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“OU VOCÊS MUDAM OU ACABAM”: TEATRO E CENSURA NA DITADURA MILITAR (1964-1985) Miliandre Garcia Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós- graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Orientador: Carlos Fico Rio de Janeiro 2008 Livros Grátis http://www.livrosgratis.com.br Milhares de livros grátis para download. II “ OU VOCÊS MUDAM OU ACABAM”: TEATRO E CENSURA NA DITADURA MILITAR (1964-1985) Miliandre Garcia Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro como parte dos requisitos necessários à obtenção do título de Doutor em História Social. Aprovada por: __________________________________ Prof. Dr. Carlos Fico (Orientador) __________________________________ Prof. Dr. Marcos Napolitano __________________________________ Prof. Dra. Maria Celina D’Araujo __________________________________ Prof. Dra. Maria Paula Nascimento Araujo __________________________________ Prof. Dra. Rosângela Patriota III GARCIA, Miliandre. “Ou vocês mudam ou acabam”: teatro e censura na ditadura militar (1964-1985)/ Miliandre Garcia. – Rio de Janeiro: UFRJ/IFCS, 2008. xi, 420 f.: 1v. Orientador: Carlos Fico. Tese (doutorado) – UFRJ/ IFCS/ Programa de Pós-graduação em História Social, 2008. Referências Bibliográficas: f. 308-344. 1. Teatro 2. Censura de diversões públicas. 3. Ditadura militar. I. Fico, Carlos. II. Universidade Federal do Rio de Janeiro, Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Programa de Pós-graduação em História Social. III. Título. IV “OU VOCÊS MUDAM OU ACABAM”: TEATRO E CENSURA NA DITADURA MILITAR (1964-1985) Miliandre Garcia Orientador: Carlos Fico RESUMO É comum associarmos a existência da censura tão somente ao Estado Novo e à ditadura militar. Porém, a censura no Brasil é um fenômeno antigo, com atuações diversificadas. A censura teatral foi instituída no século XIX com a fundação do Conservatório Dramático Brasileiro. Desde então, os governos brasileiros não só incorporaram a censura de peças teatrais como também submeteram outras manifestações artístico-culturais à obrigatoriedade da censura prévia. O auge desse processo ocorreu na década de 1940 com a criação do Serviço de Censura de Diversões Públicas. Até a década de 1960, a censura de diversões públicas era responsabilidade dos estados, regia-se por legislação ostensiva e atuava na esfera da moral como “guardiã” da sociedade. Com o golpe militar, a atividade censória passou por um processo de re-significação que consolidou a centralização do órgão em Brasília e a prática da censura política. Ao papel de mantenedora dos princípios éticos e dos valores morais, motivos alegados na criação do órgão na década de 1940, agregou-se a preocupação com a manutenção da ordem política e da segurança nacional, justificativas incorporadas na reestruturação da censura nas décadas de 1960, 1970 e 1980. Investigar como se deu o processo de politização da censura de costumes, em especial da censura de teatro e o relacionamento do setor com o governo, é um dos principais objetivos desta tese de doutorado. Palavras-chave: teatro, censura, ditadura. ABSTRACT It’s common the association of existence of the censorship to the Estado Novo and at the military dictatorship. However, the censorship in Brazil is an old phenomenon, with diversified characteristics. The censorship on theatre was instituted in the XIX century with the foundation of the Conservatório Dramático Brasileiro. Since then, the brazilians governments had not only incorporated the censorship of theatricals scenes as submitted other artistic-cultural manifestations to the obligatoriness of the previous censorship. The top of this process occurred in 1940’s with the creation of the Serviço de Censura de Diversões Públicas. Until 1960’s, the censorship of public entertainment was responsibility of the states, was conducted for ostensive legislation and operated in the moral sphere as “guardian” of the society. With the military stroke, the censorship activity passed for a process of change of signification that consolidated the centralization of the agency in Brasilia and as well the practical of the censorship the politics. To the paper of maintenance of the ethical principles and the moral values, reasons alleged in the creation of the agency in the decade of 1940, it was added the preoccupation with the maintenance of the political order and the national security, justifications incorporated in the reorganization of the censorship in 1960’s, 1970’s and 1980’s. To investigate this process of politicalization of the censorship of customs, in special of the theatrical censorship and the relationship of this sector with the government, is one of the principal objectives of this research. Key-works: theater, censorship, dictatorship. V SUMÁRIO AGRADECIMENTOS ........................................................................................................................................ IX INTRODUÇÃO ................................................................................................................................................... 12 PARTE 1: GENEALOGIA DA CENSURA NO BRASIL ............................................................................... 24 1.1. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CENSURA E A SEPARAÇÃO DAS DUAS CENSURAS ....................... 25 1.2. O PROCESSO DE CENTRALIZAÇÃO ADMINISTRATIVA E A ASCENSÃO DA CENSURA POLÍTICA39 1.3. AS CONTRADIÇÕES DE GAMA E SILVA NA ESFERA DA CENSURA DE COSTUMES ...................... 56 1.4. A(S) CENSURA(S) SOB CONTROLE ....................................................................................................... 78 PARTE 2: TEATRO E DITADURA ................................................................................................................. 94 2.1. PRODUÇÃO TEATRAL E DITADURA MILITAR .................................................................................... 95 2.1.1. A afirmação do engajamento artístico: o Teatro de Arena de São Paulo ........................................... 99 2.1.2. A construção da resistência cultural: o Grupo Opinião .................................................................... 119 2.1.3. Na contramão da produção teatral: o Teatro Oficina ....................................................................... 127 2.2. A CONSTRUÇÃO DA UNIDADE TEATRAL E OS ATOS DE RESISTÊNCIA CULTURAL .................. 146 2.2.1. É hora dos intelectuais deixarem de ser um bloco difuso: ensaio geral ........................................... 146 2.2.2. Contra a censura, pela cultura: a greve dos teatros .......................................................................... 163 2.2.3. A luta agora é na Justiça: o caso Calabar ........................................................................................ 180 PARTE 3: A CENSURA NA ABERTURA ..................................................................................................... 189 3.1. A DESCENTRALIZAÇÃO DA CENSURA TEATRAL E A PERMANÊNCIA DA CENSURA POLÍTICA 190 3.2. A REFORMA CENSÓRIA DE PETRÔNIO PORTELLA ......................................................................... 201 3.3. A INSTRUMENTALIZAÇÃO POLÍTICA DOS SEMINÁRIOS DE CENSURA (1980-1981) ................... 206 3.4. A CONTINUIDADE DAS DIRETRIZES CENSÓRIAS NO CONTEXTO DE ABERTURA POLÍTICA (1981-1985) .................................................................................................................................................... 227 PARTE 4: NOS BASTIDORES DA CENSURA ............................................................................................236 4.1. “A SUPERCENSURA”: A CONSTRUÇÃO DO POLÍTICO NO TEATRO BRASILEIRO ...................... 237 4.2. CENSURA POLÍTICA E PRODUÇÃO TEATRAL .................................................................................. 258 4.2.1. Aspectos gerais da censura teatral .................................................................................................... 258 4.2.2. Proibição de peças com temática política ........................................................................................ 264 4.2.3. Meios de expansão das “ideologias alienígenas” ............................................................................. 282 4.2.4. As políticas de censura no contexto da abertura .............................................................................. 296 CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................................................ 305 FONTES E BIBLIOGRAFIA .......................................................................................................................... 309 FONTES ......................................................................................................................................................... 309 BIBLIOGRAFIA .............................................................................................................................................. 335 ANEXOS ............................................................................................................................................................ 