, ou seja, "a um mínimo de bem-estar econômico e segurança, ao direito de participar por completo da herança social e levar a vida de um ser civilizado de acordo com os padrões que prevalecem na sociedade", Os direitos sociais, juntamente com os civis e os políticos, constituem as três dimensões da cidadania (MARSHALL apud OLIVEIRA, 2007: 7). A efetivação dos direitos sociais está atrelada às condições econôrnjcasi ou seja, à intefr venção do Estado. E este, além de seu papel político, sempre desenvolveu açÕes económicas em prol da empresa capitalista. Esta tensão permanente acarreta a dificuldade em viabilizar políticas sociais públicas, nas quais "a luta pela universalização dos direitos sociais e políticos e a busca da igualdade como meta dos direitos sociais são características de vários momentos e declaraçôes construídas pelos homens, principalmente a partir dos séculos XVIII, XIX e XX" (COUTO, 2006: 49).
As práticas da Psicologia na assistência social
Cena três: Ano 2000. Primeiro dia de aula no doutorado em Psicologia. Cada aluna se apresenta brevemente, indicando seu orientador(a) e, ao final, fala qual é a temática do projeto de tese. Uma voz forte, denotando orgulho, profere: "Infância e políticas públicas"! Olhos espantados e logo ecoa a indagação: "Mas, o que isto tem a ver com Psicologia?'
Há apenas uma década evidenciávamos (e vivíamos) o estranhamento da relação entre Psicologia e políticas públicas para a infância. Contudo, as práticas da psicologia estavam presentes antes da assistência social se constituir c01110 política pública, sendo que escolhemos a tensão entre as concepções "sujeito de direito" e "sujeito da caridade" para dialogar sobre as práticas da psicologia na fronteira com as políticas públicas de assistência social.
A expressão "sujeito de direito" só começa a ser mencionada após a Constituição Federal de 1988; até então havia práticas de
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assistência social, onde o objeto destas era o "sujeito da carida de", aquele que precisa de ajuda por algum motivo, o desvalido, o pobre, enfim, podemos associar com a primeira configuração do social. Entretanto, caracterizamos este período (de 1998 até agora) como de transição, ou seja, um processo de incorporação da nova concepção. O "sujeito de direito" não é somente pobre (ainda que possa ser), mas o desfiliado, conforme propõe Castel (1998), O desfiliado conjuga o estado de precariedade do trabalho com a fragilidade do elo social, aludindo a ruptura, desqualificaçáo e invalidação social, atrelado às vias de sua produção, o que é diferente do conceito de exclusão que sugere uma condição estanque, designando estado de privação, Assim, o processo de desfiliação é continuamente balizado pela chamada zona de vuL nerabilidade.
No documento intitulado "Tipificação nacional de serviços socioassistenciais" (BRASIL, 2009), tanto a concepção de "sujeito de direito" como o conceito de vulnerabilidade ficam evidenciados, à medida que osdestinatários da proteção social básica são caracterizados como "famílias em situação de vulnerabilidade social decorrente da pobreza, do precário ou nulo acesso aos serviços públicos, da fragilização de vínculos de pertencimento e sociabilidade" (p. 7). Por outro lado, situações cotidianas nos Cras mostram a tensão entre o sujeito da caridade e o do direito. Uma delas, bastante discutida, é quando o psicólogo é interpela do por um pedido de cesta básica, em que a solicitante diz não ter o que comer, bem como seus filhos. Fornecer ou não a cesta tem sido um dilema de muitos psicólogos; alguns argumentam que dar a cesta é eminenternente assistencialista, logo, não dão Outros consideram que fornecer "não ensina a pescar", o que gera pedidos recorrentes. Muitos pesam o contexto do pedido, bem como a história da solicitante, pois reconhecem que negar ajuda, em alguns momentos, pode ter como consequência a fome da família. Também escutamos psicólogos dizerem: "Sem caniço, sem anzol e sem peixe não tem como ensinar a pescar, é preciso dar o peixe mesmo!" "Tá com fome? Sem culpa, aqui está a sua cesta'.
