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Antologia de poemas - Bazar do Tempo

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Poesia
numa hora 
dessas?
Uma antologia da bazar do tempo 
para espíritos livres (em corpos isolados)
Costumamos dizer que 
a Bazar do Tempo é, antes de tudo, uma casa de leitoras/
leitores. Pois tem sido assim, apostando no prazer que 
temos com a leitura, que vamos construindo nosso catá-
logo, querendo compartilhar experiências, encantamen-
tos, descobertas, emoções. 
Foi esse o espírito que nos guiou na seleção dessa pe-
quena antologia que disponibilizamos de forma aberta e 
desejando que seja disseminada sem restrição. 
Acreditamos que a poesia é um caminho para encontrar-
mos sentidos para os novos tempos. Sobretudo para aque-
le que teremos que criar, juntos, atravessado o período 
mais duro dessa pandemia.
Esta antologia reúne uma seleção das obras que edi-
tamos de maravilhosos poetas: Adilia Lopes, Jorge de 
Sena, Fernando Pessoa, Carlos Drummond de Andra-
de, Yehuda Amichai, Rûmî, além de poemas da anto-
logia organizada por Ramon Nunes Mello, “Tente en-
tender o que tento dizer – Poesia + hiv/aids”. E ainda 
poemas inéditos de Mário Cesariny e Danez Smith, que 
lançaremos ainda este ano. 
Um trabalho feito por muitos: organizadores, traduto-
res, designers. Junto a eles, então, oferecemos, com afe-
to, esses poemas. 
Ana Cecilia Impellizieri Martins
Maria de Andrade
Catarina Lins
adília lopes
Jorge de sena
fernando pessoa
yehUda amichai 
rÛmÎ 
carlos drUmmond de andrade
tente entender o qUe qUero dizer – 
vários
mário cesariny
danez smith
05
10
14
44
49
57
61
77
81
Arte PoéticA
escrever um poema
é como apanhar um peixe
com as mãos
nunca pesquei assim um peixe
mas posso falar assim
sei que nem tudo o que vem às mãos
é peixe
o peixe debate-se
tenta escapar-se
escapa-se
eu persisto
luto corpo a corpo
com o peixe
ou morremos os dois
ou nos salvamos os dois
tenho de estar atenta
tenho medo de não chegar ao fim
é uma questão de vida ou de morte
quando chego ao fim
descubro que precisei de apanhar o peixe
para me livrar do peixe
livro-me do peixe com o alívio
que não sei dizer
5
aqUi estão as minhas contas
AdíliA lopes
organização: sofia de sousa silva
6
MArIAnA ChAMILLy
Marianna faz vinte e oito anos
Marianna em virtude
de imaginar
que abre cartas
abre
nervosamente
a caixa de bombons
que uma irmã lhe oferece
pelos anos
outra mais maliciosa
oferece a Marianna
um mealheiro
é um marco de correio
em ponto pequeno
Marianna queima-o na braseira
com dinheiro dentro
o dia em que eu nasci moura
e pereça
blasfema Marianna
o dinheiro não traz o marquês de Chamilly
o dinheiro não traz o marquês de Chamilly
sobretudo quando é pouco
pensa Marianna
mas não se deve pensar assim
nada pior do que estar apaixonada
por um gigolo
7
O MEU TEMPO (1960-1993)
Agora as pessoas
não sabem morrer
estar doentes
sofrer
ter prazer
tocar-se
dantes também não
8
AS rOSAS COM BOLOrES
Tenho sempre perto de mim
geralmente na minha mesa de cabeceira
um ramo de rosas
todas as manhãs a primeira coisa
que faço quando acordo
é observar atentamente as rosas
a ver se algum bolor poisou
na pele das rosas
quando isto acontece
é muito raro
mas eu gosto de coisas preciosas
e sou paciente
deixo de dormir
para observar o crescimento
desigual e lento do bolor
a pouco e pouco o bolor
vai cobrindo a pele da rosa
ou antes
alimentando-se da pele da rosa
adquire o feitio da rosa
9
mas a pele da rosa
não está por baixo do bolor
desapareceu
é preciso estar sempre atenta
porque no instante em que
o bolor não pode alastrar mais
a não ser alastrando-se sobre
si próprio
e alimentando-se de si próprio
ou seja suicidando-se
naquele acto de infinito amor
por si próprio
que é afinal todo o suicídio
a rosa pode andar pelos seus pés
antes de ela partir
beijo-a na boca
depois ela parte
e desaparece para sempre da minha vida
então eu vou dormir
porque estou muito cansada
as rosas com bolores cansam-me
10
CArTA A MEUS FILhO S SOBrE
OS FUZILAMEnTOS DE GOyA
não sei, meus filhos, que mundo será o vosso.
É possível, porque tudo é possível, que ele seja
aquele que eu desejo para vós. Um simples mundo,
onde tudo tenha apenas a dificuldade que advém
de nada haver que não seja simples e natural.
Um mundo em que tudo seja permitido,
conforme o vosso gosto, o vosso anseio, o vosso 
prazer,
o vosso respeito pelos outros, o respeito dos outros 
por vós.
E é possível que não seja isto, nem seja sequer isto
o que vos interesse para viver. Tudo é possível,
ainda quando lutemos, como devemos lutar,
por quanto nos pareça a liberdade e a justiça,
ou mais que qualquer delas uma fiel
dedicação à honra de estar vivo.
Um dia sabereis que mais que a humanidade
não tem conta o número dos que pensaram assim,
amaram o seu semelhante no que ele tinha de único,
de insólito, de livre, de diferente,
e foram sacrificados, torturados, espancados,
e entregues hipocritamente à secular justiça,
para que os liquidasse “com suma piedade e sem 
efusão
[de sangue”. >
não leiam delicados 
estes livros
jorge de senA
organização: gilda santos
11
Por serem fiéis a um deus, a um pensamento,
a uma pátria, uma esperança, ou muito apenas
à fome irrespondível que lhes roía as entranhas,
foram estripados, esfolados, queimados, gaseados,
e os seus corpos amontoados tão anonimamente quanto
[haviam vivido,
ou suas cinzas dispersas para que delas não restasse 
memória.
