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INTRODUÇÃO À FILOSOFIA CRISTÃ Uma Introdução à Filosofia na Tradição Reformacional Prof. Guilherme Vilela Ribeiro de Carvalho CENTRO KUYPER DE ESTUDOS CRISTÃOS ÍNDICE I. O que é a Filosofia Reformacional? p. 3 II. A Idéia de uma Crítica Transcendental do Pensamento Teórico p. 6 III. As Condições Transcendentais do Pensamento Teórico p. 22 VI. As Raízes Religiosas do Pensamento Ocidental p. 33 V. A Idéia Cosmonômica do Pensamento Teórico p. 47 V. Teoria Geral das Esferas Modais p. 53 VII. Teoria da Estrutura das Entidades Temporais p. 100 VIII. Teoria das Inter-relações Estruturais p. 107 IX. Teoria do Conhecimento p. 112 X. Teoria da Ação p. 120 Apêndice 1: Excerptos de Dooyeweerd (Glenn Friesen) p. 128 Apêndice 2: Glossário de Filosofia Reformacional (A. Wolters) p. 141 Bibliografia: p. 152 2 I. O QUE É A FILOSOFIA REFORMACIONAL? Primeiramente, é claro, precisamos saber o que é filosofia. Mas há tantas definições de filosofia quanto existem filósofos; cada um tem um projeto filosófico diferente tornando quase impossível uma definição universal de filosofia. Isso, por um lado, não nos impede de fazer tentativas para encontrar algo comum às diversas filosofias. Por outro lado, nos dá liberdade para fazer novas propostas. De um modo geral, podemos dizer que uma tarefa básica da filosofia é a crítica. No tempo dos Sofistas e de Sócrates, foi posto no centro da filosofia o questionamento, a pergunta crítica. Não se trata aqui apenas da pergunta pelo saber, como encontramos na ciência moderna, mas a pergunta crítica pelo saber; a pergunta que se volta sobre as respostas e as tornam objeto de perguntas. Foi assim que Sócrates nos ensinou a filosofar. Mas antes dele, os pré-socráticos perguntavam sobre o cosmo. Eles queriam saber qual a sua estrutura, sua constituição básica. Essa pergunta pela totalidade, pelo sentido total do cosmo, utilizando a razão é mais antiga que Sócrates, e foi através dela que a filosofia ocidental teve início. De um modo ou de outro, mesmo quando estamos ocupados com a crítica de qualquer coisa, o fazemos a partir de uma visão de mundo, e esse ponto de partida deve, finalmente, ser objeto de análise e compreensão. Ninguém crítica a partir do “nada”; para colocar algo “entre parêntesis” e realizar uma análise, é preciso ter algo “fora” dos parêntesis; é preciso um sistema para realizar a análise, uma base de comparação. Origens da Filosofia Reformada A filosofia reformada ou reformacional, é um movimento que teve origem na Holanda, no início do século XX, através do trabalho de Herman Dooyeweerd e de seu cunhado, D. T. H. Vollenhoven. Ambos foram professores na Universidade Livre de Amsterdam, e desenvolveram sistemas de filosofia cristã inspirados no pensamento neo- calvinista de Abraham Kuyper, teólogo, jornalista, e estadista cristão holandês. A característica básica do pensamento reformacional é a negação de toda autonomia humana em relação a Deus. Kuyper disse certa vez que “não há um único centímetro, em todos os departamentos da vida humana, sobre o qual Cristo, o Senhor de todos, não diga: é meu”. Segundo Kuyper, o cristianismo não seria um “culto” ou uma “doutrina”, meramente, mas um sistema total de vida e pensamento, uma “biocosmovisão”. Com essa compreensão ele dedicou sua vida à reforma da vida cultural holandesa a partir do evangelho. Influenciados pelo ideal de Kuyper, um sem-número de intelectuais, filósofos, cientistas e políticos cristãos dedicaram-se a reformar a cultura. Dooyeweerd e Vollenhoven dedicaram-se à filosofia, procurando empreender uma ampla reforma do pensamento teórico. Esses filósofos perceberam que o domínio do humanismo sobre a intelectualidade ocidental precisava ser quebrado, se o cristianismo pretendesse se articular como um sistema total de vida, e isso não seria possível se os cristãos continuassem lutando com as mesmas armas do inimigo, utilizando sistemas filosóficos contrários à cosmovisão cristã. Assim dedicaram-se à reforma radical do pensamento teórico, procurando 3 reconstituir a filosofia desde suas bases, de forma coerente com a cosmovisão Bíblica. Surgiu assim a filosofia reformacional, distinguindo-se da filosofia humanista e da filosofia escolástica católica, comprometida com a correção permanente do pensamento a partir do evangelho. Kuyperianismo e Filosofia A perspectiva Kuyperiana ofereceu uma orientação bem definida para a filosofia cristã. Em primeiro lugar, naturalmente, mostrou a necessidade de uma nova crítica do pensamento filosófico. A filosofia ocidental ignora a crença em Deus sistematicamente, não simplesmente negando sua existência, mas evitando pressupor essa existência ao tratar dos problemas filosóficos, isto é, considerando-o irrelevante para a filosofia. Uma vez que na perspectiva bíblica todas as dimensões da vida devem operar Coram Deo, diante de Deus, esse estado de coisas é inaceitável ao cristão, não somente porque não está de acordo com a sua religião, mas porque não está de acordo com a estrutura da própria realidade! Portanto, é necessária uma nova crítica de tudo o que a mente secular tem produzido desde os gregos. Mas, além disso, é preciso lembrar, não há crítica sem ponto de partida, sem visão de mundo. Isso implica, portanto, a necessidade de articular uma visão de totalidade, procurando explicar racionalmente a estrutura básica do cosmo, e localizando, inclusive, o lugar da razão no cosmo. Uma das características mais importantes do pensamento reformacional é esse compromisso com uma explicação da totalidade do cosmo. E aqui se encontra a principal contribuição do pensamento Kuyperiano para o cristianismo contemporâneo: a idéia de tomar a cosmovisão cristã não como o resultado de uma reflexão filosófica e científica, para convencer os incrédulos usando a cosmovisão deles, mas como o ponto de partida para realizar toda reflexão filosófica e científica, trazendo os incrédulos para a nossa cosmovisão. Afinal de contas, para salvar alguém num barco furado, é muito melhor trazê-lo para o nosso barco, do que entrar no barco dele para ajudá-lo a tirar a água! Essa nova perspectiva é geralmente denominada pressuposicionalismo. A proposta filosófica dos gregos, tanto em seu estágio mais primitivo, “cosmológico”, como em sua forma “socrática”, não está errada do ponto de vista formal. Sua falha está no dogma da autonomia religiosa da razão. Esse dogma foi adotado no pensamento humanista moderno e contemporâneo, sendo pressuposto acriticamente pela maior parte dos pensadores seculares – e até pelos cristãos! Kuyper e Dooyeweerd desafiaram esse dogma ao sustentar que a filosofia pode e deve ser conduzida pelos cristãos trocando a centralidade da razão pela centralidade da religião. Nosso Caminho Nosso caminho nesse estudo será a apresentação da filosofia reformacional, desenvolvida por pensadores reformados a partir da cosmovisão bíblica expressa no pensamento de AGOSTINHO, CALVINO e ABRAHAM KUYPER. O estudo será basicamente uma exposição do pensamento de HERMAN DOOYEWEERD, o principal filósofo reformado do século XX, mas tomaremos liberdades apresentando idéias de outros filósofos e também algumas idéias próprias. A primeira parte trata da crítica transcendental do pensamento teórico; a segunda oferece uma apresentação sistemática da filosofia reformacional. Ao fim do estudo 4 o leitor tem um apêndice com alguns trechos de Dooyeweerd em inglês e um glossário de filosofia reformacional. PARTE 1: A CRÍTICA TRANSCENDENTAL DO PENSAMENTO TEÓRICO 5 II. A IDÉIA DE UMA CRÍTICA TRANSCENDENTAL DO PENSAMENTO TEÓRICO É comum, quando alguém começa a estudar filosofia, ou uma disciplina mais abstrata, como a teologia ou a sociologia, a emergênciade uma sensação de desânimo, ou mesmo de desespero, à medida em que fica evidente a grande multiplicidade de teorias e a profunda divergência existente entre as diversas escolas de pensamento. Na introdução de uma de suas obras Dooyeweerd faz uma interessante observação; é que todas essas escolas “... professam serem fundadas unicamente em princípios puramente teóricos e científicos; em outras palavras, que todos são aderentes da assim chamada autonomia da razão na ciência. Agora, se isso for verdade, parece um pouco estranho que elas não tenham sucesso em convencer uma à outra por argumentos puramente científicos.”1 Para determinar a natureza das diferenças mais fundamentais entre as diversas escolas filosóficas é necessário determinar a natureza de seus respectivos pontos de partida. E para isso precisamos examinar as condições básicas que tornam qualquer pensamento filosófico possível. Conhecendo essas condições básicas, poderíamos identificar e descrever diferentes filosofias a partir de seu ponto de partida, e assim teríamos uma base para discussão frutífera entre as várias escolas de pensamento.2 VINCENT BRÜMMER observou que esse mesmo problema foi encarado por KANT. Este também buscou uma crítica da faculdade da razão com tal, para lidar em definitivo com as contradições da metafísica. DOOYEWEERD tem um projeto semelhante, mas também essencialmente diverso. Para Dooyeweerd Kant caiu num dogmatismo teórico, falhando em fazer da própria atitude teórica do pensamento um problema teórico, e simplesmente pressupondo a autonomia do pensamento. Esse dogmatismo mascara o verdadeiro ponto de partida do pensamento e ao mesmo tempo controla seu modo de lidar com os problemas teóricos.3 Assim sendo Dooyeweerd defende que uma crítica realmente radical do pensamento deve não somente abandonar o dogma de que o pensamento teórico é autônomo, mas também deve demonstrar que este dogma contradiz o verdadeiro caráter do pensamento teórico em si mesmo. Seria intrínseca à estrutura do pensamento teórico a dependência de pressuposições supra-teóricas. Além disso, era a intenção de Dooyeweerd demonstrar que essas pressuposições seriam de um caráter religioso, introduzindo assim a discussão a respeito da relação entre a religião e a filosofia, bem como lançando as bases para uma filosofia cristã.4 Orientação importante: a próxima seção do texto (p. 7 a 21) é uma revisão de Kant um tanto complexa. Aqueles interessados em um conhecimento mais preciso da origem da crítica transcendental de Dooyeweerd podem continuar a leitura do capítulo. Se você deseja conhecer mais rapidamente a crítica de Dooyeweerd, pode passar à página 22. Finalmente, se você sentir 1 DOOYEWEERD, Herman, Transcendental Problems of Philosophic Thougth. Grand Rapids: Eerdmans, 1948, p. 16. 