346 VI LISTA DE ABREVIATURAS DCDP/AG/CO/IS Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Administração Geral / Série Correspondência Oficial / Subsérie Informações Sigilosas DCDP/AG/CO/MS Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Administração Geral / Série Correspondência Oficial / Subsérie Manifestações da Sociedade Civil DCDP/AG/CO/OC Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Administração Geral / Série Correspondência Oficial / Subsérie Ofícios de Comunicação ou Solicitação DCDP/AG/CO/OS Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Administração Geral / Série Correspondência Oficial / Subsérie Ofícios de Solicitação DCDP/AG/RA Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Administração Geral / Série Relatórios de Atividades DCDP/CP/TE/PT Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Censura Prévia / Série Teatro / Subsérie Peças Teatrais DCDP/OR/NO Fundo Divisão de Censura de Diversões Públicas / Seção Orientação / Série Normatização SCDP/SR Fundo Serviço de Censura de Diversões Públicas / Superintendência Regional SCDP/SR/RJ/CP/PT Fundo Serviço de Censura de Diversões Públicas / Rio de Janeiro / Série Censura Prévia / Subsérie Peças teatrais VII LISTA DE ANEXOS Filmes e peças examinados pelo Departamento Federal de Segurança Pública (1942- 1960) ................................................................................................................................. 346 Organograma da DCDP .................................................................................................... 347 Lista de peças proibidas pela Censura Federal (1965-1987) ............................................ 348 Lista de portarias expedidas pela Censura Federal (1964-1988) ...................................... 364 Gráficos do Fundo da Divisão de Censura de Diversões Públicas, Seção Administração Geral, Série Correspondência Oficial, Subséries Ofícios de Comunicação, Ofícios de Solicitação, Informações Sigilosas e Manifestações da Sociedade Civil ......................... 416 VIII DEDICATÓRIA Dedico este trabalho a Rodrigo Czajka, responsável pelo sorriso espontâneo e pelos anos felizes. À minha mãe, Marlene Curti, exemplo mulher que sabe melhor do ninguém conduzir o próprio destino. Ao meu pai, Maximiano Garcia de Souza Neto, pelos bons momentos. Aos professores Claudiomar dos Reis Gonçalves e Maria Dulce Alho Gotti, pelos primeiros ensinamentos. IX AGRADECIMENTOS O desenvolvimento de uma tese de doutorado caracteriza-se pela parceria com inúmeras pessoas/instituições que apostaram na viabilidade do projeto, na pertinência do tema e na concretização da pesquisa. O agradecimento público, porém, não almeja partilhar responsabilidades, mas ressaltar o amparo das instituições de fomento à pesquisa, a importância dos profissionais do setor de informação, o diálogo com pesquisadores da área de Humanas, a generosidade dos artistas, o incentivo dos familiares e o apoio dos amigos. No texto abaixo, agradeço a contribuição individual daqueles que acompanharam o processo de desenvolvimento da tese de doutorado. Primeiramente, agradeço ao professor Carlos Fico que aceitou a orientação do trabalho, proporcionou plena liberdade ao desenvolvimento da pesquisa e realizou uma leitura minuciosa dos textos produzidos. Além disso, sua produção sobre ditadura militar e sua preocupação com a clareza do texto contribuíram para a finalização desta tese de doutorado. Em seguida, agradeço aos professores Maria Paula Nascimento Araujo, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Marcos Napolitano, da Universidade de São Paulo, que participaram do exame de qualificação e contribuíram com valiosas sugestões, agora incorporadas ao trabalho final. Marcos Napolitano não só encaminhou-me à problemática da cultura como também estimula pesquisas futuras. A ele sou sempre grata. Também gostaria de antecipar os agradecimentos às professoras Maria Celina D’Araujo, do Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil, e Rosângela Patriota, da Universidade Federal de Uberlândia, que aceitaram o convite para participar da banca examinadora da tese de doutorado. Não poderia deixar de mencionar os professores do Programa de Pós-graduação em História Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro com os quais tive contato. Marieta de Moraes Ferreira realizou reflexões importantes sobre o papel da história política na historiografia contemporânea. Marcos Bretas, além de proporcionar discussões sobre o papel da polícia, apresentou-me artigos sobre censura e teatro e indicou-me o acervo da Fundação Nacional de Arte (Funarte). Professores de outras instituições também colaboraram para a construção da tese. O professor Marcelo Ridenti, do Programa de Pós-graduação em Sociologia da Universidade Estadual de Campinas, não só leu os esboços do projeto com também cedeu as entrevistas realizadas para a sua pesquisa de livre docência. As professoras Maria Ligia Coelho Prado e Maria Aparecida de Aquino, do Programa de Pós-graduação em História Social da X Universidade de São Paulo, aceitaram a matrícula como aluno especial e estimularam novos olhares sobre o objeto de pesquisa. No desenvolvimento da pesquisa recebi a notificação do falecimento de dois professores do Departamento de História da Universidade Estadual de Londrina. Claudiomar dos Reis Gonçalves e Maria Dulce Alho Gotti não só demonstraram paixão pelo ofício de historiador como estimularam o interesse pela pesquisa histórica. Com eles aprendi muito e deixo aqui registrados meus agradecimentos. No levantamento das fontes duas pessoas tornaram-se imprescindíveis ao desenvolvimento do trabalho: Carlos Marx Gomide Freitas, da Superintendência Regional do Arquivo Nacional, e Márcia Cláudia Figueiredo, do Centro de Documentação da Funarte, prestam grande serviço à história e cultura nacionais. O profissionalismo de ambos é digno de admiração e respeito. Agradeço também aos queridos colegas Isabel, Mário e Elaine e aos demais funcionários do Arquivo Edgar Leuenroth da Universidade Estadual de Campinas que auxiliaram minhas pesquisas sobre a revista Cultura, do ConselhoFederal de Cultura. Agradeço à extrema generosidade de Cecília Thompson, protagonista da história do Teatro de Arena, e ao trabalho de difusão de Bernardo Schmidt, entusiasta da produção teatral brasileira. Ambos proporcionaram o contato com gravações inéditas dos ensaios do Teatro de Arena e das peças de Gianfrancesco Guarnieri. Entre artistas e intelectuais, agradeço a gentileza de Augusto Boal, Carlos Estevam Martins, César Vieira, Chico de Assis, José Celso Martinez Corrêa, Luiz Carlos Maciel e Ruth Escobar que concederam autorização para consulta de documentos sigilosos em arquivo militar. Com as queridas amigas Maika Lois Carocha e Adrianna Cristina Lopes Setemy compartilhei experiências em comum e troquei valiosas indicações. Quando eu não sabia como encontrar uma relação de leis sobre censura, Maika resolveu meu problema com uma solução simples: indicou-me o portal do Senado Federal. Adrianna deixou minhas pesquisas no arquivo e minha estadia em Brasília mais coloridas, além de auxiliar-me nas questões burocráticas. João Carlos de Freitas destinou-me a “bíblia” dos censores e solucionou algumas dúvidas sobre a tramitação das leis. Obrigada pela assessoria e, sobretudo, pela amizade. Agradeço também aos integrantes do Grupo de Estudos sobre a Ditadura com os quais mantive contato por curto período. Em especial, William de Souza Nunes Martins. Agradeço aos amigos Givaldo Alves da Silva e Ligia Maria Fogagnollo pela amizade incondicional, Mariana Martins Villaça pela presença carinhosa, Renata Cerqueira Barbosa XI pela garra motivadora, Maria Clara Wasserman pela hospedagem carioca em momento difícil e Mariana Mont’Alverne Barreto Lima, Thiago Rodrigues, Makarios Maia Barbosa, Sergio Lizias e Francisca Caetano Rousselot pela inesquecível experiência em território estrangeiro. Por último, destaco a importância do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) cujo investimento de três anos de bolsa de doutorado propiciou o levantamento das fontes documentais, a aquisição de material de trabalho e a conclusão da tese de doutorado. Sem este apoio institucional uma série de atividades teria sido colocada em segundo plano. 12 INTRODUÇÃO Devido à proximidade histórica e às construções da memória, é comum associarmos a existência da censura tão somente ao Estado Novo e à ditadura militar. Porém, o fenômeno da censura no Brasil apresenta uma longa e sinuosa trajetória cuja complexidade abarca desde a época colonial com o controle da Igreja Católica e a instauração de processos inquisitoriais, passando pelo período imperial com a chegada da corte portuguesa e a presença dos censores régios, até chegar ao período republicano com a criação de órgãos especializados e o auxílio de membros da sociedade. A prática da censura no Brasil, embora seja um fenômeno de longa duração, não apresentou nenhum padrão de funcionamento, exceto pelo fato dos governantes valerem-se de mecanismos de controle para impedir a circulação de informações que julgaram contrárias aos seus interesses. Desde que o governo de d. João VI assumiu as atividades censórias no início do século XIX, livros e jornais foram os principais prejudicados. Com a criação do Conservatório Dramático Brasileiro (CDB), na década de 1830, a censura oficial inaugurou o exame prévio de peças teatrais. A partir da criação do CDB, o Estado brasileiro não só expandiu a censura prévia para as diversões públicas como também submeteu o exercício censório a organismos policiais. Desde então, a censura teatral foi tratada como caso de polícia, com exceção do Estado Novo que conferiu tratamento especial às atividades censórias, dividindo-as em setores estratégicos e tirando-a das atribuições policiais. Na ditadura varguista, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) centralizava as funções da censura e assumia o monopólio da informação. Com a deposição do presidente Getúlio Vargas, o novo governo realizou modificações administrativas no campo da