Às vezes, por serem de uma raça, outras
por serem de uma classe, expiaram todos
os erros que não tinham cometido ou não tinham
[consciência
de haver cometido. Mas também aconteceu
e acontece que não foram mortos.
houve sempre infinitas maneiras de prevalecer,
aniquilando mansamente, delicadamente,
por ínvios caminhos quais se diz que são ínvios os de 
Deus.
12
UM EPÍLOGO
Quando estes poemas parecerem velhos,
e for risível a esperança deles:
já foi atraiçoado então o mundo novo,
ansiosamente esperado e conseguido
– e são inevitáveis outros poemas novos,
sinal da nova gravidez da Vida
concebendo, alegre e aflita, mais um mundo novo,
só perfeito e belo aos olhos de seus pais.
E a Vida, prostituta ingénua,
terá, por momentos, olhos maternais.
 5/6/1942
13
GLÓrIA
Um dia se verá que o mundo não viveu um drama.
Todas estas batalhas, todos estes crimes,
todas estas crianças que não chegaram a desdobrar-se
[em carne viva
e de quem, contudo, fizeram carne viva logo morta,
todos estes poetas furados por balas
e todos os outros poetas abandonados pelos que
nem coragem tiveram de matar um homem,
toda esta mocidade enganada e roubada
e a outra que morreu sabendo que a roubavam,
todo este sangue expressamente coalhado
à face íntegra da terra,
tudo isto é o reverso glorioso do findar dos erros.
Um dia nos libertaremos da morte sem deixar de morrer.
 6/4/1942
14
POEMA EM LInhA rETA
nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.
E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.
Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem háneste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
antologia poética
fernAndo pessoA
organização, apresentação e 
ensaios: cleonice berardinelli
15
ErOS E PSIQUE 
 Publicado, Presença nº 41-42, maio 1934
… E assim vedes, meu Irmão, que as verdades que vos 
foram dadas no Grau de Neófito, e aquelas que vos foram 
dadas no Grau de Adepto Menor, são, ainda que opostas, 
a mesma verdade. 
 – DO rITUAL DO GrAU DE MESTrE DO áTrIO nA OrDEM 
 TEMPLárIA DE POrTUGAL
Conta a lenda que dormia
Uma Princesa encantada
A quem só despertaria
Um Infante, que viria
De além do muro da estrada.
Ele tinha que, tentado,
Vencer o mal e o bem,
Antes que, já libertado,
Deixasse o caminho errado
Por o que à Princesa vem.
A Princesa Adormecida,
Se espera, dormindo espera.
Sonha em morte a sua vida,
E orna-lhe a fronte esquecida,
Verde, uma grinalda de hera.
Longe o Infante, esforçado,
Sem saber que intuito tem,
rompe o caminho fadado.
Ele dela é ignorado.
Ela para ele é ninguém.
Mas cada um cumpre o Destino –
Ela dormindo encantada,
Ele buscando-a sem tino
Pelo processo divino
Que faz existir a estrada.
16
O GUArDADOr DE rEBAnhOS (1911-1912)27 8-3-1914
I
Eu nunca guardei rebanhos,
Mas é como se os guardasse.
Minha alma é como um pastor,
Conhece o vento e o sol
E anda pela mão das Estações
A seguir e a olhar.
Toda a paz da natureza sem gente
Vem sentar-se a meu lado.
Mas eu fico triste como um pôr de sol
Para a nossa imaginação,
Quando esfria no fundo da planície
E se sente a noite entrada
Como uma borboleta pela janela.
Mas a minha tristeza é sossego
Porque é natural e justa
E é o que deve estar na alma
Quando já pensa que existe
E as mãos colhem flores sem ela dar por isso.
Como um ruído de chocalhos
Para além da curva da estrada,
Os meus pensamentos são contentes.
Só tenho pena de saber que eles são contentes,
Porque, se o não soubesse,
Em vez de serem contentes e tristes,
Seriam alegres e contentes.
 27 Datas fictícias, uma vez que “nenhum dos poemas de 
 O Guardador de Rebanhos está dentro do âmbito que lhe foi 
 escolhido: 1911-1912”. >
17
Pensar incomoda como andar à chuva
Quando o vento cresce e parece que chove mais.
não tenho ambições nem desejos
Ser poeta não é uma ambição minha
É a minha maneira de estar sozinho.
E se desejo às vezes
Por imaginar, ser cordeirinho
(Ou ser o rebanho todo
Para andar espalhado por toda a encosta
A ser muita cousa feliz ao mesmo tempo),
É só porque sinto o que escrevo ao pôr do sol,
Ou quando uma nuvem passa a mão por cima da luz
E corre um silêncio pela erva fora.
Quando me sento a escrever versos
Ou, passeando pelos caminhos ou pelos atalhos,
Escrevo versos num papel que está no meu pensamento,
Sinto um cajado nas mãos
E vejo um recorte de mim
no cimo dum outeiro,
Olhando para o meu rebanho e vendo as minhas ideias,
Ou olhando para as minhas ideias e vendo o meu rebanho,
E sorrindo vagamente como quem não compreende o que se diz
E quer fingir que compreende.
Saúdo todos os que me lerem,
Tirando-lhes o chapéu largo
Quando me veem à minha porta
Mal a diligência levanta no cimo do outeiro.
Saúdo-os e desejo-lhes sol,
E chuva, quando a chuva é precisa,
E que as suas casas tenham
Ao pé duma janela aberta >
18
Uma cadeira predileta
Onde se sentem, lendo os meus versos.
E ao lerem os meus versos pensem
Que sou qualquer cousa natural –
Por exemplo, a árvore antiga
À sombra da qual quando crianças
Se sentavam com um baque, cansados de brincar,
E limpavam o suor da testa quente
Com a manga do bibe riscado.
8-3-1914
19
II
O meu olhar é nítido como um girassol.
