Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ORGANIZADORES ANJULI TOSTES HUGO MELO FILHO ILUSTRAÇÃO DA CAPA Dandelion, de Carlo Giambarresi Ilustrador italiano (Sardenha), é formado pelo Instituto de Design e pela Escola Massana, ambos de Barcelona. O seu trabalho pode ser visto em https://www.carlogiambarresi.com/ https://www.carlogiambarresi.com/ 1ª edição 2020 | Bauru, SP Projeto Editorial Praxis é um selo da Canal 6 Editora e o projeto editorial da RET – Rede de Estudos do Trabalho (www.estudosdotrabalho.org), dedicado a livros na área de Trabalho e Economia Política da Globalização. Copyright© Projeto Editorial Praxis, 2020 Coordenador do Projeto Editorial Praxis Prof. Dr. Giovanni Alves Conselho Editorial Nacional Dr. Ariovaldo Santos (UEL) Dr. André Luis Vizzaccaro (UEL) Dr. Bruno Chapadeiro (UFTM) Dr. Edilson Graciolli (UFU) Dr. Francisco Luis Corsi (UNESP) Dr. Giovanni Alves (UNESP) Dr. Gaudêncio Frigotto (UERJ) Dr. José Meneleu Neto (UECE) Dr. José Dari Krein (UNICAMP) Dr. José dos Santos Sousa (UFRRJ) Dr. Marco Aurélio Santana (UFRJ) Dr. Márcio Pochmann (UNICAMP) Dr. Ricardo Antunes (UNICAMP) Dr. Roberto Leme Batista (UNESPAR) Dr. Ricardo Lara (UFSC) Dr. Renan Araújo (UNESPAR) Dra. Vera Navarro (USP) Dr. Domingos Leite Lima Filho (UFTPR) Conselho Editorial Internacional Dra. Ursula Huws (University of London - Reino Unido) Dr. Elisio Estanque (Universidade de Coimbra/CES - Portugal) Dr. Enrique de la Garza (UAM- México) Dra. Adrian Sotelo Valencia (UNAM - México) Dr. Júlio César Neffa (CONICET/Argentina) Dra. Claudia Figari (Universidade de Luján - Argentina) Dra. Íside Gjergji (CES - Portugal) Projeto Editorial Praxis Free Press is Underground Press www.editorapraxis.com.br Impresso no Brasil/Printed in Brazil 2020 Quarentena: reflexões sobre a pandemia e depois / Anjuli Tostes, Hugo Melo Filho; ilustração de Carlo Giambarresi. – 1.ed. – Bauru: Canal 6, 2020. Recurso digital. – (Projeto Editorial Praxis) Formato: PDF Requisitos do sistema: Adobe Acrobat Modo de acesso: Word wide web ISBN: 978-65-86030-14-3 1. Pandemia. 2. Capitalismo. 3. Crise econômica. 4. Políticas públicas. I. Melo Filho, Hugo. II. Giambarresi, Carlo. III. Título. CDD 614 Q25 1.ed. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Bibliotecária responsável: Aline Graziele Benitez CRB-1/3129 Índice para catálogo sistemático: 1. Pandemia: capitalismo 2. Crise econômica 3. Políticas públicas 7 SUMÁRIO 11 Apresentação Organizadores Anjuli Tostes e Hugo Melo Filho 15 RENDA BÁSICA UNIVERSAL: UM DEBATE NECESSÁRIO Ananda T. Isoni 31 PANDEMIA, POPULISMO E NOVA ORDEM SOCIAL Anjuli Tostes 45 VÍRUS: TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR Boaventura de Sousa Santos 51 NADA MAIS SERÁ COMO ANTES Ciro Gomes 61 A ECONOMIA DO DESEJO E A COVID-19 Eduardo Moreira 8 65 CORONAVÍRUS E FASCISMO: PATOLOGIAS QUE DESAFIAM O BRASIL Flávio Dino 71 DE BRETTON WOODS A WUHAN E ALÉM Hugo Cavalcanti Melo Filho 89 POR QUE A COVID-19 SE ALASTRA NOS EUA E O QUE PODE SER FEITO Jeffrey D. Sachs 97 WHY AMERICA HAS THE WORLD’S MOST CONFIRMED COVID-19 CASES Jeffrey D. Sachs 105 ATORMENTADOS PELO TRUMPISMO Joseph E. Stiglitz 109 PLAGUED BY TRUMPISM Joseph E. Stiglitz 113 ALÉM DO CORONA VÍRUS Ladislau Dowbor 121 A FINANÇA E O CORONAVÍRUS Luiz Gonzaga Belluzzo 9 135 SOBRE O PAPEL DO ESTADO NA ECONOMIA E COVID-19 Marcio Pochmann 147 “GRIPEZINHA”O NEOFASCISTA BOLSONARO DIANTE DA EPIDEMIA Michael Löwy 151 CAPITALISMO SELVAGEM E A SOBREVIVÊNCIA DA HUMANIDADE Noam Chomsky 161 SAVAGE CAPITALISM AND THE SURVIVAL OF HUMANITY Noam Chomsky 171 PRESENTE E FUTUROSETE APONTAMENTOS Pedro Otoni 181 O VILIPÊNDIO DO CORONAVIRUS E O IMPERATIVO DE REINVENTAR O MUNDO Ricardo Antunes 189 O COMPROMISSO EM SAMARA: UM NOVO USO PARA ALGUMAS PIADAS ANTIGAS Slavoj Žižek 10 203 THE APPOINTMENT IN SAMARA: A NEW USE FOR SOME OLD