2 BRÜMMER, Vincent, “Transcendental Criticism”, p. 14. 3 Ibid, p. 14. 4 Ibid, p. 15. 6 dificuldades para ler as parte I (Crítica Transcendental) comece diretamente da parte II (Filosofia Sistemática, p. 53) voltando mais tarde à parte I. 1. A Idéia de uma Crítica Transcendental do Conhecimento em Kant e Dooyeweerd5 É a posição de Brümmer, e vamos seguí-la nessa parte do estudo, de que a crítica de Dooyeweerd só pode ser compreendida “... à luz da forma como ele a distingue da crítica de Kant.”6 O próprio Dooyeweerd reconheceu a ligação histórica com Kant, especialmente quanto à noção de uma “crítica transcendental”. Desse modo vamos começar com Kant. 1.1. A Crítica Kantiana do Conhecimento Kant viu-se em certo momento confrontado por duas escolas de pensamento: no continente a filosofia era dominada pelo racionalismo de Leibniz e de seu seguidor Christian Wolff, enquanto na Inglaterra a cena era dominada pelos empiristas britânicos, especialmente David Hume. A primeira corrente era denominada por Kant como “dogmatismo”, e a última como “ceticismo”. O dogmatismo começa da convicção de que o pensamento pode conhecer a realidade. Ele não hesita em aplicar aos objetos da experiência os princípios universais do pensamento sem o qual nenhum sistema conectado de conhecimento científico é possível. Essa confiança nos princípios estruturais da razão era justificável quando lidando com objetos dos sentidos, mas tão logo os dogmatistas tentaram aplicar esses princípios à esfera supra-sensível da metafísica (onde surgiram problemas a respeito da liberdade e imortalidade do homem, a origem e limites do mundo, e a existência de Deus), eles chegaram a conclusões que contradiziam umas às outras. A partir disso Hume concluiu que a realidade supra-sensória seria um fruto da imaginação, e limitou a realidade à esfera da experiência sensória. Todo conhecimento é obtido da experiência e não contém nenhum elemento a priori, tal como os princípios universais e necessários que os dogmatistas aplicaram à realidade. Assim todo conhecimento científico no sentido de um sistema coerente é negado pelo ceticismo. Kant concordou com os céticos de que todo conhecimento começa com a experiência; entretanto, diz Kant, isso não implica que todo conhecimento se origina da experiência. Pois pode ser que a experiência contenha dois elementos: um recebido através dos sentidos e o outro suprido por nossa faculdade de conhecimento no momento dessas impressões dos sentidos. Como os dogmáticos, Kant sustentava que o conhecimento também inclui um elemento “a priori” que é suprido pela compreensão. Mas ele adiciona que a razão deve conhecer seus próprios limites: as formas a priori da razão não podem ser aplicadas à realidade supra-sensória sem gerar contradições. Assim Kant divide a realidade em duas esferas: a esfera supra-sensória, denominada noumenal, que é a esfera das coisas em si mesmas, e a esfera da experiência sensória, denominada fenomenal. As realidades de Deus, da liberdade e imortalidade da alma, e a origem e totalidade do cosmos também pertencem à esfera noumenal que apenas pode ser conhecida na fé racional da razão prática, e nunca pela razão teórica. Para esta última a 5 Toda essa seção é uma tradução adaptada de Brümmer, p. 16-39. 6 Ibid, p. 15. 7 esfera noumenal pode apenas Ter um significado meramente negativo, e não pode produzir nenhum conteúdo positivo para o nosso conhecimento teórico. O conhecimento é limitado aos fenômenos, isto é, à realidade experienciada, que contém um elemento sensório e um elemento a priori suprido pela compreensão. Aqui Kant anunciou uma descoberta surpreendente: ao invés de nosso conhecimento se conformar aos objetos da experiência, esses objetos é que são conformados ao nosso conhecimento, desde que é a nossa faculdade cognitiva que fornece os princípios universais e necessários pelos quais as impressões dos sentidos são organizadas e “formatadas” como objetos de experiência. Kant compara esta descoberta à de Copérnico, que moveu o ponto fixo do sistema solar da terra para o sol. Hume mostrou que as sensações em si mesmas são sempre realidades particulares e não implicam logicamente nenhuma estrutura necessária. Elas nos fornecem uma massa caótica de impressões que não constituem conhecimento. Já que os princípios a priori, fornecidos pela compreensão, é que constituem as estruturas universais e necessárias que tornam o conhecimento possível, esses princípios podem ser considerados as condições transcendentais do nosso conhecimento. Em contraste com a negação do conhecimento feita pelos céticos, Kant busca essas condições transcendentais que tornam o conhecimento possível; em contraste com a aplicação ingênua dos princípios racionais pelos dogmáticos, ele exige uma avaliação crítica dos limites dentro dos quais tais princípios se aplicam. Assim ele descreve sua filosofia como uma investigação crítico-transcendental do conhecimento. Esseé o seu projeto na obra “Crítica da Razão Pura.” Desde que se diz a respeito do conhecimento que ele tem duas fontes, a investigação é dividida em duas partes: a estética transcendental, que busca os elementos a priori na sensação, e a lógica transcendental, que busca esses elementos na compreensão. A primeira procura as condições a priori da percepção através das quais os objetos são dados a nós, enquanto que a última procura as condições de concepção através das quais os objetos são pensados. 1. A Estética Transcendental. A Estética transcendental começa quando isolamos a sensibilidade (Sinnlichkeit) de tudo o que a compreensão adiciona a ela por meio de seus conceitos. Essa sensibilidade ou percepção empírica (empirische Anschauung) estudada na estética transcendental, consiste de um elemento material (as impressões caóticas dos sentidos) e um elemento formal (as meras formas de percepção que são chamadas percepções puras). A “matéria” ou “conteúdo” da percepção empírica é inteiramente a posteriori e é causada pelas coisas em si mesmas que estimulam nossos sentidos. Por si mesmas essas impressões sensórias (Empfindungen) são meramente consciências de estímulos. Nós temos consciência de um sabor na língua, um som no ouvido, um toque na pele, etc. Essas são apenas os princípios ainda crus da experiência, mas como tais eles são os dados primários de todo conhecimento. Nós os moldamos como percepções que por seu turno são moldadas como conceitos pela compreensão. A impressões dos sentidos são tornadas em percepções empíricas segundo as formas de percepção, isto é, as “percepções puras” de espaço e tempo. O espaço é a forma das percepções externas: todas os objetos externos são espaciais, desde que as impressões externas são formadas como objetos sob a forma do espaço. O tempo, por outro lado, é a forma da percepção interna por meio da qual nós organizamos nossas impressões internas em uma ordem temporal fixa. Como os objetos externos podem apenas ser 8 conhecidos quando transformados em representações internas (Vorstellungen) que são também por seu turno organizadas sob a forma de tempo, esta forma é aplicada a todas as percepções no processo cognitivo. O espaço e o tempo, assim, não são percepções no sentido usual, mas modos de percepção ou regras a priori de acordo com as quais a percepção opera. Desde que Kant argumenta que elas são as condições transcendentais da percepção, e nós não temos qualquer conhecimento sem conteúdo perceptual, elas são as formas transcendentais de todo o conhecimento. Kant conclui que nenhum conhecimento é possível sem conteúdo perceptual, e que todos os nossos pensamentos são vazios sem percepções. Por outro lado, meras percepções sem a atividade conceptual da compreensão são cegas e ininteligíveis. Assim o conhecimento emerge apenas da atividade combinada de percepção e concepção. Isso nos leva à próxima parte da crítica de Kant, a lógica transcendental, que busca determinar os elementos a priori produzidos pela compreensão. 