censura sem, contudo, apresentar rupturas drásticas na dinâmica do setor. O sucessor presidencial José Linhares, de um lado, extinguiu a censura de radiodifusão e a censura da imprensa e criou um organismo próprio para realizar a censura de diversões públicas e, de outro, restituiu a “tradição policialisca” da censura de costumes e apresentou uma continuidade com a censura do governo anterior. O Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP) foi criado em 1945 e a censura prévia de letras musicais, filmes, peças teatrais, programas de rádio e televisão era realizada pelos setores estaduais até a década de 1960 quando a União assumiu o controle das diversões públicas e transferiu a sede da censura para Brasília. Com a centralização da censura na capital federal, apenas alguns serviços ficaram sob responsabilidade dos órgãos estaduais, as 13 chamadas Turmas de Censura de Diversões Públicas (TCDPs), a exemplo do exame das letras musicais, do material publicitário e dos ensaios das peças. Em 1972, o SCDP transformou-se em Divisão de Censura de Diversões Públicas (DCDP) e as TCDPs dos estados transformaram-se em Serviços de Censura de Diversões Públicas (SCDPs). Em meados da década de 1970, a censura teatral sofreu um movimento inverso à centralização do organismo. Em 1975, a DCDP devolveu o exame prévio de peças teatrais para os órgãos de São Paulo e Rio de Janeiro e, em 1978, para as censuras estaduais com mais de três técnicos de censura. Da data da sua criação, em 1945, até o ano de sua extinção, em 1988, a censura de diversões públicas respondeu aos imperativos políticos dos governantes e transitou de uma ação mais rigorosa e centralizada desde 1967/68, passando por uma fase de instabilidade no final da década de 1970 até transformar-se numa atividade burocrática e inexpressiva no fim da ditadura. Até recentemente, poucos trabalhos concentraram-se na análise da censura de diversões públicas. Nos últimos anos, a produção acadêmica voltou-se para a sua investigação. Entre os trabalhos que se debruçaram sobre o estudo pormenorizado da censura de diversões públicas podemos citar dois ensaios,1 um livro,2 uma monografia3 e um artigo4 sobre censura de peças teatrais; um livro5 e uma tese6 sobre censura de filmes; três dissertações7 e uma monografia8 sobre censura de letras musicais; uma crônica9 e duas 1 MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Avenir, 1979; PACHECO, Tania. A ação da censura no período 65-78. Arte em Revista, São Paulo, a. 3, n. 6, p. 92-96, out. 1981. 2 KHÉDE, Sonia Salomão. Censores de pincenê e gravata: dois movimentos da censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Codecri, 1981. 3 CRUZ, Mônica de Souza Alves da Cruz. O processo de censura à peça teatral Calabar. Rio de Janeiro, 2002. Monografia (Graduação em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 4 ALENCAR, Sandra Siebra. A censura versus o teatro de Chico Buarque de Hollanda, 1968-1978. Acervo, Rio de Janeiro, v. 15, n. 2, p. 101-114, jul./dez. 2002. 5 SIMÕES, Inimá. Roteiro da intolerância: a censura cinematográfica no Brasil. São Paulo: Senac São Paulo, 1999. 6 PINTO, Leonor Estela Souza. Le cinema bresilien au risque de la censure pendant la dictature militaire de 1964 a 1985. Thése de doctorat. Université de Toulouse – Le Miral. Ecole Supérieure d Audiovisuel, 2001. 7 MOBY, Alberto. Sinal Fechado: a música popular brasileira sob censura. Rio de Janeiro: Obra Aberta, 1994, ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não: música popular cafona e ditadura militar. Rio de Janeiro: Record, 2002 e CAROCHA, Maika. Lois. Pelos versos das canções: um estudo sobre o funcionamento da censura musical durante a ditadura militar brasileira (1964-1985. Rio de Janeiro, 2007. Dissertação(Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 8 CAROCHA, Maika. Lois. “Seu medo é o meu sucesso”: Rita Lee, Raul Seixas e a censura musical durante a ditadura militar brasileira. Rio de Janeiro, 2005. Monografia (Graduação em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 9 SILVA, Deonísio da. Nos bastidores da censura: sexualidade, literatura e repressão pós-64. São Paulo, Estação Liberdade, 1989. 14 dissertações sobre a censura de livros e revistas;1 uma monografia sobre a censura aos programas de televisão, em especial as telenovelas.2 Não conhecemos, até o momento, nenhum trabalho sobre a censura de programas de rádio. No que tange às instâncias censórias no regime militar, integrando censura de diversões públicas e censura da imprensa, temos um artigo3 e uma tese;4 sobre a dinâmica da atividade da censura temos duas dissertações,5 uma tese6 e dois artigos.7 Além disso, existe um livro de memórias8 e trabalhos realizados pelos próprios censores como uma coletânea de leis,9 um livro10 e uma tese de doutorado.11 No campo da censura de diversões públicas, alguns fatores explicam a escassez de trabalhos até a década de 1990 e o interesse emergente no início do século XXI. Em primeiro lugar, a abertura de arquivos públicos favoreceu a consulta às fontes documentais da censura de diversões públicas e a autorização individual de protagonistas da vida cultural brasileira permitiu o acesso a acervos pessoais. No âmbito das instituições públicas evidenciamos a abertura do fundo da DCDP a partir de 1996 e a organização do Arquivo Miroel Silveira em andamento. Na esfera da iniciativa privada, com apoio de instituições públicas, destacamos a reunião de acervos diversificados nos portais “50 anos de 1 MARCELINO, Douglas Attila. Salvando a pátria da pornografia e da subversão: a censura de livros e diversões públicas nos anos 1970. Rio de Janeiro, 2006. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro e SETEMY, Adrianna Cristina Lopes. “Em defesa da moral e dos bons costumes”: revolução dos costumes e a censura de periódicos no regime militar. (1964-1985). Rio de Janeiro, 2008. Dissertação (Mestrado em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 2 MARCELINO, Douglas Attila. Para além da moral e dos bons costumes: a censura televisiva no regime militar. Rio de Janeiro, 2004. Monografia (Graduação em História) – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, Universidade Federal do Rio de Janeiro. 3 SOARES, Gláucio Ary Dillon. A censura durante o regime autoritário. Revista Brasileira de Ciências Sociais, São Paulo, v. 4, n. 10, p. 21-43, jun. 1989. 4 KUSHNIR, Beatriz. Cães de guarda: jornalistas e censores, do AI-5 à Constituição de 1988. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004. 5 STEPHANOU, Alexandre Ayub. Censura no regime militar e militarização das artes. Porto Alegre, EDIPUCRS, 2001 e BERG, Creuza de Oliveira. Mecanismos do silêncio: expressões artísticas e censura no regime militar (1964-1984). São Carlos: EdUFSCar, 2002. 6 STEPHANOU, Alexandre Ayub. O procedimento racional e técnico da censura federal brasileira como órgão público: um processo de modernização burocrática e seus impedimentos (1964-1988). Rio Grande do Sul, 2005. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. 7 FICO, Carlos. “Prezada Censura”: cartas ao regime militar. Topoi, Rio de Janeiro, n. 5, p. 251-286, set. 2002 e FICO, Carlos. A pluralidade das censuras e das propagandas da ditadura. In 1964-2004: 40 anos do golpe: ditadura militar e resistência no Brasil. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004. p. 71-79. 8 ALBIN, Ricardo Cravo. Driblando a censura: de como o cutelo vil incidiu na cultura. Rio de Janeiro: Gryphus, 2002. 9 Mais conhecido como “bíblia” dos censores. In: RODRIGUES, Carlos; MONTEIRO, Vicente; GARCIA, Wilson de Queiróz. Censura federal. Brasília: C.R. Editôra Ltda., 1971. 10 FAGUNDES, Coriolano de Loyola Cabral. Censura & liberdade de expressão. São Paulo: Edital, 1974. 11 FERES, Sheila Maria. A censura, o censurável, o censurado. São Paulo, 1980. Tese (Doutorado em Ciência Política) – Fundação Escola de Sociologia e Política, Universidade de São Paulo. No início de 1981, a autora apresentou um resumo dessa tese num seminário sobre censura. In: FERES, Sheila Maria. A censura, o censurável e o censurado. Palestra proferida no Seminário Nacional sobre a Censura de Diversões Públicas. Brasília, 11 a 13 de maio de 1981. 15 Teatro de Arena”, “Grupo de Estudos sobre a Ditadura”, “Memória da Censura no Cinema Brasileiro” e “Censura Musical”. Em segundo lugar, as pesquisas sobre censura trataram de questões amplas1 ou privilegiaram a censura da imprensa.2 Na ditadura militar, o governo brasileiro só assumiu a presença dos censores nas redações dos jornais na década de 1970 quando o jornal Opinião contestou a legalidade da censura em instância jurídica. Na justificativa institucional, a incidência da censura sobre os jornais impressos integrava as táticas de combate à “guerra revolucionária” em curso no país. Até então, a orientação da censura exercia-se através de telefonemas e “bilhetinhos” para as redações dos jornais.3 Noutras palavras, a censura política aos jornais impressos não tinha amparo legal, era feita com discrição e justificava-se como “medida revolucionária”. A natureza política da censura da imprensa, as especificidades do fenômeno na ditadura militar e o espaço privilegiado de resistência cultural não só desviaram a atenção da censura de diversões públicas como também desencadearam equívocos importantes como a identificação direta entre ramificações distintas da prática censória ou a transposição de categorias analíticas da censura da imprensa para a censura de costumes. Por último, a emergência de novas questões4 e a renovação da história política5 influenciaram a produção historiográfica nacional e, conseqüentemente, a análise do passado 1 A exemplo da importante coletânea de artigos organizada por Maria Luiza Tucci Carneiro e do trabalho de organização do acervo Miroel Silveira coordenado por Cristina Costa. Ver, respectivamente, CARNEIRO, Maria Luiza Tucci (org.) Minorias silenciadas: a história da censura no Brasil. São Paulo: EDUSP: Imprensa Oficial do Estado: FAPESP, 2002 e COSTA, Cristina. Censura em cena: teatro e censura no Brasil. São Paulo: Edusp, Fapesp, Imprensa Oficial, 2006. 