JOKES Slavoj Žižek 215 O MEDO DO FUTURO INCERTO Tarso Genro 219 SOBRE A COVID-19 E AS NOSSAS ESCOLHAS Valdete Souto Severo 227 BEM-VINDO AO ESTADO SUICIDÁRIO Vladimir Safatle 235 METEORO Wilson Ramos Filho 241 CRISE É OPORTUNIDADE Wilton Cardoso 11 APRESENTAÇÃO Organizadores Anjuli Tostes e Hugo Melo Filho Final de 2019. Tudo corria normalmente: políticas de austeridade gerando desigualdade social abissal, ameaçando o liberalismo democrático e propiciando a vitória de políticos de extrema direita em vários países; Estados Unidos e China em guerra híbrida; pro- telações regulares de providências para deter as extremas agressões ao meio ambiente; guerras simultâneas em vários pontos do pla- neta; refugiados em massa aportando nos países europeus e sendo barrados pelo muro de Trump. Eis que na cidade de Wuhan surge o coronavírus SARS-CoV-2 e a China anuncia um surto, em 31 de dezembro. No início, pouca gente levou a sério, afinal a Covid-19, doença causada pelo novo vírus, vinha se somar a zoonoses precedentes, como o SARS-CoV (2002), a gripe aviária por H5N1 (2005), a gripe A por H1N1 (2009), o MERS-CoV (2012) e o Ebola (2014). Seria, mais uma vez, um pro- blema localizado, “coisa de chinês que toma sopa de morcego (ou de pangolim!)”. A rapidez com que o vírus se espalha é impressionante. Muitos países não estão preparados para detê-lo, ou mesmo frear a pro- pagação e evitar o colapso do sistema de saúde. Após as primeiras mortes, dezenas, centenas, milhares de pessoas morrem a cada dia. 12 Instala-se a crise internacionalmente. Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde declarou a pandemia de Covid-19. Países fecham suas fronteiras, limitam a locomoção interna dos cidadãos, decretam isolamento social – e, em casos extremos, o lockdown. Os governantes que retardam tais providências, preocu- pados, antes, com os reflexos econômicos da pandemia, amargam recordes de contaminação e mortalidade. Enquanto uns Estados praticam a solidariedade, enviando recursos humanos e materiais para ajudar povos, outros vedam a exportação de insumos médicos e chegam a praticar atos de pirataria para se apoderarem de respi- radores e máquinas. No momento em que escrevemos esta apresen- tação, mais de dois milhões e seiscentos mil casos foram confirma- dos em todo o planeta, resultando em mais de cento e oitenta e três mil mortos. Anuncia-se uma crise econômica mundial de escalas apocalíp- ticas e uma brutal mudança de comportamento, que trarão conse- quências relevantes para “o depois” da Covid19. Em isolamento, as pessoas refletem sobre tudo o que está ocorrendo e procuram ante- ver o que virá. Milhares de lives são gravadas todo dia, sobre todos os assuntos. Pensadores de renome manifestam suas opiniões, em jornais, revistas e blogs. Imediatamente nos ocorreu a ideia de organizar um livro com artigos de pensadores brasileiros e estrangeiros, com percepções sobre o momento que atravessamos e opiniões sobre o pós-pande- mia. Em suma, uma fotografia desse período importante de refle- xões sobre o mundo, a vida e a sociedade. Para nossa alegria, o projeto de um e-book, para distribuição gratuita, foi calorosamente acolhido pelos convidados, que nos brindam com seus textos nesta obra coletiva. A maioria dos textos foi elaborada especialmente para esta edição. O de Noam Chomsky é a adaptação de entrevista recente. Alguns convidados autoriza- ram a reprodução de textos anteriormente publicados no Brasil ou no exterior, como Tarso Genro, Joseph Stiglitz e Jeffrey Sachs. 13 O artista italiano Carlo Giambarresi cedeu, gentilmente, a bela ilustração que estampa a capa do livro. Optamos por publicar, além do texto traduzido, a versão original dos textos escritos em inglês. E assim, com entusiasmo, apresentamos este Quarentena: refle- xões sobre a pandemia e depois, elaboradas no calor do momento em que tudo acontece, por gente experiente e preparada para analisar a conjuntura e projetar os efeitos desta crise mundial nos campos da política, da economia, da sociologia, do direito e da filosofia. Boa leitura! 