Tenho o costume de andar pelas estradas
Olhando para a direita e para a esquerda,
E de vez em quando olhando para trás…
E o que vejo a cada momento
É aquilo que nunca antes eu tinha visto,
E eu sei dar por isso muito bem…
Sei ter o pasmo essencial
Que tem uma criança se, ao nascer,
reparasse que nascera deveras…
Sinto-me nascido a cada momento
Para a eterna novidade do Mundo…
Creio no mundo como num malmequer,
Porque o vejo. Mas não penso nele
Porque pensar é não compreender…
O Mundo não se fez para pensarmos nele
(Pensar é estar doente dos olhos)
Mas para olharmos para ele e estarmos de acordo… 
Eu não tenho filosofia: tenho sentidos…
Se falo na natureza não é porque saiba o que ela é,
Mas porque a amo, e amo-a por isso,
Porque quem ama nunca sabe o que ama
nem sabe por que ama, nem o que é amar…
Amar é a eterna inocência,
E a única inocência não pensar… >
20
III
Ao entardecer, debruçado pela janela,
E sabendo de soslaio que há campos em frente,
Leio até me arderem os olhos
O livro de Cesário Verde.
Que pena que tenho dele! Ele era um camponês
Que andava preso em liberdade pela cidade.
Mas o modo como olhava para as casas,
E o modo como reparava nas ruas,
E a maneira como dava pelas cousas,
É o de quem olha para árvores,
E de quem desce os olhos pela estrada por onde vai andando
E anda a reparar nas flores que há pelos campos…
Por isso ele tinha aquela grande tristeza
Que ele nunca disse bem que tinha,
Mas andava na cidade como quem anda no campo
E triste como esmagar flores em livros
E pôr plantas em jarros…
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925 >
21
V
há metafísica bastante em não pensar em nada.
O que penso eu do mundo?
Sei lá o que penso do mundo!
Se eu adoecesse pensaria nisso.
Que ideia tenho eu das cousas?
Que opinião tenho sobre as causas e os efeitos?
Que tenho eu meditado sobre Deus e a alma
E sobre a criação do Mundo?
não sei. Para mim pensar nisso é fechar os olhos
E não pensar. É correr as cortinas
Da minha janela (mas ela não tem cortinas).
O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!
O único mistério é haver quem pense no mistério.
Quem está ao sol e fecha os olhos,
Começa a não saber o que é o sol
E a pensar muitas cousas cheias de calor.
Mas abre os olhos e vê o sol,
E já não pode pensar em nada,
Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos
De todos os filósofos e de todos os poetas.
A luz do sol não sabe o que faz
E por isso não erra e é comum e boa.
Metafísica? Que metafísica têm aquelas árvores?
A de serem verdes e copadas e de terem ramos
E a de dar fruto na sua hora, o que não nos faz pensar,
A nós, que não sabemos dar por elas. >
22
Mas que melhor metafísica que a delas,
Que é a de não saber para que vivem
nem saber que o não sabem?
Tudo isto é falso, tudo isto não quer dizer nada.
É incrível que se possa pensar em cousas dessas.
É como pensar em razões e fins
Quando o começo da manhã está raiando, e pelos lados das árvores
Um vago ouro lustroso vai perdendo a escuridão.
Pensar no sentido íntimo das cousas
É acrescentado, como pensar na saúde
Ou levar um copo à água das fontes.
O único sentido íntimo das cousas
É elas não terem sentido íntimo nenhum.
não acredito em Deus porque nunca o vi.
Se ele quisesse que eu acreditasse nele,
Sem dúvida que viria falar comigo
E entraria pela minha porta dentro
Dizendo-me, Aqui estou!
(Isto é talvez ridículo aos ouvidos
De quem, por não saber o que é olhar para as cousas,
não compreende quem fala delas
Com o modo de falar que reparar para elas ensina.)
Mas se Deus é as flores e as árvores
E os montes e sol e o luar,
Então acredito nele,
Então acredito nele a toda a hora,
E a minha vida é toda uma oração e uma missa,
E uma comunhão com os olhos e pelos ouvidos. >
23
Mas se Deus é as árvores e as flores
E os montes e o luar e o sol,
Para que lhe chamo eu Deus?
Chamo-lhe flores e árvores e montes e sol e luar;
Porque, se ele se fez, para eu o ver
Sol e luar e flores e árvores e montes,
Se ele me aparece como sendo árvores e montes
E luar e sol e flores,
É que ele quer que eu o conheça
Como árvores e montes e flores e luar e sol.
E por isso eu obedeço-lhe,
(Que mais sei eu de Deus que Deus de si próprio?).
Obedeço-lhe a viver, espontaneamente,
Como quem abre os olhos e vê,
E chamo-lhe luar e sol e flores e árvores e montes,
E amo-o sem pensar nele,
E penso-o vendo e ouvindo,
E ando com ele a toda a hora.
24
VI
Pensar em Deus é desobedecer a Deus,
Porque Deusquis que o não conhecêssemos,
Por isso se nos não mostrou…
Sejamos simples e calmos,
Como os regatos e as árvores,
E Deus amar-nos-á fazendo de nós
Belos como as árvores e os regatos,
E dar-nos-á verdor na sua primavera,
E um rio aonde ir ter quando acabemos!…
Publicado, Presença nº 30, janeiro/fevereiro 1931
25
VIII
num meio-dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.
Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.
Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da Trindade.
no céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
no céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça,
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos nas ilustrações.
nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas –
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro pai era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter. >
26
não era mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito,
Pregasse a bondade e a justiça!
Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.
hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
rouba a fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães.
E, porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pelas estradas
Com as bilhas às cabeças
E levanta-lhes as saias. >
27
A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as cousas.
Aponta-me todas as cousas que há nas flores.
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Diz-me muito mal de Deus.
Diz que ele é um velho estúpido e doente,
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz-me que Deus não percebe nada
Das coisas que criou –
“Se é que ele as criou, do que duvido” –
“Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem seriam cantores,
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres.”
E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa. >
28
Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e que brinca.
E por isso é que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.
E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
E é porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.
A Criança nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ele me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro, >
29
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
no degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.
