Baixe o app para aproveitar ainda mais
Esta é uma pré-visualização de arquivo. Entre para ver o arquivo original
Artigo e Material Complementar/Artigo - Teoria Geral do Estado e Direito Administrativo.pdf - Página 1 de 53 - TEORIA GERAL DO ESTADO E DIREITO ADMINISTRATIVO Marco Antônio Lima Berberi (*) PARTE I 1. INTRODUÇÃO Na formação do Estado Moderno, na acepção da palavra Estado tal qual entendemos nos dias atuais, que, segundo Skinner1 (1996, p. 10) tem a sua origem no século XVI, ao menos na França e na Inglaterra, temos a Constituição, ou Carta Magna, como um dos elementos jurídicos que irão definir a estrutura do Estado como um todo, e apresentar os fundamentos de sua legitimidade. Assim, para compreendermos a formação do Estado Moderno, será preciso analisar, mesmo que de modo sintético, a passagem da medievalidade para a modernidade, tendo o Renascimento Italiano, como um período de transição e que muito contribui para o estabelecimento do mundo jurídico, tal qual temos nos dias atuais. Segundo Skinner, foi a necessidade da liberdade de se autogovernar que impeliu as cidades no norte da Itália, já no século XII a buscar uma forma de “repúblicas independentes; cada uma delas era governada ‘pela vontade de cônsules mais que de príncipes’ (1996, p. 25). Cada cidade possuía uma estrutura própria para a administração de seus interesses, e mesmo que de forma limitada, constituía o seu próprio corpo de leis, estabelecendo as condições mínimas, mas suficientes, para garantir a coesão social e jurídica dos seus cidadãos. Uma das características do Estado Moderno é o de possuir um ordenamento jurídico, onde a Constituição seja a lei maior e de onde deverá derivar as demais normas. As constituições modernas, segundo Canotilho (2003), tem por objetivo garantir a liberdade dos cidadãos, o acesso aos direitos, mais individuais do que coletivos, e finalmente, limitar o poder político, através do sistema de contrapeso entre os poderes. 2. NICOLAU MAQUIAVEL A grande revolução nos estudos políticos, com o abandono dos fundamentos teológicos e a busca de generalizações a partir da própria realidade, ocorre com Maquiavel, no início do século XVI. Sem ignorar os valores humanos, inclusive os valores morais e religiosos, o notável florentino faz uma observação aguda de tudo quanto ocorria na sua época em termos de organização e atuação do Estado2, cuja denominação aparece pela primeira vez em "O Príncipe" (1513). Com esta obra, a Política passa a ter contornos de uma significativa autonomia, se comparada à moral e à religião dos tempos medievais3. A condição da Itália, convulsionada por crises políticas, ameaças externas e ausência de unidade nacional, influencia diretamente em O Príncipe. A obra, claramente, deixa transparecer a amargura e descrença do autor em relação à condição humana. Quando a escreveu, Maquiavel desempenhava funções políticas, (*) Doutorando em Direito pela UFPR. Mestre em Direito pela UFPR. Procurador do Estado do Paraná. Ex- Procurador Geral do Estado do Paraná. Professor Universitário e Coordenador de Curso de Direito. 1 SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 10. 2 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005 3 STRAYER, Joseph R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa, Gradiva, 1988. p. 16. - Página 2 de 53 - administrativas e diplomáticas em Florença. Tinha caído em desgraça e havia sofrido pena de prisão. A intenção da obra foi encontrar um processo que unificasse a Itália e fundasse um Estado duradouro. 2.1. A Ética e a política Ao descrever o processo real da formação do Estado moderno, através do absolutismo, Maquiavel não se ocupa da moral. Trata da política e identifica as leis específicas da política enquanto Ciência. Com isso, apresenta o seu principal ensinamento, que é a separação da ética e da moral aristotélica da política. Para Maquiavel, o Estado não tem como função principal assegurar a felicidade e a virtude. Ao contrário do pensamento medieval, este Estado não é mais a preparação dos homens para o reino de Deus. O Estado passa a ter a sua própria dinâmica, faz política, segue sua técnica e faz suas leis4. 2.2. O Principado e a República Logo no início da obra, Maquiavel nos apresenta a sua distinção sobre a realidade efetiva da política e sobre os tipos de Estado: “Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens são Estados: ou são repúblicas ou principados. Os principados, por sua vez, ou são hereditários, neste caso o príncipe é por descendência antiga, ou são novos”5. Mais adiante, no decorrer de sua célebre obra, acrescenta que “muitos imaginam repúblicas e principados que nunca foram vistos nem conhecidos realmente”. E completa afirmando que, grande é a diferença entre a maneira em que se vive e aquela em que se deveria viver; assim, quem deixar de fazer o que é de costume para fazer o que deveria ser feito encaminha-se mais para a ruína do que para sua salvação. Porque quem quiser comportar-se em todas as circunstâncias como um homem bom vai ter que perecer entre tantos que não são bons6. Nesse sentido, Antônio GRAMSCI7 considera que Maquiavel deva ser entendido como um homem do seu tempo e estreitamente ligado às condições e exigências de sua época, que resultam: (a) das lutas internas da república florentina e da estrutura particular do Estado que não sabia desprender-se de uma forma “estorvante” do feudalismo; (b) das lutas entre os Estados italianos por um equilíbrio no âmbito da Itália, que era dificultado pela existência do Papado e dos outros obstáculos da forma estatal urbana e não territorial; (c) dos conflitos dos Estados italianos, ou melhor, das contradições entre as necessidades de equilíbrio interno. Isso significa que a política tem uma ética e uma lógica próprias. Maquiavel nos apresenta um novo horizonte para se pensar e fazer política, rompendo com o tradicional moralismo piedoso. A resistência a esta compreensão é o que dá origem ao termo “maquiavélico”. O preconceito sobre Maquiavel e sua obra foi fundado como resistência às suas concepções. Ao longo dos séculos, esta resistência acabou nublando a riqueza das descobertas para as ciências do Estado e da política. 4 GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. 1.ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1986. 5 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 11. 6 MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. p. 43. 7 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. - Página 3 de 53 - 2.3. Virtù, Fortuna, Força e Consentimento dos cidadãos Sob a mesma ótica, Pablo Lucas VERDÚ8 comenta que essas bases antropológicas da concepção maquiavélica explicam seu ceticismo em relação às possibilidades de permanência das repúblicas e sua esperança em um príncipe audaz, energético, dotado de virtù, protegido pela fortuna, que possa liberar a Itália de seus invasores. Trata-se de um livro, no qual a ideologia e a teoria política se fundem na forma dramática do mito, símbolo de uma vontade coletiva. É uma abstração doutrinária, pressupondo que o príncipe devia ter capacidade de condottiere à unidade do Estado italiano, ao encarnar a vontade da burguesia e a de um Estado moderno unificador da nação italiana9. Além disso, Pablo Lucas VERDÚ10 lembra que, nos Discorsi Sopra La Prima di Tito Lívio, o autor estuda as exigências inerentes ao governo republicano sobre a base prevalecente dos exemplos extraídos da história antiga. A obra do florentino, norteada pela busca da verdade efetiva, rompe com a escolástica medieval e com os pressupostos socioeconômicos que a sustentavam, ao resgatar o paradigma grego-romano. Assim, Maquiavel acredita que ao fazer alusão aos principados novos, o poder há de ser conquistado através das seguintes formas: (a) virtù: realidade subjetiva que exige atitude dinâmica do governante, o qual deve ser dotado de sabedoria e ambição dos grandes fundadores do Estado; (b) fortuna: acaso ou sorte que sempre deve acompanhar o governante, constituindo-se numa realidade objetiva e mutável; (c) vis ou força: o governante pode e deve sempre fazer uso da força quando julgar necessário para a sua ascensão e manutenção no poder, utilizando-se de ações aceleradas e nefandas ou do favor dos outros concidadãos; (d) consentimento dos cidadãos: o governante, dotado de astúcia afortunada, logra a anuência ou a ajuda de seus compatriotas em sua ascensão ao poder, ao configurar o principado civil11. Nessa perspectiva, Maquiavel e todos os autores da razão do Estado que o seguem chegam mesmo a eliminar toda espécie de limites normativo-morais que possam entravar a autoridade do príncipe, e tão-somente o submetem às normas técnicas do poder, à ratio status12. 3. JEAN BODIN O grande teórico da soberania vem a ser Jean Bodin, cujos olhos estiveram sempre presos à realidade histórica de sua pátria. O rei de França afirmava externamente nas lutas com o Império e o sacerdócio sua independência política. Esse fato passa a traduzir para o publicista um pensamento que se lhe afigura essencial ao conceito de Estado: o de soberania13. 8 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político, Madrid: Tecnos, 1972, p. 283. 9 GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. p. 3 et. seq. 10 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político, Madrid: Tecnos, 1972, p. 278. 