15 RENDA BÁSICA UNIVERSAL:UM DEBATE NECESSÁRIO Ananda T. Isoni1 “I am now convinced that the simplest approach will prove to be the most effective – the solution to poverty is to abolish it directly by a now widely discussed measure: the guaranteed income”. Martin Luther King Jr. Where do We Go from Here: Chaos or Community (1967) Em março de 2020, Juan Pablo Bohoslavsky, especialista in-dependente da Organização das Nações Unidas (ONU), re- comendou aos governos que considerassem a introdução de uma renda básica universal de emergência, em razão da pandemia da COVID-192. O conceito não é novo, mas o cenário de crise genera- lizada que coloca em situação de vulnerabilidade pessoas de dife- rentes classes sociais e contextos de vida contribui para superar ou ao menos mitigar a resistência quanto à entrega de dinheiro sem 1 Juíza do Trabalho do Tribunal Regional da 15ª Região. 2 RELATOR DA ONU PEDE QUE PAÍSES ADOTEM RENDA BÁSICA UNIVERSAL DIANTE DA PANDEMIA, 2020. Disponível em: https://nacoesunidas.org/relator-da-onu- -pede-que-paises-adotem-renda-basica-universal-diante-da-pandemia/ Acesso em 22/4/2020. 16 contraprestação. Há razão para o alerta de Bohoslavsky. Boletim divulgado pelo Fundo Monetário Internacional (FMI), em abril de 2020, apontou ser essa a pior crise econômica desde a Grande Depressão (1929), com contração estimada em 3% e risco substan- cial de agravamento do cenário.3 Crises demandam ações incisivas e provocam mudanças estru- turais – isso já está posto. O que segue em aberto são as escolhas a serem tomadas, cujos efeitos serão sentidos não apenas agora, mas nos anos que virão. Não surpreende que a renda básica universal tenha ocupado repentinamente um espaço privilegiado nas conver- sas e nos jornais: uma sociedade em crise é convidada a repensar as necessidades que deseja priorizar. Em um mundo que mede o sucesso de um país pelo Produto Interno Bruto (PIB), esse processo não é fácil, mas urgente. Compreender do que se trata a renda básica universal, explo- rar suas motivações, sua viabilidade e seu impacto no trabalho, na educação, na saúde e na construção de um mundo menos desigual são alguns dos passos que se pretendeu dar neste artigo. A análise de estudos que retratam os desafios econômicos e sociais a serem enfrentados soma-se à dos resultados de experimentos pilotos ao redor do mundo. Esses dados, quando não fornecem respostas, ajudam a formular novas perguntas relevantes ao debate. O conceito de renda básica e os limites dos auxílios emergenciais As restrições impostas pelo confinamento desencadearam a instituição e expansão de programas de auxílio em países como 3 FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL, World Economic Outlook – Chapter 1 – The Great Lockdown, 2020. 17 Canadá, Alemanha, Itália, Espanha, Índia e Brasil4. Nenhuma das medidas, contudo, observa a rigor o conceito de renda básica uni- versal. Em sua versão clássica, ela é definida como a transferência de dinheiro a todas as pessoas, em valor suficiente ao custeio de necessidades básicas, por tempo ilimitado. Não é, portanto, con- dicionada ao atendimento de requisitos, sejam eles relacionados a características como sexo, idade e condição econômica ou ao cum- primento de exigências. No Brasil, a renda básica da cidadania foi criada em 2004 como direito de todos os brasileiros e estrangeiros residentes no país há pelo menos cinco anos. A Lei nº 10.835, instituidora do benefício, não o restringe à condição econômica do destinatário, embora sua implementação gradual deva priorizar os mais necessitados. Seu valor deve ser igual para todos e suficiente