2 A seguir, relação de trabalhos que se dedicaram a analisar as particularidades da censura da imprensa no regime militar: MARCONI, Paolo. A censura política na imprensa brasileira (1968-1978). 2. ed. São Paulo: Global, 1980, KUCINSKI, Bernardo. Jornalistas e revolucionários nos tempos da imprensa alternativa. São Paulo: Scritta, 1991, AQUINO, Maria Aparecida de. Censura, imprensa e Estado autoritário (1968-1978): o exercício cotidiano da dominação e da resistência: o Estado de São Paulo e Movimento. Bauru: EDUSC, 1999, SMITH, Anne-Marie. Um acordo forçado: o consentimento da imprensa à censura no Brasil. Rio de Janeiro: FGV, 2000 e KUSHNIR, Op. cit. 3 A propósito, consultar SMITH, Op. cit., p. 130-132. 4 Consultar a trilogia LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (dir.). História: novas abordagens. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988, LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (dir.). História: novos objetos. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988 e LE GOFF, Jacques; NORA, Pierre (dir.). História: novos problemas. Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1988. 5 RÉMOND, René. Por que a história política? Estudos históricos, Rio de Janeiro, v. 7, n. 13, p. 7-19, 1994 e RÉMOND, René (org.). Por uma história política. Rio de Janeiro: UFRJ, 1996. 16 recente.No universo da ditadura militar emergiram trabalhos sobre imaginários sociais,1 representações políticas,2 relações de poder3 e poder simbólico.4 As pesquisas sobre censura no regime militar dispõem de ampla gama documental que vão desde fontes jornalísticas, de natureza ostensiva, até documentos administrativos, de caráter sigiloso. Entre as fontes disponíveis priorizamos os acervos documentais que evidenciaram a estrutura administrativa do organismo censório e a dinâmica interna da censura teatral. No primeiro caso destacam-se correspondências oficiais, relatórios de atividades e legislação censória. No segundo caso relacionam-se processos de censura e artigos de jornais. A documentação administrativa pode ser consultada no fundo da DCDP5 em Brasília, a legislação censória no portal do Senado Federal e no livro Censura Federal6 e os artigos de jornais no acervo da Funarte no Rio de Janeiro. Essa documentação integrada evidencia não apenas a rotina administrativa do órgão censório como também os critérios de interdição das peças teatrais. No desenvolvimento do trabalho, a pesquisa documental apresentou várias etapas. A primeira etapa do trabalho concentrou-se nas visitas aos arquivos públicos e centros de documentação, no reconhecimento das fontes documentais e no levantamento dos processos de censura. No Arquivo Nacional, no Rio de Janeiro, consultamos o acervo do Serviço de Censura de Diversões Públicas e reproduzimos 24 processos de censura. Na Coordenadoria Regional do Arquivo Nacional no Distrito Federal identificamos as peças teatrais que sofreram proibição no período entre 1962 e 1988 e reproduzimos 304 processos de censura. A segunda etapa da pesquisa concentrou-se na elaboração do roteiro de análise, na definição de 1 BACZKO, Bronislaw. Imaginação social. Tradução por Manuel Villaverde Cabral. In: ROMANO, Ruggiero (dir.). Enciclopédia Einaudi, v. 5, Antrophos – Homem. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1985. p. 296-332. 2 CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos avançados, São Paulo, v. 5, n. 11, p. 173-191, 1991 e CAPELATO, Maria Helena Rolim; DUTRA, Eliana Regina de Freitas. Representação política: o reconhecimento de um conceito na historiografia brasileira. In: CARDOSO, Ciro Flamarion; MALERBA, Jurandir (org.) Representações: contribuição a um debate transdisciplinar. Campinas: Papirus, 2000. 3 FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução por Roberto Machado. Rio de Janeiro, Edições Graal, 1979, ANSART, Pierre. Ideologias, conflitos e poder. Rio de Janeiro: Zahar, 1978 e FALCON, Francisco. História e poder. In: CARDOSO, Ciro Flamarion (org.). Os métodos da História : introdução aos problemas, métodos e técnicas da história demográfica, econômica e social. Rio de Janeiro: Graal, 2002. p. 61-89. 4 BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Tradução por Fernando Tomaz. 3. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2000. 5 Sobre a organização do fundo da DCDP, consultar OLIVEIRA, Eliane Braga de; RESENDE, Maria Esperança de. A censura de diversões públicas no Brasil durante o regime militar. Dimensões, Espírito Santo, v. 12, p. 150- 161, jan./jun. 2001. 6 A organização da legislação pelos técnicos de censura Carlos Rodrigues, Vicente Alencar Monteiro e Wilson de Queiroz Garcia inspirou-se nas seguintes iniciativas: BARRETO FILHO, João Paulo de Mello. Diversões públicas legislação e doutrina: prática administrativa. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco, 1941; BRASIL. Coletânea de todos os decretos e leis sobre censura cinematográfica, cinema nacional, teatro, imprensa, direitos autorais DSP, SCDP. Brasília: Departamento de Imprensa Nacional, 1963. 17 critérios de seleção e no fichamento dos processos de censura. A elaboração do roteiro de análise apresentou quatro partes principais. A primeira seção, “Apresentação”, reuniu informações gerais sobre o processo de censura: título da peça, identificação do autor, pedidos de censura e ano de interdição. A segunda, “Trâmite”, organizou os documentos anexos ao processo de censura por ordem cronológica. A terceira, “Observações Gerais”, reuniu informações adicionais à tramitação censória: anotações esparsas e indicação de cortes. A última, “Exame da Obra”, orientou a análise do material produzido pelos agentes censórios segundo espécie documental (parecer do texto teatral ou relatório do ensaio geral), palavras- chave, resumo do documento, critérios de avaliação segundo parâmetros morais, políticos, culturais, sociais e gerais, conclusão do documento (liberação plena, liberação com restrições ou interdição total) e justificativa jurídica. Como critérios de seleção adotamos as seguintes premissas. Em primeiro lugar, destacamos os autores teatrais com maior visibilidade no meio teatral como Jonas Bloch, Antonio Bivar, Nelson Rodrigues, Augusto Boal, Consuelo de Castro, Dias Gomes, Plínio Marcos, Flávio Rangel, Millôr Fernandes, Carlos Alberto Sofredini, Oduvaldo Vianna Filho, Augusto Boal, Paulo Pontes, Walter Georges Durst, Renata Pallottini, Gianfrancesco Guarnieri, Chico Buarque de Holanda, Ruy Guerra, Mário Chamie, Carlos Henrique Escobar, Mário Lago, Carlos Eduardo Novaes, Antônio Callado, João Ribeiro Chaves Neto e Chico Anísio. Em segundo lugar, selecionamos 10% do material coletado como amostragem aleatória. É oportuno evidenciar que, no início pesquisa, não tínhamos adotado nenhum critério de seleção por amostragem aleatória e, portanto, analisamos todas as peças proibidas, em âmbito nacional, no período de 1965, data da primeira ocorrência, a 1970, quando definimos tais critérios. Por último, consideramos também os casos especiais que não se enquadravam em nenhum dos dois critérios citados acima como, por exemplo, a proibição de textos clássicos, de temas históricos, de assuntos culturais e de autor desconhecido com maior número de peças vetadas. Essa seleção prévia visou destacar as peças teatrais que se constituíram em casos extraordinários no interior da censura e compreender a dinâmica da instituição que atuou de forma multifacetada e sob orientação superior. Na fase de mapeamento do fundo da DCDP encontramos três espécies documentais que forneceram subsídios numéricos para a elaboração de estatísticas que permitissem definir períodos de maior e menor incidência da censura sobre as peças teatrais. A primeira fonte são os relatórios de atividades confeccionados pelos responsáveis pela censura. A segunda é o levantamento de portarias realizado pelos próprios censores. A última é o instrumento de 18 pesquisa do fundo da DCDP elaborado por professores e estagiários do curso de arquivologia da Universidade de Brasília e por funcionários do Arquivo Nacional. Embora as duas primeiras fontes de informação tenham sido produzidas pelos próprios agentes da censura, o instrumento de pesquisa constitui-se no indicativo mais preciso. No período entre 1964 e 1988, as instâncias censórias nacional e regional produziram relatórios de atividades com periodicidade mensal e anual. No setor de teatro, os relatórios de atividades não se constituem em fonte precisa para se estimar a quantidade de peças analisadas e vetadas pela censura. Primeiro porque apresentam lacunas e segundo porque não consideram os períodos de centralização e descentralização da censura teatral. O caráter assistemático da produção de relatórios aliado às mudanças administrativas das instâncias censórias pode gerar alguns equívocos quando tentamos elaborar estatísticas de exame e proibição de peças teatrais. Por exemplo, os relatórios de atividades registraram o maior número de peças teatrais examinadas no ano de 1978 (2.648 textos) e uma queda drástica no ano de 1980 (969 textos) e o maior número de peças teatrais vetadas no ano de 1973 (40 textos) e no de 1977 (cerca de 40 ou 45 textos). A