11 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 50. 12 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 35. 13 BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves. Bodin et le projet d'une science du droit: Nouvelle Revue du XVI Siècle, Paris, v. 21, n. 2, 2003. p. 57-70. - Página 4 de 53 - A primeira obra teórica a desenvolver o conceito de soberania foi Les Six Livres de la Republique, de Bodin, havendo inúmeras fontes que apontam o ano de 1576 como o do aparecimento dessa obra. A leitura dos seis livros, que contêm apreciações e conclusões de caráter teórico, ao lado de fartas referências a ocorrências históricas citadas em apoio da teoria, deixa entrever que Bodin tomou como padrão, sobretudo, a situação da França, fazendo a constatação e ajustificação dos costumes e completando-as com apreciações que não são mais do que a revelação de sua própria concepção do que haveria de ser a autoridade real14. 3.1. A soberania absoluta Ao comentar como os príncipes estão sujeitos às leis divinas e naturais, Bodin afirma que elas proíbem ao soberano, mesmo detendo um poder absoluto, atentar contra a propriedade de seus súditos: não se pode isentar nem o papa nem o imperador, como fazem aqueles aduladores que defendem o direito papal e imperial de tomar os bens de seus súditos sem um causa; vários doutores, e mesmo alguns canonistas, abominam essa opinião, considerando-a contrária à lei de Deus. Ela não pode estar sustentada no poder absoluto; melhor seria fundamentá-la na força e nas armas, que é o direito do mais forte e dos ladrões, visto que o poder absoluto não é outra coisa senão a derrogação das leis civis, como já foi demonstrado, e que não pode atentar às leis de Deus, que anunciou por meio de suas leis que não é lícito tomar nem mesmo cobiçar o bem do outro15. O soberano possui, de fato, um poder absoluto, isto é, superior, independente, incondicional e ilimitado, pois qualquer submissão, restrição, obrigação ou limitação é incompatível com a própria idéia de soberania16. 3.2. O direito de legislar Numa sociedade política, Bodin entende que ter poder absoluto significa estar acima das leis civis: “aquele que melhor compreendeu o que é poder absoluto disse que não é outra coisa senão a possibilidade de revogar o direito positivo” 17. O caráter absoluto do poder soberano manifesta-se principalmente no direito de criar, de corrigir e de anular as leis civis de acordo com a vontade do seu detentor: “é preciso que os soberanos possam dar a lei aos súditos e anular ou revogar as leis inúteis para fazer outras; o que não pode ser feito por aquele que está submetido às leis ou por aquele que está sob o comando de outrem” 18. O direito de legislar é considerado por Bodin o primeiro e mais importante direito da soberania, porque a partir dele todos os demais são definidos. Os direitos de declarar a guerra e tratar a paz, instituir os principais oficiais, estabelecer o peso e o valor das moedas, impor taxas e impostos ou isenções, de ser a última palavra em qualquer assunto, outorgar 14 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 15 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. v I, p. 221. 16 BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves. Bodin et le projet d'une science du droit: Nouvelle Revue du XVI Siècle, Paris, v. 21, n. 2, 2003. p. 57-70. 17 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. v I, p. 193. 18 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. v I, p. 191. - Página 5 de 53 - vantagens, exceções e imunidades a quem desejar são decorrentes desse direito de dar a lei em geral19. Por ser considerada a expressão máxima da eqüidade, as leis divinas e naturais delimitam, segundo Bodin, a ação do soberano, cujo poder absoluto está nitidamente restrito ao âmbito das leis civis: “o poder absoluto dos príncipes e senhores soberanos não se estende de forma alguma às leis de Deus e da natureza” 20. Ora, parece difícil sustentar, como fazem tantos comentadores, que elas são apenas freios morais, que pesam sobre a consciência do soberano. Além da inviolabilidade da propriedade privada, elas exigem o cumprimento dos contratos, obrigando as partes, mesmo que uma delas seja o soberano, a cumprir suas promessas. De fato, elas não são dotadas de eficácia legal, pois não exercem coerção jurídica sobre o detentor da soberania. Entre o soberano e a obediência às leis divinas e naturais não existe um intermediário que possa obrigar o soberano a respeitá-las21. Mas, se não exercem constrangimentos jurídicos, não se pode ignorar as conseqüências do seu desprezo: “é verdade que não se encontra príncipe tão mal informado, que tivesse desejado ordenar coisa contrária às leis de Deus e da natureza, pois perderia o título e a honra de príncipe” 22. Nesse sentido, Dalmo de Abreu DALLARI23 comenta que a soberania sendo um poder absoluto e perpétuo, cuida Bodin de tornar mais claro o sentido dessas duas características, estendendo-se mais na explicação da primeira. Sendo um poder absoluto, a soberania não é limitada nem em poder, nem pelo cargo, nem por tempo certo. Nenhuma lei humana, nem as do próprio príncipe, nem as de seus predecessores, podem limitar o poder soberano. Quanto às leis divinas e naturais, todos os príncipes da Terra lhes estão sujeitos e não está em seu poder contrariá-las, se não quiserem ser culpados de lesar a majestade divina, fazendo guerra a Deus, sob a grandeza de quem todos os monarcas do mundo devem dobrar-se e baixar a cabeça com temor e reverência. São essas, portanto, as únicas limitações ao poder do soberano. Como um poder perpétuo, a soberania não pode ser exercida com um tempo certo de duração. Assim, esclarece Bodin que, se alguém receber o poder absoluto por um tempo determinado, não se pode chamar soberano, pois será apenas depositário e guarda do poder. Acrescenta ainda que a soberania, via de regra, só pode existir nos Estados aristocráticos e populares, pois nestes casos, como o titular do poder é uma classe ou todo o povo, há possibilidade de perpetuação. Nas monarquias só haverá soberania se forem hereditárias24. Nesse sentido, Mário Lúcio Quintão SOARES25 resume que a sabedoria absoluta devia ser compreendida como poder supremo, juridicamente ilimitado sobre cidadãos e súditos, que podia ser desdobrado: em não estar de nenhuma forma sujeito às ordens do outro e (no poder) de editar leis aos súditos, além de cancelar ou anular as palavras inúteis da lei, 19 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. v I, p. 309. 20 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. v I, p. 193. 21 BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves. Bodin et le projet d'une science du droit: Nouvelle Revue du XVI Siècle, Paris, v. 21, n. 2, 2003. p. 57-70. 22 BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. v. III, p. 97. 23 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 24 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 25 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 52. - Página 6 de 53 - substituindo-as por outras, coisa que não pode fazer quem está sujeito às lei. No entanto, com a ressalva de que este conceito de summa potestas26 era limitado pelos seguintes fatores: (a) a própria finalidade do Estado e o direito natural; (b) as leis de sucessão; (c) os tratados internacionais; (d) o consentimento dos estamentos. Isso quer dizer que, embora não tenha mencionado a inalienabilidade como característica da soberania, o que outros autores fariam depois, Bodin escreve que, seja qual for o poder e a autoridade que o soberano concede a outrem, ele não concede tanto que não retenha sempre mais. Dessa forma, a soberania coloca o seu titular, permanentemente, acima do direito interno e o deixa livre para acolher ou não o direito internacional, só desaparecendo o poder soberano quando se extinguir o próprio Estado27. 4. THOMAS HOBBES O contratualismo28 aparece claramente proposto com sistematização doutrinária, nas obras de Thomas Hobbes, sobretudo no “Leviatã”, publicado em 1651. Para Hobbes, o homem vive inicialmente em “estado de natureza”, designando-se por esta expressão não só os estágios mais primitivos da História, mas, também, a situação de desordem que se verifica sempre que os homens não têm suas ações reprimidas, ou pela voz da razão ou pela presença de instituições políticas eficientes. 4.1. O estado de natureza e a guerra contra todos Embora jusnaturalista, é considerado o precursor do positivismo jurídico, pois como explica Bobbio, Hobbes adota a doutrina do direito natural não para limitar o poder civil, mas para reforçá-lo. Usa meios jusnaturalistas para alcançar objetivos positivistas. “A mesma idéia pode ser expressa de outra forma, dizendo que Hobbes é um jusnaturalista ao partir e um positivista ao chegar”.29 Assim, nas palavras de Dalmo de Abreu DALLARI, o estado de natureza é uma permanente ameaça que pesa sobre a sociedade e que pode irromper sempre que a paixão silenciar a razão ou a autoridade fracassar. Hobbes acentua a gravidade do perigo afirmando sua crença em que os homens, no estado de natureza, são egoístas, luxuriosos, inclinados a agredir os outros e insaciáveis, condenando-se, por isso mesmo, a uma vida solitária, pobre, repulsiva, animalesca e breve. Isto é o que acarreta, segundo sua expressão clássica, a permanente "guerra de todos contra todos". O mecanismo dessa guerra tem como ponto de partida a igualdade natural de todos os homens. Justamente por serem, em princípio, igualmente dotados, cada um vive constantemente temeroso de que outro venha tomar-lhe os bens ou causar-lhe algum mal, pois todos são capazes disso. Esse 26 Soberania absoluta. 