Depois eu conto-lhe histórias das cousas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras,
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos-mares.
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.
Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.
Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite >
30
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.
…………
Quando eu morrer, filhinho,
Seja eu a criança, o mais pequeno.
Pega-me tu ao colo
E leva-me para dentro da tua casa.
Despe o meu ser cansado e humano
E deita-me na tua cama.
E conta-me histórias, caso eu acorde,
Para eu tornar a adormecer.
E dá-me sonhos teus para eu brincar
Até que nasça qualquer dia
Que tu sabes qual é.
…………
Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
não há de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
31
IX
Sou um guardador de rebanhos,
O rebanho é os meus pensamentos
E os meus pensamentos são todos sensações.
Penso com os olhos e com os ouvidos
E com as mãos e os pés
E com o nariz e a boca.
Pensar uma flor é vê-la e cheirá-la
E comer um fruto é saber-lhe o sentido.
Por isso quando num dia de calor
Me sinto triste de gozá-lo tanto,
E me deito ao comprido na erva,
E fecho os olhos quentes,
Sinto todo o meu corpo deitado na realidade,
Sei a verdade e sou feliz.
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
32
X
“Olá, guardador de rebanhos
Aí à beira da estrada,
Que te diz o vento que passa?”
“Que é vento, e que passa,
E que já passou antes,
E que passará depois.
E a ti o que te diz?”
“Muita cousa mais do que isso.
Fala-me de muitas outras cousas.
De memórias e de saudades
E de cousas que nunca foram.”
“nunca ouviste passar o vento.
O Vento só fala do vento.
O que lhe ouviste foi mentira,
E a mentira está em ti.”
33
XV
As quatro canções que seguem
Separam-se de tudo o que eu penso,
Mentem a tudo o que eu sinto
São do contrário do que eu sou…
Escrevi-as estando doente
E por isso elas são naturais
E concordam com aquilo que sinto,
Concordam com aquilo com que não concordam…
Estando doente devo pensar o contrário
Do que penso quando estou são.
(Senão não estaria doente),
Devo sentir o contrário do que sinto
Quando sou eu na saúde,
Devo mentir à minha natureza
De criatura que sente de certa maneira…
Devo ser todo doente – ideias e tudo.
Quando estou doente, não estou doente para outra cousa.
Por isso essas canções que me renegam
não são capazes de me renegar
E são a paisagem da minha alma de noite,
A mesma ao contrário…
34
XVIII
Quem me dera que eu fosse o pó da estrada
E que os pés dos pobres me estivessem pisando…
Quem me dera que eu fosse os rios que correm
E que as lavadeiras estivessem à minha beira…
Quem me dera que eu fosse os choupos à margem do rio
E tivesse só o céu por cima e a água por baixo…
Quem me dera que eu fosse o burro do moleiro
E queele me batesse e me estimasse…
Antes isso que ser o que atravessa a vida
Olhando para trás de si e tendo pena…
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
35
XX
O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia,
Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia
Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia.
O Tejo tem grandes navios
E navega nele ainda,
Para aqueles que veem em tudo o que lá não está,
A memória das naus.
O Tejo desce de Espanha
E o Tejo entra no mar em Portugal.
Toda a gente sabe isso.
Mas poucos sabem qual é o rio da minha aldeia
E para onde ele vai
E donde ele vem.
E por isso, porque pertence a menos gente,
É mais livre e maior o rio da minha aldeia.
Pelo Tejo vai-se para o Mundo.
Para além do Tejo há a América
E a fortuna daqueles que a encontram.
ninguém nunca pensou no que há para além
Do rio da minha aldeia.
O rio da minha aldeia não faz pensar em nada.
Quem está ao pé dele está só ao pé dele.
36
XXI
Se eu pudesse trincar a terra toda
E sentir-lhe um paladar,
Seria mais feliz um momento…
Mas eu nem sempre quero ser feliz.
É preciso ser de vez em quando infeliz
Para se poder ser natural…
nem tudo é dias de sol,
E a chuva, quando falta muito, pede-se.
Por isso tomo a infelicidade com a felicidade
naturalmente, como quem não estranha
Que haja montanhas e planícies
E que haja rochedos e erva…
O que é preciso é ser-se natural e calmo
na felicidade ou na infelicidade,
Sentir como quem olha,
Pensar como quem anda,
E quando se vai morrer, lembrar-se de que o dia morre,
E que o poente é belo e é bela a noite que fica…
Assim é e assim seja…
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
37
XXIV
O que nós vemos das cousas são as cousas,
Por que veríamos nós uma cousa se houvesse outra?
Por que é que ver e ouvir seria iludirmo-nos
Se ver e ouvir são ver e ouvir?
O essencial é saber ver,
Saber ver sem estar a pensar,
Saber ver quando se vê,
E nem pensar quando se vê
nem ver quando se pensa.
Mas isso (tristes de nós que trazemos a alma vestida!),
Isso exige um estado profundo,
Uma aprendizagem de desaprender
E uma sequestração na liberdade daquele convento
De que os poetas dizem que as estrelas são as freiras eternas
E as flores as penitentes convictas de um só dia,
Mas onde afinal as estrelas não são senão estrelas
nem as flores senão flores,
Sendo por isso que lhes chamamos estrelas e flores.
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
38
XXVIII
Li hoje quase duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.
Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.
Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.
Mas flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram cousas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios seriam homens doentes.
É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.
Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a natureza não tem dentro;
Senão não era a natureza.
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
39
XXXV
O luar através dos altos ramos,
Dizem os poetas todos que ele é mais
Que o luar através dos altos ramos.
Mas para mim, que não sei o que penso,
O que o luar através dos altos ramos
É, além de ser
O luar através dos altos ramos,
É não ser mais
Que o luar através dos altos ramos.
40
XXXVI
E há poetas que são artistas
E trabalham nos seus versos
Como um carpinteiro nas tábuas!…
Que triste não saber florir!
Ter que pôr verso sobre verso, como quem constrói um muro
E ver se está bem, e tirar se não está!…
Quando a única casa artística é a Terra toda
Que varia e está sempre bem e é sempre a mesma.
