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Poesia numa hora dessas? Uma antologia da bazar do tempo para espíritos livres (em corpos isolados) Costumamos dizer que a Bazar do Tempo é, antes de tudo, uma casa de leitoras/ leitores. Pois tem sido assim, apostando no prazer que temos com a leitura, que vamos construindo nosso catá- logo, querendo compartilhar experiências, encantamen- tos, descobertas, emoções. Foi esse o espírito que nos guiou na seleção dessa pe- quena antologia que disponibilizamos de forma aberta e desejando que seja disseminada sem restrição. Acreditamos que a poesia é um caminho para encontrar- mos sentidos para os novos tempos. Sobretudo para aque- le que teremos que criar, juntos, atravessado o período mais duro dessa pandemia. Esta antologia reúne uma seleção das obras que edi- tamos de maravilhosos poetas: Adilia Lopes, Jorge de Sena, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andra- de, Yehuda Amichai, Rûmî, além de poemas da anto- logia organizada por Ramon Nunes Mello, “Tente en- tender o que tento dizer – Poesia + hiv/aids”. E ainda poemas inéditos de Mário Cesariny e Danez Smith, que lançaremos ainda este ano. Um trabalho feito por muitos: organizadores, traduto- res, designers. Junto a eles, então, oferecemos, com afe- to, esses poemas. Ana Cecilia Impellizieri Martins Maria de Andrade Catarina Lins adília lopes Jorge de sena fernando pessoa yehUda amichai rÛmÎ carlos drUmmond de andrade tente entender o qUe qUero dizer – vários mário cesariny danez smith 05 10 14 44 49 57 61 77 81 Arte PoéticA escrever um poema é como apanhar um peixe com as mãos nunca pesquei assim um peixe mas posso falar assim sei que nem tudo o que vem às mãos é peixe o peixe debate-se tenta escapar-se escapa-se eu persisto luto corpo a corpo com o peixe ou morremos os dois ou nos salvamos os dois tenho de estar atenta tenho medo de não chegar ao fim é uma questão de vida ou de morte quando chego ao fim descubro que precisei de apanhar o peixe para me livrar do peixe livro-me do peixe com o alívio que não sei dizer 5 aqUi estão as minhas contas AdíliA lopes organização: sofia de sousa silva 6 MArIAnA ChAMILLy Marianna faz vinte e oito anos Marianna em virtude de imaginar que abre cartas abre nervosamente a caixa de bombons que uma irmã lhe oferece pelos anos outra mais maliciosa oferece a Marianna um mealheiro é um marco de correio em ponto pequeno Marianna queima-o na braseira com dinheiro dentro o dia em que eu nasci moura e pereça blasfema Marianna o dinheiro não traz o marquês de Chamilly o dinheiro não traz o marquês de Chamilly sobretudo quando é pouco pensa Marianna mas não se deve pensar assim nada pior do que estar apaixonada por um gigolo 7 O MEU TEMPO (1960-1993) Agora as pessoas não sabem morrer estar doentes sofrer ter prazer tocar-se dantes também não 8 AS rOSAS COM BOLOrES Tenho sempre perto de mim geralmente na minha mesa de cabeceira um ramo de rosas todas as manhãs a primeira coisa que faço quando acordo é observar atentamente as rosas a ver se algum bolor poisou na pele das rosas quando isto acontece é muito raro mas eu gosto de coisas preciosas e sou paciente deixo de dormir para observar o crescimento desigual e lento do bolor a pouco e pouco o bolor vai cobrindo a pele da rosa ou antes alimentando-se da pele da rosa adquire o feitio da rosa 9 mas a pele da rosa não está por baixo do bolor desapareceu é preciso estar sempre atenta porque no instante em que o bolor não pode alastrar mais a não ser alastrando-se sobre si próprio e alimentando-se de si próprio ou seja suicidando-se naquele acto de infinito amor por si próprio que é afinal todo o suicídio a rosa pode andar pelos seus pés antes de ela partir beijo-a na boca depois ela parte e desaparece para sempre da minha vida então eu vou dormir porque estou muito cansada as rosas com bolores cansam-me 10 CArTA A MEUS FILhO S SOBrE OS FUZILAMEnTOS DE GOyA não sei, meus filhos, que mundo será o vosso. É possível, porque tudo é possível, que ele seja aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo, onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém de nada haver que não seja simples e natural. Um mundo em que tudo seja permitido, conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso prazer, o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros por vós. E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto o que vos interesse para viver. Tudo é possível, ainda quando lutemos, como devemos lutar, por quanto nos pareça a liberdade e a justiça, ou mais que qualquer delas uma fiel dedicação à honra de estar vivo. Um dia sabereis que mais que a humanidade não tem conta o número dos que pensaram assim, amaram o seu semelhante no que ele tinha de único, de insólito, de livre, de diferente, e foram sacrificados, torturados, espancados, e entregues hipocritamente à secular justiça, para que os liquidasse “com suma piedade e sem efusão [de sangue”. > não leiam delicados estes livros jorge de senA organização: gilda santos 11 Por serem fiéis a um deus, a um pensamento, a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas à fome irrespondível que lhes roía as entranhas, foram estripados, esfolados, queimados, gaseados, e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto [haviam vivido, ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse memória. Às vezes, por serem de uma raça, outras por serem de uma classe, expiaram todos os erros que não tinham cometido ou não tinham [consciência de haver cometido. Mas também aconteceu e acontece que não foram mortos. houve sempre infinitas maneiras de prevalecer, aniquilando mansamente, delicadamente, por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de Deus. 12 UM EPÍLOGO Quando estes poemas parecerem velhos, e for risível a esperança deles: já foi atraiçoado então o mundo novo, ansiosamente esperado e conseguido – e são inevitáveis outros poemas novos, sinal da nova gravidez da Vida concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo, só perfeito e belo aos olhos de seus pais. E a Vida, prostituta ingénua, terá, por momentos, olhos maternais. 