Se tomarmos a concepção de história para Foucault (2001), diremos que a política pública de assistência social é um campo de forças em luta, onde discursos, práticas, saberes se produzem
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e se confrontam, onde um certo modo de funcionamento se he gemoniza dentre outras possibilidades. A partir desses embates emergem saberes e práticas dominantes que constroem certos modos de vida. Nesse sentido, a trajetória não é linear, não é natutal, mas é construídaj à medida que indaga sobre as condições que permitem ao homem refletir sobre o que faz. Tem presente o questionamento sobre como os discursos relacionam-se com estratégias de poder, que efeitos produzem na trama social e que subjetividades produzem. Esta tensão entre o "sujeito de direito" e o "sujeito da caridade" está presente no campo da assistência social, onde os usuários, muitas vezes, se veem como sujeitos da caridade, "pedintes": de cesta básica, de ingresso no Programa Bolsa Família, de vale-transporte etc.
Já que mencionamos o 'Programa Bolsa Família (PBF), façamos algumas reflexões. Ele foi lançado em 2003, portanto, antes do Plano Nacional de Assistência Social, com a perspectiva de combater a pobreza e a fome no país. Também prioriza a família como unidade de intervenção e destina-se às pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, Elogiado por muitos, também recebe duras críticas por ser considerado um programa assistencialista. Contudo, considerando a tensão "sujeito de direito" e "sujeito da caridade" , como compreender a contrapartida (condicionalidades) do programa, nas áreas da saúde, educação e assistência social? Se o PBF fosse concebido exclusivamente como um direito social, por que a exigência de condicionalida des? E se, como aponta Castel (1998), a zona de vulnerabilidade está atrelada à precariedade (ou ausência) de trabalho, é de es tranhar o pouco investimento em programas voltados à geração de emprego e renda. Então, aquele velho ditado, "não adianta dar o peixe, é preciso ensinar a pescar" , pode parecer ultrapassado, quando muitos sabem pescar e pescam (trabalham), mas não conseguem assegurar a independência económica. Mais recentemente, Castel (2011) vai dizer que, em função da degradação crescente das condições de trabalho, há uma nova condição de trabalhadores, os trabalhadores pobres.
Abrimos este item afirmando que o psicólogo ingressou na assistência social antes dela se constituir como política pública, muito antes da obrigatoriedade de este profissional compor
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equipes de Cras e Creas. Oportuno lembrarmos que Foucault2 afirma que a Psicologia se conforma enquanto ciência prestando serviços às outras ciências. Logo, ela se constitui num campo de produção de técnicas e métodos psicológicos para descobrir a interioridade do indivíduo, o inconsciente, enfim, presta serviço à educação, medicina, direito... E segue a Psicologia tentando "dar conta" das variadas demandas a ela endereçadas. Seria uma ciência potencialmente útil?
Embora a profissão de psicólogo tenha sido reconhecida em 1962, o discurso psi já se encontrava disseminado em algumas práticas no campo jurídico, corno no Laboratório do Biologia Infantil, órgão anexo ao Juizado de Menores, criado em 1935. Este objetivava ajudar o juizado em suas funções de abrigar e distribuir as crianças que necessitavam de proteção e assistência das instituições. A Psicologia apresentava-se como um dos instrumentos (úteis) capazes de determinar as causas do "desvio do menor". O exame psicológico procurava investigar o nível intelectual da criança e a existência de distúrbios psíquicos. De acordo com as finalidades do Juizado de Menores de observar, conhecer, estudar e classificar a criança, o Laboratório de Biologia Infantil lançou mão de dois assuntos de caráter psicológico: a psicotécnica e o estudo da personalidade da criança. Assim, a investigação era realizada mediante o uso de testes, objetivando não só classificar, mas resgatar o desviante, enquadrando-o à normatividade. Dessa forma, os saberes científicos, especificamente o pensamento psicológico, legitimou atitudes de exclusão e desqualificação de crianças e jovens pobres e delinquentes, uma vez que fez (ou ainda faz) recair a terapêutica sobre o in divíduo desviante, esvaziando discussões quanto aos aspectos sociais que compõem o "desvio" (OLIVEIRA, 2001).