Penso nisto, não como quem pensa, mas como quem respira,
E olho para as flores e sorrio…
não sei se elas me compreendem
nem se eu as compreendo a elas,
Mas sei que a verdade está nelas e em mim
E na nossa comum divindade
De nos deixarmos ir e viver pela Terra
E levar ao solo pelas Estações contentes
E deixar que o vento cante para adormecermos
E não termos sonhos no nosso sono.
Publicado, Athena nº 4, janeiro 1925
41
XXXIX
O mistério das cousas, onde está ele?
Onde está ele que não aparece
Pelo menos a mostrar-nos que é mistério?
Que sabe o rio disso e que sabe a árvore?
E eu, que não sou mais do que eles, que sei disso?
Sempre que olho para as cousas e penso no que os 
homens pensam delas,
rio como um regato que soa fresco numa pedra.
Porque o único sentido oculto das cousas
É elas não terem sentido oculto nenhum,
É mais estranho do que todas as estranhezas
E do que os sonhos de todos os poetas
E os pensamentos de todos os filósofos,
Que as cousas sejam realmente o que parecem ser
E não haja nada que compreender.
Sim, eis o que os meus sentidos aprenderam sozinhos: --
As cousas não têm significação: têm existência.
As cousas são o único sentido oculto das cousas.
10-5-1914
42
XLVI
Deste modo ou daquele modo,
Conforme calha ou não calha,
Podendo às vezes dizer o que penso
E outras vezes dizendo-o mal e com misturas
Vou escrevendo os meus versos sem querer,
Como se escrever não fosse uma cousa feita de gestos,
Como se escrever fosse uma cousa que me acontecesse
Como dar-me o sol de fora.
Procuro dizer o que sinto
Sem pensar em que o sinto.
Procuro encostar as palavras à ideia
E não precisar dum corredor
Do pensamento para as palavras.
nem sempre consigo sentir o que sei que devo sentir.
O meu pensamento só muito devagar atravessa o rio a nado
Porque lhe pesa o fato que os homens o fizeram usar.
Procuro despir-me do que aprendi,
Procuro esquecer-me do modo de lembrar que me ensinaram,
E raspar a tinta com que me pintaram os sentidos,
Desencaixotar as minhas emoções verdadeiras,
Desembrulhar-me e ser eu, não Alberto Caeiro,
Mas um animal humano que a natureza produziu. >
43
E assim escrevo, querendo sentir a natureza, 
nem sequer como um homem,
Mas como quem sente a natureza, e mais nada.
E assim escrevo, ora bem, ora mal,
Ora acertando com o que quero dizer, ora errando,
Caindo aqui, levantando-me acolá,
Mas indo sempre no meu caminho como um cego teimoso.
Ainda assim, sou alguém.
Sou o Descobridor da natureza.
Sou o Argonauta das sensações verdadeiras.
Trago ao Universo um novo Universo
Porque trago ao Universo ele-próprio.
Isto sinto e isto escrevo
Perfeitamente sabedor e sem que não veja
Que são cinco horas do amanhecer
E que o sol, que ainda não mostrou a cabeça
Por cima do muro do horizonte,
Ainda assim já se lhe veem as pontas dos dedos
Agarrando o cimo do muro
Do horizonte cheio de montes baixos.
44
O hOMEM nãO TEM TEMPO
O homem não tem tempo
para tudo na vida.
Ele não tem uma época
para cada um de seus desejos.
O Eclesiastes não está certo.
O homem precisa odiar
e amar ao mesmo tempo,
com os mesmos olhos chorar
e com os mesmos olhos rir,
com a mesma mão atirar pedras
e com a mesma mão recolhê-las,
fazer amor na guerra e guerra no amor.
Odiar e perdoar, lembrar e esquecer,
organizar e confundir, comer e digerir
o que a história
faz ao longo de muitos e muitos anos.
O homem na vida não tem tempo.
Quando ele perde ele procura,
quando ele acha ele esquece,
quando ele esquece ele ama
e quando ele ama começa a esquecer.
a alma dele é preparada,
é bastante profissional,
somente o corpo é sempre
amador. Tenta e erra, >
terra e paz
YehudA AmichAi
organização e tradução: moacir amâncio
45
não aprende, confunde-se
bêbado, cego nos prazeres e nas dores.
A morte dos figos é no outono,
encarquilhados, cheios de si e doces,
as folhas secam sobre a terra,
os galhos nus já apontam
o lugar onde há tempo para tudo.
46
JErUSALÉM
num telhado da Cidade Velha,
a roupa no varalilumina-se à última luz do dia:
o lençol branco de uma mulher inimiga,
a toalha de um homem inimigo
para enxugar o suor do seu rosto.
no céu da Cidade Velha
há uma pipa.
no fim da linha –
um menino,
que eu não vejo
por causa da muralha.
hasteamos muitas bandeiras,
eles hastearam muitas bandeiras.
Para pensarmos que eles são felizes.
Para pensarem que nós somos felizes.
47
SEnhOr, A ALMA QUE TU ME DESTE
Senhor, a alma que Tu me deste
é fumaça
do perene incêndio das memórias do amor,
chegamos ao mundo e já começamos a queimar
e é assim até que a fumaça como fumaça se esfume.
48
O LUGAr OnDE SEMPrE
ESTAMOS CErTOS
Do lugar onde sempre estamos certos
nunca brotarão
flores na primavera.
O lugar onde sempre estamos certos
é batido e duro
como um pátio.
Mas dúvidas e amores
esfarelam o mundo
como uma toupeira, um arado.
E um murmúrio será ouvido no lugar
onde havia uma casa –
destruída.
49
O CAnTO DA UnIDADE (PArTE)
Faz tempo que não vemos teu jardim,
com seu narciso bêbado de orvalho.
Dos homens em segredo te defendes.
Faz tempo que não vemos teu semblante.
a flaUta e a lUa
rÛmÎ
organização: marco lucchesi
tradução: marco lucchesi e rafî moussavî
50
Sou abrasado à chama da paixão.
Teu verbo é água para o rio das almas.