27 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 28 Em sentido muito amplo o contratualismo compreende todas aquelas teorias políticas que vêem a origem da sociedade e o fundamento do poder político (chamado, de quando em quando, potestas, imperium, Governo, soberania, Estado) num contrato, isto é, num acordo tácito ou expresso entre a maioria dos indivíduos, acordo que assinalaria o fim do estado natural e o início do estado social e político, conforme BOBBIO, Noberto; MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução de Carmem C. Varriale. Brasília. Universidade de Brasília, 1998. p. 272-273. 29 BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. 2ª ed. Brasília: Editora UnB, 1998. p. 41. - Página 7 de 53 - temor, por sua vez, gera um estado de desconfiança, que leva os homens a tomar a iniciativa de agredir antes de serem agredidos30. De acordo com o explicitado acima, Hobbes estipula um conjunto de normas as quais ele chamará de leis fundamentais da natureza que: [...] estão na base da vida social e que são as seguintes: a) cada homem deve esforçar-se pela paz, enquanto tiver a esperança de alcançá-la; e quando não puder obtê-la, deve buscar e utilizar todas as ajudas e vantagens da guerra; b) cada um deve consentir, se os demais também concordam, e enquanto se considere necessário para a paz e a defesa de si mesmo, em renunciar ao seu direito a todas as coisas, e a satisfazer-se, em relação aos demais homens, com a mesma liberdade que lhe for concedida com respeito a si próprio31. Embora de tendência absolutista, Hobbes renuncia, decididamente, à tese de que o poder soberano seja de instituição divina. Constrói o fundamento de sua concepção autocrática de poder, em perspectiva laica, ao estabelecer como paradigma para o Estado soberano a lei suprema do seu ser e dever ser, em busca do poder comum32. Esse paradigma compreende como função sociológica do Estado a garantia da pax et defensio communis33 entre os súditos que o integram, isto é, a antiga relação feudal de proteção e obediência foi levada por Hobbes à categoria de única base de legitimidade do Estado soberano34. A função social imanente do Estado é utilizada por Hobbes para fundamentar diversos preceitos do Direito natural e, em conseqüência, atribuir-lhes uma origem político- sociológica35. Hobbes demonstrou em sua obra que a necessidade do poder político absoluto devia justificar-se partindo da essência do próprio Estado36. O mais genial de sua teoria foi o método, tomado às ciências naturais da época, que aspira explicar e justificar o mundo existente recorrendo-se, unicamente, às forças vivas que pulsam em seu interior, isto é, à realidade estatal37. Nesse sentido, Maria Eliane ROSA DE SOUZA explica que: o projeto científico mais avançado de Hobbes para a filosofia civil consiste na junção da tríade corpo, homem e cidadão (corpus, homo e civis). Ele parte dos movimentos dos corpos físicos para os movimentos internos humanos e, daí, para a composição do Estado. O status dessa nova proposta encontra-se diretamente ligado à recta 30 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 31 STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolsan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p. 13. 32 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 36. 33 Paz e defesa da comunidade. 34 KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del estado. Fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático. Bueno Aires: Delpalma, 1980. p. 74. 35 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 37. 36 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 58. 37 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 37. - Página 8 de 53 - ratio, à lógica, à necessidade de legitimidade jurídica do Estado e ao método racional das definições inequívocas, das conseqüências necessárias e da junção dessas conseqüências em argumentações de caráter evidente. Esses aspectos fazem diferença na formulação da teoria do Estado hobbesiana, o que o leva a ser considerado o pai da filosofia política moderna. Hobbes acredita firmemente que esses pressupostos tornarão a filosofia civil uma ciência forte o suficiente para combater a idéia da formação do Estado por aquisição ou guerra, assim como para se contrapor à presença dos hábeis oradores que se opunham ao modelo do estado absoluto. Afinal, um conjunto de técnicas lingüísticas não poderia ser maior do que a ciência nascente38. Politicamente, Hobbes era um conservador, jamais um totalitário, que procurou fundamentar com sua persona civilis o seu paradigma de Estado Absolutista numa época dominada pela concepção mecanicista do universo39. Como todos os conservadores, o autor do Leviathan acreditava que a sociedade só podia se sustentar sobre a desigualdade entre soberano e súditos: entre os que têm o direito de mandar e os que têm apenas o direito de obedecer40. Para Martin KRIELE41, não é um exagero dizer que na teoria da soberania absoluta, em especial na versão de Hobbes, subjaz uma concepção ingênua de homem, inventada em um escritório, o que permite a degeneração de seu pensamento na utopia conservadora de que o homem é mau, com a exceção do que detém o poder. É importante lembrar que um dos níveis mais importantes que envolvem o problema da guerra em Hobbes é o que concerne às relações dentro do estado de natureza, postulado derivado da observação de como os homens se comportam na vida em comum sem o comando do Estado e das leis. 4.2. O pacto, o contrato e transferência mútua do direito Para Crawford Brough MACPHERSON, o estado de natureza hobbesiano se apresenta como uma dedução de como seria o comportamento humano se fosse suspenso o estado político, defendendo a tese de que, pelo postulado do estado de natureza, o pensador inglês quer mostrar o modo pelo qual os homens, sendo como são, se comportariam se não existisse o Estado. Trata-se da condição natural da humanidade não por oposição ao ser civilizado, mas da transferência das características dos indivíduos civilizados para uma condição natural hipotética. Nesse sentido, o autor argumenta que: o método redutivo-compositivo que ele [Hobbes] tanto admirava em Galileu e que adotou era reduzir a sociedade existente aos seus elementos mais simples e então recompor esses elementos em um todo lógico. A redução, portanto, foi da sociedade existente aos 38 ROSA DE SOUZA, Maria Eliane; HECK, José Nicolau (orient.). Thomas Hobbes: do movimento físico à fundação do Estado. 2008. 228 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1571>. Acesso em: 13 mai. 2009. p. 17. 38 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 58. 39 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 58. 40 BOBBIO, Norberto. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991. p. 62. 41 KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del estado. Fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático. Bueno Aires: Delpalma, 1980. p. 74 et. seq. - Página 9 de 53 - indivíduos existentes, e destes, por sua vez aos elementos primeiros do seu movimento. [...] A ordem do seu pensamento partiu do homem em sociedade, retornando ao indivíduo como sistema mecânico de matéria em movimento, e só então novamente avançando, para o comportamento humano necessário42. Em conformidade com o exposto, após percorrer o caminho de volta ao natural pela vertente da civilidade, Hobbes postula que no estado natural cada um é inimigo do outro em potencial, não havendo espaço para a harmonia e a concórdia. Nessa condição, não há nada que seja eficaz o bastante para impedir a guerra. Pelo desejo, cada indivíduo obedece a uma regra interna e particular, abrindo espaço para o conflito43. Sob a mesma ótica, Dalmo de Abreu DALLARI complementa dizendo que: tendo ressaltado, de início, as características e os males do estado de natureza, Hobbes chega à conclusão de que, uma vez estabelecida uma comunidade, por acordo, por conquista, ou por qualquer outro meio, deve ser preservada a todo custo por causa da segurança que ela dá aos homens. E afirma, então, que mesmo um mau governo é melhor do que o estado de natureza. Todo governante tem obrigações decorrentes de suas funções, mas pode ocorrer que não as cumpra. Entretanto, mesmo que o governante faça algo moralmente errado, sua vontade não deixa de ser lei e a desobediência a ela é injusta. Para cumprir seus objetivos, o poder do governo não deve sofrer limitações, pois, uma vez que estas existam, aquele que as impõe é que se toma o verdadeiro governante. Disso tudo resulta o conceito de Estado como ‘uma pessoa de cujos atos se constitui em autora uma grande multidão, mediante pactos recíprocos de seus membros, com o fim de que essa pessoa possa empregar a força e os meios de todos, como julgar conveniente, para assegurar a paz e a defesa comuns’. O titular dessa pessoa se denomina soberano e se diz que tem poder soberano, e cada um dos que o rodeiam é seu súdito44. Vê-se, assim, que a configuração das leis naturais representa um dos movimentos internos do estado de natureza como salvaguarda da situação de guerra. Ela é natural justamente porque tem por finalidade a conservação da vida e, nesse sentido, é, também, uma lei da razão que não determina apenas a guerra45. Como fica evidente, além da afirmação da base contratual da sociedade e do Estado, encontra-se na obra de Hobbes uma clara sugestão ao absolutismo, sendo certo que suas idéias exerceram grande influência prática, tanto por seu prestígio pessoal junto à nobreza inglesa (tendo sido, inclusive, preceptor do futuro rei Carlos II da Inglaterra), como pela 42 MACPHERSON, Crawford Brough. A Teoria Política do Individualismo Possessivo – De Hobbes a Locke. Tradução de Nelson Dantar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. p. 41-42. 