2. A Lógica Transcendental. Qual é a diferença entre a lógica transcendental e a lógica formal geral? Ambas lidam com as formas do pensamento e com a prioris. A lógica geral lida com as relações entre os elementos lógicos do conhecimento. Ela considera como a compreensão combina conceitos com o propósito de produzir julgamentos corretos. Já a lógica transcendental lida com a relação entre o conhecimento e seus objetos; ela considera como a compreensão combina percepções de modo a formar conceitos que possam ser aplicados a objetos do conhecimento, e isso determina quais elementos a priori são fornecidos pela compreensão em sua atividade de conceptualização. Como todo conhecimento é conceptual, essas formas a priori são ao mesmo tempo os meios necessários e universais pelos quais os objetos da experiência são constituídos. Kant denomina essas formas “categorias”. Kant divide a lógica transcendental em duas partes, a analítica transcendental e a dialética transcendental. A primeira lida com as categorias e a última com as idéias da razão pura. Enquanto as categorias tem uma função constitutiva em nossa experiência, as idéias são meramente princípios regulativos. (a) As Categorias. Desde Aristóteles, as formas da lógica geral, sob as quais os conceitos são combinados para formar julgamentos, tem sido conhecidas e distinguidas. Todos os julgamentos podem ser arranjados de quatro diferentes pontos de vista, e para cada um deles Kant posteriormente distingue três diferentes tipos de julgamentos: (1) Do ponto de vista da quantidade um julgamento pode ser universal (todo A é B), particular (algum A é B), ou singular (este A é B). (2) Do ponto de vista da qualidade um julgamento pode ser afirmativo (A é B), negativo (A não é B) ou infinito (A é não-B). (3) Do ponto de vista da relação um julgamento pode ser categórico (A é B), hipotético (se A, então B) ou disjuntivo (A é B ou C). (4) Do ponto de vista da modalidade um julgamento pode ser problemático (A é possívelmente B), assertivo (A é realmente B) ou apodídico (A é necessariamente B). 9 Sob essas doze formas, assim, os conceitos são sintetizados para obter julgamentos. Desde que Kant argumentou que a mesma atividade sintética da função lógica da compreensão forma tanto os conceitos como os julgamentos, ele concluiu que as categorias devem corresponder às várias formas de julgamento, e deduziu as seguintes doze categorias: (1) Categorias de quantidade: unidade, pluralidade e totalidade. (2) Categorias de quantidade: realidade, negação e limitação. (3) Categorias de relação: substância, causalidade e reciprocidade. (4) Categorias de modalidade: possibilidade, existência e necessidade. Essas doze categorias são os elementos a priori fornecidos pela compreensão na constituição do mundo dos objetos sensíveis. Elas não são objetos em si mesmas, mas meras formas de pensamento que tem sua origem na compreensão independentemente da sensibilidade; formas lógicas por meio das quais as percepções são sintetizadas em objetos do pensamento. Mas como essa síntese é efetuada? (b) O Problema da Síntese. Onde nós vamos encontrar o princípio unificador por meio do qual a diversidade da experiência é unificada e plasmada em objetos? Desde que os objetos em si mesmos pressupõe esse princípio, não se pode dizer que eles produzem isso. Nem podem as sensações produzir isso, desde que a sensação apenas fornece a diversidade da experiência, e não sua conjunção. Com o propósito de encontrar esse princípio, diz Kant, nós temos que procurá-lo além da diversidade da experiência e praticar a auto-reflexão, uma vez que todas as formas de síntese são atos espontâneos da compreensão. Essa atividade sintética da compreensão é a condição transcendental primária de toda a unidade no mundo dos fenômenos e assim de toda unidade em nosso conhecimento. Ela é até mesmo pressuposta pela análise lógica que parece ser seu oposto, pois a compreensão não pode analisar aquilo que ela não sintetizou previamente. Nessa atividade unificadora, a compreensão trai sua unidade, pois apenas uma compreensão única e unificada pode reconhecer sua experiência diversificada como sendo o conteúdo da mesma consciência coerente. Apenas porque eu posso compreender a variedade das minhas representações em uma única consciência é que eu as considero como minhas representações. Apenas porque todas as representações são pensadas pela mesma compreensão, elas podem ser sintetizadas em um todo unificado. Kant chama esse princípio unificador que reúne toda a consciência de “eu transcendental”, ou unidade transcendental da apercepção. Desde que essa unidade é a condição transcendental de toda a experiência, ela não pode ser derivada da experiênciae deve ser distinguida do eu empírico que nós conhecemos na experiência – o “self” do qual nós somos conscientes em nossa auto-consciência empírica. Essa última auto-consciência não é a consciência do que realiza a percepção e o conhecimento, mas daquilo que é conhecido – que é o fenômeno. O eu conhecedor transcendental pertence à realidade noumenal é portanto permanece desconhecido. O fato de que todo o nosso conhecimento pressupões o eu transcendental como uma unidade de apercepção não implica em que nós tenhamos qualquer conhecimento dele. 10 Como pressuposição do conhecimento, a unidade transcendental da apercepção não é mais que uma proposição analítica, uma forma lógica de compreensão. A unidade transcendental da apercepção é a condição necessária para todos os tipos de síntese: a síntese de conceitos para formar julgamentos, das várias representações para formar objetos e do material perceptual para formar representações. Essa última síntese Kant denominou síntese figurativa ou síntese transcendental da imaginação, com o propósito de distinguí-la da síntese intelectual ou síntese da compreensão. Essas duas sínteses estão relacionadas como se segue: desde que todos os objetos da consciência, incluindo aqueles que implicam extensão espacial, devem apresentar a si mesmos na sensação interior, a forma universal de todos os objetos sensíveis é tempo, a forma que se aplica à sensação interna. Kant chama de imaginação a função da compreensão através da qual os elementos da percepção são sintetizados sob a forma do tempo com o propósito de formar imagens ou representações. Essas representações formadas pela imaginação são meramente o material perceptual preparado para a ação de compreensão na síntese intelectual na qual eles são sintetizados para formar objetos. Na primeira edição da Crítica da Razão Pura, Kant argumenta que a imaginação é uma terceira função ao lado da sensação e da compreensão. Essa terceira função parece ser o elemento sintetizado a partir dos outros dois. Entretanto, isso estaria em contradição com a tese da introdução da “Crítica” de que a sensação e a compreensão são as duas únicas fontes do conhecimento. Na Segunda edição, Kant remove essa discrepância interpretando a atividade sintética da imaginação como uma função da compreensão. Embora a imaginação sempre opere sobre o material dos sentidos, a síntese que ela produz não é essencialmente diferente da síntese da compreensão. Pelo contrário, a síntese da imaginação é a atividade inconsciente ou cega da compreensão sempre que essa age diretamente sobre os elementos sensíveis dados na percepção interna. Esta síntese, sendo uma função da compreensão, é também possível apenas na base da unidade transcendental da apercepção. Sobre a mesma base nós temos agora explicado a síntese dos conceitos para formar julgamentos (síntese lógica formal), a síntese das representações para formar conceitos ou fenômenos (síntese intelectual), e a síntese das impressões sensórias para formar representações (síntese da imaginação). Há ainda uma síntese que necessita de explicação: como é possível para o eu pensante sintetizar o material puramente sensório com as categorias que são formas não-sensórias da compreensão? Kant explica isso por meio de sua teoria do esquematismo. Desde que um conceito ou categoria pura não tem absolutamente nada em comum com a percepção, surge o problema de como é possível submeter legitimamente um objeto sob uma categoria. Obviamente, diz Kant, deve haver uma terceira coisa cuja natureza é simultaneamente similar à categoria e ao fenômeno, como propósito de mediar a aplicação do primeiro ao segundo. Kant chama esse elemento mediador de esquema transcendental. Na medida em que o tempo é do mesmo tipo que as categorias, é uma forma a priori universal; por outro lado, na medida em que o tempo é homogêneo com o fenômeno, está incluído em cada representação empírica da diversidade da experiência. Cada categoria tem uma relação específica com o tempo. Essa relação é o seu esquema. Assim o esquema da substância é a permanência, o da causalidade a sucessão temporal, etc. Conseqüentemente uma categoria em sua relação com o tempo 11 (uma categoria esquematizada) pode ser aplicada a cada sensação em sua relação com o tempo – isto é, em uma representação. De acordo com Kant, a sensação e a compreensão são as únicas fontes do nosso conhecimento. Se este é o caso, então o problema epistemológico refere-se à forma com que nós sintetizamos esses elementos em um sistema unificado que é o objetivo final de todo o nosso conhecimento. Com isso nós apresentamos a resposta de Kant a essa questão e apontado como, de acordo com ele, o mundo fenomenal da experiência é constituído na atividade sintética da unidade transcendental da apercepção. À parte das categorias como elementos constitutivos na estrutura sintética, a estrutura da razão em si mesma implica idéias por meio das quais o processo inteiro da síntese do conhecimento é regulado e recebe direcionamento. Essas são denominadas idéias da razão pura. (c) As Idéias da Razão Pura. A compreensão é a faculdade de formar conceitos e combiná-los em julgamentos. A faculdade de combinar julgamentos para obter conclusões é chamada de “razão” por Kant. Todos os julgamentos podem ser premissas das quais a razão pode tirar conclusões e essas conclusões são então condicionadas pelas premissas. Alguém pode perguntar se este processo da razão não poderia ser revertido, desde que cada premissa pode também ser vista como uma conclusão tirada de outras premissas e assim também condicionadas por elas. Se assim for, não poderia esse processo reverso eventualmente levar a um julgamento