A água é ilusão e a chama é breve:
ah! Tudo desvanece como em sonho.
51
O amado junto a mim, noite adorada;
o meu desejo é que jamais termine.
Os corvos são tomados de alegria
e voam junto ao branco falcão da alma.
52
habita com teu canto os corações,
e segue alegremente noite e dia;
se cessas um instante, morreremos.
Teu canto é uma flauta embevecida.
53
Se o mar já não aplaca a minha sede,
o que fará por mim esse regato?
Sem a rosa, o que sobra do perfume?
O amado se vai, não me resta que a espera.
54
O teu amor pôs fim ao turco e ao árabe.
Sou servo do martírio e do combate.
não há como fugir de teu amor.
Ah! Vamos, coração, deixa este jogo.
55
Aquele que levou meu sono embora,
quer banhado de pranto meu altar.
Sem palavras, lançou-me dentro da água,
água que torna minha água mais doce.
56
Quando eu voltar ao mar absoluto,
meus átomos irão resplandecer.
Eu ardo como a vela da paixão.
hei de viver o instante para sempre.
57
AUSênCIA
Subir ao Pico do Amor
e lá em cima
sentir presença de amor.
no Pico do Amor amor não está.
reina serenidade de nuvens
sussurrando ao coração: Que importa?
Lá embaixo, talvez, amor está,
em lagoa decerto, em grota funda.
Ou? mais encoberto ainda, onde se refugiam
coisas que não são, e tremem de vir a ser.
canto mineral
cArlos drummond 
de AndrAde
organização: pedro graña drummond 
e Joziane perdigão vieira
58
BOITEMPO
Entardece na roça
de modo diferente.
A sombra vem nos cascos,
no mugido da vaca
separada da cria.
O gado é que anoitece
e na luz que a vidraça
da casa fazendeira
derrama no curral
surge multiplicada
sua estátua de sal,
escultura da noite.
Os chifres delimitam
o sono privativo
de cada rês e tecem
de curva em curva a ilha
do sono universal.
no gado é que dormimos
e nele que acordamos.
Amanhece na roça
de modo diferente.
A luz chega no leite,
morno esguicho das tetas
e o dia é um pasto azul
que o gado reconquista.
59
CIDADEZInhA QUALQUEr
Casas entre bananeiras
mulheres entre laranjeiras
pomar amor cantar.
Um homem vai devagar.
Um cachorro vai devagar.
Um burro vai devagar.
Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.
60
COnFIDênCIA DO ITABIrAnO
Alguns anos vivi em Itabira.
Principalmente nasci em Itabira.
Por isso sou triste, orgulhoso: de ferro.
noventa por cento de ferro nas calçadas.
Oitenta por cento de ferro nas almas.
E esse alheamento do que na vida é porosidade e comuni-
cação.
A vontade de amar, que me paralisa o trabalho,
vem de Itabira, de suas noites brancas, sem mulheres e 
sem horizontes.
E o hábito de sofrer, que tanto me diverte,
é doce herança itabirana.
De Itabira trouxe prendas diversas que ora te ofereço:
esta pedra de ferro, futuro aço do Brasil;
este São Benedito do velho santeiro Alfredo Duval;
este couro de anta, estendido no sofá da sala de visitas;
este orgulho, esta cabeça baixa...
Tive ouro, tive gado, tive fazendas.
hoje sou funcionário público.
Itabira é apenas uma fotografia na parede.
Mas como dói!
61
 Chacal
ESCrEVO COM TODAS AS LETrAS
eu quero o amor
livre pro que der e vier
eu quero você fora
do armário da caixinha do quadrado
eu sou do grupo de risco
só me interessa o que vem do outro
toco com todas as teclas
pinto com todas as cores
não quero mais do mesmo
eu quero mesmo o outro
tente entender 
o qUe qUero dizer
Vários
organização: ramon nunes mello
62
 Marília Garcia
DIAS COnTADOS
“o tempo que temos
se estamos atentos
será sempre exato”,
foi o que ele disse
a ela numa carta
e ela repetiu
em voz alta e foi assim
que ouvi
as palavras dele
na voz dela
ela falava das cartas
que eles tinham trocado
e contou que esta frase
que estava numa carta
dele pra ela
tinha virado
um lugar comum
nas citações da obra
dele
então tentei pegar
a frase e ouvir
de novo
 e tentei pegar a
frase e ouvir cada
palavra de uma vez
>
63
e tentei também
ouvir a voz dela e ouvir
a voz dele as vozes
sobrepostas
dizendo:
“o tempo que temos – se estamos atentos – será sempre exato”
talvez seja uma frase
de um homem
com os dias contados
de alguém com o timer
ligado
vou ajustar o cronômetro
você me diz
você que escreve coisas tão tristes
vou ajustar o timer
por quanto tempo você aguentaria
respirar debaixo d’água?
se estivermos atentos
não era bem isso
que você queria dizer?
parece que as linhas
que ainda faltam aqui
serão exatas
mas como fazer para saber?
parece que hoje
de agora em diante
ou será mesmo que o tempo
poderia ser
medido?
o tempo que tenho
>
64
começo a medir
você me diz
e pergunta
como eu faria
se
nesse dia
ela falou
duas coisas que me marcaram
a segunda
sobre o tempo que ele não teve
e a primeira
sobre o timing das coisas
sobre ir desdobrando
a experiência
e chegar ao fim.
65
 Gabriel Mação
O QUE MATA
Me corta por dentro
Como estilhaços de vidro transparente
Do prato quebrado
Ontem no jantar
O medo deles
E a sua ausência
O buraco deixado
Em minha carne ainda
Cicatriza
Mas o que dói é sentir-se
Como uma bomba
Ali, no meio do círculo
Vazio
Deixado por todos
nas ruas
 nos prédios
E ainda em mim
Corre o meu sangue
 Positivo
 humano
Eu
Vivo
E sinto o cheiro das tardes
Se findando
E recomeçando >
66
Todos os dias
Continuo...