Bulcão (2002) assinala que a preocupação em criar açÕes voltadas para o atendimento de crianças e adolescentes vinciE lava-se com a visibilidade de um grande contingente desta população viverido nas ruas das grandes cidades, como resultado de mudanças econômicas e políticas, como o fim do regime de trabalho escravo e a imigração de trabalhadores europeus, acom-
2. Referirno„nos aos textos 'IA psicologia entre 1850/195(Y' e "Psicologia e filosofia".
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panhados de um estreitamento do mercado de trabalho e um crescimento desordenado das áreas urbanas. Nesse sentido, os chamados menores tornaram-se um problema do poder público, logo a preocupação com a gestão e a tutela dos chamados perigosos, instituindo-se a noção de periculosidade. Para Foucault (1996), os indivíduos passam a ser considerados pela virtualidade de seus comportamentos e não por infrações efetivas, sendo que, a partir dessa noção, forrnam-se uma série de instituições nomeadas instituições de sequestro, cuja finalidade é fixar os indivíduos a aparelhos de normatização, buscando enquadráAos e controlá-los no nível de suas virtualidades.
É nesse sentido que a inserção do psicólogo junto à Fundação Nacional do Bern4Cstar do Menor (Funabem) ocorreu em 1964. Daquela época até o advento do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) as práticas psicológicas consistiam, majoritariamente, na elaboração de estudos de caso e laudos, os quais enfocavam a etiologia da infração e as causas da suposta "de sagregação familiar". Os laudos daquele período reproduziam o padrão das elites sociais no que diz respeito à família, ao lho e à moradia. O fato de um adolescente não ter a presença do pai na família já era considerado de uma família desagregada e/ ou desestruturada. Ou seja, o fator determinante que permitia incluir/excluir estes jovens em certas medidas de ressocialização era a origem socioeconomica de suas famílias (MARTINS & BRITO, 2003).
A partir do pressuposto de que o "menor" com conduta an tissocial era considerado como um ser "doente" que :necessitava de "tratamento" a açáo corretiva da Funabem fundamentou-se em métodos terapêuticos - pedagógicos desenvolvidos com a finalidade de possibilitar a "reeducação" e a "reintegração" do 'menor" à sociedade. A Funabem voltava-se para a utilização de políticas de. prevenção capazes de evitar que o "menor" incorresse no processo que levaria à marginalização, à medida que a marginalidade representava um fator de risco para a ordem e a paz social (PASSETI, 1999).
Se na constituição da Psicologia evidenciamos uma matriz assistencial, também a herança dicotómica daMedicina se faz presente (saúde/doença, normal/patológico), onde ao psicólogo
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era (ou é) demandado um diagnóstico psicológico para desvelar a "real essência do indivíduo". A partir desses, o Judiciário respaldase cientificamente para emitir um veredito. Segundo Ayres (2002), as práticas psicológicas foram ganhando espaço e afirmando•se como procedimento científico produtor de verdades.
O processo de abertura política no país possibilitou ainda aos especialistas da área social ganharem maior visibilidade e, com os seus saberes, desqualificaram a vida de crianças pobres, interferindo em seus destinos, na medida em que apontavam para uma estreita conexão entre a criminalidade e a pobreza (COIMBRA, 1995)- Coimbra e Leitão (2003) assinalam que tudo que escapasse ao modelo de família sadia e estruturada, com sonhos de ascensão social, era considerado perigoso, devendo ser banido. Dessa formai duas categorias sobre a juventude foram produzidas: a do subversivo e a do drogado.
Acreditamos que hoje, mesmo após a vigência do ECA, algumas práticas psi continuam a fortalecer a crença em modelos hegemónicos, só que com outra maquiagem. Será que não estamos substituindo o binômio "criança/menor" por "criança e crianças em situação de risco"? Ou mesmo "famílias" e "famílias vulneráveis"? Da mesma forma permanecemos com o binômio: "população em perigo" x "população perigosa". A população em perigo é aquela que necessita de proteção, as crianças inocentes, enquanto que a população perigosa é aquela da qual a sociedade precisa se proteger, vinculada à segurança pública, não à assistência social. Entretanto, a chamada "população em perigo" vive na fronteira, pois, oriunda de "famílias vulneráveis corre o risco de pertencer à população perigosa; logo, a urgência de açÕes consideradas preventivas. Oual é o foco dessas ações? Como a família torna-se central nas intervenções das políticas públicas de assistência social?