5/6/1942 13 GLÓrIA Um dia se verá que o mundo não viveu um drama. Todas estas batalhas, todos estes crimes, todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se [em carne viva e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta, todos estes poetas furados por balas e todos os outros poetas abandonados pelos que nem coragem tiveram de matar um homem, toda esta mocidade enganada e roubada e a outra que morreu sabendo que a roubavam, todo este sangue expressamente coalhado à face íntegra da terra, tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros. Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer. 6/4/1942 14 POEMA EM LInhA rETA nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil, Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita, Indesculpavelmente sujo, Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho, Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo, Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas, Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante, Que tenho sofrido enxovalhos e calado, Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda; Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel, Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes, Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar, Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado Para fora da possibilidade do soco; Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas, Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. Toda a gente que eu conheço e que fala comigo nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida… Quem me dera ouvir de alguém a voz humana Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. Quem háneste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil? Ó príncipes, meus irmãos, antologia poética fernAndo pessoA organização, apresentação e ensaios: cleonice berardinelli 15 ErOS E PSIQUE Publicado, Presença nº 41-42, maio 1934 … E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, a mesma verdade. – DO rITUAL DO GrAU DE MESTrE DO áTrIO nA OrDEM TEMPLárIA DE POrTUGAL Conta a lenda que dormia Uma Princesa encantada A quem só despertaria Um Infante, que viria De além do muro da estrada. Ele tinha que, tentado, Vencer o mal e o bem, Antes que, já libertado, Deixasse o caminho errado Por o que à Princesa vem. A Princesa Adormecida, Se espera, dormindo espera. Sonha em morte a sua vida, E orna-lhe a fronte esquecida, Verde, uma grinalda de hera. Longe o Infante, esforçado, Sem saber que intuito tem, rompe o caminho fadado. Ele dela é ignorado. Ela para ele é ninguém. Mas cada um cumpre o Destino – Ela dormindo encantada, Ele buscando-a sem tino Pelo processo divino Que faz existir a estrada. 16 O GUArDADOr DE rEBAnhOS (1911-1912)27 8-3-1914 I Eu nunca guardei rebanhos, Mas é como se os guardasse. Minha alma é como um pastor, Conhece o vento e o sol E anda pela mão das Estações A seguir e a olhar. Toda a paz da natureza sem gente Vem sentar-se a meu lado. Mas eu fico triste como um pôr de sol Para a nossa imaginação, Quando esfria no fundo da planície E se sente a noite entrada Como uma borboleta pela janela. Mas a minha tristeza é sossego Porque é natural e justa E é o que deve estar na alma Quando já pensa que existe E as mãos colhem flores sem ela dar por isso. Como um ruído de chocalhos Para além da curva da estrada, Os meus pensamentos são contentes. Só tenho pena de saber que eles são contentes, Porque, se o não soubesse, Em vez de serem contentes e tristes, Seriam alegres e contentes. 27 Datas fictícias, uma vez que “nenhum dos poemas de O Guardador de Rebanhos está dentro do âmbito que lhe foi escolhido: 1911-1912”. > 17 Pensar incomoda como andar à chuva Quando o vento cresce e parece que chove mais. não tenho ambições nem desejos Ser poeta não é uma ambição minha É a minha maneira de estar sozinho. E se desejo às vezes Por imaginar, ser cordeirinho (Ou ser o rebanho todo Para andar espalhado por toda a encosta A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo), É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol, Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz E corre um silêncio pela erva fora. Quando me sento a escrever versos Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos, Escrevo versos num papel que está no meu pensamento, Sinto um cajado nas mãos E vejo um recorte de mim no cimo dum outeiro, Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias, Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho, E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz E quer fingir que compreende. Saúdo todos os que me lerem, Tirando-lhes o chapéu largo Quando me veem à minha porta Mal a diligência levanta no cimo do outeiro. Saúdo-os e desejo-lhes sol, E chuva, quando a chuva é precisa, E que as suas casas tenham Ao pé duma janela aberta > 18 Uma cadeira predileta Onde se sentem, lendo os meus versos. E ao lerem os meus versos pensem Que sou qualquer cousa natural – Por exemplo, a árvore antiga À sombra da qual quando crianças Se sentavam com um baque, cansados de brincar, E limpavam o suor da testa quente Com a manga do bibe riscado. 8-3-1914 19 II O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás… E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, E eu sei dar por isso muito bem… Sei ter o pasmo essencial Que tem uma criança se, ao nascer, reparasse que nascera deveras… Sinto-me nascido a cada momento Para a eterna novidade do Mundo… Creio no mundo como num malmequer, Porque o vejo. Mas não penso nele Porque pensar é não compreender… O Mundo não se fez para pensarmos nele (Pensar é estar doente dos olhos) Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo… Eu não tenho filosofia: tenho sentidos… Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é, Mas porque a amo, e amo-a por isso, Porque quem ama nunca sabe o que ama nem sabe por que ama, nem o que é amar… Amar é a eterna inocência, E a única inocência não pensar… > 20 III Ao entardecer, debruçado pela janela, E sabendo de soslaio que há campos em frente, Leio até me arderem os olhos O livro de Cesário Verde. Que pena que tenho dele! Ele era um camponês Que andava preso em liberdade pela cidade. Mas o modo como olhava para as casas, E o modo como reparava nas ruas, E a maneira como dava pelas cousas, É o de quem olha para árvores, E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando E anda a reparar nas flores que há pelos campos… Por isso ele tinha aquela grande tristeza Que ele nunca disse bem que tinha, Mas andava na cidade como quem anda no campo E triste como esmagar flores em livros E pôr plantas em jarros… Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 > 21 V há metafísica bastante em não pensar em nada. O que penso eu do mundo? Sei lá o que penso do mundo! Se eu adoecesse pensaria nisso. Que ideia tenho eu das cousas? Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos? Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma E sobre a criação do Mundo? não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos E não pensar. É correr as cortinas Da minha janela (mas ela não tem cortinas). O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério! O único mistério é haver quem pense no mistério. Quem está ao sol e fecha os olhos, Começa a não saber o que é o sol E a pensar muitas cousas cheias de calor. Mas abre os olhos e vê o sol, E já não pode pensar em nada, Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos De todos os filósofos e de todos os poetas. A luz do sol não sabe o que faz E por isso não erra e é comum e boa. Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores? A de serem verdes e copadas e de terem ramos E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar, A nós, que não sabemos dar por elas. > 22 Mas que melhor metafísica que a delas, Que é a de não saber para que vivem nem saber que o não sabem? Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada. É incrível que se possa pensar em cousas dessas. É como pensar em razões e fins Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão. Pensar no sentido íntimo das cousas É acrescentado, como pensar na saúde Ou levar um copo à água das fontes. O único sentido íntimo das cousas É elas não terem sentido íntimo nenhum. não acredito em Deus porque nunca o vi. Se ele quisesse que eu acreditasse nele, Sem dúvida que viria falar comigo E entraria pela minha porta dentro Dizendo-me, Aqui estou! (Isto é talvez ridículo aos ouvidos De quem, por não saber o que é olhar para as cousas, não compreende quem fala delas Com o modo de falar que reparar para elas ensina.) Mas se Deus é as flores e as árvores E os montes e sol e o luar, Então acredito nele, Então acredito nele a toda a hora, E a minha vida é toda uma oração e uma missa, E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. > 23 Mas se Deus é as árvores e as flores E os montes e o luar e o sol, Para que lhe chamo eu Deus? Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar; Porque, se ele se fez, para eu o ver Sol e luar e flores e árvores e montes, Se ele me aparece como sendo árvores e montes E luar e sol e flores, É que ele quer que eu o conheça Como árvores e montes e flores e luar e sol. E por isso eu obedeço-lhe, (Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?). Obedeço-lhe a viver, espontaneamente, Como quem abre os olhos e vê, E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes, E amo-o sem pensar nele, E penso-o vendo e ouvindo, E ando com ele a toda a hora. 24 VI Pensar em Deus é desobedecer a Deus, Porque Deusquis que o não conhecêssemos, Por isso se nos não mostrou… Sejamos simples e calmos, Como os regatos e as árvores, E Deus amar-nos-á fazendo de nós Belos como as árvores e os regatos, E dar-nos-á verdor na sua primavera, E um rio aonde ir ter quando acabemos!… Publicado, Presença nº 30, janeiro/fevereiro 1931 25 VIII num meio-dia de fim de primavera Tive um sonho como uma fotografia. Vi Jesus Cristo descer à terra. Veio pela encosta de um monte Tornado outra vez menino, A correr e a rolar-se pela erva E a arrancar flores para as deitar fora E a rir de modo a ouvir-se de longe. Tinha fugido do céu. Era nosso demais para fingir De segunda pessoa da Trindade. no céu era tudo falso, tudo em desacordo Com flores e árvores e pedras. no céu tinha que estar sempre sério E de vez em quando de se tornar outra vez homem E subir para a cruz, e estar sempre a morrer Com uma coroa toda à roda de espinhos E os pés espetados por um prego com cabeça, E até com um trapo à roda da cintura Como os pretos nas ilustrações. nem sequer o deixavam ter pai e mãe Como as outras crianças. O seu pai era duas pessoas – Um velho chamado José, que era carpinteiro, E que não era pai dele; E o outro pai era uma pomba estúpida, A única pomba feia do mundo Porque não era do mundo nem era pomba. E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. > 26 não era mulher: era uma mala Em que ele tinha vindo do céu. E queriam que ele, que só nascera da mãe, E nunca tivera pai para amar com respeito, Pregasse a bondade e a justiça! Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu E serve de modelo às outras. Depois fugiu para o sol E desceu pelo primeiro raio que apanhou. hoje vive na minha aldeia comigo. É uma criança bonita de riso e natural. Limpa o nariz ao braço direito, Chapinha nas poças de água, Colhe as flores e gosta delas e esquece-as. Atira pedras aos burros, rouba a fruta dos pomares E foge a chorar e a gritar dos cães. E, porque sabe que elas não gostam E que toda a gente acha graça, Corre atrás das raparigas Que vão em ranchos pelas estradas Com as bilhas às cabeças E levanta-lhes as saias. > 27 A mim ensinou-me tudo. Ensinou-me a olhar para as cousas. Aponta-me todas as cousas que há nas flores. Mostra-me como as pedras são engraçadas Quando a gente as tem na mão E olha devagar para elas. Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele é um velho estúpido e doente, Diz-me muito mal de Deus. Diz que ele é um velho estúpido e doente, Sempre a escarrar no chão E a dizer indecências. A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia. E o Espírito Santo coça-se com o bico E empoleira-se nas cadeiras e suja-as. Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica. Diz-me que Deus não percebe nada Das coisas que criou – “Se é que ele as criou, do que duvido” – “Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória, Mas os seres não cantam nada. Se cantassem seriam cantores, Os seres existem e mais nada, E por isso se chamam seres.” E depois, cansado de dizer mal de Deus, O Menino Jesus adormece nos meus braços E eu levo-o ao colo para casa. > 28 Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro. Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. E por isso é que eu sei com toda a certeza Que ele é o Menino Jesus verdadeiro. E a criança tão humana que é divina É esta minha quotidiana vida de poeta, E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre, E que o meu mínimo olhar Me enche de sensação, E o mais pequeno som, seja do que for, Parece falar comigo. A Criança nova que habita onde vivo Dá-me uma mão a mim E a outra a tudo que existe E assim vamos os três pelo caminho que houver, Saltando e cantando e rindo E gozando o nosso segredo comum Que é o de saber por toda a parte Que não há mistério no mundo E que tudo vale a pena. A Criança Eterna acompanha-me sempre. A direção do meu olhar é o seu dedo apontando. O meu ouvido atento alegremente a todos os sons São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas. Damo-nos tão bem um com o outro na companhia de tudo Que nunca pensamos um no outro, > 29 Mas vivemos juntos e dois Com um acordo íntimo Como a mão direita e a esquerda. Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas no degrau da porta de casa, Graves como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão. Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens E ele sorri, porque tudo é incrível. ri dos reis e dos que não são reis, E tem pena de ouvir falar das guerras, E dos comércios, e dos navios Que ficam fumo no ar dos altos-mares. Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade Que uma flor tem ao florescer E que anda com a luz do sol A variar os montes e os vales E a fazer doer aos olhos os muros caiados. Depois ele adormece e eu deito-o. Levo-o ao colo para dentro de casa E deito-o, despindo-o lentamente E como seguindo um ritual muito limpo E todo materno até ele estar nu. Ele dorme dentro da minha alma E às vezes acorda de noite > 30 E brinca com os meus sonhos. Vira uns de pernas para o ar, Põe uns em cima dos outros E bate as palmas sozinho Sorrindo para o meu sono. ………… Quando eu morrer, filhinho, Seja eu a criança, o mais pequeno. Pega-me tu ao colo E leva-me para dentro da tua casa. Despe o meu ser cansado e humano E deita-me na tua cama. E conta-me histórias, caso eu acorde, Para eu tornar a adormecer. E dá-me sonhos teus para eu brincar Até que nasça qualquer dia Que tu sabes qual é. ………… Esta é a história do meu Menino Jesus. Por que razão que se perceba não há de ser ela mais verdadeira Que tudo quanto os filósofos pensam E tudo quanto as religiões ensinam? Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 31 IX Sou um guardador de rebanhos, O rebanho é os meus pensamentos E os meus pensamentos são todos sensações. Penso com os olhos e com os ouvidos E com as mãos e os pés E com o nariz e a boca. Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la E comer um fruto é saber-lhe o sentido. Por isso quando num dia de calor Me sinto triste de gozá-lo tanto, E me deito ao comprido na erva, E fecho os olhos quentes, Sinto todo o meu corpo deitado na realidade, Sei a verdade e sou feliz. Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 32 X “Olá, guardador de rebanhos Aí à beira da estrada, Que te diz o vento que passa?” “Que é vento, e que passa, E que já passou antes, E que passará depois. E a ti o que te diz?” “Muita cousa mais do que isso. Fala-me de muitas outras cousas. De memórias e de saudades E de cousas que nunca foram.” “nunca ouviste passar o vento. O Vento só fala do vento. O que lhe ouviste foi mentira, E a mentira está em ti.” 33 XV As quatro canções que seguem Separam-se de tudo o que eu penso, Mentem a tudo o que eu sinto São do contrário do que eu sou… Escrevi-as estando doente E por isso elas são naturais E concordam com aquilo que sinto, Concordam com aquilo com que não concordam… Estando doente devo pensar o contrário Do que penso quando estou são. (Senão não estaria doente), Devo sentir o contrário do que sinto Quando sou eu na saúde, Devo mentir à minha natureza De criatura que sente de certa maneira… Devo ser todo doente – ideias e tudo. Quando estou doente, não estou doente para outra cousa. Por isso essas canções que me renegam não são capazes de me renegar E são a paisagem da minha alma de noite, A mesma ao contrário… 34 XVIII Quem me dera que eu fosse o pó da estrada E que os pés dos pobres me estivessem pisando… Quem me dera que eu fosse os rios que correm E que as lavadeiras estivessem à minha beira… Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio E tivesse só o céu por cima e a água por baixo… Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro E queele me batesse e me estimasse… Antes isso que ser o que atravessa a vida Olhando para trás de si e tendo pena… Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 35 XX O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia, Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia. O Tejo tem grandes navios E navega nele ainda, Para aqueles que veem em tudo o que lá não está, A memória das naus. O Tejo desce de Espanha E o Tejo entra no mar em Portugal. Toda a gente sabe isso. Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia E para onde ele vai E donde ele vem. E por isso, porque pertence a menos gente, É mais livre e maior o rio da minha aldeia. Pelo Tejo vai-se para o Mundo. Para além do Tejo há a América E a fortuna daqueles que a encontram. ninguém nunca pensou no que há para além Do rio da minha aldeia. O rio da minha aldeia não faz pensar em nada. Quem está ao pé dele está só ao pé dele. 36 XXI Se eu pudesse trincar a terra toda E sentir-lhe um paladar, Seria mais feliz um momento… Mas eu nem sempre quero ser feliz. É preciso ser de vez em quando infeliz Para se poder ser natural… nem tudo é dias de sol, E a chuva, quando falta muito, pede-se. Por isso tomo a infelicidade com a felicidade naturalmente, como quem não estranha Que haja montanhas e planícies E que haja rochedos e erva… O que é preciso é ser-se natural e calmo na felicidade ou na infelicidade, Sentir como quem olha, Pensar como quem anda, E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre, E que o poente é belo e é bela a noite que fica… Assim é e assim seja… Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 37 XXIV O que nós vemos das cousas são as cousas, Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra? Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos Se ver e ouvir são ver e ouvir? O essencial é saber ver, Saber ver sem estar a pensar, Saber ver quando se vê, E nem pensar quando se vê nem ver quando se pensa. Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!), Isso exige um estado profundo, Uma aprendizagem de desaprender E uma sequestração na liberdade daquele convento De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas E as flores as penitentes convictas de um só dia, Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas nem as flores senão flores, Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores. Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 38 XXVIII Li hoje quase duas páginas Do livro dum poeta místico, E ri como quem tem chorado muito. Os poetas místicos são filósofos doentes, E os filósofos são homens doidos. Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem E dizem que as pedras têm alma E que os rios têm êxtases ao luar. Mas flores, se sentissem, não eram flores, Eram gente; E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras; E se os rios tivessem êxtases ao luar, Os rios seriam homens doentes. É preciso não saber o que são flores e pedras e rios Para falar dos sentimentos deles. Falar da alma das pedras, das flores, dos rios, É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos. Graças a Deus que as pedras são só pedras, E que os rios não são senão rios, E que as flores são apenas flores. Por mim, escrevo a prosa dos meus versos E fico contente, Porque sei que compreendo a natureza por fora; E não a compreendo por dentro Porque a natureza não tem dentro; Senão não era a natureza. Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 39 XXXV O luar através dos altos ramos, Dizem os poetas todos que ele é mais Que o luar através dos altos ramos. Mas para mim, que não sei o que penso, O que o luar através dos altos ramos É, além de ser O luar através dos altos ramos, É não ser mais Que o luar através dos altos ramos. 40 XXXVI E há poetas que são artistas E trabalham nos seus versos Como um carpinteiro nas tábuas!… Que triste não saber florir! Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro E ver se está bem, e tirar se não está!… Quando a única casa artística é a Terra toda Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma. Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira, E olho para as flores e sorrio… não sei se elas me compreendem nem se eu as compreendo a elas, Mas sei que a verdade está nelas e em mim E na nossa comum divindade De nos deixarmos ir e viver pela Terra E levar ao solo pelas Estações contentes E deixar que o vento cante para adormecermos E não termos sonhos no nosso sono. Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 41 XXXIX O mistério das cousas, onde está ele? Onde está ele que não aparece Pelo menos a mostrar-nos que é mistério? Que sabe o rio disso e que sabe a árvore? E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso? Sempre que olho para as cousas e penso no que os homens pensam delas, rio como um regato que soa fresco numa pedra. Porque o único sentido oculto das cousas É elas não terem sentido oculto nenhum, É mais estranho do que todas as estranhezas E do que os sonhos de todos os poetas E os pensamentos de todos os filósofos, Que as cousas sejam realmente o que parecem ser E não haja nada que compreender. Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: -- As cousas não têm significação: têm existência. As cousas são o único sentido oculto das cousas. 10-5-1914 42 XLVI Deste modo ou daquele modo, Conforme calha ou não calha, Podendo às vezes dizer o que penso E outras vezes dizendo-o mal e com misturas Vou escrevendo os meus versos sem querer, Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos, Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse Como dar-me o sol de fora. Procuro dizer o que sinto Sem pensar em que o sinto. Procuro encostar as palavras à ideia E não precisar dum corredor Do pensamento para as palavras. nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir. O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar. Procuro despir-me do que aprendi, Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram, E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos, Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras, Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro, Mas um animal humano que a natureza produziu. > 43 E assim escrevo, querendo sentir a natureza, nem sequer como um homem, Mas como quem sente a natureza, e mais nada. E assim escrevo, ora bem, ora mal, Ora acertando com o que quero dizer, ora errando, Caindo aqui, levantando-me acolá, Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso. Ainda assim, sou alguém. Sou o Descobridor da natureza. Sou o Argonauta das sensações verdadeiras. Trago ao Universo um novo Universo Porque trago ao Universo ele-próprio. Isto sinto e isto escrevo Perfeitamente sabedor e sem que não veja Que são cinco horas do amanhecer E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça Por cima do muro do horizonte, Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos Agarrando o cimo do muro Do horizonte cheio de montes baixos. 