O que mata não está em mim,
Vem de corações doentes
De quem não se livrou
Dos medos de estimação
E ainda coleciona
Preconceitos nas gavetas
E cabides
Do armário
O que mata
não é meu sangue,
É ainda não terem queimado
As roupas velhas
rasgadas, manchadas
E ultrapassadas
O que mata
É a falta de amor.
67
 Eduardo Sterzi
OS hIMALAIAS
Os himalaias crescem vinte milímetros por ano
porque a índia continua a se chocar com a ásia central
Mas o que continua a crescer e se chocar
verdadeiramente não tem nome: nem himalaia
nem índia nem ásia central nem vinte milímetros nem ano
até mesmo a ideia de continuação aqui não tem nome
nada continua porque nada verdadeiramente começa
nem tem fim já o início é memória de grandes destruições
(Também a destruição não tem nome: estamos vivos
dentro e fora antes e depois do que chamamos
dentro e fora e antes e depois)
68
 Letícia Brito
Tente entender:
Eu tenho 9 amigos que fumam
Eu tenho 12 amigos que bebem coca-cola
Eu tenho 3 amigos que cheiram coca ou cola
Eu tenho 333 amigos LGBTTIQ+
Eu tenho 5 amigos com diabetes
Eu tenho 4 amigos do candomblé
Eu tenho 2 amigos veganos
Eu tenho 6 amigos que usam ayahuasca
Eu tenho 24 amigos que fumam maconha
Eu tenho 18 amigos machistas
Eu tenho 4 amigos vivendo com hIV
Eu tenho 9 amigos que fazem performances nus
Eu tenho 15 amigos que jogam basquete
Eu tenho 8 amigos budistas
Eu tenho 43 amigos poetas
Eu tenho 12 amigos que pensam em suicídio
Eu tenho 89 amigos comunistas
Alguns amigos reúnem mais do que uma das qualidades descritas
Eu abraço todos os meus amigos
Eu amo todos eles
<3
PS:nenhum desses amigos gosta do Bolsonaro
69
 Ramon Nunes Mello
ACTO DE FÉ
22 de fevereiro de 2006
na cidade do porto
gisberta salce júnior
45 anos mulher transexual
soropositiva
torturada por três dias
pedradas pauladas chutes
sexualmente torturada
corpo dilacerado queimado
com cigarros
e jogada
em 15 metros de agonia
afogou-se na violência e no preconceito
em nome do pai do filho e do espiríto santo
de 14 jovens católicos
no poço
fundo
sem fim
amém
70
 Tainá Rei
COrPOS DE nEOn
entorpecida
um mistério o que tem na bebida
vá se for fluidos de meninos
vá se for o suor de uma batalha
vá se for o orvalho sob a casa de sua infância
vá se for o próprio caio f abreu
o rosto que jamais vi
duas mãos coladas, num sonho
trocando calor
eu acordo molhada
distorções na superfície
explosão, tambor, motor de carro
viajante sem corpo próprio ou destino
vá se isso for a vida
encarcerada nas dobras da barriga de alguém
olha ao redor – está inalcançável
inaugura pontes, túneis
por todo o dia
toda a madrugada
estou na plataforma
decido pular nos trilhos, vencer o tempo
pulo
e abro os olhos >
71
estamos no trem
matando todos com gritos de loucura infantil
repetindo sílabas como gagos, mas só estamos cansados
vá se isso for um ritual comum
e abro os olhos
o trem abre a porta
tanto corpo
e nenhum deseja e rompe a privacidade
e me abraça?
o maquinista sai da cabine
desabotoa a camisa e mostra um x vermelho no peito
sorrimos e eu abro os olhos
ela conjura a favor de sua maquinaria
aguardando comum
na fila do pão
ela se arrisca demais
apaixonando-se
transando com meninos sem proteção
ela se apresenta à luz de um poste
inalcançável
vá se for isso um presente
inaugura caminhos
atravessa pontes, túneis
72
 Paulo Scott
VIDA VErSãO DOIS
o colibri traz dentro de si
uma caixa onde guarda
e carrega um mamífero
de impulso não revelado
o colibri também guarda
dentro de si um observatório
astronômico com o qual
enxerga onde é mais longe
e secura de estrela dentro si
olhando assim de fora
enquanto dorme voando
o colibri em sua desarrumação
é ilha que não descansa é farol
igual filme em sala de Botafogo
ilha que não aparece nos mapas
por isso o colibri é essa beleza
sopro que não fixa – essa aquarela
de afetos e afagos aquarelas
espalhado nas folhas e árvores >
73
coringa sem território pingando
(nos que o supõem poeira)
seu atabaque cardial
sua pequena explosão
o colibri bate seu móbile
sua vitória com asas
que desaparecem
e como nenhum outro ser
(apesar do tamanho)
e sopro
sem território
consegue ter
74
 Guilherme Zarvos
hIV
Falar de câncer hIV de hepatite C
Só pelo pedido do Destino
resposta de Poeta para Poeta
Enganadores muitas vezes do sofrimento
Dizer que Dor Cruel é não Viver
Pois não é difícil tirar a vida
Falar de amor
De água
Dos voos como foram dados
Continuarão
Conviver com doenças e doentes
Todos querem viver e tantos deles
ávidos:
– Quero ter mais tempo para Ler
Ter medo de sangue, de esperma
Cuidar-se, cuidar do outro
E o mundo vai apocalipse
homem-bomba explode-se com 1 canalha
Ficarão humanos de alma pura
Como a tua
Beija-flor >
75
Envelhecendo com dignidade, convivendo com as
Doenças, seja a diabete, que deixa minhas pernas
negras, o coração de mudanças de ritmo e de humor,
O pulmão com água. Envelhecendo e esperando a
Morte. Sem revolta. Comendo de tudo. Tudo é
Proibido. Sonhando com viagens que não posso
Executar. O médico manda exames, às vezes os
Faço, às vezes nem envio de volta: ficam no armário
Canetas, relógios , fotos da família, contas já pagas e
Várias pílulas, todas as cores, chego a tomar 17 ou
Mais por dia. Se estou com raiva não olho a
Prescrição. Esqueço. O que mais pode me acontecer
Morrer? Já nem sei o que é isto. Estou tão próximo.