diferença significativa de peças examinadas em 1978 e 1980não significa que a produção teatral caiu em apenas dois anos, mas evidencia uma diminuição de trabalho do órgão central que transferiu a censura teatral para os estados de São Paulo e Rio de Janeiro, em 1975, e para os demais estados com condições adequadas, em 1978. Além dos relatórios de atividades, os técnicos de censura produziram uma lista de portarias emitidas pela censura em Brasília que vai de 1964, quando começou a centralização do órgão, a 1988, quando a censura foi extinta pela Constituição. No campo do teatro, essa lista de portarias oferece parâmetro preciso no período de 1965 a 1969 quando a censura adotava o procedimento de publicar portaria de todas as peças teatrais proibidas. Porém, a sistemática deixou de ser confiável a partir de 1970 quando a censura restringiu a publicação de portarias somente para as peças teatrais vetadas sem direito a um segundo exame. No período de centralização, o trâmite da censura funcionava da seguinte maneira. Na primeira etapa, o produtor do espetáculo protocolava a peça teatral no estado de origem. Na segunda etapa, as censuras regionais enviavam o processo de censura para análise da matriz. Em Brasília, o órgão central analisava a peça teatral. Após análise, os técnicos de censura tinham 3 alternativas: liberar a peça com ou sem classificação de idade, vetar o texto sem direito a novo exame ou embargar a apresentação até que o produtor do espetáculo procedesse às determinações da censura que iam desde a substituição de vocábulo de “baixo 19 calão” até a correção ortográfica do texto teatral. No último caso, o autor do protocolo tinha duas alternativas: primeiro, acatar as imposições da censura, corrigir o script da peça e requerer nova censura ou, então, manter o texto inalterado e desistir da apresentação do espetáculo. Em ambos os casos, adequação do texto ou interrupção do processo, não se expedia portaria de interdição da peça nem se publicava os motivos no Diário Oficial da União. Sendo assim, essa mudança de procedimento torna a lista de portarias confiável até 1969 e parcial a partir de 1970. A terceira fonte de dados refere-se ao instrumento de pesquisa do fundo da DCDP. Das três fontes consultadas, o instrumento de pesquisa oferece subsídios mais consistentes sobre o número de peças teatrais analisadas e vetadas pela censura no regime militar. No período entre 1962 e 1988, o órgão central examinou aproximadamente de 22.000 textos teatrais e efetuou a proibição total de cerca de 700 peças teatrais. O número de peças examinadas pelo órgão central é maior em 1968 e menor em 1988 devido à descentralização do serviço e às modificações na censura, enquanto o número de peças proibidas é mais expressivo entre 1968 e 1978, com aumento significativo entre 1971 e 1974, conforme tabela abaixo. 20 ESTIMATIVA DE PEÇAS EXAMINADAS/ PROIBIDAS PELA CENSURA FEDERAL ANO MÉDIA DE PEÇAS EXAMINADAS NÚMERO DE PEÇAS PROIBIDAS 1962 375 0 1963 0 1964 0 1965 1 1966 0 1967 2 1968 2325 26 1969 1590 49 1970 1365 47 1971 1110 80 1972 1020 77 1973 1065 76 1974 1080 79 1975 1080 54 1976 1185 51 1977 1230 50 1978 1080 24 1979 855 4 1980 960 15 1981 870 15 1982 780 15 1983 825 17 1984 825 17 1985 750 1 1986 720 1 1987 780 0 1988 465 1 TOTAL 21960 702 Fonte: Fundo DCDP Ainda que esse instrumento de pesquisa constitua-se numa das fontes mais precisas, ele não é absolutamente exato. Por exemplo, nos anos de 1968 e 1969 o instrumento de pesquisa indica que 26 e 49 peças teatrais sofreram proibição total. Ocorre que esses números podem ser ainda maiores porque peças como Café, de Mário de Andrade,1 Senhoritas, de Alcyr Ribeiro Costa,2 Roda Viva, de Chico Buarque,3 Os Garotos da Banda, de Mart Crowley,4 Um Cadáver Almoça Flores, de Vitor Hugo Recondo,5 Arena Conta Tiradentes, de 1 Vetada de acordo com artigo 41, item D, decreto n.º 20.493. Portaria n.º 38/68-SCDP. Brasília, 10 jul. 1968. DCDP/OR/NO 2 Vetada de acordo com artigo 41, itens A, C, E e G, e artigo 61, decreto n.º 20.493. Portaria n.º 55/68-SCDP. Brasília, 3 set. 1968. DCDP/OR/NO 3 Portaria n.º 63/68-SCDP. Brasília, 7 out. 1968. DCDP/OR/NO 4 Vetada de acordo com artigo 41, item A e C, decreto n.º 20.493. Portaria n.º 77/68-SCDP. Brasília, 23 dez. 1968. DCDP/OR/NO 5 Vetada de acordo com artigo 2º, itens I e II, lei n.º 5.536. Portaria n.º 32/69-SCDP. Brasília, 16 abr. 1969. DCDP/OR/NO 21 Augusto Boal e Gianfrancesco Guarnieri,1 Barrela e Navalha na Carne, de Plínio Marcos, foram proibidas nesses anos, mas não constam no instrumento de pesquisa. Após a elaboração dos índices estatísticos e a análise dos processos de censura foi possível entender as modificações estruturais do organismo, visualizar a dinâmica da censura política e estabelecer fases da censura teatral. Na primeira fase destacou-se a centralização da censura de peças teatrais com a publicação da portaria n.º 11, em fevereiro de 1967, e a edição da lei n.º 5.536, em novembro de 1968. Na segunda fase inverteu-se a preocupação da censura de costumes que, até então, concentrava-se na questão moral em detrimento da mensagem política. Essa mudança de foco acentuou-se com a decretação do AI-5, a partir de dezembro de 1968. Na terceira fase verificou-se a criação de normas censórias como o decreto-lei n.º 1.077, em janeiro de 1970, e a reestruturação do órgão público com a transformação do SCDP em DCDP, em 1972. Na quarta fase buscou-se a adequação dos trâmites censórios ao processo de abertura política com a descentralização da censura teatral, em 1975 e 1978, e a desativação do decreto n.º 1.077 e a implementação do Conselho Superior de Censura (CSC), ambos em 1979. Essa fase durou pouco porque, de 1981 até início de 1985, houve um recrudescimento da atividade censória e uma retomada da censura política com a entrada de Ibrahim Abi-Ackel no Ministério da Justiça e a admissão de Solange Maria Teixeira Hernandes na direção da DCDP. Essas fases referem-se à censura teatral. Outros setores como o cinema e a música apresentaram dinâmicas próprias. No setor de cinema, a pesquisadora Leonor Souza Pinto analisou 79 processos de censura de filmes nacionais e dividiu a censura cinematográfica em três etapas. Na primeira fase, de 1964 a 1967, a preocupação da censura voltou-se para as questões morais dos filmes brasileiros. A partir de 1967, a intervenção militar acrescentou base político-ideológica à censura de filmes. De 1975 em diante, o processo de abertura política propiciou a liberação de filmes vetados.2 A pesquisadora Maika Lois Carocha, por sua vez, estabeleceu três etapas da censura musical. Dos anos de 1964 a 1968 houve “um processo de centralização da censura em Brasília e de adequação das normas censórias já existentes às especificidades do regime militar”. No período entre 1968 e 1973, ocorreu um “processo de adequação da censura através da profusão de leis que visaram garantir uma maior uniformidade à censura”. A fase final, de 1973 a 1984, é considerada emblemática “na 1 Vetada de acordo com artigo 2º, item I, lei n.º 5.536, e posteriormente liberada. Ver Portaria n.º 86/69-SCDP. Brasília, 6 out. 1969 e Portaria n.º 103/69-SCDP. Brasília, 19 nov. 1969. DCDP/OR/NO 2 Apud VIANNA, Luiz Fernando. Censura revisitada. Observatório da Imprensa, 26 abr. 2005. Consultado na INTERNET, em 2 de setembro de 2005. http://www.observatorio.ultimosegundo.ig.com.br/artigos.asp?cod=326ASP026 22 medida em que o número de vetos aumentou drasticamente, destoando da abertura política em vigor naquele momento, e também da criação do CSC, medida que visou atenuar o número de vetos”.1 Esta tese de doutorado divide-se em quatro partes. A primeira parte – Genealogia da censura no Brasil – aborda a continuidade do fenômeno da censura em territóriobrasileiro sem, contudo, ignorar as especificidades da atividade censória em contextos distintos. No âmbito do regime militar, a censura de diversões públicas alegava atuar na salvaguarda dos valores morais e em esfera distinta da política, acreditava exercer uma “missão protetora” da sociedade em oposição à transformação dos costumes e presumia expressar a vontade da maioria da população através do apoio de setores conservadores. Como órgão público federal, a instituição censória era vinculada à estrutura policial, regida por legislação ostensiva e constituída por funcionários de carreira. No entanto, a “missão protetora”, a moral e os bons costumes e a “transparência legal” não eximiram as instâncias censórias de agregar a censura política como mecanismo de controle da produção artística. A segunda parte – Teatro e ditadura – evidencia os principais grupos do teatro brasileiro de meados do século XX e a união do setor na luta contra a censura e oposição à ditadura. Como evidenciou Pierre Bourdieu, o campo cultural é regido por regras próprias e o trabalho dos artistas está relacionado ao sistema de relações particulares que estabelece com os meios de produção/circulação das obras do que subordinado à estrutura global da sociedade. Porém, quando algum poder estranho (a igreja ou o Estado, por exemplo) interfere na dinâmica interna do trabalho artístico (através de mecanismos censórios ou políticas culturais), os setores artísticos suspendem os confrontos específicos e aliam-se na luta pela restituição da liberdade de expressão ou reformulação das políticas públicas na área da cultura.2 A terceira parte – A censura na abertura – trata da descentralização da censura teatral e dos movimentos de abertura e retrocesso da censura de diversões públicas. A descentralização dos trâmites da censura teatral a partir de 1975 indicava que a produção teatral deixava de representar perigo à moral e aos bons costumes e à segurança nacional, ao contrário do movimento inverso de recrudescimento da censura entre os anos de 1981 e 1984. 