incondicionado? Kant nega isso, desde que o processo seria de um regresso infinito. Isto é dificilmente surpreendente, porque todo o nosso conhecimento é limitado a fenômenos que são necessariamente condicionados pelas categorias. O infinito incondicionado é apenas possível como uma idéia – um ideal infinito implicado na razão mas nunca alcançado, desde que transcende a esfera dos fenômenos. A tarefa dessa parte da Crítica da Razão Pura é demonstrar que tais idéias transcendem os limites do pensamento teórico e assim não constituem conhecimento, mas são meros ideais de acordo com os quais os processos do conhecimento são regulados. Porque essas idéias estão implicadas na própria estrutura da razão, surge a ilusão de que nós podemos tratá-las como objetivamente reais e fazer julgamentos empíricos a respeito delas. Tais julgamentos que transcendem a esfera dos fenômenos devem necessariamente acabar em contradições. Kant chama esses julgamentos de ilusões transcendentais. Em sua totalidade, nossas idéias se referem ao sujeito, ou ao objeto, ou à unidade de sujeito e objeto. Assim Kant distingue entre três classes de idéias: a unidade incondicionada do sujeito pensante (a idéia da alma); a unidade incondicionada das condições dos fenômenos (a idéia de totalidade cósmica); e a unidade incondicionada das condições de todos os objetos do pensamento (a idéia do absoluto, isto é, Deus). Seguindo-se a ilusão transcendental, essas idéias são feitas os objetos de três ciências metafísicas: a psicologia racional, a cosmologia metafísica e a teologia natural. Psicologia Racional. Como nós temos viso, a atividade sintética da compreensão implica a unidade transcendental do eu pensante. Esse ego transcendental não deve ser confundido com o ego empírico que é um fenômeno e como tal objeto de uma psicologia empírica. O ego transcendental é uma realidade noumenal. Como condição transcendental para a atividade sintética da compreensão, ele não é mais que uma forma lógica de pensamento – oeu penso que acompanha todas as minhas concepções se elas 12 realmente são minhas. A psicologia racional comete o engano de tomar essa forma meramente lógica como um objeto. Desde que ela é pressuposta por todos os objetos, é tomada também como se fosse um objeto. As categorias são conseqüentemente aplicadas à idéia da alma e quatro paralogismos ou falsas conclusões são produzidas. Elas são falsas porque estão baseadas na ilusão transcendental. A alma é concebida como uma substância, simples, unitária, e relacionada aos possíveis objetos espaciais (p.ex. o corpo). Esses paralogismos estão na raiz do perene problema da psicologia racional, isto é, o problema da relação mente-corpo, a substância imaterial da alma e o corpo (ego empírico) como substância material. Kant mostra que esse é um falso problema que se segue da ilusão dialética. Cosmologia Metafísica. Os paralogismos da psicologia metafísica seguem uma ilusão dialética completamente unilateral com respeito à idéia de nosso sujeito pensante, desde que nenhuma evidência contrária a esses paralogismos pode ser deduzida da pura idéia transcendental da alma. No caso da idéia cosmológica do universo, nós encontramos uma situação completamente diferente. Se a razão busca desafiar essa idéia como um objeto de pensamento, ela deve necessariamente se envolver em antinomias, e conclusões igualmente válidas mas contraditórias são obtidas. Kant demonstrou que quatro dessas antinomias correspondem às quatro classes de categorias. Essas são divididas em duas antinomias matemáticas (correspondendo às categorias de quantidade e qualidade), e duas antinomias dinâmicas (correspondendo às categorias de relação e modalidade). As antinomias matemáticas são as que se poderia provar que o mundo é, com respeito à quantidade, tanto limitado como ilimitado no espaço e no tempo, e , com respeito à qualidade, tanto composto como simples. As antinomias dinâmicas são, com respeito à relação, que pode ser provado que a liberdade é possível como uma primeira causa e que ela está excluída por uma cadeia infinita de necessidade mecânica, enquanto, com respeito à modalidade, um ser supremo necessário poderia tanto ser provado como “des-provado”. Kant rejeita ambas as conclusões alcançadas nas antinomias matemáticas, uma vez que elas se baseiam sobre a ilusão dialética. Entretanto, no caso das antinomias dinâmicas, Kant aceita as teses como aplicáveis ao mundo noumenal, porque a moralidade pressupõe as realidades da liberdade e de Deus. Como tanto as teses como as antíteses são igualmente válidas, Kant aceita as antíteses como aplicáveis ao mundo dos fenômenos. Disso se segue que as antinomias dinâmicas não são contraditórias, desde que elas sejam vistas em seus contextos apropriados. Isso não implica que a razão teórica está aqui aplicando suas categorias à esfera supra-sensória. Essas conclusões são tomadas puramente na base da razão prática como postulados necessários da moralidade. Isso é posteriormente substanciado na crítica Kantiana da teologia natural, onde ele demonstra que as várias provas para a existência de Deus são todas baseadas em ilusões dialéticas. Que um ser supremo existe não é negado por Kant; o que ele nega é que a existência de tal ser possa ser teoricametne deduzida da idéia transcendental de Ser Supremo. Nós podemos concluir que embora Kant não atribua às idéias transcendentais uma significância mais que regulativa com respeito ao conhecimento, ele aceita sua realidade na esfera noumenal como postulados da moralidade e da religião. 1.2. A Crítica Dooyeweerdiana a Kant 13 De acordo com Dooyeweerd, Kant foi o primeiro filósofo a distinguir entre a atitude crítica e a atitude dogmática de pensamento, e a ver que a filosofia crítica precisa examinar as condições transcendentais que tornam a filosofia possível e determinam seus limites. Entretanto, diz Dooyeweerd, tal investigação transcendental deve ser completa para ser crítica. Ela não deve deixar nenhuma de suas pressuposições intocadas, ou elas poderão dominar a investigação e roubar-lhe o caráter crítico. E justamente nesse ponto a crítica de Kant falha. Ele não examina até o fim as condições que tornam o pensamento filosófico possível, e dogmaticamente assume certas posições básicas que determinam toda a sua filosofia. Kant foi o primeiro a ver o problema epistemológico como um problema de síntese teórica. Entretanto ele assumiu que essa síntese era meramente uma síntese lógica, e assim firmou a questão epistemológica sobre uma base muito estreita. Isso teria ocorrido porque ele tentou resolver o problema epistemológico antes de fundar sua epistemologia sobre uma teoria de coerência cósmica a partir da qual a relação gnoseológica teria seu lugar definido. Em sua teoria das idéias transcendentais, Kant de novo abre a porta para transcender a estreita base lógica em que ele formulou o problema, mas o motivo filosófico básico que dominava seu pensamento impediu que ele aprofundasse essa linha de pensamento. Assim Dooyeweerd conclui que a crítica Kantiana não foi crítica o suficiente. O “método crítico” teria de ser mais crítico, se ele quisesse manter sua reivindicação à honra auto-assumida de “pensamento crítico”. A crítica de Dooyeweerd a Kant pode ser apresentada em quatro pontos básicos: (1) sua epistemologia não tinha uma base cosmológica; (2) ele consequentemente falhou em prover um tratamento satisfatório do problema da síntese epistemológica; (3) as fraquezas de sua teoria das idéias e (4) o motivo básico que domina sua filosofia. 1. A Base Cosmológica para a Epistemologia. “Na Estética Transcendental, por conseguinte, primeiro isolaremos a sensibilidade separando tudo o que o entendimento pensa nela mediante seus conceitos, a fim de que não reste senão a intuição empírica.”7 Com essas palavras Kant abre a primeira parte de sua crítica isolando o material sensório da experi6encia em sua recepção mais primitiva nas “formas transcendentais do espaço e do tempo.” Este isolamento levou Kant a distinguir entre a “percepção” (Anschauung) e a “compreensão” (Verstand) como as duas únicas fontes de todo o conhecimento, e a manter assim que a realidade experimentada consiste de um aspecto sensório recebido através da percepção e um aspecto lógico produzido pela compreensão. Isso determina a divisão principal de sua crítica em estética transcendental e lógica transcendental. Dooyeweerd mostra que essa divisão é uma evidente abstração que falha em fazer justiça à complexa estrutura de sentido cósmico que nós conhecemos através da experiência. Na experiência ordinária a realidade se revela como uma unidade coerente composta de coisas individuais e eventos. Este é o datum primário de todo o nosso conhecimento. Na reflexão teórica vários aspectos ou modalidades estruturais podem ser distinguidos no cosmos; mas desde que eles foram teoricamente abstraídos da estrutura cósmica de sentido, eles podem apenas ter significado quando vistos à luz 7 KANT, Immanuel, Crítica da Razão Pura. Os Pensadores. São Paulo, Nova Cultural, 1996, p. 72. 