Da morte que ela já nem existe. Estou dentro do
Enlace da morte. Eu quero é que se foda. Desculpem-me.
Envelheço com dignididade.
Originalmente publicado no livro Morrer, rio de Janeiro: 
Azougue Editorial, 2002.
76
 Isadora Bellavinha
O vírus assola
O vírus espalha
O vírus resiste
Meu corpo aberto, entrecortado – é corpo triste?
respiro um ar branco calado no fundo do abismo
meu peito organismo
Encaro esse estranho de lado, me cansa, me arde,
me vira o juízo
O vírus me come as entranhas vestido de preto
me arranca do riso
A tripa comida se exalta, revolta e assalta
a tripa do vírus
A tripa devora
A tripa se arma
A tripa insiste
A alma aperta, entrelaçada – no que ela consiste?
O vírus se despe
O vírus se acha
O vírus persiste
77
yOU ArE wELCOME TO ELSInOrE
Entre nós e as palavras há metal fundente
entre nós e as palavras há hélices que andam
e podem dar-nos morte violar-nos tirar
do mais fundo de nós o mais útil segredo
entre nós e as palavras há perfis ardentes
espaços cheios de gente de costas
altas flores venenosas portas por abrir
e escadas e ponteiros e crianças sentadas
à espera do seu tempo e do seu precipício
Ao longo da muralha que habitamos
há palavras de vida há palavras de morte
há palavras imensas, que esperam por nós
e outras, frágeis, que deixaram de esperar
há palavras acesas como barcos
e há palavras homens, palavras que guardam
o seu segredo e a sua posição
Entre nós e as palavras, surdamente,
as mãos e as paredes de Elsinore
E há palavras nocturnas palavras gemidos
palavras que nos sobem ilegíveis à boca
palavras diamantes palavras nunca escritas
palavras impossíveis de escrever >
no
Prel
oo navio de espelhos
mário cesArinY
organização: maria lessa
78
por não termos connosco cordas de violinos
nem todo o sangue do mundo nem todo o amplexo do ar
e os braços dos amantes escrevem muito alto
muito além do azul onde oxidados morrem
palavras maternais só sombra só soluço
só espasmos só amor só solidão desfeita
Entre nós e as palavras, os emparedados
e entre nós e as palavras, o nosso dever falar
 
79
AUTOGrAFIA I
Sou um homem
um poeta
uma máquina de passar vidro colorido
um copo uma pedra
uma pedra configurada
um avião que sobe levando-te nos seus braços
que atravessam agora o último glaciar da terra
O meu nome está farto de ser escrito na lista dos tiranos: 
condenado à morte!
os dias e as noites deste século têm gritado tanto no meu 
peito que existe nele uma árvore miraculada
tenho um pé que já deu a volta ao mundo
e a família na rua
um é loiro
outro moreno
e nunca se encontrarão
conheço a tua voz como os meus dedos
(antes de conhecer-te já eu te ia beijar a tua casa)
tenho um sol sobre a pleura
e toda a água do mar à minha espera
quando amo imito o movimento das marés
e os assassínios mais vulgares do ano
sou, por fora de mim, a minha gabardina
e eu o pico do Everest
posso ser visto à noite na companhia de gente altamente 
suspeita
e nunca de dia a teus pés florindo a tua boca
porque tu és o dia porque tu és
a terra onde eu há milhares de anos vivo a parábola
do rei morto, do vento e da primavera
Quanto ao de toda a gente – tenho visto qualquer coisa >
80
Viagens a Paris – já se arranjaram algumas.
Enlaces e divórcios de ocasião – não foram poucos.
Conversas com meteoros internacionais – também já por 
cá passaram.
Eu sou, no sentido mais enérgico da palavra
uma carruagem de propulsão por hálito
os amigos que tive as mulheres que assombrei as ruas por 
onde passei uma só vez
tudo isso vive em mim para uma história
de sentido ainda oculto
magnífica irreal
como uma povoação abandonada aos lobos
lapidar e seca
como uma linha férrea ultrajada pelo tempo
é por isso que eu trago um certo peso extinto
nas costas
a servir de combustível
81
VErãO, ALGUM LUGAr (PArTE)
querido irmão de outra
era, hoje algumas estrelas cederam
pro preto ao seu redor
& eu sabia que era você.
 
meu ás, meu g, meu parça
rei menos o reino
fizeram de você um moleque
eu sei lá
substituíram meu amigo
por uma hashtag.
queria poder te contar
que tuas mãos estão penduradas
no meu pescoço, mas teu
escudo é tipo um
distintivo. entrego a vingança
desesperadamente para Deus. 
não digam qUe 
estamos mortos
dAneZ smith
tradução: andré capiléno
Prel
o
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DESnUDO
por você mandaria meu corpo lutar
contra meu corpo, deixa meu sangue cantar
se rasgar aos pedaços, cordas ocas
de intravenosas vigas dos guerreiros brancos.
 
amor, eu quero & mal sei como
fazer muito mais. não fale comigo
sobre tomar de assalto, perderias em mim
o clã de células rebeldes ansiando
assistir ao incêndio do teu lar. amor,
me põe incêndio, se significar que tu
& eu temos uma noite sem barreiras,
exceto a pele. não se trata de perigo,
mas de crença, de ser desperdiçado
em seu nome. se o amor é um quarto
de vidraças partidas, deixe-me dançar
até que meus pés sejam só memória.
se o amor é um buraco largo o bastante
pra ser a boca de Deus, deixa-me abismar
dentro da treva sagrada & esquecer
o colorido da luz. amor, fique
em mim até que nossos corpos esqueçam
o que nos divide, até que suas mãos
sejam minhas mãos & seu sangue
seja meu sangue & seu nome
seja meu nome & o dele & o dele
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Este livro foi editado pela Bazar do Tempo, na cidade 
de São Sebastião do rio de Janeiro, em março de 2020. 
Foi composto com as tipografias Granjon e Gotham 
e disponibilizado em meio digital.

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