44 O hOMEM nãO TEM TEMPO O homem não tem tempo para tudo na vida. Ele não tem uma época para cada um de seus desejos. O Eclesiastes não está certo. O homem precisa odiar e amar ao mesmo tempo, com os mesmos olhos chorar e com os mesmos olhos rir, com a mesma mão atirar pedras e com a mesma mão recolhê-las, fazer amor na guerra e guerra no amor. Odiar e perdoar, lembrar e esquecer, organizar e confundir, comer e digerir o que a história faz ao longo de muitos e muitos anos. O homem na vida não tem tempo. Quando ele perde ele procura, quando ele acha ele esquece, quando ele esquece ele ama e quando ele ama começa a esquecer. a alma dele é preparada, é bastante profissional, somente o corpo é sempre amador. Tenta e erra, > terra e paz YehudA AmichAi organização e tradução: moacir amâncio 45 não aprende, confunde-se bêbado, cego nos prazeres e nas dores. A morte dos figos é no outono, encarquilhados, cheios de si e doces, as folhas secam sobre a terra, os galhos nus já apontam o lugar onde há tempo para tudo. 46 JErUSALÉM num telhado da Cidade Velha, a roupa no varalilumina-se à última luz do dia: o lençol branco de uma mulher inimiga, a toalha de um homem inimigo para enxugar o suor do seu rosto. no céu da Cidade Velha há uma pipa. no fim da linha – um menino, que eu não vejo por causa da muralha. hasteamos muitas bandeiras, eles hastearam muitas bandeiras. Para pensarmos que eles são felizes. Para pensarem que nós somos felizes. 47 SEnhOr, A ALMA QUE TU ME DESTE Senhor, a alma que Tu me deste é fumaça do perene incêndio das memórias do amor, chegamos ao mundo e já começamos a queimar e é assim até que a fumaça como fumaça se esfume. 48 O LUGAr OnDE SEMPrE ESTAMOS CErTOS Do lugar onde sempre estamos certos nunca brotarão flores na primavera. O lugar onde sempre estamos certos é batido e duro como um pátio. Mas dúvidas e amores esfarelam o mundo como uma toupeira, um arado. E um murmúrio será ouvido no lugar onde havia uma casa – destruída. 49 O CAnTO DA UnIDADE (PArTE) Faz tempo que não vemos teu jardim, com seu narciso bêbado de orvalho. Dos homens em segredo te defendes. Faz tempo que não vemos teu semblante. a flaUta e a lUa rÛmÎ organização: marco lucchesi tradução: marco lucchesi e rafî moussavî 50 Sou abrasado à chama da paixão. Teu verbo é água para o rio das almas. A água é ilusão e a chama é breve: ah! Tudo desvanece como em sonho. 51 O amado junto a mim, noite adorada; o meu desejo é que jamais termine. Os corvos são tomados de alegria e voam junto ao branco falcão da alma. 52 habita com teu canto os corações, e segue alegremente noite e dia; se cessas um instante, morreremos. Teu canto é uma flauta embevecida. 53 Se o mar já não aplaca a minha sede, o que fará por mim esse regato? Sem a rosa, o que sobra do perfume? O amado se vai, não me resta que a espera. 54 O teu amor pôs fim ao turco e ao árabe. Sou servo do martírio e do combate. não há como fugir de teu amor. Ah! Vamos, coração, deixa este jogo. 55 Aquele que levou meu sono embora, quer banhado de pranto meu altar. Sem palavras, lançou-me dentro da água, água que torna minha água mais doce. 56 Quando eu voltar ao mar absoluto, meus átomos irão resplandecer. Eu ardo como a vela da paixão. hei de viver o instante para sempre. 57 AUSênCIA Subir ao Pico do Amor e lá em cima sentir presença de amor. no Pico do Amor amor não está. reina serenidade de nuvens sussurrando ao coração: Que importa? Lá embaixo, talvez, amor está, em lagoa decerto, em grota funda. Ou? mais encoberto ainda, onde se refugiam coisas que não são, e tremem de vir a ser. canto mineral cArlos drummond de AndrAde organização: pedro graña drummond e Joziane perdigão vieira 58 BOITEMPO Entardece na roça de modo diferente. A sombra vem nos cascos, no mugido da vaca separada da cria. O gado é que anoitece e na luz que a vidraça da casa fazendeira derrama no curral surge multiplicada sua estátua de sal, escultura da noite. Os chifres delimitam o sono privativo de cada rês e tecem de curva em curva a ilha do sono universal. no gado é que dormimos e nele que acordamos. Amanhece na roça de modo diferente. A luz chega no leite, morno esguicho das tetas e o dia é um pasto azul que o gado reconquista. 59 CIDADEZInhA QUALQUEr Casas entre bananeiras mulheres entre laranjeiras pomar amor cantar. Um homem vai devagar. Um cachorro vai devagar. Um burro vai devagar. Devagar... as janelas olham. Eta vida besta, meu Deus. 60 COnFIDênCIA DO ITABIrAnO Alguns anos vivi em Itabira. Principalmente nasci em Itabira. Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro. noventa por cento de ferro nas calçadas. Oitenta por cento de ferro nas almas. E esse alheamento do que na vida é porosidade e comuni- cação. A vontade de amar, que me paralisa o trabalho, vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e sem horizontes. E o hábito de sofrer, que tanto me diverte, é doce herança itabirana. De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço: esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil; este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval; este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas; este orgulho, esta cabeça baixa... Tive ouro, tive gado, tive fazendas. hoje sou funcionário público. Itabira é apenas uma fotografia na parede. Mas como dói! 61 Chacal ESCrEVO COM TODAS AS LETrAS eu quero o amor livre pro que der e vier eu quero você fora do armário da caixinha do quadrado eu sou do grupo de risco só me interessa o que vem do outro toco com todas as teclas pinto com todas as cores não quero mais do mesmo eu quero mesmo o outro tente entender o qUe qUero dizer Vários organização: ramon nunes mello 62 Marília Garcia DIAS COnTADOS “o tempo que temos se estamos atentos será sempre exato”, foi o que ele disse a ela numa carta e ela repetiu em voz alta e foi assim que ouvi as palavras dele na voz dela ela falava das cartas que eles tinham trocado e contou que esta frase que estava numa carta dele pra ela tinha virado um lugar comum nas citações da obra dele então tentei pegar a frase e ouvir de novo e tentei pegar a frase e ouvir cada palavra de uma vez > 63 