1 CAROCHA, “Seu medo é o meu sucesso”..., p. 77. 2 Ver, respectivamente, BOURDIEU, Pierre. As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras, 1996 e CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. Tradução por Heloísa Pezza Cintrão e Ana Regina Lessa. 3. ed. São Paulo: EDUSP, 2000. 23 A última parte – Nos bastidores da censura – concentra-se na atuação dos diversos grupos que exerceram pressão sobre a atividade censória e na construção do argumento político da censura de peças teatrais. 24 PARTE 1: GENEALOGIA DA CENSURA NO BRASIL 25 1.1. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA CENSURA E A SEPARAÇÃO DAS DUAS CENSURAS A censura prévia da produção teatral foi implementada no Brasil em meados do século XIX, com a criação Conservatório Dramático Brasileiro (CDB). Inicialmente criado com o propósito de incentivar o desenvolvimento do teatro no país,1 o CDB rapidamente assumiu o compromisso de zelar pela integridade da Igreja Católica, dos poderes políticos, das autoridades constituídas, da moral e bons costumes, da decência pública e da língua portuguesa.2 Assim, “o fato de o Conservatório Dramático ter sido um órgão formado pela livre vontade dos intelectuais destacados na cena cultural, com o intuito de promover o melhoramento das artes cênicas”3 não impediu os censores (oficiais e oficiosos)4 de resguardar a pessoa e a família do Imperador, as autoridades e instituições constituídas, a moral e os bons costumes, a religião católica, as normas gramaticais e a pronúncia correta da língua portuguesa.5 Nesse contexto, a análise censória, realizada por pessoas comuns, autoridades políticas ou intelectuais de prestígio,6 visava a permanência do conjunto de valores vigente no período imperial, cuja relação com o sistema fazia da maioria dos escritores um apêndice da instituição que ao invés de refletir sobre o ato censório restringia-se a reproduzir a organização da cultura pelo poder vigente.7 A partir da criação do CDB, os governos brasileiros aperfeiçoaram a censura de diversões públicas com o argumento de defenderem a manutenção da ordem pública e dos valores ético-morais. Em contrapartida, extinguiram a censura da imprensa sob a justificativa de zelarem pela integridade da expressão do pensamento. No entanto, o desenvolvimento da censura moral voltada para as manifestações artístico-culturais e veículos de comunicação não se constituiu em exclusividade ou privilégio brasileiro, pois, como assinalou Sonia Salomão Khéde, independente de tempo e lugar, os princípios ético-morais fundamentaram a existência do mecanismo censório e, conseqüentemente, justificaram a condenação de obras-primas da literatura.8 1 KHÉDE, Op. cit., p. 19, 57-58. 2 Idem, p. 19 e 58. 3 Idem, p. 97. 4 Segundo Khéde, os censores do Império dividiam-se em dois grupos: oficiais e oficiosos. O primeiro ligava-se diretamente ao CDB e à Polícia e o segundo constituía-se de pessoas de prestígio que eventualmente interferiam na decisão censória. In: Idem, p. 61. 5 FIGUEIREDO, Guilherme. “Ninguém faz teatro a favor”. In: Idem, p. 169. 6 No século XIX, intelectuais de destaque atuaram como censor do Império, a exemplo do dramaturgo Luís Carlos Martins Pena e dos poetas Gonçalves de Magalhães e Manoel de Araújo Porto-Alegre. 7 KHÉDE, Op. cit., p. 65. 8 Idem, p. 75. 26 No final do século XIX, com a proclamação da República, em 15 de novembro de 1889, e com a promulgação da Constituição, em 24 de janeiro de 1891, o governo republicano submeteu o exercício da censura e a fiscalização de espetáculos a organismos policiais. Desde então, os governos brasileiros sempre trataram a censura teatral como caso de polícia e, portanto, inauguravam a “tradição policialesca da censura teatral”1 com vínculos direto com o universo político. Na década de 1920, Marcos Bretas afirmou que existia um certo consenso entre as “elites cultas” de que as formas populares de expressão artística poderiam prejudicar a formação moral e construção da identidade do povo brasileiro. Sob essa perspectiva, o trabalho censório concentrava-se na proteção do público das manifestações indesejáveis que apresentavam duplo sentido, alusões vulgares, exteriorização da sexualidade, alusão desrespeitosa a países e indivíduos e politização do teatro a partir de 1922. Conseqüentemente, a instituição censória reforçava a oposição entre “arte popular” e “cultura clássica”.2 Com a ascensão de Getulio Vargas à Presidência da República na década de 1930, a prática da censura recebeu tratamento especial. Promulgada em 16 de julho de 1934, a Constituição brasileira garantia a liberdade de expressão e atribuía aos indivíduos a responsabilidade pelas transgressões, com exceção dos espetáculos e diversões públicas. A Carta Magna definia que em qualquer assunto é livre a manifestação do pensamento, sem dependência de censura, salvo quanto a espetáculos e diversões públicas, respondendo cada um pelos abusos que cometer, nos casos e pela forma que a lei determinar. Não é permitido anonimato. É segurado o direito de resposta. A publicação de livros e periódicos independe de licença do Poder Público. Não será, porém, tolerada propaganda, de guerra ou de processos violentos, para subverter a ordem política ou social.3 Publicado em 2 de julho de 1934, o regulamento da Polícia Civil do Distrito Federal subordinava a censura teatral e a de diversões públicas à Diretoria Geral de Publicidade, Comunicações e Transportes que, além de realizar as funções de comunicação entre as administrações policiais e supervisionar os serviços de assistência policial, tipográfica, oficinase garages, também regulava as questões de publicidade, os meios de comunicação (rádio, telégrafo e telefonia) e os serviços de estatística administrativa e de arquivo da 1 Idem, p. 56. 2 BRETAS, Marcos Luiz. Teatro e cidade no Rio de Janeiro dos anos 1920. [referência incompleta] 3 Artigo 113, item 9, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 16 jul. 1934. 27 diretoria.1 Como evidenciou Elizabeth Cancelli, o novo regulamento da polícia, implantado no governo Getulio Vargas, assinalou a maior reestruturação realizada no organismo policial até então. Com esse instrumento regulador, os setores policiais do Distrito Federal adquiriram aparato legal e estenderam o raio de ação sobre as polícias estaduais, as manifestações públicas, os mendigos, os menores abandonados etc.2 A censura teatral e de diversões públicas, sob a subordinação da Chefia de Polícia, visava coibir as manifestações públicas que representassem matéria ofensiva às instituições nacionais e estrangeiras e seus respectivos representantes, aos sentimentos de humanidade, à moral e aos bons costumes e às crenças religiosas ou incitassem a prática de atos contra a ordem ou instigassem vícios, crimes e perversões.3 Segundo Cancelli, o espírito do regulamento recaiu sobre as atividades artísticas. Com a nova lei, a polícia de Filinto Strubing Müller submeteu os profissionais do teatro às determinações da censura que não permitia quaisquer alterações no texto original ou na marcação da peça, por exemplo.4 Assim, a polícia encarregava-se de gerenciar a censura de peças teatrais, espetáculos de variedades, números musicais, películas cinematográficas, transmissões radiofônicas, audições de discos e aparelhos sonoros e divertimentos em geral.5 No organograma policial, cabia à seção de censura examinar “as execuções, por qualquer processo, e os espetáculos públicos, de qualquer natureza, que, embora não estejam discriminadas nas letras anteriores, constituam atração pública, com intuito de lucro, direta ou indiretamente”.6 Promulgada em 10 de novembro de 1937, a Constituição do Estado Novo expandiu o raio de ação da censura quando propiciou a criação de um órgão de controle e limitou a liberdade de expressão do cidadão comum sujeito aos imperativos legais7 Essa restrição constitucional ao exercício pleno da liberdade de expressão visava, segundo documento oficial, defender o Estado nacional e a manutenção da ordem. Sob essas circunstâncias, a Carta Magna atribuía à autoridade competente o direito de proibir a circulação, difusão e 1 Artigo 288, decreto n.° 24.531. Aprova novo Regulamento para os serviços da Polícia Civil do Distrito Federal. Rio de Janeiro, 2 jul. 1934. 2 CANCELLI, Elizabeth. O mundo da violência: a polícia da era Vargas. Brasília: Edunb, 1993. p. 60. 3 Artigo 300, decreto n.° 24.531... 4 CANCELLI, Op. cit., p. 61. 5 Artigo 345, itens I a VII, decreto n.° 24.531... 6 Artigo 345, itens VIII, Idem. Na transcrição das citações corrigimos eventuais erros para evitar o excesso da expressão sic, não sobrecarregar o trabalho com ressalvas e dar acabamento ao texto. Em contrapartida, preservamos o estilo de escrita e equívocos significativos para a compreensão da pesquisa. Por exemplo, no último capítulo conservamos a transcrição incorreta de Karl Marx para evidenciar a pouca familiaridade dos representantes da censura com um dos principais teóricos do pensamento de esquerda. 7 Artigo 15°, Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil. Rio de Janeiro, 10 nov. 1937. 