Entre práticas psicológicas e políticas públicas na assistência social
Cena quatro: Informes: os dados do Ministério do DesenT volvimento Social e Combate à Fome/Secretaria Nacional de Assistência Social apontam que, em julho de 2011, em torno de
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33 mil psicólogos estavam inseridos nos Cras e Creas do país. Pesquisa sobre Atuação dos Psicólogos no Cras/Suas3 , divulga da pelo Centro de Referência Técnica em Psicologia e Políticas Públicas (Crepop) em agosto de 2010, afirma que 85% dos psicólogos que trabalham nos Cras têm entre 24 e 31 anos de idade, e o tempo de graduado é de até 2 anos em 32% dos psicólogos. Já em relação ao tempo de atuação no Cras, 92% tem até 4 anos.
Conforme colocamos em outro trabalho (CRUZ; HILLESHEIM & GUARESCHIi 2005: 46), "as práticas psi, ao constituírem uma infância tida como ideal, desejável, normal, produzem assim uma verdade sobre deterrninados modos de ser e viver a infância". Nesse sentido, apesar do ECA incorporar importantes questionamentos no que se refere às políticas sociais para a infância, perdura uma noção compensatória no que se refere às crianças e adolescentes pobres, pois são compreendidos como carentes e em situação de risco.
Se a pobreza está atrelada à chamada questão social, não se caracterizando como um atributo do indivíduo (pobre), como preconiza a concepção do "sujeito de direito", quais os efeitos nas práticas de abrigagem, por exemplo? O ECA determina a prevalência das medidas de proteção que visam fortalecer os vínculos familiares e comunitários e enfatiza que a pobreza sociofamiliar não justifica o abrigamento de crianças e adolescentes. Acrescenta que "a falta ou carência de recursos materiais não constitui motivo suficiente para a perda ou suspensão do pátrio poder" e que, "não existindo outro motivo que, por si só, autorize a decretação da medida, a criança ou adolescente será mantido em sua família de origem, a qual deverá obrigatoriamente ser incluída em programas oficiais de auxílio" Apesar de a criança não poder ser retirada de sua família por motivo socioeconômfr co, o quesito pobreza ainda determina grande parte dos abrigamentos, apesar de encontrarmos como motivo de ingresso uma denominação que consideramos substitutiva: "negligência dos pais". Ou seja, como a condição socioeconómica não justifica o abrigamento, aliás, até o impede, é preciso encontrar outro mo-
10/11/CFP_CREPOP_Descritivo_CRAS. pdf [acesso em janeiro de 2012].
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tivo que o justifique. A chamada "negligência dos pais" parece ter sido a alternativa encontrada. Contudo, a família acaba sendo culpabilizada por sua condição econômica, além do discurso que desqualifica os pais (FONSECA & CARDARELLO, 1999; GOMES & NASCIMENTO, 2003; CRUZ, 2006; NASCIMENTO; CUNHA & VICENTE, 2008)4
Para Passetti (1999), enquanto o Código de Menores realizava a classificação das crianças e adolescentes de acordo com sua inserção no trabalho e sua conduta, estabelecendo graus de periculosidade que se originariam na família, o ECA irá definir a situação socioeconómica como fundamental para compreendermos as condições de emergência da infância em situação de rjsco, cabendo ao Estado, em conjunto com a sociedade civil, formular políticas sociais públicas que deem conta desta questão- Nesse sentido, conforme já apontado, as legislações reiteram que a família deve ser priorizada, e o foco da atenção (integral) são as famílias consideradas em situação de vulnerabilidade so cial elou de risco.