para atender às despesas mínimas com alimentação, educação e saúde, cabendo ao Poder Executivo sua definição. Passados mais de quinze anos, ainda se aguarda a regulamentação do benefício. A pandemia reacendeu o tema da renda básica de cidadania, uma das medidas reivindicadas por 26 governadores ao presidente de República no dia 25 de março de 2020. Não foi o que prevaleceu. Em abril foi aprovado auxílio emergencial mais restritivo, instituí- do pela Lei nº 13.982/2020, no valor de R$ 600,00, pelo período de três meses. O benefício é destinado a trabalhadores e trabalhadoras que atendam cumulativamente aos requisitos legais, regulamenta- dos pelo Decreto nº 10.316/2020. As condições abrangem critérios etários e econômicos, além de excluir pessoas que sejam titulares de benefício previdenciário ou assistencial ou possuam empregos formais. Um trabalhador com 16 anos cuja atividade tenha sido suspensa durante a quarentena, por exemplo, não terá direito ao auxílio. Tampouco terá acesso 4 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO. Social Protection responses to the Covid-19 crisis, 2020; FMI, op. cit., 2020 18 ao benefício uma pessoa cuja remuneração tenha superado R$ 28.559,70 em 2018 (em média R$ 2.379,97 ao mês), ainda que sua renda tenha sido inferior no período subsequente. Aos trabalhadores formais com remuneração afetada durante o estado de calamidade pública, foi assegurado benefício distin- to, instituído pela Medida Provisória nº 936/2020. É também essa norma que autoriza a suspensão de contratos por até sessenta dias e a redução de jornada e salários por até 70%, durante o período máximo de noventa dias5. Ser impactado por alguma dessas medi- das é condição para o pagamento do auxílio, com duração restrita à vigência da alteração contratual. Sua base de cálculo corresponde ao valor mensal do seguro-desemprego a que o empregado teria direito, em valor proporcional à perda remuneratória. Em razão dessas características, o benefício tampouco se aproxima do con- ceito de renda básica universal. O debate sobre renda garantida, embora intensificado no con- texto da pandemia, lhe é muito anterior. Em Utopia, obra publicada em 1516, Thomas More deu voz à ideia, então debatida entre filó- sofos iluministas por meio do personagem Raphael Hitlodeu. Ele a defendeu como uma forma justa de se evitar a prática de crimes por quem não encontrou outro meio de sobrevivência6. Desde então, experimentos pilotos foram conduzidos em países como Canadá, Estados Unidos, Itália, Holanda, Finlândia e Quênia, parte deles ainda em andamento. 5 Contrariamente ao disposto no artigo 7º, VI e XIII, da Constituição da República, a MP nº 936/2020 dispensa a negociação coletiva para implementação das me- didas. Questionada sua constitucionalidade, por meio da ADI 6.363, o ministro relator Ricardo Lewandowski, deferiu em parte a cautelar para dar interpretação conforme à Constituição Federal, estabelecendo a exigência de comunicação à entidade sindical para possibilitar a deflagração de negociação coletiva. A limi- nar foi, contudo, derrubada em 17/4/2020 pelo Plenário do STF, que por maioria concluiu pela constitucionalidade da norma. 6 MORE, Thomas. A Utopia. São Paulo: Martin Claret, 2002. 19 A dificuldade de implementação de modelos de teste que adotem a renda básica universal com todas as suas características está, so- bretudo, no custo. Os pilotos, ora financiados pelo Estado, ora por organizações independentes, sofrem limitações que vão desde o valor transferido à duração do experimento. Tais circunstâncias não devem desmotivar. Como se verá, evidências obtidas por meio dessas iniciativas contribuem na busca de respostas sobre o impac- to da adoção de uma renda básica universal efetiva. Trabalho: dever ou direito? Do ponto de vista jurídico-filosófico, a renda garantida