43 ROSA DE SOUZA, Maria Eliane; HECK, José Nicolau (orient.). Thomas Hobbes: do movimento físico à fundação do Estado. 2008. 228 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1571>. Acesso em: 13 mai. 2009. p. 141. 44 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 45 ROSA DE SOUZA, Maria Eliane; HECK, José Nicolau (orient.). Thomas Hobbes: do movimento físico à fundação do Estado. 2008. 228 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1571>. Acesso em: 13 mai. 2009. p. 162. - Página 10 de 53 - circunstância de que tais idéias ofereciam uma solução para os conflitos de autoridade, de ordem e de segurança, de grande intensidade no século XVII46. 5. JOHN LOCKE 5.1. Os poderes e a sociedade civil No esteio do Iluminismo, para o pensador John Locke, um dos principais teóricos da Revolução Gloriosa47, que substitui o Poder da Monarquia pelo Parlamento48, a sociedade civil tinha como principal função o retorno do estado de natureza legítimo, ou melhor, a retomada do direito natural, aquele de fato justo, que dava a cada um o que era de si – pensamento de raiz aristotélica. Sua doutrina está alicerçada na idéia hobbessiana de função social do Estado ao pretender explicar o nascimento histórico do aparato estatal através de pactum societatis, conforme expõe Hermann HELLER49. Locke é um dos teóricos da Revolução Gloriosa sendo sua teoria base de modificações relevantes da época, vê, no papel do Parlamento, ao mesmo tempo, produzir as leis e julgar aqueles que a desobedeciam fazendo com que o Poder Executivo se submetesse ao Poder Legislativo. Ao Poder Executivo caberia apenas executar o designado pelo Parlamento. 5.2. O estado de natureza e a propriedade Para Locke, o Estado também deveria ser limitado em sua interferência na sociedade ao direito natural, que em especial, tratando-se do direito de propriedade. É neste ponto em que se encontra limitação do Estado para interferir na sociedade, na própria propriedade, enquanto expressão de direito fundamental 50 . Caberia ao Estado a manutenção da propriedade e garantia dos proprietários de seu uso, gozo e fruição sem a perturbação por parte dos outros homens. Nasce um princípio do liberalismo onde a propriedade ganha status de direito natural. Diante deste contexto, Leonel Itaussu Almeida MELLO bem resume: os direitos naturais inalienáveis do indivíduo à vida, à liberdade e à propriedade constituem para Locke o cerne do estado civil e ele é 46 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 47 É preciso assinalar, entretanto, que, não obstante ser comum sua inclusão entre os contratualistas, em toda a sua vasta obra, publicada entre 1685 e 1720 (parcialmente póstuma, pois LOCKE morreu em 1704), é marcante a influência de sua formação religiosa, com freqüentes derivações para a Teologia. Dessa forma, seria impossível que ele sustentasse um contratualismo puro, que deve admitir, como ponto de partida, o homem inteiramente livre, senhor da decisão de se associar ou não aos outros homens, pois isso iria conflitar com sua concepção cristã da criação. E, de fato, basta a transcrição de um pequeno trecho do Segundo Tratado sobre o Governo para se verificar que Locke esteve mais próximo de Aristóteles e Santo Tomás de Aquino do que dos contratualistas, conforme DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 48 A partir da Glorious Revolution (1688-89) a idéia de representação e soberania parlamentar são indispensáveis à estruturação de um governo moderado, conforme CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Lisboa: Almedina, 2008. p. 55. 49 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968 p. 37. 50 PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Locke e a Formação da Racionalidade do Estado Moderno: o Individualismo Proprietário entre o Público e o Privado. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. (Org.). Repensando a Teoria do Estado.. Belo Horizonte: Fórum, 2004, v. 1, p. 65-78. - Página 11 de 53 - considerado, por isso, o pai do individualismo liberal. Locke forneceu a posteriori a justificação moral, política e ideológica para a Revolução Gloriosa e para a monarquia parlamentar inglesa. Locke influenciou a revolução norte-americana, onde a declaração de independência foi regida e a guerra de libertação foi travada em termo de direitos naturais e de direito de resistência para fundamentar a ruptura com o sistema colonial britânico. Locke influenciou ainda os filósofos iluministas franceses, principalmente Voltaire e Montesquieu e, através deles, a Grande Revolução de 1789 e a declaração dos direitos do homem e do cidadão. E, finalmente, com a Grande Revolução as idéias ‘inglesas’, que haviam atravessado o canal da Mancha e estabelecido uma cabeça de ponte, transformando-se nas idéias “francesas” e se difundiram por todo o Ocidente51. Além dos aspectos anteriores vale à pena lembrar que a proteção ao direito de propriedade, na concepção de Locke, não ser realizava mediante os direitos fundamentais, mas a partir do direito ao voto, adstrito tão-somente aos proprietários52. Nesse linha de reflexão, a soberania parlamentar permitiu que as necessidades da propriedade e do mercado do possessive individualism fossem satisfeitas através de eleições periódicas dos legisladores parlamentares, mediante voto censitário53. 6. CHARLES DE MONTESQUIEU Charles Louis de Secondat, o Barão de Montesquieu, reformula, em meados do século XVII, a teoria da limitação estatal e a forma em que tal processo deveria acontecer. Como um membro na nobreza francesa, seu intuito ao fazê-la era, no entanto, perturbar a monarquia então imperante. Em sua concepção, estava ele criando um novo modelo, no qual a sociedade então existente pudesse perturbar-se ao longo do tempo, ou seja, diminuir o descontentamento populacional ao dar-lhe algumas garantias em torno da figura do rei e de seus poderes sobre o povo, sobretudo inspirado pelo modelo inglês de governo, que há tempos contava com o sistema de governo limitado pelas leis, devido à força do parlamento inglês. Montesquieu tornou-se conhecido por dois clássicos, Lettres Persanes (1721) e L’Esprit des lois (1747), por meio do qual, alicerçado em um rico material de observações concretas histórico-sociais, recolhe os postulados do Estado de direito, tais como aparecem em Locke; apresentando-os, porém, da mesma maneira que as demais formas de organização política, como condicionados pelas características geográficas e climáticas do território e pelo modo de vida, caráter, economia e religião54. 6.1. As leis e os governos Montesquieu também reconhecia a existência de um direito natural e assim o conceituava “[...] antes de todas essas leis, existem as da natureza, assim chamadas porque 51 MELLO, Leonel Itaussu Almeida. Locke e o individualismo liberal. In.: WEFFORT, Francisco C. (coord.). Os Clássicos da Política. v. 1. 14. ed. São Paulo: Ática, 2006. p. 88-89. 52 KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del estado. Fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático. Bueno Aires: Delpalma, 1980. p. 285. 53 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 63. 