Lembremos que a concepção de vulnerabilidade social tem a pretensão de superar e, ao mesmo tempo, incorporar o conceito de pobreza, pois faz referência a um processo em vez de um estado, como é o caso das noções de pobreza e exclusão, que se imagina permanente, estático. Hillesheim e Cruz (2009) destacam que a partir da noção de vulnerabilidade "abre-se es paço para a possibilidade de intervenção, isto é, diminuindo-se a
4. A negligência dos pais tom despontado corno motivo de ingresso mais frequente em ontidades de abrigo. Em nível nacional, o recente Levantamento Nacional dos Abrigos (SILVA, 2004) aponta quo, entre os principais motivos de abrigaxnent,o, cslão a carência do recursos materiais da família (24, 1 o abandono pelos pais ou responsáveis (18,85%); a violência domóslica (11,6%); a dependência química de pais ou lesponsáveis (11,3%) e a vivência de rua (7%). Na loil;ura da autora, 52%) dos ingressos estão relacionados à pobreza familiar. A extrema pobreza também tem elevado o aumento de pedidos de vagas nos abrigos da cidade do Rio de Janeiro, segundo Rizzini e Rizzini (2004). No Rio Grande do Sul, em um levantamento de violência realizado junto a 60 Conselhos Tutelares do Estado, ent,ro os meses de agosto a otiLubro cle lói cons[alado o registro de 1.281 casos (CEDFICA, 2005). Sobre o tipo de violência sofrida, tais regisl;ros apontaram anegligência em 50,56% das situações. Elli PorLo Alegre, uma pequena amostra da Fundação de Proteção Especial constata que 78% dos ingressos o foram pelo motivo de negligência (SANTOS, 2004).
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vulnerabilidade mediante ações mitigadoras, pode-se diminuir o risco e, consequentemente, o perigo" (p. 80). A lógica é calcada na probabilidade: "Quanto maior for a presença de fatores de risco, maior a vulnerabilidade desta população e, portanto, maior a possibilidade da ocorrência de algum dano, fazendo-se necessália a intervenção sobre o perigo, deslocando-o de uma ordem do imponderável e tornando-o passível de previsão e controle" (p. 80).
Conforme Foucault (2003), o problema do govern0 5 emerge com intensidade no século XVI, sendo que, em um primeiro mornento, a família foi eleita como foco. A noção de governo aqui com a intenção de alcançar determinadas finalidades, no sentido de se dispor das coisas a partir da utilização mais de táticas do que de leis. Com o crescimento demográfico no século XVIII, surge o problema da população; esta passa a ser objeto de vigilância, análise, intervenções etc. Dessa maneira a família, como modelo de governo, cedeu lugar à população, visto que esta tem regularidades e efeitos próprios à sua agregação, os quais não são redutíveisà família. 'Por outro lado, embora não mais modelo de governo, a família passa a se constituir como um segmento importante de intervenção, uma vez que, quando se pretende obter algum dado a respeito da população, é pela família que se deve passar.
Para Scheinvar (2006), a família constituiu-se como referência imediata do indivíduo, tornando-se foco privilegiado no âmbito das campanhas sanitárias, no discurso pedagógico, nos espacos jurídicos e nos variados programas e serviços da assistência social (este último é acréscimo nosso). Desse modo, ocorre uma naturalização de uma estrutura social a partir de ulna perspectiva individualizante, sustentada no binómio indivíduo/família. A individualização como intervenção às problemáticas de prodiE cão social possibilita uma reflexão sobre as transformações que o contexto familiar vem sofrendo no contelnporâneo. Se há tempos a família perpetuava laços comunitários, estabelecendo um convívio público pelo qual perpassava a educação e o cuidado dos