ampa- ra-se na dignidade e no valor humano reconhecidos na Carta das Nações Unidas e na Declaração Universal de Direitos Humanos (DUDH). Não se trata de defendê-la como direito natural, mas de compreendê-la como meio de efetivação de direitos e liberdades declarados universais. Essa visão é por vezes confrontada com o argumento de que é o trabalho, e não a transferência de renda, que deve ser garantido para uma existência digna. O provérbio “O tra- balho dignifica o homem” bem traduz esse pensamento. Não há, contudo, antagonismo entrea renda básica e o direi- to ao trabalho quando este é compreendido em sua plenitude. Ele contempla, segundo o artigo 23 da DUDH, o direito à livre esco- lha do trabalho, em condições equitativas e satisfatórias, à proteção contra o desemprego e a uma remuneração digna. O dispositivo menciona, ainda, sua complementação por outros meios de prote- ção social, quando possível. Inexiste óbice ético ou jurídico ao pagamento de renda sem labor. Ao contrário. O direito ao trabalho apenas pode ser exerci- do em todas suas dimensões, quando dele não dependa a pessoa trabalhadora para garantir sua sobrevivência. A vulnerabilidade financeira é condição que acentua o desequilíbrio na relação de 20 trabalho, assimetria agravada com o desmonte das entidades sin- dicais, cujo impacto nos salários já se demonstrou7. Por vezes, não resta à pessoa trabalhadora alternativa senão a de se submeter a condições a ela impostas para a contratação ou continuidade do vínculo, sejam elas dignas ou não. A promoção do emprego pleno produtivo e do trabalho digno para todos é o oitavo dos 17 objetivos da Agenda 2030 das Nações Unidas para o desenvolvimento sustentável8. Dados consolidados pela Comissão Mundial sobre o Futuro do Trabalho ajudam a di- mensionar o problema: antes de 2030 é preciso criar 344 milhões de empregos; 190 milhões de pessoas estão desempregadas, das quais 64,8 milhões são jovens; 2 bilhões de pessoas baseiam seu sustento na economia informal; 300 milhões de trabalhadores vivem em si- tuação de extrema pobreza (<1,90 dólar/dia); e a remuneração rece- bida pelas mulheres é cerca de 20% inferior à dos homens9. Defender a renda básica universal não implica esmaecer os es- forços empreendidos contra o desemprego e pela efetivação do di- reito a um trabalho digno. A importância do trabalho vai além de seu papel como meio de sobrevivência. Quando provido de sentido, o trabalho promove o desenvolvimento e o senso de realização do indivíduo. Isso explica, em alguma medida, inexistirem evidên- cias de que transferências de recursos desencorajem as pessoas a trabalhar,10 a despeito de ser esse um argumento recorrente entre 7 WORLD INEQUALITY LAB, WORLD INEQUALITY REPORT, 2018; BANERJEE, A.; IEHAUS, P.; SURI, T. Universal Basic Income in the Developing World. National Bureau of Economic Research, Cambrige, 2019. 8 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Transformando Nosso Mundo: A Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável, 2015. Disponível em: https://nacoesu- nidas.org/pos2015/agenda2030/. Acesso em 22/4/2020. 9 ORGANIZAÇÃO INTERNACIONAL DO TRABALHO, Trabajar para um futuro más pro- metedor, 2019. 10 BANERJEE, A. V.; KREINDLER, G; OLKEN, B. Debunking the Stereotype of the Lazy Welfare Recipient: Evidence from Cash Transfer Programs. The World Bank Research Observer, 2017. 