28 representação de mensagens através da imprensa, teatro, cinema, radiodifusão,1 correspondências e comunicações (oral ou escrita).2 Com o propósito de assumir o monopólio da comunicação social e eliminar a contrapropaganda dos opositores políticos, o governo Getulio Vargas criou, em dezembro de 1939, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP)3 que, em linhas gerais, consolidou o autoritarismo do Estado Novo e a centralização dos poderes políticos.4 No decorrer destes acontecimentos, a Presidência da República extinguiu o Departamento de Propaganda e Difusão Cultural e a Comissão de Censura Cinematográfica e assumiu a censura teatral e de diversões públicas até então realizada pela Polícia Civil do Distrito Federal. Com a progressiva centralização também no campo da censura, os Departamentos Estaduais de Imprensa e Propaganda (DEIPs) limitaram-se a cumprir as orientações da matriz no Rio de Janeiro, então capital federal. Sendo assim, as determinações da censura derivavam diretamente do DIP que, por sua vez, repassava aos DEIPs que se limitavam a cumpri-las.5 Nos DEIPs, a Divisão de Turismo e Diversões Públicas tinha como objetivo “sanear” as representações públicas através da vigilância dos valores éticos e de idéias nocivas à moral vigente e à tranqüilidade pública, evidenciou Silvana Goulart.6 Três das cinco divisões do DIP realizavam censura prévia: a Divisão de Radiodifusão era responsável pelos programas radiofônicos e letras musicais,7 a Divisão de Cinema e Teatro pelas representações teatrais, shows de variedades, peças declamatórias, espetáculos com mímicas, execuções de balé, escolas de samba, cordões carnavalescos, marchas-rancho, atividades recreativas e eventos esportivos de qualquer natureza8 e a Divisão de Imprensa pelos veículos de informação e órgãos da imprensa.9 Com a reabilitação da censura da imprensa, abandonada oficialmente na época do Império, e a centralização da censura de diversões públicas, praticada anteriormente por órgãos regionais, o DIP não só censurava manifestações artístico-culturais como também avaliava a pertinência do tema e corrigia a grafia das palavras. Para Goulart, esse “é um lado 1 Artigo 15°, item A, Idem. 2 Artigo 168, item B, Idem. 3 Decreto-lei n.º 1.915. Cria o Departamento de Imprensa e Propaganda e dá outras providências. Rio de Janeiro, 27 dez. 1939. 4 GOULART, Silvana. Sob a verdade oficial: ideologia, propaganda e censura no Estado Novo. São Paulo: Marco Zero, 1990. p. 12-13. 5 Idem, p. 20. 6 Apud Idem, p. 82. 7 Artigo 7°, item C, decreto n.° 5.077. Aprova o regimento do Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP). Rio de Janeiro, 29 dez. 1939. 8 Artigo 8°, Idem. 9 Artigo 10°, item A, Idem. 29 sutil da censura, por ser menos evidente e mais difícil de detectar pelos leitores. A censura, além de política, tinha cunho ético. Este aspecto, previsto pela Constituição de 1937 visava preservar a moral e os bons costumes de acordo com a ótica cristã”.1 Como se pode constatar, à censura de caráter político-ideológico agregava-se questão ético-moral e vice-versa. Em 25 de maio de 1945, Getulio Vargas extinguiu o DIP e criou o Departamento Nacional de Informações (DNI).2 Editada no último ano do Estado Novo, essa medida administrativa visava amenizar o caráter autoritário do governo Vargas. Das cinco divisões do DIP, o DNI uniu a Divisão de Censura com a de Divulgação, conservou as Divisões de Radiodifusão, de Turismo e de Cinema e Teatro e criou a Agência Nacional. Segundo Goulart, “a modificação mais importante em relação ao DIP foi a fusão das divisões de Imprensa e Propaganda, que no DIP se colocava praticamente acima das demais”.3 Todavia, o exercício censório pela Divisão de Cinema e Teatro manteve-se praticamente inalterado com a extinção do DIP e criação do DNI,4 exceto pela exclusão da censura à literatura política. Ao DIP competia “fazer a censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e esportivas de qualquer natureza, de radiodifusão, da literatura social e política, e da imprensa, quando a esta forem cominadas as penalidades previstas por lei”.5 Ao DNI restava “fazer censura do teatro, do cinema, de funções recreativas e esportivasde qualquer natureza, da radiodifusão [...] e, nos casos previstos em lei, da literatura social e da imprensa”.6 Em meados dos anos 1940, com a pressão dos movimentos sociais, o esvaziamento do Estado Novo e a deposição de Getulio Vargas, o sucessor presidencial, José Linhares, restaurou a liberdade de manifestação do pensamento por meio da radiodifusão7 e efetuou mudanças no campo da censura, entre as quais a implantação do Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), em 26 de dezembro de 1945,8 que respondia pela censura prévia das diversões públicas e manifestações artísticas e demarcava a separação definitiva entre a censura da imprensa e censura de peças teatrais, filmes, letras musicais, programas de rádio e 1 GOULART, Op. cit., p. 22. 2 Decreto-lei n.° 7.582. Extingue o Departamento de Imprensa e Propaganda e cria o Departamento Nacional de Informações. Rio de Janeiro, 25 maio 1945. 3 GOULART, Op. cit., p. 22. 4 Para mais informações sobre as diferenças e similaridades dos dois departamentos, consultar Idem, p. 76. 5 Artigo 2°, item C, decreto-lei n.° 1.915... 6 Artigo 2°, item E, decreto-lei n.° 7.582... 7 Decreto n.° 8.356. Dispõe sobre a manifestação do pensamento por meio da radiodifusão. Rio de Janeiro, 12 dez. 1945. 8 Decreto-lei n.° 8.462. Cria o Serviço de Censura de Diversões Públicas no D.F.S.P. e dá outras providências. Rio de Janeiro, 26 dez. 1945. 30 televisão, ainda que tais esferas apresentassem similaridades e se intercomunicassem com freqüência, chegando às vezes a se confundir. Para orientar o exercício censório, o presidente da República aprovou, no mês seguinte, o decreto n.° 20.4931 que amparou o exercício da censura de diversões públicas no país por mais de quarenta anos. Sobre esse instrumento regulador, aprovado em 24 de janeiro de 1946, o técnico de censura Coriolano de Loyola Cabral Fagundes classificou-o, em 1974, de a “coluna vertebral” do organismo censório2 e o dirigente censório José V. Madeira afirmou, em 1981, que os agentes censórios utilizavam-no “todos os dias”.3 Em linhas gerais, competia ao SCDP examinar a projeção de películas cinematográficas, a apresentação de espetáculos teatrais, shows de variedades, pantomimas bailados, peças declamatórias, escolas de samba, marchas-rancho, cordões carnavalescos, a reprodução de discos (cantados ou falados) em casas de espetáculos ou locais públicos e a exibição de espécimes teratológicas, anúncios publicitários, programas de rádio e televisão, em especial as novelas. O órgão censório também avaliava a pertinência de excursões de artistas brasileiros e de companhias nacionais ao exterior.4 Dessa forma, qualquer espetáculo realizado em local público e organizado por pessoa física/jurídica ou por organização comercial/civil dependia da autorização da censura.5 A abrangência das atribuições do serviço censório sujeitava grande parte das manifestações artístico-culturais à avaliação prévia. No setor teatral, a censura de costumes atuava de modo indiscriminado sobre a produção brasileira, isto é, podia incidir sobre peças e espetáculos montados por grandes companhias teatrais como também por grupos amadores e estudantis e festivais internos de colégios secundaristas.6 Como afirmou o dramaturgo Flávio Rangel, a única coisa democrática existente na ditadura foi a censura que ceifou manifestações artístico- culturais de todos os gêneros e posições.7 1 Decreto n.° 20.493. Aprova o regulamento do Serviço de Censura de Diversões Públicas do Departamento Federal de Segurança Pública. Rio de Janeiro, 24 jan. 1946. 2 FAGUNDES, Op. cit., p. 130 3 In: NOGUEIRA, Otaciano. Arte, sexo e censura. Palestra proferida no Seminário Nacional sobre a Censura de Diversões Públicas. Brasília, 11 de maio de 1981. p. 27. 4 Respectivamente, artigo 4°, itens I a XII, e artigo 40, Decreto n.° 20.493... 5 Artigo 42 e 79, Idem. 6 As peças teatrais inscritas em festivais de teatro só conseguiram dispensa da censura prévia em 1985, com Coriolano de Loyola Cabral Fagundes à frente da instituição censória. Porém, para conseguir essa licença especial, as comissões organizadoras deveriam enviar ao órgão central a programação completa, a relação das peças e a autorização dos autores, com antecedência de 48 horas. Portaria n.º 7/85-DCDP, de 28 de maio de 1985, do diretor da DCDP, Coriolano de Loyola Cabral Fagundes. In: Diário Oficial da União, Brasília, 31 maio 1985. Ver também CENSURA não atinge mais os festivais. Tribuna da Imprensa, 1º jun. 1985. 7 RANGEL, Flávio. O teatro continua vivo e a palavra não morreu. Folha de S. Paulo, São Paulo, 11 nov. 1979. Folhetim, p. 6. 31 Com o propósito de unificar o serviço censório em todo país, o regulamento do SCDP, regulamentado pelo decreto n.º 20.493, exigia para análise da censura os seguintes documentos: requerimento ao SCDP com denominação da peça teatral ou número de variedades, gênero, nome do compositor ou autor quando houver parte musicada, número de atos ou quadros e nome do tradutor quando o original for estrangeiro, registro da obra e dois exemplares datilografados ou impressos, sem emenda, rasura ou borrão.1 Após a análise censória e respectiva aprovação, cabia ao empresário do setor artístico, diretor da companhia de teatro ou responsável pela produção cultural solicitar ao chefe do SCDP o exame do ensaio geral,2 última etapa para autorização definitiva da peça teatral. Paulatinamente, essas etapas de avaliação que, em linhas gerais, resumiam-se em requerimento de exame censório, aprovação do texto teatral e exame do ensaio geral dificultaram o trabalho de produtores teatrais e empresários do ramo que, além de enfrentarem os problemas habituais da montagem de espetáculos como as dificuldades de patrocínio, tinham também de preocupar-se com os trâmites burocráticos. Além disso, o serviço censório exigia a apresentação fiel da indumentária, marcações, gestos, atitudes e procedimentos incorporados à peça no dia marcado para o ensaio geral,3 proibia aditamento ou colaboração da censura prévia4 e improvisação dos atores durante as apresentações.5 O resultado final do exame censório convertia-se em liberação plena, impropriedade para menores de 10, 14 e 18 anos,6 interdição parcial (com cortes) ou total. A não obediência das determinações censórias resultava em suspensão, advertência, convocação e multa a artistas, produções teatrais, empresários e casas de espetáculos. No período entre 1945 e 1964 a censura de diversões públicas concentrou-se, de forma assistemática, nos oito itens do decreto n.