54 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 39. - Página 12 de 53 - decorrem unicamente da constituição de nosso ser. Para conhecê-las bem, é preciso considerar o homem antes do estabelecimento das sociedades” 55. Essas leis são as seguintes: a) o desejo de paz; b) o sentimento das necessidades, experimentado principalmente na procura de alimentos; c) a atração natural entre os sexos opostos, pelo encanto que inspiram um ao outro e pela necessidade recíproca; d) o desejo de viver em sociedade, resultante da consciência que os homens têm de sua condição e de seu estado. Depois que, levados por essas leis, os homens se unem em sociedade, passam a sentir-se fortes, a igualdade natural que existia entre eles desaparece e o estado de guerra começa, ou entre sociedades, ou entre indivíduos da mesma sociedade. Embora começando por essas observações e dizendo em seguida que sem um governo nenhuma sociedade poderia subsistir, Montesquieu não chega a mencionar expressamente o contrato social e passa à apreciação das leis do governo, sem fazê-las derivar diretamente de um pacto inicial56. Assim, acreditava Montesquieu que cada sociedade tinha a positivação de seus direitos no que tangia aos direitos políticos e aos direitos civis, pois era de características particulares representativas da realidade social de cada uma das sociedades em questão, bem como, de um direito generalista, de todas as sociedades, que lhes tutelasse o direito de relacionamento entre sociedades, que era o direito das gentes, hoje chamado de Direito Internacional Público57. Nesse contexto, Mário Lúcio Quintão SOARES58 comenta que o objeto de sua reflexão é o espírito das leis, manifesto nas relações entre as leis positivas e diversas coisas, tais como clima, as dimensões do Estado, a organização do comércio e as relações entre as classes na perspectiva das instituições humanas, observando suas características em termos de permanência e modificações a partir das leis da Ciência Política. Com relação ao princípio da moderação das leis que derivam diretamente da natureza, Montesquieu apontara três espécies de governo: o republicano, o monárquico e o despótico, esclarecendo que o governo republicano é aquele que o povo, como um todo, ou somente uma parcela do povo, possui o poder soberano; a monarquia é aquele em que um só governa, mas de acordo com leis fixas e estabelecidas, enquanto, no governo despótico, uma só pessoa, sem obedecer a leis e regras, realiza tudo por sua vontade e seus caprichos. Na realidade, ainda hoje, a monarquia e a república são as formas fundamentais de governo, sendo necessário, portanto, fazer a fixação das características de cada uma e o exame dos principais argumentos favoráveis e contrários a elas. Não obstante, Montesquieu foi o primeiro filósofo a realizar, de modo programático, o propósito de explicar o Estado e a atividade política pela totalidade das circunstancias concretas, naturais e sociais59. 6.2. Os poderes e o sistema de freios e contrapesos na separação das funções 55 MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 39. 56 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 57 DIAS, Bruno Smolarek; PIOVESAN, Flávia Cristina (orient.). Estado nacional moderno sob a perspectiva dos direitos humanos: revisionismo crítico das teorias de Montesquieu, Rousseau e Locke, à luz dos direitos e deveres humanos. 2008. 162 f. Dissertação (Mestrado em Direito Econômico e Socioambiental) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2008. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=924>. Acesso em: 15 mai. 2009. p. 52. 58 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 65. 59 HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. p. 39. - Página 13 de 53 - Assim, determina Montesquieu que, para evitar abusos de poder, como os perpetrados pelos sistemas absolutistas, deve o próprio poder criar mecanismos de limitação de tais poderes, ou seja, criar parâmetros nos quais as fundações do Estado sejam dividas em diferentes poderes e que cada um deles tenha a condição de limitar o outro e, ao mesmo tempo, ser limitado. Assim, Paulo BONAVIDES relembra que, as técnicas de controle que medraram no constitucionalismo moderno constituem corretivos eficazes ao rigor de uma separação rígida de poderes, que se pretendeu implantar na doutrina do liberalismo, em nome do princípio de Montesquieu. Consideremos a seguir na prática constitucional do Estado moderno as mais conhecidas formas de equilíbrio e interferência, resultantes da teoria de pesos e contrapesos. Dessa técnica resulta a presença do executivo na órbita legislativa por via do veto e da mensagem, e excepcionalmente, segundo alguns, da delegação de poderes, que o princípio a rigor interdita, por decorrência da própria lógica da separação. Com o veto dispõe o executivo de uma possibilidade de impedir resoluções legislativas e com a mensagem recomenda, propõe e eventualmente inicia a lei, mormente naqueles sistemas constitucionais que conferem a esse poder — o executivo — toda a iniciativa em questões orçamentárias e de ordem financeira em geral. Já a participação do executivo na esfera do poder judiciário se exprime mediante o indulto, faculdade com que ele modifica efeitos de ato proveniente de outro poder. Igual participação se dá através da atribuição reconhecida ao executivo de nomear membros do poder judiciário. Do legislativo, por sua vez, partem laços vinculando o executivo e o judiciário à dependência das câmaras. São pontos de controle parlamentar sobre a ação executiva: a rejeição do veto, o processo de impeachment contra a autoridade executiva, aprovação de tratado e a apreciação de indicações oriundas do poder executivo para o desempenho de altos cargos da pública administração. Com respeito ao judiciário, a competência legislativa de controle possui, em distintos sistemas constitucionais, entre outros poderes eventuais ou variáveis, os de determinar o número de membros do judiciário, limitar- lhe a jurisdição, fixar a despesa dos tribunais, majorar vencimentos, organizar o poder judiciário e proceder a julgamento político (de ordinário pela chamada “câmara alta”), tomando assim o lugar dos tribunais no desempenho de funções de caráter estritamente judiciário. Enfim, quando se trata do judiciário, verificamos que esse poder exerce também atribuições fora do centro usual de sua competência, quando por exclusão de outros poderes e à maneira legislativa estatui as regras do respectivo funcionamento ou à maneira executiva, organiza o quadro de servidores, deixando assim à distância os poderes que normalmente desempenham funções dessa natureza. Sua faculdade de impedir, porém só se manifesta concretamente quando esse poder — o judiciário — frente às câmaras decide sobre inconstitucionalidade de atos do legislativo e frente ao ramo do poder executivo Profere a ilegalidade de certas medidas administrativas60. A tripartição de poderes, concebida por Montesquieu, ao contemplar as funções 60 BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. - Página 14 de 53 - legislativas, executiva e judicial, em busca da liberdade política, ultrapassa sua análise imprecisa da experiência constitucional inglesa. Simone GOYARD-FABRE61 considera que Montesquieu, em suas concepções antiabsolutistas, delineou um regime constitucional caracterizado pela confusão de poderes, isto é, por sua distinção orgânica e, no equilíbrio de suas respectivas potências, por sua complementaridade funcional. Assim, não se pode perder de vista o fato de que a separação de poderes persiste como parâmetro organizacional do Estado na maioria das constituições democráticas, permanecendo, como afirma Nelson Nogueira SALDANHA, um “dado”, utilizado pelos regimes a partir de suas variáveis, como lembrança da permanência do tipo de Estado criado pelo constitucionalismo dos séculos XVII e XVIII62. Nesse contexto, Dalmo de Abreu DALLARI assim resume: com Montesquieu, a teoria da separação de poderes já é concebida como um sistema em que se conjugam um legislativo, um executivo e um judiciário, harmônicos e independentes entre si, tomando, praticamente, a configuração que iria aparecer na maioria das Constituições. Em sua obra ‘L’Esprit des Lois’, aparecida em 1748, Montesquieu afirma a existência de funções intrinsecamente diversas e inconfundíveis, mesmo quando confiadas a um só órgão. Em sua opinião, o normal seria a existência de um órgão próprio para cada função, considerando indispensável que o Estado se organizasse com três poderes, pois "Tudo estaria perdido se o mesmo homem ou o mesmo corpo dos principais, ou dos nobres, ou do povo, exercesse esses três poderes". O ponto obscuro da teoria de Montesquieu é a indicação das atribuições de cada um dos poderes. Com efeito, ao lado do poder legislativo coloca um poder executivo "das coisas que dependem do direito das gentes" e outro poder executivo "das que dependem do direito civil". Entretanto, ao explicar com mais minúcias as atribuições deste último, diz que por ele o Estado "pune os crimes ou julga as querelas dos indivíduos". E acrescenta: "chamaremos a este último o poder de julgar e, o outro, simplesmente, o poder executivo do Estado". O que se verifica é que Montesquieu, já adotando a orientação que seria consagrada pelo liberalismo, não dá ao Estado qualquer atribuição interna, a não ser o poder de julgar e punir. Assim, as leis, elaboradas pelo legislativo, deveriam ser cumpridas pelos indivíduos, e só haveria interferência do executivo para punir quem não as cumprisse. Como é óbvio, dando atribuições tão restritas ao Estado, Montesquieu não estaria preocupado em assegurar-lhe a eficiência, parecendo-lhe mais importante a separação tripartida dos poderes para garantia da liberdade individual63. O grande contributo de Montesquieu à Teoria do Estado é a sua teoria sobre a separação de poderes ou de funções legislativas, executivas e judiciais, acopladas a um sistema de freios e contrapesos, que se tornou dogma do constitucionalismo liberal, 61 GOYAERD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1999. p. 188. 62 SALDANHA, Nelson Nogueira. O Estado Moderno e a Separação de Poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. p. 123. 63 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. - Página 15 de 53 - influenciando, principalmente, as declarações de direitos das constituições norte-americanas e francesas64. 