14 dessa coerência. Isto implica que cada aspecto deve ter uma estrutura que expresse essa conexão interna entre ele e todos os outros aspectos. Ignorando essa coerência intermodal, Kant começa com uma tentativa de isolamento do aspecto sensório da experiência, e então procede a uma posterior abstração dentro desse aspecto. Espaço e tempo são isolados como formas de percepção das impressões sensórias caóticas que são seu conteúdo. Como Hume, Kant toma essas impressões como sendo os dados primários de todo conhecimento, ignorando a abstração envolvida para“recuperá-los”. Isso implica seguinte contradição: o resultado da abstração é interpretado como o datum primário de todo o nosso conhecimento. Essas impressões, diz Dooyeweerd, nada mais são que abstrações teóricas dos dados primários que são a coerência de sentido systática da realidade como nós conhecimentos em nossa experiência ordinária ou ingênua. Esta é a primeira abstração feita por Kant. Nossa experiência é mal interpretada e restrita à função sensória teoreticamente abstraída, e o dado primário do conhecimento é reduzido às impressões caóticas dos sentidos. Sendo caóticas, essas impressões não tem nenhuma estrutura de sentido fixa, e não constituem conhecimento. Daí a necessidade da compreensão de sintetizar essas impressões tornando-as estruturas fixas. Depois dessas impressões terem sido sintetizadas sob as formas do espaço e do tempo para formar representações, as representações são sintetizadas sob as categorias para formar objetos de conhecimento. Essas formas sob as quais as sínteses são realizadas são fornecidas pela compreensão. Assim Kant vê a estrutura da realidade como sendo dada em nossa experiência como uma estrutura meramente lógica, produzida pela compreensão. Esta é a segunda abstração manifesta sobre a qual Kant baseia sua filosofia. O aspecto lógico da realidade é abstraído de sua coerência com outros aspectos e feito absoluto. A totalidade da estrutura de sentido da realidade é reduzida à estrutura de um dos aspectos do sentido cósmico, enquanto a síntese lógica da compreensão substitui a systasis de sentido cósmico e a compreensão se torna a fonte da lei para o cosmos. Kant ignora o fato de que essa absolutização da síntese lógica apenas é possível porque o aspecto lógico da realidade foi previamente abstraído da coêrência de sentido cósmico. A síntese lógica absolutizada – que é o resultado da análise lógica – é vista por Kant como o pré-requisito para toda análise lógica! “O que a compreensão não combinou anteriormente”, diz ele, “ela não pode dissolver ou analisar.” A crítica de Dooyeweerd a Kant quanto a esse primeiro ponto pode ser sumarizada como se segue: Kant falha em dar conta da estrutura cosmológica que é pressuposta em todo pensamento filosófico. Por isso ele baseia sua epistemologia sobre uma abstração cosmológica que ele acrticamente aceita como dado, isto é, os aspectos sensório e lógico da experiência, abstraídos da totalidade do sentido cósmico. Com respeito ao aspecto sensório, isso resulta na contradição de considerar as impressões sensórias abstraídas como o dado primário do conhecimento. O aspecto lógico, por outro lado, é feito absoluto e, como resultado, a estrutura cósmica de sentido é reduzida a uma estrutura lógica e a compreensão feita a fonte da lei e da ordem do cosmo. Alguém poderia perguntar se é possível formular e resolver o problema da síntese epistemológica sobre tal base cosmológica insuficiente. Isso nos leva à próxima parte da crítica de Dooyeweerd. 15 2. O Problema da Síntese. Embora Kant tenha corretamente interpretado o problema do conhecimento como um problema de síntese, a base cosmológica insuficiente de sua epistemologia impediu Kant de vê-la como uma síntese entre os vários aspectos da experiência que foram teoricametne abstraídos da coerência de sentido cósmico e distinguí-los entre si. Porque ele reduziu a coerência de sentido a uma coerência lógica, a síntese epistemológica não poderia ser para ele nada mais que uma síntese com um aspecto do sentido cósmico. Entretanto Kant tentou demonstrar como um ponto de referência fixo poderia ser econtrado à luz do qual a síntese epistemológica seria obtida. Ele argumentou que tal ponto não poderia ser encontrado entre os objetos do conhecimento, mas apenas através da auto-reflexão no pensamento teórico. Dooyeweerd considera isso um caminho bastante promissor, pois, como ele diz, “é indubitável que, enquanto o pensamento teórico em sua atividade lógica permanece em estado de oposição aos aspectos modais da realidade temporal que constituem seu “Gegenstand”, eles permanecem numa diversidade teórica. Apenas quando o pensamento teórico é dirigido ao ego pensante, pode ele adquirir a direção concêntrica em direção a uma unidade última da consciência que se encontra na raiz de toda diversidade modal do sentido.”Dooyeweerd, N.C., I, p. 51. Como Kant assume que as funções lógica e sensória teoreticamente abstraídas são as únicas fontes do conhecimento, a unidade transcendental da auto-consciência deve em sua opinião ser encontrada em uma dessas fontes. A sensibilidade pode apenas nos fornecer conhecimento de nosso eu empírico, isto é, o eu que é feito objeto de pensamento, e não do sujeito transcendental do pensamento. Assim, se todos aqueles momentos que podem ser tratados como objetos da função lógica do pensamento são eliminados do eu individual concreto espaço-temporal, nós ficamos com o ego lógico- transcendental, que é uma mera forma de pensamento lógico, a forma da representação, “Eu penso”. Como tal, ele não transcende os limites da função lógica, mas permanece o polo subjetivo universal do pensamento em oposição à realidade da experiência, que passa a ser considerada o seu contra-polo objetivo. Teria Kant alcançado um ponto de referência fixo nesse ego transcendental à luz do qual a síntese epistemológica pode ser realizada? Tem essa reflexão transcendental realmente penetrado no ego pensante, o autor da síntese? Dooyeweerd aponta, em primeiro lugar, que a redução total do ego concreto à unidade lógico-transcendental de apercepção é uma abstração executada pelo ego pensante e o último não pode, assim, ser identificado com o resultado dessa abstração. A unidade transcendental da apercepção não é nada mais que o conceito de uma unidade lógica subjetiva de pensamento e como tal pressupõe o ego pensante. O eu empírico é também uma abstração. Nem um eu lógico-transcendental nem um eu puramente empírico-psíquico podem existir. O eu tem funções psíquicas e lógicas mas e si mesmo ele permanece o ponto transcendente de referência desses e de todas as suas outras funções nas várias modalidades do cosmo. Apenas este ego central pode ser o ponto de referência para a síntese epistemológica. Em segundo lugar, Dooyeweerd mantém que se o eu pensante é limitado à função lógica do pensamento, o conhecimento se torna impossível. Se o eu pensante fosse apenas de um caráter lógico, ele naturalmente resistiria a todos os aspectos não lógicos da realidade - incluindo o aspecto sensório - como se eles fossem algo que não pertence ao ego central; algo que não é próprio de mim, ou meu. Desse modo a possibilidade de 16 uma síntese de sentido entre a função lógica de pensamento e o material sensório da experiência é cancelada, e a crítica Kantiana do conhecimento se auto-destrói. Dooyeweerd conclui que a profunda unidade da auto-consciência que sozinha torna o conhecimento possível, não pode ser limitada a uma de suas funções, mas deve transcendê-las como o ponto de referência em que elas encontram sua unidade. A unidade transcendental da apercepção de Kant é meramente a unidade imanente da função lógica e não a unidade última do ego pensante. O fato de que ele funda sua epistemologia nessa abstração é evidenciado por sua redução da síntese epistemológica a uma síntese de uma diversidade meramente lógica. Entretanto, a crítica de Kant permite pelo menos um tipo de síntese intermodal: a síntese entre os aspectos lógico e sensório da realidade. Não teria Kant encontrado talvez um ponto de referência nessa síntese que transcenda a ambos os aspectos? A distinção Kantiana entre lógica formal e transcendental, sua doutrina da imaginação transcendental e sua doutrina dosesquematismos pode prover indicações disso. (a) Lógica Formal e Transcendental. Na crítica Kantiana, a lógica formal lida com as formas lógicas sob as quais os conceitos são combinados para formar julgamentos, enquanto que a lógica transcendental lida com as categorias que são formas sob as quais o conhecimento é relacionado aos objetos dos sentidos. Poderia ser dito que no pensamento de Kant a lógica formal lida com as formas lógicas enquanto a lógica transcendental lida com as formas epistemológicas. A distinção entre lógica formal e transcendental parece implicar que as categorias não são meras formas lógicas, mas que elas são formas que implicam uma síntese a prior entre as formas lógicas de pensamento e o material sensório. Se não for possível demonstrar que as categorias são mais do que meras formas lógicas, diz Dooyeweerd, então a distinção entre lógica formal e transcendental seria sem sentido. Entretanto, um exame cuidadoso mostra que nenhuma síntese intermodal está implicada nas categorias, desde que Kant ressalta que é a mesma função lógica que está ativa na analítica formal e no pensamento sintético transcendental. Além disso Kant orienta as categorias dentro de uma tábua de julgamentos lógicos formais, porque eles são realmente de uma natureza lógica. Ele os distingue como conceitos sintéticos porque eles são aplicados a experiências possíveis. Entretanto ele não considera a síntese em que eles são fundados como intermodal, mas como uma síntese puramente lógica. Daí se segue que as categorias são formas meramente lógicas e que não implicam qualquer síntese intermodal. Dooyeweerd aponta que se elas fossem realmente formas transcendentais de conhecimento objetivo, e não meramente formas de pensamento, então elas não deveriam ter sido discutidas em epistemologia, mas na análise dos vários aspectos modais da experiência que deveria preceder qualquer discussão de