5. A questão do governo para Michel Foucault, será abordada nos capítulos 3 e 5 desla obra.
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sujeitos nela implicados, atualmente vem tornando-se um nucleo privado, responsabilizado pelas ações de seus membros,
A autora demonstra que a família, no mundo moderno, tornou-se um dispositivo de privatização do social, um espaço privado no qual a referência está no indivíduo. É na família que incide a responsabilidade pelos sujeitos, o que permite que sejam convocadas legalmente "para responder por qualquer movimento tido como fora dos padrões de normalidade instituídos" (p. 50). Nesse sentid0i as famílias são convocadas a explicar e responder pelas açóes inadequadas de seus filhos, sendo sobre as mesmas que recai a culpa do que não transcorre dentro do esperado. Famílias que, pela condição econômica e social, são muitas zes atreladas ao discurso da negligência, da falta de cuidados e desinteresse pelos filhos. Para Scheinvar (2006), "o sequestro do direito à família vem ocorrendo pela intervenção na relação com os filhos, sendo esta uma das funções de certos equipamentos sociais, hoje em dia, a escola, [ . . . ] os consultórios médicos e psicológicos, o judiciário, os abrigos, o cárcere, os conselhos tutelares etc." (p. 50). Interrogamos ainda se algumas intervenções nos Centros de Referência de Assistência Social também não têm se centrado em diagnosticar, patologizar as famílias, atribuindo classificações como desestruturadas, disfuncionais etc.
Considerando que a crescente demanda de atendimento nos Cras e Creas é uma queixa recorrente dos psicólogos, alertamos para as práticas de sobreimplicação, decorrentes do modo de en frentamento à excessiva demanda, tanto que "A gente não consegue dar conta" é frequentemente ouvido e proferido nas reuniões e encontros. Para Coimbra e Nascimento (2007), a crença no so bretrabalho e no ativismo das práticas acelera a necessidade de se obter soluções rápidas e competentes pelo acúmulo de tarefas e a produção de urgência que, aliados ao contexto contemporâneop onde o tempo parece reduzirse, forja as urgências e acelera as soluções, mantendo o instituído à medida que sobra pouco espaço para a reflexão e, dessa forma, a ação dos operadores de direitos (e psicólogos, assistentes sociais, educadores) se torna também individualizada e dicotomizada, pois nem articula com a rede de atendimento, nem fomenta a formação de coletivos.
No ritmo das urgências cotidianas, problematizar a própria demanda desenfreada e nossa implicação talvez seja uma fer-
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ramenta de Intervenção possível, As cenas três e quatro, que abriram as duas últimas seções, evidenciam que no intervalo de uma década passamos da surpresa de que "infância e políticas públicas" seja um campo do psicólogo para a cifra de 33 mil psicólogos atuando nos Cras e Creas. O resgate da história recente no que se refere às práticas da psicologia na assistência social também mostrou que muitas ações pautaram-se na dicotomização normal/patológico, família estruturada/desestruturada, além de culpabilizar as famílias por sua condição socioeconómica. Podemos dizer que o discurso científico vem produzindo subjetividades desqualificadas, colocando os sujeitos em uma posição de tutela em relação ao conhecimento dos especialistas (CRUZ; HILLESHEIM & GUARESCHI, 2005).
Para finalizar, questionamos se na análise de nossas implicaÇões, dos especialistas da Psicologia, não estaríamos contribuindo e até fomentando o acúmulo de demandas e tarefas, "Que a gente não dá conta" ...além de culpabilizar famílias, ajudar na manutenção da norma, psicologizar frente às questões sociais, classificar e categorizar a vulnerabilidade social, enfim, até que ponto nossas ações não têm se configurado como dispositivos de controle sobre as famílias e os sujeitos? Lançamos, então, alguns desafios para as próximas décadas: estranhar o que nos parece familiar, articular a dimensão política na formação em Psicologia e políticas públicas, propor ações que não operem na perspectiva da normalização, enfim, acreditar na potência dos sujeitos,
Referências
AYRES, L.S.M. (2002). "Naturalizando-se a perda do vínculo miliar..." In: NASCIMENTO M.L. (org.). Pivetes: a produção de infâncias desiguais. Niterói/Rio de Janeiro: Intertexto/Oficina do Autor.
BRASIL (2004). Política Nacional de Assistência Social. Brasília/
DF: Ministério do Desenvolvimento Social e Combate à Fome/ Secretaria Nacional de Assistência Social
(1988). Constituição 1988 - Dispõe sobre a Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília: Diário Oficial da República Federativa da União.
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