e tentei também ouvir a voz dela e ouvir a voz dele as vozes sobrepostas dizendo: “o tempo que temos – se estamos atentos – será sempre exato” talvez seja uma frase de um homem com os dias contados de alguém com o timer ligado vou ajustar o cronômetro você me diz você que escreve coisas tão tristes vou ajustar o timer por quanto tempo você aguentaria respirar debaixo d’água? se estivermos atentos não era bem isso que você queria dizer? parece que as linhas que ainda faltam aqui serão exatas mas como fazer para saber? parece que hoje de agora em diante ou será mesmo que o tempo poderia ser medido? o tempo que tenho > 64 começo a medir você me diz e pergunta como eu faria se nesse dia ela falou duas coisas que me marcaram a segunda sobre o tempo que ele não teve e a primeira sobre o timing das coisas sobre ir desdobrando a experiência e chegar ao fim. 65 Gabriel Mação O QUE MATA Me corta por dentro Como estilhaços de vidro transparente Do prato quebrado Ontem no jantar O medo deles E a sua ausência O buraco deixado Em minha carne ainda Cicatriza Mas o que dói é sentir-se Como uma bomba Ali, no meio do círculo Vazio Deixado por todos nas ruas nos prédios E ainda em mim Corre o meu sangue Positivo humano Eu Vivo E sinto o cheiro das tardes Se findando E recomeçando > 66 Todos os dias Continuo... O que mata não está em mim, Vem de corações doentes De quem não se livrou Dos medos de estimação E ainda coleciona Preconceitos nas gavetas E cabides Do armário O que mata não é meu sangue, É ainda não terem queimado As roupas velhas rasgadas, manchadas E ultrapassadas O que mata É a falta de amor. 67 Eduardo Sterzi OS hIMALAIAS Os himalaias crescem vinte milímetros por ano porque a índia continua a se chocar com a ásia central Mas o que continua a crescer e se chocar verdadeiramente não tem nome: nem himalaia nem índia nem ásia central nem vinte milímetros nem ano até mesmo a ideia de continuação aqui não tem nome nada continua porque nada verdadeiramente começa nem tem fim já o início é memória de grandes destruições (Também a destruição não tem nome: estamos vivos dentro e fora antes e depois do que chamamos dentro e fora e antes e depois) 68 Letícia Brito Tente entender: Eu tenho 9 amigos que fumam Eu tenho 12 amigos que bebem coca-cola Eu tenho 3 amigos que cheiram coca ou cola Eu tenho 333 amigos LGBTTIQ+ Eu tenho 5 amigos com diabetes Eu tenho 4 amigos do candomblé Eu tenho 2 amigos veganos Eu tenho 6 amigos que usam ayahuasca Eu tenho 24 amigos que fumam maconha Eu tenho 18 amigos machistas Eu tenho 4 amigos vivendo com hIV Eu tenho 9 amigos que fazem performances nus Eu tenho 15 amigos que jogam basquete Eu tenho 8 amigos budistas Eu tenho 43 amigos poetas Eu tenho 12 amigos que pensam em suicídio Eu tenho 89 amigos comunistas Alguns amigos reúnem mais do que uma das qualidades descritas Eu abraço todos os meus amigos Eu amo todos eles <3 PS:nenhum desses amigos gosta do Bolsonaro 69 Ramon Nunes Mello ACTO DE FÉ 22 de fevereiro de 2006 na cidade do porto gisberta salce júnior 45 anos mulher transexual soropositiva torturada por três dias pedradas pauladas chutes sexualmente torturada corpo dilacerado queimado com cigarros e jogada em 15 metros de agonia afogou-se na violência e no preconceito em nome do pai do filho e do espiríto santo de 14 jovens católicos no poço fundo sem fim amém 70 Tainá Rei COrPOS DE nEOn entorpecida um mistério o que tem na bebida vá se for fluidos de meninos vá se for o suor de uma batalha vá se for o orvalho sob a casa de sua infância vá se for o próprio caio f abreu o rosto que jamais vi duas mãos coladas, num sonho trocando calor eu acordo molhada distorções na superfície explosão, tambor, motor de carro viajante sem corpo próprio ou destino vá se isso for a vida encarcerada nas dobras da barriga de alguém olha ao redor – está inalcançável inaugura pontes, túneis por todo o dia toda a madrugada estou na plataforma decido pular nos trilhos, vencer o tempo pulo e abro os olhos > 71 estamos no trem matando todos com gritos de loucura infantil repetindo sílabas como gagos, mas só estamos cansados vá se isso for um ritual comum e abro os olhos o trem abre a porta tanto corpo e nenhum deseja e rompe a privacidade e me abraça? o maquinista sai da cabine desabotoa a camisa e mostra um x vermelho no peito sorrimos e eu abro os olhos ela conjura a favor de sua maquinaria aguardando comum na fila do pão ela se arrisca demais apaixonando-se transando com meninos sem proteção ela se apresenta à luz de um poste inalcançável vá se for isso um presente inaugura caminhos atravessa pontes, túneis 72 Paulo Scott VIDA VErSãO DOIS o colibri traz dentro de si uma caixa onde guarda e carrega um mamífero de impulso não revelado o colibri também guarda dentro de si um observatório astronômico com o qual enxerga onde é mais longe e secura de estrela dentro si olhando assim de fora enquanto dorme voando o colibri em sua desarrumação é ilha que não descansa é farol igual filme em sala de Botafogo ilha que não aparece nos mapas por isso o colibri é essa beleza sopro que não fixa – essa aquarela de afetos e afagos aquarelas espalhado nas folhas e árvores > 73 coringa sem território pingando (nos que o supõem poeira) seu atabaque cardial sua pequena explosão o colibri bate seu móbile sua vitória com asas que desaparecem e como nenhum outro ser (apesar do tamanho) e sopro sem território consegue ter 74 Guilherme Zarvos hIV Falar de câncer hIV de hepatite C Só pelo pedido do Destino resposta de Poeta para Poeta Enganadores muitas vezes do sofrimento Dizer que Dor Cruel é não Viver Pois não é difícil tirar a vida Falar de amor De água Dos voos como foram dados Continuarão Conviver com doenças e doentes Todos querem viver e tantos deles ávidos: – Quero ter mais tempo para Ler Ter medo de sangue, de esperma Cuidar-se, cuidar do outro E o mundo vai apocalipse homem-bomba explode-se com 1 canalha Ficarão humanos de alma pura Como a tua Beija-flor > 75 Envelhecendo com dignidade, convivendo com as Doenças, seja a diabete, que deixa minhas pernas negras, o coração de mudanças de ritmo e de humor, O pulmão com água. Envelhecendo e esperando a Morte. Sem revolta. Comendo de tudo. Tudo é Proibido. Sonhando com viagens que não posso Executar. O médico manda exames, às vezes os Faço, às vezes nem envio de volta: ficam no armário Canetas, relógios , fotos da família, contas já pagas e Várias pílulas, todas as cores, chego a tomar 17 ou Mais por dia. Se estou com raiva não olho a Prescrição. Esqueço. O que mais pode me acontecer Morrer? Já nem sei o que é isto. Estou tão próximo. Da morte que ela já nem existe. Estou dentro do Enlace da morte. Eu quero é que se foda. Desculpem-me. Envelheço com dignididade. Originalmente publicado no livro Morrer, rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2002. 