21 opositores da renda básica universal. Experimentos pilotos condu- zidos no Canadá, na Índia e na Namíbia não revelaram efeitos sig- nificativos quanto ao nível de emprego e no Irã parte dos destinatá- rios do benefício passou a trabalhar mais.11 Também no programa desenvolvido na Finlândia não foram constatadas diferenças de comportamento em relação a trabalho entre os participantes que receberam o benefício e o grupo de controle.12 Essa constatação não pretende – e nem poderia – esvaziar o debate envolvendo a dialética capital e trabalho. Tampouco se ignora o achatamento de salários como possível desdobramento da implementação de uma renda básica universal, caso ela seja trata- da como subsídio salarial. Por outro lado, parece ser mais factível conjecturar o incremento de salários como efeito da superação do temor da miséria. O aumento do poder de barganha impactaria, sobretudo, a prestação de serviços em condições precárias, hoje realizados por pessoas a quem não resta alternativa. Os limites dos pilotos que pretenderam garantir o pagamento de renda mínima não permitem, por ora, conclusões definitivas em um ou outro sentido. Futuro do trabalho, desigualdade e polarização O impacto da tecnologia no mercado de trabalho também tem sido apontado como um dos fatores que justificariam a adoção da renda básica universal.13 Isso em parte explica sua defesa por expoentes do Vale do Silício, onde foi gestado um dos estudos 11 ORTIZ, I. et al. Universal Basic Income proposals in light of ILO standards: Key issues and global costing, Geneva, 2018. 12 KANGAS, O. et al. The basic income experiment 2017–2018 in Finland. Preliminary results. Ministry of Social Affairs and Health, 2019. 13 LOWREY, Annie. Give People Money – How a Universal Basic Income Would End Poverty, Revolutionize Work and Remake The World. Nova York: Crown, 2018. 22 randomizados em andamento, o Y Combinator Research.14 A essa preocupação possivelmente se soma à de que o aumento da pro- dutividade viabilizado pela automação não gere o correspondente aumento de riqueza às empresas de tecnologia, se o desemprego massivo comprometer o poder de compra dos indivíduos. As previsões de Keynes para 2030 no ensaio “Possibilidades Econômicas para Nossos Netos” se revelaram otimistas. Os avanços científicos e tecnológicos de fato geraram aumento de produtivida- de e riqueza, mas não foi essa “a solução para o problema econômi- co da humanidade”. O crescimento da renda global desde 1980 foi capturado duas vezes mais pelo 1% de indivíduos mais ricos do que pelos 50% mais pobres15. Tampouco a jornada de trabalho média foi reduzida a 15 horas por semana, permitindo a destinação de mais tempo à cultura e ao lazer, como ele sugeriu. De outro modo, mais de um terço da mão de obra mundial possui carga de trabalho superior a 48 horas semanais. Não há consenso quanto à extensão dos efeitos da tecnologia no trabalho. Com frequência, fatos se perdem em meio à propagação de uma visão fantasiosa do futuro. Um equívoco recorrente está em se pensar a quantidade de empregos como finita. A quantidade de postos de trabalho reduzidos e extintos é mais mensurada e valo- rizada como informação, ao passo que nem sempre há clareza na estimativa de novas funções. No início do século XX seria impos- sível prever a quantidade de novos empregos que surgiriam com a robótica e a internet. Funções como a de datilógrafo, projecionista 14 SADOWSKI, Jathan. Why Silicon Valley is embracing universal basic income, 2016. Disponível em: https://www.theguardian.com/technology/2016/jun/22/silicon -valley-universal-basic-income-y-combinator Acesso em 22/4/2020; WINICK, Erin, Universal basic income had a rough 2018, MIT Technology Review, 2018, disponível em: https://www.technologyreview.com/2018/12/27/103611/uni versal-basic-income-had-a-rough-2018/ Acesso em 22/4/2020; Y COMBINATOR RESEARCH, The First Study of Basic Income in the United States Disponível em: https://basicincome.ycr.org/our-plan. Acesso em 22/4/2020. 15 WORD INEQUALITY LAB, op. cit., 2018. 