epistemologia e que determina as condições cosmológicas do conhecimento. Nesse ponto Kant não atinge nem uma síntese intermodal, nem um ponto de referência que transcenda a diversidade modal. (b) A Imaginação Transcendental. Na primeira edição de sua Crítica da Razão Pura, aparentemente Kant interpreta a imaginação como uma terceira função ao lado da compreensão e da percepção. Essa terceira função deve então ser o fator de síntese atrás dos outros dois. Entretanto, a idéia de uma terceira função contradiz a visão apresentada na “Introdução” de que haveria apenas duas fontes de conhecimento; assim, na Segunda edição, Kant removeu a contradição declarando enfaticamente que a imaginação é uma função da compreensão e que a síntese figurativa seria um ato da 17 compreensão. Assim nós concluímos que a imaginação não fornece um ponto fixo além da função lógica. Nem é a síntese figurativa uma síntese intermodal. (c) A Doutrina do Esquematismo. O problema de uma síntese intermodal entre o material sensório e as categorias não é realmente tratado por Kant antes de sua discussão da doutrina dos esquematismos. Para demonstrar como as categorias podem ser aplicadas aos fenômenos sensórios, Kant formulou sua doutrina na qual o tempo é visto como “uma terceira coisa de natureza similar às categorias, por um lado, e aos fenômenos, por outro”, que media a síntese entre os dois. Por um lado, o tempo é a forma universal da sensação, e por outro lado é o meio pelo qual as categorias são esquematizadas com a ajuda da imaginação transcendental. Como Dooyeweerd mostrou, isso não é uma solução para o problema, mas uma petitio principii. Afirma-se que o problema da síntese entre as categorias e os fenômenos sensórios é resolvido pelo esquematismo das categorias. Mas isso é apenas uma reafirmação do mesmo problema de uma outra forma: como podem as categorias e a forma sensória do tempo serem sintetizadas? Desde que as categorias são formas puras de pensamento, elas são atemporais e assim estão em oposição irreconciliável tanto ao material sensório como à forma sensória do tempo. Segue-se que a doutrina dos esquematismos contradiz as próprias visões de Kant sobre o caráter lógico das categorias e o caráter do tempo como uma forma de percepção. Consequentemente Dooyeweerd conclui que “do capítulo sobre os esquematismos temos a impressão de que Kant deve ter visto a insuficiência de sua concepção da unidade da auto consciência para explicar relação entre as “categorias de pensamento” e os “fenômenos sensórios”. A crítica de Dooyeweerd a Kant sob este segundo ponto pode ser sumarizada como se segue: (1) Devido à insuficiente base cosmológica de sua epistemologia, Kant reduz a síntese intermodal do conhecimento a uma síntese meramente lógica. (2) Embora a crítica de Kant deixe espaço para ao menos uma síntese intermodal – aquela entre os aspectos lógico e sensório – ele não dá uma solução para o problema nem em sua doutrina das categorias como formas de lógica transcendental, nem na doutrina da imaginação transcendental, nem na dos esquematismos. (3) Desde que Kant absolutiza a função lógica, ele reduz o ego pensante, como ponto transcendental de referência para todas as sínteses, a uma unidade meramente lógica de consciência. Ele falha em transcender a diversidade modal do sentido no ponto de referência que ele escolheu para a síntese teórica; como resultado, a direção transcendental do pensamento teórico para o ego pensante é desviada e limitada à função lógica. Teria Kant buscado transcender à função lógica em sua doutrina das idéias transcendentais? Isso nos leva á próxima parte da crítica de Dooyeweerd. 3. A Doutrina Kantiana das Idéias. A atividade sintética do conhecimento, portanto, implica um ponto de referência que transcende os diferentes aspectos do sentido cósmico. Nosso ego pensante deve ser capaz de participar desse ponto, desde que é o ego pensante que realiza a síntese. Entretanto, o pensamento teórico não pode transcender a diversidade dos aspectos de sentido do cosmo, desde que é justamente essa diversidade que torna o pensamento teórico possível. Assim o pensamento teórico não pode fazer mais do que desenvolver idéias regulativas que no uso teórico permaneceriam presas aos limites imanentes do conhecimento teórico, mas seriam capazes de se referir à totalidade absoluta do sentido, proporcionando um ponto de referência transcendente para a síntese teórica do conhecimento. 18 Dooyeweerd chama a tentativa de encontrar tal ponto de referência transcendente por meio de idéias transcendentais de “a direção transcendental do pensamento teórico”. Essa direção transcendental não aparece na obra de Kant antes de sua discussão das idéias transcendentais na dialética transcendental. Essas idéias apresentam as características básicas do que seria o ponto de referência necessário a uma síntese intermodal. Primeiro de tudo, elas apontam para uma totalidade absoluta que de acordo com Kant transcende os limites imanentes da “experiência objetiva”. Esta última é sempre limitada aos dados dos sentidos que são condicionados pelas categorias, de modo que o absoluto, como o incondicionado, deve transcender esses fatores condicionantes. Em segundo lugar, em seu uso teórico, essas idéias permanecem presas aos limites imanentes do conhecimento e não podem receber um conteúdo positivo pelo pensamento teórico. Seu conteúdo pode apenas ser encontrado na esfera transcendente à qual elas se referem. Kant distingue três dessas idéias transcendentais: as idéias do universo, da unidade última do ego humano, e da Origem absoluta. Dooyeweerd considera essas em sua triunidade como o verdadeiro ponto fixo pelo qual nós estamos procurando, e como a verdadeira hipótese transcendental de qualquerfilosofia. Como o seu conteúdo transcende a esfera do pensamento teórico, ele deve depender de pressuposições supra- teóricas. Como nós veremos, Dooyeweerd tenta demonstrar em sua própria crítica que essas pressuposições são de natureza religiosa. Entretanto, Kant recusou-se a dar o último passo na direção transcendental do pensamento teórico e não aceitou essas idéias como a hipótese última de sua crítica do conhecimento. Assim ele apenas lida com elas depois de ter completado sua discussão da síntese epistemológica. Ele não dá a elas mais que um significado puramente lógico-formal em sua teoria do conhecimento; elas teria apenas uma função regulativa sistemática com respeito ao uso das categorias, indicando à compreensão a direção que ela deve seguir para trazer unidade às suas regras. Kant falhou em ver que mesmo em seu uso teórico essas idéias devem ter um conteúdo real que é supra-teórico e determinado por pressuposições religiosas. Ele procurou elaborar sua crítica do conhecimento à parte de qualquer atitude religiosa, como um produto puro da reflexão. Na verdade, Kant deu a essas idéias um conteúdo positivo em sua crítica da razão prática, e este conteúdo é determinado por um motivo básico que, de acordo com Dooyeweerd, determina toda sua filosofia – incluindo sua crítica do conhecimento. Isso nos leva à última parte da crítica de Dooyeweerd. 4. O Motivo Básico da Crítica de Kant. Ao revisar a história da filosofia, Dooyeweerd descobriu que cada período da história parece ser dominado por algum motivo básico (“grond-motief”) que constantemente se manifesta nesse período. Assim, a filosofia grega foi determinada pelo motivo forma-matéria, enquanto na filosofia medieval nós encontramos o motivo natureza-graça recorrendo constantemente. Este último motivo foi uma tentativa de síntese entre o motivo grego e o motivo cristão criação-queda- redenção. Estes motivos são todos de um caráter religioso, implicando que todas as filosofias parecem ser basicamente determinadas por um fator religioso. Este é também o caso do motivo natureza-liberdade do humanismo que subjaz à crítica kantiana. Os motivos grego, medieval e humanista contém cada um uma polaridade entre dois elementos componentes. No motivo humanista, esses elementos são a natureza e a liberdade, que são representados respectivamente pelo ideal de ciência natural e o ideal de personalidade autônoma. Kant tenta resolver a luta entre esses dois ideais dividindo a 19 realidade em uma esfera de fenômenos sensórios e uma esfera noumenal supra-sensória. O ideal de ciência reinaria supremo sobre os fenômenos, que são determinados pelas categorias – especialmente a da causalidade. E para dar espaço à personalidade livre do homem, o ideal de ciência foi limitado aos fenômenos e foi criada a esfera noumenal, como a esfera da liberdade moral. Dooyeweerd argumenta que a revolução copernicana de Kant é significativa apenas à luz do novo relacionamento que ele estabeleceu entre o ideal de ciência e o ideal de personalidade. Já desde o tempo de descartes, a filosofia humanista foi caracterizada pela tendência de buscar os fundamentos da realidade apenas no sujeito conhecedor. Se Kant “não fez mais do que proclamar o sujeito conhecedor lógico-transcendental como a fonte da lei para a realidade empírica, sua obra Copernicana pode não Ter sido nada mais do que a realização da tendência básica do ideal humanista de ciência ...”8 O aspecto realmente revolucionário da crítica de Kant foi remoção das “coisas em si mesmas” da dominação do ideal matemático de ciência e sua limitação de todo conhecimento teórico aos fenômenos dos sentidos. Dessa forma o ideal de personalidade livre foi emancipado das determinações da ciência matemática e foi criada uma esfera supra-sensória na qual a personalidade pudesse ser autônoma. Vê-se, então, que Kant sustentou o