76 Isadora Bellavinha O vírus assola O vírus espalha O vírus resiste Meu corpo aberto, entrecortado – é corpo triste? respiro um ar branco calado no fundo do abismo meu peito organismo Encaro esse estranho de lado, me cansa, me arde, me vira o juízo O vírus me come as entranhas vestido de preto me arranca do riso A tripa comida se exalta, revolta e assalta a tripa do vírus A tripa devora A tripa se arma A tripa insiste A alma aperta, entrelaçada – no que ela consiste? O vírus se despe O vírus se acha O vírus persiste 77 yOU ArE wELCOME TO ELSInOrE Entre nós e as palavras há metal fundente entre nós e as palavras há hélices que andam e podem dar-nos morte violar-nos tirar do mais fundo de nós o mais útil segredo entre nós e as palavras há perfis ardentes espaços cheios de gente de costas altas flores venenosas portas por abrir e escadas e ponteiros e crianças sentadas à espera do seu tempo e do seu precipício Ao longo da muralha que habitamos há palavras de vida há palavras de morte há palavras imensas, que esperam por nós e outras, frágeis, que deixaram de esperar há palavras acesas como barcos e há palavras homens, palavras que guardam o seu segredo e a sua posição Entre nós e as palavras, surdamente, as mãos e as paredes de Elsinore E há palavras nocturnas palavras gemidos palavras que nos sobem ilegíveis à boca palavras diamantes palavras nunca escritas palavras impossíveis de escrever > no Prel oo navio de espelhos mário cesArinY organização: maria lessa 78 por não termos connosco cordas de violinos nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar e os braços dos amantes escrevem muito alto muito além do azul onde oxidados morrem palavras maternais só sombra só soluço só espasmos só amor só solidão desfeita Entre nós e as palavras, os emparedados e entre nós e as palavras, o nosso dever falar 79 AUTOGrAFIA I Sou um homem um poeta uma máquina de passar vidro colorido um copo uma pedra uma pedra configurada um avião que sobe levando-te nos seus braços que atravessam agora o último glaciar da terra O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: condenado à morte! os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu peito que existe nele uma árvore miraculada tenho um pé que já deu a volta ao mundo e a família na rua um é loiro outro moreno e nunca se encontrarão conheço a tua voz como os meus dedos (antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa) tenho um sol sobre a pleura e toda a água do mar à minha espera quando amo imito o movimento das marés e os assassínios mais vulgares do ano sou, por fora de mim, a minha gabardina e eu o pico do Everest posso ser visto à noite na companhia de gente altamente suspeita e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca porque tu és o dia porque tu és a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola do rei morto, do vento e da primavera Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa > 80 Viagens a Paris – já se arranjaram algumas. Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos. Conversas com meteoros internacionais – também já por cá passaram. Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra uma carruagem de propulsão por hálito os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por onde passei uma só vez tudo isso vive em mim para uma história de sentido ainda oculto magnífica irreal como uma povoação abandonada aos lobos lapidar e seca como uma linha férrea ultrajada pelo tempo é por isso que eu trago um certo peso extinto nas costas a servir de combustível 81 VErãO, ALGUM LUGAr (PArTE) querido irmão de outra era, hoje algumas estrelas cederam pro preto ao seu redor & eu sabia que era você. meu ás, meu g, meu parça rei menos o reino fizeram de você um moleque eu sei lá substituíram meu amigo por uma hashtag. queria poder te contar que tuas mãos estão penduradas no meu pescoço, mas teu escudo é tipo um distintivo. entrego a vingança desesperadamente para Deus. não digam qUe estamos mortos dAneZ smith tradução: andré capiléno Prel o 82 DESnUDO por você mandaria meu corpo lutar contra meu corpo, deixa meu sangue cantar se rasgar aos pedaços, cordas ocas de intravenosas vigas dos guerreiros brancos. amor, eu quero & mal sei como fazer muito mais. não fale comigo sobre tomar de assalto, perderias em mim o clã de células rebeldes ansiando assistir ao incêndio do teu lar. amor, me põe incêndio, se significar que tu & eu temos uma noite sem barreiras, exceto a pele. não se trata de perigo, mas de crença, de ser desperdiçado em seu nome. se o amor é um quarto de vidraças partidas, deixe-me dançar até que meus pés sejam só memória. se o amor é um buraco largo o bastante pra ser a boca de Deus, deixa-me abismar dentro da treva sagrada & esquecer o colorido da luz. amor, fique em mim até que nossos corpos esqueçam o que nos divide, até que suas mãos sejam minhas mãos & seu sangue seja meu sangue & seu nome seja meu nome & o dele & o dele Conheça nosso catálogo completo em www.bazardotempo.com.br Inscreva-se na nossa newsletter nos acompanhe nas redes sociais e no Canal Bazar do Tempo Este livro foi editado pela Bazar do Tempo, na cidade de São Sebastião do rio de Janeiro, em março de 2020. Foi composto com as tipografias Granjon e Gotham e disponibilizado em meio digital.
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