7. JEAN-JACQUES ROUSSEAU Jean Jacques Rousseau exerceu influência direta sobre a Revolução Francesa, através de obras entre si conexas e que se integram: Discours sur l’origine et les fondements de l’inégalité parmi les hommes (1753) e Du contrat social (1762). Nelas converte-se à tese de contrrato social, como fundamento do Estado, em hipótese alicerçadas na volunté générale de utópico governo do povo, consoante o princípio da identidade65. A sociedade, descrita por Rousseau, em um primeiro momento, reflete um continuum, à medida que apenas existe o conjunto de cidadãos de forma que a cada um deles corresponde uma parte proporcional da soberania; noutro momento, capta oportunamente o influxo da propriedade privada na ordem estamental que se transforma em ordenação classista66. 7.1. A origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens O estado de guerra tal como Hobbes o defendeu se opõe radicalmente àquele apresentado por Jean-Jacques Rousseau. Em o Discurso Sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (1987), o pensador genebrino supõe um homem, no estado natural, vivendo sob a égide de uma natureza primitiva e entregue a uma vida equiparada à dos animais, onde a natureza elimina os fracos e torna os mais fortes seres robustos e com os sentidos aguçados. Rousseau despoja do homem natural toda e qualquer característica a ele imposta pelo processo de civilização. Ele não é lobo de si próprio, ao contrário, é piedoso, sendo essa característica a responsável pelo equilíbrio do seu instinto de conservação. Nessa condição os homens: [...] não tinham entre si nenhuma espécie de comércio, como conseqüentemente não conheciam nem a vaidade, nem a consideração, a estima ou o desprezo; como não possuíam a menor noção do teu e do meu, nem qualquer idéia verdadeira de justiça; como consideravam as violências, que podiam tolerar, como um mal fácil de ser reparado e não como uma injúria que deve ser punida; e como não pensavam na vingança senão maquinalmente no momento à maneira do cão que morde a pedra que lhe atiram - suas disputas raramente teriam conseqüências sangrentas [...]67. Ainda acerca dos aspectos físicos, Rousseau enxerga no homem natural um animal que tem vantagens sobre todos os outros, pois sua organização fisiológica é perfeita e, por isso, é capaz de satisfazer todas as suas necessidades facilmente. A natureza conferiu a esse animal sentidos para recompor-se por si mesmo e defender-se de tudo aquilo que tende a destruí-lo, sendo seu corpo o único instrumento que conhece. De acordo com Rousseau: 64 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 67. 65 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 68. 66 VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político, Madrid: Tecnos, 1976, vol. II, p. 173. 67 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Trad. Lourdes Santos Machado. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987-88. (Os Pensadores). p. 59. - Página 16 de 53 - sua imaginação nada lhe descreve, o coração nada lhe pede. Suas módicas necessidades encontram-se com tanta facilidade ao alcance da mão e encontra-se ele tão longe do grau de conhecimento necessário para desejar alcançar outras maiores que não pode ter nem previdência, nem curiosidade68. Nesse sentido, a natureza torna o homem forte e robusto, e na seleção natural faz com ele o que a lei espartana fazia com os filhos dos seus cidadãos, garantindo a sobrevivência dos bem constituídos e levando os outros a perecerem69. A natureza o criou em seu aspecto mais saudável, sendo ela própria o seu melhor remédio. O instinto é o seu grande guia, por ele os homens buscam sua conservação suprindo suas necessidades com menor prejuízo possível para outrem. Opondo-se a Hobbes, Rousseau afirma: não iremos, sobretudo, concluir como Hobbes que, por não ter nenhuma idéia da bondade, seja o homem naturalmente mau; que seja corrupto porque não conhece a virtude; [...], nem que, devido ao direito que se atribui com razão relativamente às coisas de que necessita, loucamente imagine ser o proprietário do universo inteiro70. Por esse caminho, Rousseau constrói a teoria do bom selvagem: livre, feliz, forte e tranqüilo, em oposição à análise do homem na vida civilizada, corrompida o suficiente para justificar a frase: “o homem que medita é uma animal depravado”. Cotejando a visão dos dois pensadores, é importante ressaltar que um dos níveis mais importantes que envolvem o problema da guerra em Hobbes é o que concerne às relações dentro do estado de natureza, que corresponde a uma simulação teórica a partir de sua equiparação à guerra civil inglesa. Por isso, talvez Rousseau tenha sua medida de razão quando afirma que Hobbes imputa ao homem natural características do homem civilizado71. 7.2. Pacto social, soberania, vontade e representação Como bem lembra Dalmo de Abreu DALLARI, o contratualismo de Rousseau, que exerceu influência direta e imediata sobre a Revolução Francesa e, depois disso, sobre todos os movimentos tendentes à afirmação e à defesa dos direitos naturais da pessoa humana, foi, na verdade, o que teve maior repercussão prática: com efeito, ainda hoje é claramente perceptível a presença das ideias de Rousseau na afirmação do povo como soberano, no reconhecimento da igualdade como um dos objetivos fundamentais da sociedade, bem como na consciência de que existem interesses coletivos distintos dos interesses de cada membro da coletividade. 68 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987-88. (Os Pensadores). p. 48-49. 69 ROSA DE SOUZA, Maria Eliane; HECK, José Nicolau (orient.). Thomas Hobbes: do movimento físico à fundação do Estado. 2008. 228 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1571>. Acesso em: 13 mai. 2009. p. 138. 70 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987-88. (Os Pensadores). p. 56. 71 LAFER, Celso. Hobbes, o Direito e o Estado Moderno. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 1980. - Página 17 de 53 - Afirma Rousseau que a ordem social é um direito sagrado que serve de base a todos os demais, mas que esse direito não provém da natureza, encontrando seu fundamento em convenções. Assim, portanto, é a vontade, não a natureza humana, o fundamento da sociedade72. Acreditando num estado de natureza, precedente ao estado social e no qual o homem, essencialmente bom, só se preocupa com sua própria conservação, Rousseau assim escreve: Suponhamos os homens, chegando àquele ponto em que os obstáculos prejudiciais à sua conservação no estado de natureza sobrepujam, pela sua resistência, as forças de que cada indivíduo dispõe para manter-se nesse estado. Então, esse estado primitivo já não pode subsistir, e o gênero humano, se não mudasse de estilo de vida, pereceria. Ora, como os homens não podem engendrar novas forças, mas somente unir e orientar as já existentes, não têm eles outro meio de conservar-se senão formando, por agregação, um conjunto de forças, que possa sobrepujar a resistência, impelindo-as para um só móvel, levando-as a operar em concerto. Essa soma de forças só pode nascer de um concurso de muitos; sendo, porém, a força e a liberdade de cada indivíduo os instrumentos primordiais de sua conservação, como poderia ele empenhá-los sem prejudicar e sem negligenciar os cuidados que a si mesmo deve? Essa dificuldade, reconduzindo ao meu assunto, poderá ser enunciada como segue: "Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece, contudo, a si mesmo, permanecendo, assim, tão livre quanto antes". Esse é o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece73. A manutenção da liberdade do indivíduo é o centro do sistema e da lógica estabelecida por Rousseau, centro baseado nos ideais daqueles que lhe antecederam, como Locke, pois o sistema somente teria coerência se apresentasse aos indivíduos não a dominação de uns sobre os outros e sim a cessão de vontades e de interesses de todos, levando ao fato de que o instituto a ser criado não seria nada mais do que a sua própria vontade cedida a ele a compelir cada um a adotar determinadas condutas74. Enfim, cada um dando-se a todos não se dá a ninguém e, não existindo um associado sobre o qual não se adquira o mesmo direito que se lhe cede sobre si mesmo, ganha-se o equivalente a tudo que se perde, e maior força para conservar o que se tem (...) se separar-se, pois, do pacto social aquilo que não pertence a sua essência, ver-se-á que ele se reduz aos seguintes termos: 'Cada um de nós põe em 72 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 73 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 69-70. 74 DIAS, Bruno Smolarek; PIOVESAN, Flávia Cristina (orient.). Estado nacional moderno sob a perspectiva dos direitos humanos: revisionismo crítico das teorias de Montesquieu, Rousseau e Locke, à luz dos direitos e deveres humanos. 2008. 162 f. Dissertação (Mestrado em Direito Econômico e Socioambiental) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2008. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=924>. Acesso em: 15 mai. 2009. p. 44-45. - Página 18 de 53 - comum sua pessoa e todo o seu poder sob a direção suprema da vontade geral, e recebemos, enquanto corpo, cada membro como parte indivisível do todo75 . Dessa maneira, Rousseau chega à conformação legítima do Estado, o qual ele passa a tratar sob o signo de soberano76. O Estado soberano, surgido deste contrato feito entre os cidadãos, agora conformados em um conjunto chamado de povo, deve ser representativo dos interesses destes cidadãos. Nesse sentido, Dalmo de Abreu DALLARI explica que, o soberano continua a ser o conjunto das pessoas associadas, mesmo depois de criado o Estado, sendo a soberania inalienável e indivisível. Essa associação dos indivíduos, que passa a atuar soberanamente, sempre no interesse do todo que engloba o interesse de cada componente, tem uma vontade própria, que é a vontade geral. Esta não se confunde com uma simples soma das vontades individuais, mas é uma síntese delas. Cada indivíduo, como homem, pode ter uma vontade própria, contrária até à vontade geral que tem como cidadão. Entretanto, por ser a síntese das vontades de todos, a vontade geral é sempre reta e tende constantemente à utilidade pública (...) Em resumo, verifica-se que várias das idéias que constituem a base do pensamento de Rousseau são hoje consideradas fundamentos da democracia. E o que se dá, por exemplo, com a afirmação da predominância da vontade popular, com o reconhecimento de uma liberdade natural e com a busca de igualdade, que se reflete, inclusive, na aceitação da vontade da maioria como critério para obrigar o todo, o que só se justifica se for acolhido o princípio de que todos os homens são iguais77. Assim, há soberania popular, segundo Rousseau, quando ocorre identidade entre governante e governado, estabelecendo a democracia de identidade, peculiar às unidades políticas pequenas, como a polis grega, o thing germânico e o cantão suíço, com bem resume Mário Lúcio Quintão SOARES78. 8. CONSIDERAÇÕES FINAIS Maquiavel, considerado consensualmente como o pensador político mais vigoroso e agudo do Renascimento italiano, usa o termo Estado de maneira que revela a não-distinção entre governo e Estado; A idéia mais abstrata “tipicamente moderna do Estado enquanto uma forma de poder 75 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002. p. 70-71. 76 A idéia de ‘soberano’ em Rousseau não é como o monarca em Hobbes, mas sim o próprio Estado, enquanto união dos indivíduos, ou seja, o todo é soberano com relação a cada uma das partes, todas elas iguais entre si. 77 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. 78 SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. p. 71. - Página 19 de 53 - público, separada do governante e dos governados, constituindo a suprema autoridade política no interior de um território definido”79 – esta ideia tem que esperar por mais de meio século e por outros contextos históricos, o da França, na segunda metade do século XVI, e o da Inglaterra na primeira metade do seguinte. Em outros termos, tem que esperar pelas obras de Jean Bodin e Thomas Hobbes que, juntamente com Maquiavel, constituem a tríade fundadora tanto do conceito de Estado moderno, em particular, quanto do pensamento político moderno em geral. Pois, não seria exagero dizer que dos escritos desses três pensadores saíram as matrizes dos três grandes discursos políticos que dominaram todo o período da história moderna no Ocidente, o discurso do próprio absolutismo, que é o do establishment, e os discursos do individualismo possessivo e do republicanismo clássico ou humanismo cívico, que são de oposição. Atentemos para os respectivos momentos e contextos em que surgem as obras daqueles dois pensadores. Os seis livros da República, de Bodin, são de 1576, quando a França está mergulhada nas guerras de religião, e o Leviatã, de Hobbes, de 1651, quando a Inglaterra acaba de sair da guerra civil. É consenso entre os estudiosos do pensamento político, que, no livro de Bodin, aparece formulada, pela primeira vez e da maneira mais completa, a teoria do absolutismo monárquico, fundamentada no conceito de soberania, que ele foi o primeiro a elaborar, ou seja, que a autoridade tem de ser absoluta; e que, no livro de Hobbes, temos isso também, e muito mais do que isso, ou seja, uma teoria radicalmente nova da sociedade e da política, o chamado contratualismo ou jusnaturalismo. Tendo em vista esses respectivos panos de fundo, não surpreende que tanto Bodin quanto Hobbes fossem visceralmente contrários a qualquer tipo de governo misto, o qual implica necessariamente aquilo que para eles constituía o pior dos males: a divisão da soberania80. Historicamente, foi Rousseau o mais celebrado corifeu da doutrina do sufrágio-direito, que procedeu coerentemente da sua doutrina da soberania popular. (a) no começo do século XVI já se encontravam na França três poderes distintos: o legislativo (Parlamento), o executivo (o rei) e um judiciário independente. É curioso notar que MAQUIAVEL louva essa organização porque dava mais liberdade e segurança ao rei. Agindo em nome próprio o judiciário poderia proteger os mais fracos, vítimas de ambições e das insolências dos poderosos, poupando o rei da necessidade de interferir nas disputas e de, em consequência, enfrentar o desagrado dos que não tivessem suas razões acolhidas. A contribuição de Maquiavel sobre o estudo do Estado reside na sua preocupação em entender a natureza dos seres humanos, posto ser esta a matéria constituinte do Estado, estabelecendo desta forma, uma proximidade entre indivíduo e poder. (b) O que se verifica, apesar disso tudo, é que o conceito de soberania é uma das bases da idéia de Estado Moderno, tendo sido de excepcional importância para que este se definisse, exercendo grande influência prática nos últimos séculos, sendo ainda uma característica fundamental do Estado. (c) derivada das teorias contratualistas, é a que preconiza o chamado Estado de Direito. Para o contratualismo, especialmente como foi expresso por HOBBES e ROUSSEAU, cada indivíduo é titular de direitos naturais, com base nos quais nasceram a sociedade e o Estado. Mas ao convencionar a formação do Estado e, ao mesmo tempo, a criação de um governo, os indivíduos abriram mão de certos direitos, mantendo, entretanto, a possibilidade de exercer os poderes soberanos, de tal sorte que todas as leis continuam a ser a emanação da vontade do povo. Assim, pois, o que se exige é que o Estado seja um aplicador rigoroso do direito, e nada mais do que isso. A aplicação prática desses preceitos levou a uma concepção puramente formal do direito, pois se há ou não injustiças isso fica em plano secundário, 79 SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. p. 621. 80 FLORENZANO, Modesto. Sobre as origens e o desenvolvimento do Estado Moderno no ocidente. Lua Nova, São Paulo, nº 71, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102- 64452007000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13 jun. 2009. - Página 20 de 53 - interessando apenas a obediência aos preceitos que são formalmente jurídicos. Também aqui se verifica uma grave distorção, pois os dirigentes do Estado declaram como direito aquilo que lhes convém e depois atuam segundo esse mesmo direito. (d) A reflexão sobre a gênese do Estado Moderno é, a partir dos apontamentos teóricos dos clássicos da Política, o caminho de uma ampla reflexão sobre a gênese da sociedade moderna. REFERÊNCIAS ALMEIDA FILHO, Agassiz; BARROS, Vinícius Soares de Campos. (coord.). Novo Manual de Ciência Política. 1ª ed. São Paulo: Malheiros, 2008. BARROS, Alberto Ribeiro Gonçalves. Bodin et le projet d'une science du droit: Nouvelle Revue du XVI Siècle, Paris, v. 21, n. 2, 2003. p. 57-70. BOBBIO, Norberto. A Teoria das Formas de Governo. 10. ed. Brasília: Editora UnB, 2001. _________________. Locke e o Direito Natural. 2. ed. Brasília: Editora UnB, 1998. _________________. Thomas Hobbes. Rio de Janeiro: Campus, 1991. _________________. MATTEUCI, Nicola; PASQUINO, Gianfranco. Dicionário de Política. Tradução de Carmem C. Varriale. Brasília: UnB, 1998. BODIN, Jean. Les Six Livres de la République (1576). Paris, Fayard, 1986. 6 vols. BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 16. ed. São Paulo: Malheiros, 2009. _________________. Teoria do Estado. 7. ed. São Paulo: Malheiros, 2008. CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 6. ed. Lisboa: Almedina, 2008. DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 25. ed. São Paulo: Saraiva, 2005. DIAS, Bruno Smolarek; PIOVESAN, Flávia Cristina (orient.). Estado nacional moderno sob a perspectiva dos direitos humanos: revisionismo crítico das teorias de Montesquieu, Rousseau e Locke, à luz dos direitos e deveres humanos. 2008. 162 f. Dissertação (Mestrado em Direito Econômico e Socioambiental) – Pontifícia Universidade Católica do Paraná, Curitiba, 2008. Disponível em: <http://www.biblioteca.pucpr.br/tede/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=924>. Acesso em: 15 mai. 2009. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Estado de Direito e Constituição. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. FLORENZANO, Modesto. Sobre as origens e o desenvolvimento do Estado Moderno no ocidente. Lua Nova, São Paulo, nº 71, 2007. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-64452007000200002&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 13 jun. 2009. - Página 21 de 53 - GOYAERD-FABRE, Simone. Os princípios filosóficos do direito político moderno. São Paulo: Martins Fontes, 1999. GRAMSCI, Antonio. Maquiavel, a Política e o Estado Moderno. 5. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1989. GRUPPI, Luciano. Tudo começou com Maquiavel: As concepções de Estado em Marx, Engels, Lênin e Gramsci. 11ª ed. Porto Alegre: L&PM, 1986. HELLER, Hermann. Teoria do Estado. Tradução de Lycurgo Gomes da Matta, São Paulo: Mestre Jou, 1968. KRIELE, Martin. Introducción a la Teoría del estado. Fundamentos históricos de la legitimidad del estado constitucional democrático. Bueno Aires: Delpalma, 1980. KRITSCH, Raquel. Rumo ao Estado Moderno: as raízes medievais de alguns de seus elementos formadores. Revista de Sociologia e Política. Curitiba, nº 23, nov. 2004. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104- 44782004000200010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 14 jun. 2009. LAFER, Celso. Hobbes, o Direito e o Estado Moderno. São Paulo: Associação dos Advogados de São Paulo, 1980. MACPHERSON, Crawford Brough. A Teoria Política do Individualismo Possessivo – De Hobbes a Locke. Tradução de Nelson Dantar. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1979. MAQUIAVEL, Nicolau. O Príncipe. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996. MONTESQUIEU, Charles Louis de Secondat. O Espírito das Leis. São Paulo: Martin Claret, 2002. PASCHOAL, Antônio Edmilson. Direitos individuais e o poder do Estado em Thomas Hobbes. Revista de Filosofia, Curitiba: v. 1, n. 1, p. 47-60, set. 1988. PIANOVSKI RUZYK, Carlos Eduardo. Locke e a Formação da Racionalidade do Estado Moderno: o Individualismo Proprietário entre o Público e o Privado. In: FONSECA, Ricardo Marcelo. (Org.). Repensando a Teoria do Estado. 1ª ed. Belo Horizonte: Fórum, 2004, v. 1, p. 65-78. POGGI, Gianfranco. A Evolução do Estado Moderno. Rio de Janeiro: Zahar Editores, l981. QUIRINO, Célia Galvão; SOUZA, Maria Teresa Sadek. O Pensamento Político Clássico: Maquiavel, Hobbes, Locke, Montesquieu e Rousseau. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ROSA DE SOUZA, Maria Eliane; HECK, José Nicolau (orient.). Thomas Hobbes: do movimento físico à fundação do Estado. 2008. 228 f. Tese (Doutorado em Filosofia) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2008. Disponível em: <http://tede.pucrs.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1571>. Acesso em: 13 mai. 2009. ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. Tradução de Lourdes Santos Machado. 4. ed. São Paulo: Nova Cultural, 1987-88. (Os Pensadores). - Página 22 de 53 - ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do Contrato Social. São Paulo: Martin Claret, 2002. SALDANHA, Nelson Nogueira. O Estado Moderno e a Separação de Poderes. São Paulo: Saraiva, 1987. SKINNER, Quentin. As Fundações do Pensamento Político Moderno. São Paulo: Companhia das Letras, 1996. SOARES, Mário Lúcio Quintão. Teoria do Estado. Novos Paradigmas em face da Globalização. 3. ed. São Paulo: Atlas, 2008. STRAYER, Joseph R. As Origens Medievais do Estado Moderno. Lisboa, Gradiva, 1988. STRECK, Lenio Luiz; MORAIS, José Luiz Bolsan de. Ciência Política e Teoria Geral do Estado. 5. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. VERDÚ, Pablo Lucas. Curso de Derecho Político, Madrid: Tecnos, 1972 (vol. I) e 1976 (vol. II). WEFFORT, Francisco C. (coord.). Os Clássicos da Política. v. 1. 14ª ed. São Paulo: Ática, 2006. PARTE II 2. FUNÇÃO ADMINISTRATIVA DO ESTADO A função administrativa pode ser conceituada como aquela exercida preponderantemente pelo Poder Executivo, com caráter infralegal e mediante a utilização de prerrogativas instrumentais. A função administrativa é exercida preponderantemente pelo Poder Executivo. O art. 2º da Constituição Federal enunciou o princípio da Tripartição de Poderes nos seguintes termos: “São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário”. Ao longo do Texto de 1988, existem mecanismos para preservar a independência e, ao mesmo tempo, ferramentas para garantia da harmonia. A principal forma de preservar a independência é atribuir a cada Poder uma função própria (função típica) e exercida predominantemente por um deles, sem interferência externa. De outro lado, a mais importante maneira de garantir a harmonia é permitir que cada Poder, além de sua tarefa preponderante, exerça também, em caráter excepcional, atividades próprias dos outros dois (função atípica).81 Função típica é a tarefa precípua de cada Poder. A função típica do Poder Legislativo é a criação da norma, a inovação originária na ordem jurídica. É certo que qualquer ato jurídico, ainda que praticado por particulares, inova no ordenamento, pois desencadeia o surgimento de direitos e obrigações predefinidos na legislação. Mas constitui uma inovação derivada, na medida em que os efeitos produzidos pelo ato já estavam latentes na ordem jurídica. Porém, a inovação originária, caracterizada pela criação direta de efeitos jurídicos, é virtude exclusiva da lei. Nesse sentido, diz-se que somente o Legislativo exerce uma função primária, uma vez que sua tarefa típica é a única que estabelece normas novas, ao passo que o Judiciário e o Executivo aplicam a norma que o parlamento criou. Esse caráter primário da atuação 81 MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 64-72. - Página 23 de 53 - legislativa é coerente com a origem do Estado de Direito.82 A função típica do Poder Judiciário é solucionar, definitivamente, conflitos de interesse, mediante a provocação do interessado. Nesse sentido, trata-se de função secundária, pois pressupõe a existência da norma que o parlamento criou. Qualquer pessoa pode solucionar conflitos de interesse, apaziguando, aconselhando os envolvidos. Além de sua função típica (garantia de independência), cada Poder exerce também, em caráter excepcional, atividades próprias de outro Poder, denominadas funções atípicas (garantia de harmonia). Exemplo bastante característico é a medida provisória. Ao afirmar que as medidas provisórias editadas pelo Presidente da República “têm força de lei”, o art. 62 da Constituição Federal destacou o caráter materialmente legislativo dessa espécie normativa. As medidas provisórias inovam originariamente o ordenamento jurídico, constituindo função legislativa atribuída atipicamente ao Poder Executivo (o Presidente da República é o Chefe do Executivo federal). A natureza excepcional das funções atípicas induz a três conclusões importantes: a) funções atípicas só podem estar previstas na própria Constituição: isso porque leis que definissem funções atípicas seriam inconstitucionais por violação à Tripartição de Poderes (art. 2º da CF); b) as normas constitucionais definidoras de funções atípicas devem ser interpretadas restritivamente: tal conclusão decorre do princípio hermenêutico segundo o qual “as exceções interpretam -se restritivamente”; c) é inconstitucional a ampliação do rol de funções atípicas pelo poder constituinte derivado: emenda constitucional que acrescentasse nova função atípica tenderia à abolição da separação de Poderes, violando a cláusula pétrea prevista no art. 60, § 4º. 2.1 A FUNÇÃO ADMINISTRATIVA EXERCIDA EM CARÁTER INFRALEGAL A característica fundamental da função administrativa é a sua absoluta submissão à lei. O princípio da legalidade consagra a subordinação da atividade administrativa aos ditames legais. Trata-se de uma importante garantia do Estado de Direito: a Administração Pública só pode fazer o que o povo autoriza, por meio de leis promulgadas por seus representantes eleitos. É o caráter infralegal da função administrativa. Se cabe à Administração Pública concretizar a Constituição, é necessário que a função administrativa seja igualmente democratizada. No sentido que se defende neste artigo, a legitimação do agir do Estado ocorrerá não só mediante o processo eleitoral, que fundamenta uma democracia formal, mas sobretudo a legitimação democrática da Administração Pública (e do Estado como um todo) advém quando presentes instrumentos adequados de garantia do acesso de todos às condições necessárias à real possibilidade de participação democrática.83 Assim, o reconhecimento do direito fundamental à boa administração nada mais é do que o contraponto da constatação da relevância da função administrativa na concretização dos direitos fundamentais. Esse quadro lança vista ao permanente aperfeiçoamento das políticas públicas e da própria Administração. Para a consecução de suas finalidades constitucionalmente previstas.84 Nesse ambiente, o que se tem, na afirmação da boa administração como direito fundamental, é uma ampliação da esfera de proteção desses mesmos direitos, que passa a alcançar não mais só os resultados concretos do agir estatal – a prestação “x” ou “y” deferida a um cidadão –, mas também, preventivamente, ao desenvolvimento da função administrativa 82 MAZZA, Alexandre. Manual de direito administrativo. 4. ed. São Paulo: Saraiva, 2014. p. 64-72. 83 CARVALHO, Valter Alves. O direito à boa administração pública como instrumento de hermenêutica constitucional. Instituições políticas, administração pública e jurisdição constitucional [Recurso eletrônico on-line - Conselho Nacional de Pesquisa e Pós Graduação em Direito/CONPED]. Florianópolis: FUNJAB,
Compartilhar