dualismo do motivo humanista mas enfatizou o primado do ideal de personalidade. Este primado ganharia crescente importância no desenvolvimento do idealismo após Kant. À luz do equilíbrio entre os ideais de ciência e de personalidade – um equilíbrio inclinado em favor do último – Kant deu conteúdo a suas idéias transcendentais e elaborou sua crítica do conhecimento. A forma com que Kant deu conteúdo às idéias transcendentais é claramente expresso em sua discussão das antinomias dinâmicas quando ele diz: “Que meu ego pensante tem uma natureza simples e indestrutível, que o eu ao mesmo tempo é livre em seus atos volicionais e elevado acima da coerção da natureza, e que finalmente a ordem total das coisas se origina de um Ser Primeiro do qual todas as coisas derivam sua unidade e conexão apropriada: estes são fundamentos da moral e da religião.” Aqui o “eu” é liberado do domínio da natureza e mesmo da morte, e é identificado com o eu moral autônomo do ideal humanista de personalidade. Esta idéia do eu e o motivo que lhe confere conteúdo subjaz à teoria do conhecimento de Kant. Sem uma base cosmológica para a sua epistemologia, a suposição de Kant de que há apenas duas fontes de conhecimento é determinada por seu motivo base dualista. “Sua concepção da autonomia e espontaneidade da função lógico-transcendental do pensamento é indubitavelmente governada pelo motivo humanista da liberdade, e o motivo base da natureza encontra clara expressão em sua concepção do caráter puramente receptivo da função sensória da experiência, e de sua sujeição às determinações causais da ciência.” Na epistemologia de Kant, a síntese entre liberdade e necessidade natural é dada no conceito da conexão das categorias à experiência sensória. Entretanto, devido ao dualismo a partir do qual Kant começa seu pensamento, todas as suas tentativas de explicar a síntese foram infrutíferas. O fato de que a sensação e a compreensão lógica são opostos dualisticamente um ao outro é perigosa tanto para o ideal de ciência como para o de personalidade. A despeito da proclamação da compreensão lógica como a fonte da lei da natureza, a soberania do pensamento teórico é seriamente desafiada porque a sensibilidade como uma instância 8 Dooyeweerd, NC, I, p. 355. 20 puramente receptiva impõe limites insuportáveis sobre ela. A compreensão é feita a fonte da lei meramente em um sentido formal. O conhecimento material permanece um produto a-lógico do Ding an sich. Este Ding an sich metafisicamente construído limita seriamente a autonomia do ideal de ciência. Entretanto, ele também desafia a autonomia do ideal de personalidade porque, como uma realidade noumenal, ele não é compatível com a autonomia do homo noumenon na esfera supra-sensória. Em sua crítica da comologia metafísica, Kant tentou retificar isso rejeitando o Ding an sich natural como uma construção metafísica. “Não pode ser negado”, diz Dooyeweerd, “que na dialética transcendental, ao introduzir as idéias transcendentais da razão teórica, Kant tomou um importante passo na direção tomada por Fichte. Este último eliminou completamente o “Ding an sich” e proclamou a razão prática, o lugar do ideal ético de personalidade, como a raiz mais profunda de todo o cosmo. 21 III. AS CONDIÇÕES TRANSCENDENTAIS DO PENSAMENTO TEÓRICO Na primeira edição de sua magnum opus em 1935, em holandês, Dooyeweerd procurou criticar o pensamento ocidental começando com a pressuposição de que a filosofia, por natureza, se dirige à totalidade do sentido da realidade temporal, passando daí a considerar o problema do ponto arquimediano do pensamento e o problema do Arché. Essa abordagem não teve, no entanto, o alcance esperado, basicamente porque, como Dooyeweerd reconhece, essa definição de filosofia não tem aceitação universal. Assim Dooyeweerd procurou aprofundar sua crítica do pensamentoteórico focalizando “a atitude teórica de pensamento como tal”.9 Sua nova abordagem apareceu primeiramente, segundo BRÜMMER, em dois artigos escritos em 1941 para a revista Philosophia Reformata,10 e foi publicada em 1948 na obra Transcendental Problems of Philosophic Thought.11 A forma final do argumento é encontrada no capítulo 1 da edição inglesa de sua obra magna: A New Critique of Theoretical Thought.12 Neste capítulo vamos nos concentrar na exposição da forma final do argumento, que Dooyeweerd chama de “A Segunda Via para uma Crítica Transcendental do Pensamento Teórico.” 1. A Base Cosmológica da Crítica Transcendental Como vimos no capítulo anterior, Dooyeweerd apontou como uma das falhas principais da crítica Kantiana a ausência de uma base cosmológica adequada para a epistemologia. Kant partiu da pressuposição de que as fontes do conhecimento se reduzem aos dados dos sentidos e as categorias da compreensão, e esse erro básico comprometeu todo o restante do edifício. Desse modo, a Nova Crítica de Dooyeweerd começa com o estabelecimento de uma base cosmológica mais ampla e de uma concepção de pensamento teórico coerente com essa base cosmológica. 2. O Primeiro Problema Transcendental Básico: “Relação-Gegenstand” versus “Relação Sujeito-Objeto”. O primeiro problema transcendental do pensamento teórico por ser formulado como se segue: “Como a atitude teórica de pensamento é caracterizada, em contraste com a atitude pré-teórica da experiência ingênua?”13 Em nosso exame da base cosmológica da epistemologia, vimos que a atitude teórica de pensamento se caracteriza pela análise e conseqüente separação dos strata da experiência. Já na atitude pré-teórica experimentamos na coerência integral do tempo cósmico, percebendo não esferas modais, mas estruturas 9 Dooyeweerd, NCTT, I, Prolegomena, p. 35. 10 Brümmer, Transcendental Criticism, p. 43. 11 Dooyeweerd, Herman, “Transcendental Problems of Philosophical Thought”. Grand Rapids: Eerdmans, 1948, 80 pp. 12 A edição holandesa de 1935 continha apenas a “primeira via” da crítica transcendental. Já a edição inglesa de 1953 trouxe na introdução a “primeira via” e no capítulo 1 a “Segunda via” contendo seu argumento mais elaborado. Devido a essa e a várias outras modificações, a edição inglesa foi considerada por muitos como uma obra praticamente nova e original. 13 Dooyeweerd, NCTT, I, p. 38. 22 completas de individualidade. Vamos começar analisando melhor a atitude teórica do pensamento. A Estrutura Intencional do Pensamento Teórico e a Origem do Problema do Pensamento Teórico A atitude teórica sempre envolve uma tentativa de analisar e de reconstituir as realidades de um determinado strata da experiência de forma lógica, conceptualizando essa dimensão da experiência. A atitude teórica tem assim uma estrutura antitética, caracterizando-se por uma antítese entre a nossa função lógico-analítica e uma outra função ou dimensão não-lógica da experiência. Essa função não-lógica é denominada por Dooyeweerd como a “Gegenstand” no sentido de “oposto”. Desse modo o pensamento teórico não tem uma estrutura ôntica, mas apenas intencional.14 Ou seja, “a antítese teórica não corresponde à estrutura da realidade empírica”15, sendo apenas uma abstração teórica de um certo aspecto da experiência. Por outro lado, o ato real de pensamento teórico, o ato da abstração, e si, é real e concreto, de modo que só pode existir como uma estrutura de individualidade integral e temporal participando de todos os strata. O processo intencional da abstração encontra resistência nos aspectos da experiência, na dificuldade de conceptualizá-los. Essa resistência nasce do fato de que mesmo ao ser abstraída, “a estrutura modal do aspecto não-lógico X que é tratado como “Gegenstand” continua a expressar sua coerência (de sentido) com os aspectos modais Y que não foram escolhidos como o campo da inquirição.”16 É que uma vez que os diversos aspectos existem numa coerência inquebrável de sentido, não há como definir um aspecto a não ser em referência aos outros. Segue-se que, embora a abstração seja fundamental para atingirmos um insight teórico na diversidade do sentido cósmico, o resultado da abstração não pode jamais ser tratado como um dado básico da experiência, ou como um “dado não problemático”. A Relação Sujeito Objeto na Experiência Ordinária Vamos passar agora ao exame da atitude ingênua ou ordinária do pensamento. Nessa atitude pré-teórica a função lógica do pensamento permanece plenamente integrada e acomodada à coerência cósmica. Ao invés de isolar aspectos da experiência, nós captamos a realidade em estruturas totais de individualidade: objetos, acontecimentos, ações, indivíduos – todo tipo de estrutura é percebida na sua integralidade. Assim o processo ordinário de formação de conceitos se dirige a coisas e eventos concretos. O aspecto lógico não surge oposto a outros, mas como um componente implícito da realidade, assim como o aspecto estético, ou sensório, ou histórico. Essa experiência ordinária pode ser descrita como uma relação sujeito-objeto, na qual funções e qualidades objetivas são atribuídas às coisas e eventos, dentro daqueles aspectos da experiência nos quais se percebe que essas coisas e eventos não aparecem como sujeitos.17 Nós sabemos muito bem, por exemplo, que a água não tem vida biológica, mas 14 Ibid, p. 39. 15 Ibid, p. 40. 16 Ibid, p. 40. 17 Ibid, p. 42. 