23 de cinema e entregador de telegrama diminuíram ou deixaram de existir. Em contraposição, outras profissões surgiram para atender a novas necessidades, como webdesigners e desenvolvedores de software. Mudanças nas formas de trabalho são elementos comuns às revoluções industriais e a tecnologia tem sido prodigiosa na subs- tituição de funções repetitivas e extenuantes. A redução do indi- víduo ao papel de máquina já havia sido apontada por Durkheim como anomia do mundo moderno. Segundo ele, a repetição mo- nótona de movimentos desconecta o trabalhador do sentido de sua função e impede seu aperfeiçoamento individual, constituindo um aviltamento da natureza humana16. Essas considerações não pretendem, contudo, subestimar uma das características marcantes da Quarta Revolução Industrial: a velocidade acentuada das transformações. Serão os trabalhadores capacitados em tempo hábil para responder às novas demandas? A renda básica garantida pode exercer papel decisivo nessa transição. O Relatório Social Mundial de 2020 reporta que trabalhadores altamente qualificados são os maisbeneficiados com as novas tec- nologias. Mudanças no trabalho, que por vezes levam à redução ou extinção de postos, afetam principalmente trabalhadores de baixa e média qualificação. Como resultado, a desigualdade salarial tem se intensificado desde a segunda metade do século XX.17 Contribui para essa polarização a insuficiência de renda para se investir em educação. O potencial da internet para a capacitação profissional está hoje restrito às 53,6% das famílias que a ela estão conectadas. O índice cai para 15% em países emergentes18. 16 DURKHEIM, Emile. Fato Social e Divisão do Trabalho. São Paulo: Editora Ática, 2011. 17 ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS, Word Social Report 2020 – Inequality in a Rapidly Changing World, 2020. 18 OIT, op. cit., 2019. 24 De forma concorrente ao papel do Estado e das instituições em promover educação, a transferência de renda permite ao indivíduo direcionar recursos diretamente à formação pretendida. Mesmo quando se trata de capacitação gratuita, jornadas extensas alijam trabalhadores do processo de atualização profissional. O temor da insegurança financeira por vezes os desencoraja a assumir novos desafios profissionais que demandam tempo, preparo e dinheiro. A renda básica pode ser, nesse sentido, importante instrumento para se reduzir a polarização no mercado de trabalho. O destino da renda incondicionada Se há consenso quanto à relação direta entre educação e renda, por outro lado, são comuns as divergências sobre a necessidade de se condicionar a transferência de recursos ao atendimento de condições específicas. A eliminação de procedimentos burocráti- cos para verificação de requisitos é um dos argumentos em defesa da renda básica universal. Estima-se que a população mais carente acabe não sendo alcançada por programas sociais pela impossibi- lidade fática de comprovar o atendimento das condições exigidas. A crítica também está no custo de identificação, seleção e mo- nitoramento de beneficiários, que poderia ser revertido para a am- pliação do valor e alcance das transferências. Parece pouco, mas não é. Em um programa assistencial no México, de cada 100 pesos transferidos de forma condicionada a uma família, 10 são desti- nados a gastos administrativos.19Por outro lado, argumenta-se que 19 COADY, D.; PEREZ, R.; VERA-LLAMAS, H. Evaluating the Cost of Poverty Alleviation Transfer Programs: An Illustration Based on PROGRESA in Mexico, 2005. International Food Policy Research Institute. Disponível em: http://ebrary.ifpri. org/utils/getfile/collection/p15738coll2/id/60365/filename/60318.pdf Acesso em 22/4/2020; BANERJEE, A. V.; DUFLO, E. Good Economics for Hard Times. Nova York: PublicAffairs, 2019. 