º 20.493 para justificar a proibição de peças teatrais, películas cinematográficas, letras musicais e programas de rádio e televisão que contivessem qualquer ofensa ao decoro público ou cenas violentas capazes de incitar a prática de crimes, induzissem aos maus costumes; incitassem contra o regime vigente, a ordem pública, as autoridades constituídas, prejudicassem a cordialidade das relações entre os povos, ofendessem as coletividades ou as religiões, ferissem a dignidade brasileira e os interesses nacionais e, por fim, depreciassem as forças armadas.7 1 Artigo 44, decreto n.° 20.493... 2 Artigo 50, parágrafo 5°, Idem. 3 Artigo 50, Idem. 4 Artigo 43, Idem. 5 Artigos 50, 61 e 97, Idem. 6 Artigos 14, 68 e 99, Idem. 7 Artigo 41, itens A, B, C, D, E, F, G e H, Idem. 32 Além desses critérios abrangentes, o decreto n.° 20.493 atribuía ao chefe do SCDP o direito de cassar ou restringir a autorização da censura quando sobreviessem motivos imprevistos e injustificados pelo interesse da dignidade nacional, da ordem, da moralidade ou das relações internacionais.1 Desse modo, a aprovação concedida pelo chefe da censura não significava continuidade do espetáculo dentro do prazo previstopelo certificado liberatório, ou seja, 5 anos. Dessa explanação preliminar, podemos afirmar que, no campo da censura de diversões públicas, a atuação do SCDP, subordinado ao Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), representou uma continuidade da sistemática da Divisão de Cinema e Teatro, vinculada ao DIP e, em seguida, ao DNI, ambos criados no governo Vargas. Em linhas gerais, o regulamento do SCDP incorporou as atribuições da Divisão de Cinema e Teatro, com exceção dos dois primeiros itens que regulavam a criação de cine-jornal com reportagens sobre o Brasil e destinavam facilidades econômicas a empresas nacionais do ramo cinematográfico.2 O que é singular nesse processo de continuidade da prática censória é que o SCDP foi criado no período de redemocratização da sociedade brasileira, em 1945, na gestão de José Linhares, e o DIP na época do Estado Novo, em 1939.3 Como assinalou Silvana Goulart, o período de redemocratização produziu novas fachadas sem, contudo, eliminar estruturas montadas que visaram manter o consenso da sociedade em torno da ordem constituída. Portanto, certos órgãos, apesar da nova roupagem, reproduziram posições semelhantes às práticas anteriores,4 a exemplo da instituição censória responsável pela manutenção da ordem pública e preservação da moral e dos bons costumes. Na apreciação de Gláucio Ary Dillon Soares, as atividades censórias no regime militar apresentaram dinâmica semelhante à de grande parte das instituições autoritárias em vigor na época, cujas origens remontavam ao contexto de ditadura varguista e cujas leis não sofreram revisão no período posterior. Nesses termos, “o Brasil não reviu a legislação corporativista: ao contrário, manteve boa parte daquele entulho legal, ainda que o usando comparativamente pouco”.5 Assim, nos momentos de autoritarismo explícito, a exemplo do 1 Artigo 54, Idem. 2 Artigo 8°, itens A e B, decreto n.° 5.077... 3 No período de 1939 a 1945, três órgãos públicos assumiram o controle nacional da censura teatral e de diversões públicas: primeiro, o Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP), submetido à Presidência da República, depois, o Departamento Nacional de Informações (DNI), vinculado ao Ministério da Justiça e Negócios Interiores e, por último, o Serviço de Censura de Diversões Públicas (SCDP), subordinada ao chefe de polícia e ao Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP). 4 GOULART, Op. cit., p. 165. 5 SOARES, Op. cit., p. 21. 33 Estado Novo e do regime militar, “novas características autoritárias vêm se juntar às que já permeiam nossas relações sociais”, conforme afirmou Maria Aparecida de Aquino.1 No campo da censura, Beatriz Kushnir assinalou que as mudanças adotadas pelo governo de José Linhares visaram romper com o Estado Novo, mas a nova legislação permaneceu “invasiva e centralizadora” e preservou seu “conteúdo regulador”.2 O que ocorreu foi uma adaptação das estruturas precedentes ao contexto democrático brasileiro. Sob essa perspectiva, o deslocamento da censura para a esfera moral e a acomodação do órgão na estrutura policial buscavam retirar da prática censória qualquer conotação política.3 O que não atribuiu ao instrumento regulador legitimidade democrática nem tampouco desvinculou o fenômeno histórico do universo político. Como se vê, após intervalo de seis anos, de 1939 a 1945, o exercício da censura restaurou a “tradição policialesca” e a criação do SCDP separou a censura de diversões públicas da censura da imprensa sem, contudo, apresentar rupturas drásticas com a estrutura anterior ou mudanças profundas no sistema censório. Convém registrar que, desde a criação do serviço censório, em meados da década de 1940 até o final do ano de 1967, a censura de diversões públicas permaneceu sob a ingerência do chefe de polícia e atuou de forma autônoma nos estados. Como afirmou Douglas Attila Marcelino, “sempre vinculada à instituição policial, esse tipo de atividade funcionava não somente como um mecanismo de manutenção da ordem moral e social, mas também como uma fonte de arrecadação de recursos por parte do Estado”.4 Em suma, podemos afirmar que a censura brasileira existiu tanto nos contextos de ditaduras quanto nos períodos democráticos. O que motivou, por exemplo, José dos Santos Freitas a encaminhar uma carta de protesto à coluna de Jota Efegê, no Jornal dos Sports, que, nos idos de 1950, recusava-se a aceitar medidas obscurantistas na área da cultura e reivindicava plena liberdade para as manifestações artísticas. No seu protesto ele dizia que “é preciso estar alerta contra as solertes maquinações dos obscurantistas medievais que se prendem aos grilhões do passado, um comodismo intolerável. Não sou extremista, e por isso 1 In: AQUINO, Maria Aparecida de; MATTOS, Marco Aurélio Vannucchi Leme de; SWENSSON JR., Walter Cruz (orgs.) No coração das trevas: o DEOPS/SP visto por dentro. São Paulo: Arquivo do Estado: Imprensa Oficial, 2001. p. 12. 2 KUSHNIR, Op. cit., p. 83. 3 Idem, p. 99. 4 MARCELINO, Salvando a pátria..., p. 27. Sobre o assunto, ver também STEPHANOU, O procedimento racional..., p. 21. De qualquer forma, não se sabe ao certo quanto os estados arrecadavam com esta atividade, quanto se pagava pelos pedidos de censura, quem recolhia as taxas etc. 34 mesmo acho intolerável quererem impor-nos uma democracia de máscara, venha o modelo de onde vier”.1 De qualquer maneira, a mudança dos regimes políticos, a extinção de órgãos autoritários e a criação de um serviço especializado alteraram lentamente a prática censória. Como evidenciou o jornalista José Lino Grünewald, [em 1966], a questão da censura, encarada mediante os últimos decênios, teve a sua fase negra naturalmente durante o Estado Novo. Depois, com o retorno democrático, o poder dos censores oficiais foi-se amainando, da mesma forma que a ingerência indébita, mas consentida, de facções raciais, políticas, religiosas (especialmente estas), além de inefáveis associações de pais de família. Foi, contudo, um amainar muito lento e somente de uns poucos anos para cá que, em relação aos problemas dos costumes e dos espetáculos públicos, as tendências das autoridades passaram a ir realmente ao encontro do inegável índice de civilização das principais capitais e centros industriais do Brasil. E no que, inclusive, ajudou a desenvolver ainda mais a educação, a compreensão e a liberdade essencial das pessoas.2 A censura de diversões públicas, realizada pelo DFSP e por organismos regionais, caracterizou-se, no período entre 1945 e 1967, pelo predomínio de justificativa moral sobre questão política e pelo número restrito de interdições totais de peças teatrais e películas cinematográficas nos estados brasileiros. Segundo dados estatísticos da censura teatral de São Paulo, realizada no período de 1920 a 1972, de 6.137 peças censuradas, 47 peças foram vetadas, 886 parcialmente liberadas e 3.578 liberadas. O número restante está em processo de organização.3 Como afirmou o chefe da censura, Hildon Rocha, na segunda metade da década de 1950, “até agora, sob minha direção, a censura não proibiu uma só peça ou filme”, embora “tenho encontrado em alguns elementos do teatro de revista certa prevenção, talvez pelas diferenças de gosto artístico e formação ética. Sendo o teatro um gênero literário, não vejo como deva ser transformado numa escola ‘de degradação e mau gosto’”. Contra esse gênero de espetáculo recaia a censura moral, pois, segundo o representante da censura no Rio de Janeiro, “além de ser uma posição justa, é também legal, porque a lei sobre a censura manda proibir ‘ofensa ao decoro público’ e muitas outras coisas, inclusive aquilo que induza aos maus costumes. Exercer a censura contra o despudor é um ato legal, inclusive amparado no parágrafo constitucional”.4
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