23 nós a tratamos como tendo a função objetiva de ser necessária à vida; que a pena do pássaro não vive, mas é um objeto que tem significado apenas na relação com a vida subjetiva do pássaro, como um objeto da vida. Assim a relação sujeito-objeto é vivida como uma parte estrutural da realidade, tendo assim o caráter ôntico que falta à relação Gegenstand.18 O conceito metafísico de “substância”, e o conceito de uma “coisa em si” (Ding na sich) como uma espécie de matéria ou essência pura sem significado é ausente da experiência ordinária, surgindo da abstração e “substancialização” de uma das esferas da experiência. Na experiência ingênua o foco está nas estruturas totais de individualidade e em suas relações sujeito-objeto, e nunca na tentativa de definição de “essências” isoladas. Uma vez que a relação sujeito-objeto tem caráter verdadeiramente ôntico e não intencional, jamais buscando essências do real ou dividindo abstratamente suas propriedades, podemos dizer que a experiência ingênua deixa as estruturas da experiência do real intactas. Efeitos da Falha em Considerar a Relação entre Experiência Ordinária e Pensamento Teórico A distinção entre as relações “gegenstand” e “sujeito-objeto” nos ajuda a compreender um dos erros fundamentais da atitude dogmática de pensamento como a que encontramos em Kant. Nessa posição a atitude teórica de pensamento é considerada como ôntica, e os resultados da relação gegenstand como um datum não problemático. Com essa interpretação somos levados a identificar a relação sujeito-objeto com a relação gegenstand e finalmente ao erro de interpretar a experiência ordinária como se fosse uma teoria ingênua sobre a realidade: a teoria acrítica do realismo ingênuo ou teoria da cópia/representação.19 Muito ao contrário, a experiência ordinária toma a realidade como é dada: “Ela é em si mesma um datum ou antes o datum supremo para toda teoria da realidade e do conhecimento. Toda teoria filosófica que não dá conta disso deve ser necessáriamente errônea em seus fundamentos.”20 Outro efeito dessa falha é a tendência originada no pensamento grego e transmitida à teologia cristã de conceber o homem como um composto de alma racional e corpo material. Assim em Aristóteles a atividade teórica do pensamento, capaz deformar conceitos lógicos, deveria ser totalmente independente do corpo material. Isso é a hipostatização da função lógica do ego, hipostatização essa um resultado de se tratar a estrutura intencional da relação gegestand como uma estrutura ôntica. Assim temos mais tarde Descartes dizendo: “Penso, logo existo”, definindo assim o ego central existente como um centro racional puro e incorpóreo. Conclusão 18 “As funções objetivas pertencem às coisas em si mesmas na relação com possíveis funções subjetivas que as coisas não possuem nos aspectos da realidade envolvidos.” Ibid, p. 42. 19 “Assim, em aliança com a moderna ciência natural e a teoria fisiológica das ‘energias específicas dos sentidos’ a moderna epistemologia assume a tarefa de refutar esse ‘realismo ingênuo’!” Ibid, p. 43. 20 Dooyeweerd, “Transcendental Problems”, p. 35, 36. 24 A formulação mais extensa do primeiro problema transcendental feita por Dooyeweerd é esta: “O que, na atitude antitética de pensamento teórico, nós abstraímos das estruturas da realidade empírica como nos são dadas na experiência ingênua? E como é essa abstração possível?”21 Ou seja, o que buscamos é definir a relação gegenstand e estabelecer seu verdadeiro relacionamento com a experiência ordinária. A resposta a essa pergunta é que na atitude teórica isolamos um aspecto específico da experiência e o confrontamos com o aspecto lógico, de tal forma que essa estrutura intencional surge da abstração teórica de uma dimensão da experiência. Evidentemente, assim, o produto intencional do pensamento teórico não pode conter a realidade e não corresponde aos objetos reais; as estruturas da realidade empírica não são integralmente transmitidas a nós na abstração, mas apenas um dos strata dessa estrutura. Ao mesmo tempo, o produto intencional da atividade teórica nunca é absolutamente isolado das estruturas da realidade empírica, pois seu sentido é dado pela totalidade do real; assim o strata abstraído nunca é transmitido a nós na abstração independentemente das estruturas da realidade empírica. 3. O Segundo Problema Transcendental Básico: O Ponto de Partida da Síntese Teórica A colocação do problema da “Relação Gegenstand”, isto é, da antítese entre o aspecto lógico e os outros aspectos da experiência não soluciona o problema do pensamento teórico, pois o processo de conceptualização só se completa quando é alcançada uma síntese entre os pólos lógico e não-lógico da relação gegenstand. Surge daí um segundo problema transcendental que foi assim formulado por Dooyeweerd: “A partir de qual ponto de referência nós podemos reunir sinteticamente os aspectos lógico e não-lógico da experiência que foram colocados em oposição um ao outro na antítese teórica?”22 A Necessidade da Unidade Radical entre o Lógico e o Não-Lógico para a Síntese Teórica Um pouco de atenção ao problema nos fará perceber que não é possível encontrar esse ponto de referência em um dos dois pólos da antítese. O que o ego pensante busca na relação gegenstand é conceptualizar uma realidade não-lógica. O problema é como podemos saber se o conceito teórico produzido após essa conceptualização é uma imagem lógica adequada daquela realidade não-lógica. Ora, se essas duas dimensões são essencialmente distintas, isto é, se a conceptualização é realizada justamente porque há a função lógica e uma função oposta cuja característica essencial é ser não-lógica, então elas permanecem mutuamente insolúveis, como água e óleo.23 Na verdade, não pode haver esperança de que uma explicação lógica de uma realidade não-lógica seja verdadeira, a não ser que exista uma unidade profunda entre o lógico e o não-lógico. Essa unidade seria algo mais do que lógico. Isso pode ser ilustrado com uma experiência comum que todos conhecemos: a linguagem. Podemos dizer que 21 Dooyeweerd, NCTT, I, p. 41. 22 Ibid, p. 45. 23 “Pois uma coisa é certa: a relação antitética, com a qual a atitude teórica de pensamento fica de pé ou cai, não oferece em si mesma nenhuma ponte entre o aspecto do pensamento lógico e seu “Gegenstand” não lógico”. Ibid, p. 45. 25 “José ficou muito irado repentinamente”. Ou podemos usar uma metáfora e dizer que “José sofreu uma explosão de ira”. É claro que José não “explodiu” literalmente. Estamos usando uma metáfora física para descrever um processo psíquico. Mas como isso é possível? Não é porque seja possível demonstrar uma conexão etimológica entre “explosão” e “ira repentina”. A metáfora funciona porque sentimos que há uma semelhança entre uma explosão e uma ira violenta e repentina. Essa semelhança, que fundamenta o uso linguístico da metáfora é de natureza pré-linguística. Porque sentimos a semelhança, criamos a metáfora. Outro exemplo nessa linha é o da tradução. Para traduzir uma sentença de outra língua para a nossa, precisamos de algo em comum entre as duas línguas. Por exemplo, se vamos traduzir a frase “I need water”, precisamos encontrar uma expressão de sentido equivalente no português. A expressão “Eu preciso de água” preenche as condições. Mas é interessante notar que não há conexão linguística clara entre essas duas frases; não só as palavras tem raízes diferentes, como a sintaxe das orações é diferente. Mas de algum modo, as duas línguas/culturas desenvolveram estruturas linguísticas para expressar uma realidade comum de base biológica que todos os seres humanos compartilham: a necessidade de água. Assim a unidade mais profunda da experiência humana torna possível um intercâmbio entre linguagens estruturalmente diferentes. O que buscamos expressar por meio dessas pobres analogias é que para formularmos um conceito lógico sobre uma coisa que em sua essência é estranha à lógica – daí o nosso desejo de conceptualizá-la – precisamos sentir que o lógico e não-lógico são coerentes de algum modo. Essa coerência não pode ser lógica porque se assim fosse, o aspecto que está sendo conceptualizado não seria realmente não-lógico! Nesse caso não haveria qualquer antítese teórica e a atitude ordinária do pensamento nos daria conceitos lógicos espontâneos de todos os aspectos da experiência. Não haveria qualquer diferença entre o pensamento teórico-científico e o pensamento ordinário. Se isso fosse verdade, porque a necessidade de “conceptualizar” como atividade intencional? Do fato de que a atitude teórica é intencional e antitética, fica óbvio que a síntese que finalmente nos fornece um conceito lógico sobre a realidade não-lógica deve relacionar esses dois aspectos a uma unidade radical, mais profunda do que ambos; nessa unidade radical estaria a coerência entre os dois aspectos, e percebendo essa coerência profunda é que somos capazes de formular conceitos lógicos sobre a realidade não-lógica que façam justiça a essa realidade. O Impasse do Pensamento Imanentista e a Fonte das Antinomias Teóricas A impossibilidade de se proceder a uma síntese teórica sem pressupôr uma visão da unidade profunda entre os diversos aspectos da experiência é a causa de uma distorção fundamental dentro do pensamento imanentista: os diversos “ismos” na interpretação da realidade. Sempre que o pensamento busca a totalidade do sentido cósmico – a “unidade profunda do sentido” de que falamos há pouco – dentro do próprio cosmo, inevitavelmente absolutizará uma das dimensões de sua experiência temporal que foi abstraída teoreticamente. Assim o ponto de partida teórico para a conceptualização das diversas esferas da experiência fica sendo uma conceptualização específica que foi absolutizada e tratada como a totalidade do sentido. 26 Vários exemplos disso poderiam ser apontados. Por exemplo, na matemática: como devemos compreender a relação entre a lógica, o número, o espaço, a sensação
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