25 os custos de implementação, que variam de acordo com as carac- terísticas dos programas, poderiam ser reduzidos com a integra- ção de sistemas de dados em cada país. De todo modo, remanesce a questão de fundo: as exigências de atendimento a requisitos se justificam? No experimento de Mincome, conduzido no Canadá entre 1974 e 1978, os resultados revelaram que os adolescentes das famílias participantes do programa completaram um ano a mais de escola- ridade. Também foi relatado o decréscimo da taxa de hospitaliza- ção para 8,5%, com quedas expressivas nas admissões por acidentes e lesões e diagnósticos de adoecimento mental. No Zimbábue, as taxas de vacinação de crianças e frequência escolar aumentaram após um ano de transferências em dinheiro20. Já na Finlândia, em piloto conduzido de 2017 a 2018, os resultados demonstraram menor incidência de problemas relacionados a saúde, estresse e ca- pacidade de concentração21. Em nenhum dos três casos as transfe- rências estavam condicionadas ao atendimento de exigências. Desde 2014, países em desenvolvimento criaram 119 programas assistenciais de transferência de renda, dos quais 67 não estipula- vam condições ao recebimento. Ao todo, 1 bilhão de pessoas parti- ciparam de pelo menos algum deles. Em nenhum dos experimen- tos foram encontradas evidências de que pessoas pobres priorizem desejos em detrimento de necessidades. Os dados tampouco indi- caram aumento em gastos com tabaco e álcool. De outro modo, houve ampliação do percentual de despesas destinadas à nutrição, educação e saúde22e incremento do empreendedorismo23. 20 ARNOLD, Carrie. The Anti-Poverty Experiment, Nature, vol. 557. Macmillan Publishers Limited, 2018. 21 KANGAS, op. cit., 2019. 22 BANERJEE; DUFLO, op. cit., 2019. 23 BANERJEE; NIEHAUS; SURI, op. cit., 2019. 26 Universalidade x Desigualdade A escassez de recursos conduz ao questionamento sobre a uni- versalidade do pagamento de renda básica: seria esse um instru- mento eficiente de combate à desigualdade? A depender da forma de sua implementação e custeio, os resultados obtidos podem ser antagônicos. Propostas que apresentem a renda garantida como panaceia dos males sociais devem ser examinadas com cautela. Dentre elas está a de que sua implementação deveria substituir toda sorte de progra- mas e serviços sociais. O dever do Estado terminaria, então, com a transferência da renda e os cidadãos seriam reduzidos ao papel de consumidores. A eles caberia organizar o orçamento pessoal para dar conta de despesas com educação, saúde e seguridade e se pla- nejar para momentos de maior vulnerabilidade, previsíveis ou não. Essa visão gera distorções e contribui para agravar a situação de pessoas mais vulneráveis. Um estudo realizado nos Estados Unidos evidenciou que o pagamento de uma renda módica em substituição aos programas sociais existentes direcionaria parcelas menores do orçamento para famílias com filhos, idosos ou deficientes. Além disso, pessoas de classe média seriam mais beneficiados do que os pobres24. Também a Organização Internacional do Trabalho (OIT) tratou dos efeitos da completa eliminação de programas públicos para implementação da renda garantida. Entre as consequências pre- vistas estão o acentuamento das desigualdades de renda e gênero, o que contraria as normas de seguridade social da instituição. Sabe-se que a implementação de uma renda universal suficiente para assegurar uma vida digna pode suprir parte das necessidades antes atendidas por meio de programas sociais. Em todo caso, essa análise deve ser feita de forma criteriosa e baseada em evidências, 24 HOYNES, H; ROTHSTEIN, J. Universal Basic Income in the United States and Advanced Countries. Annual Review of Economics, 2019. 27 sob pena de retrocesso social a um alto preço. Mudanças e cance- lamentos de programas devem ser precedidos de amplo debate, em que tenham voz os cidadãos afetados pelas medidas, assim como instituições que os representam. Só assim é possível entender com profundidade as necessidades envolvidas e responder a elas de forma justa e eficiente no desenvolvimento de políticas públicas. Outro caminho envolve a criação e majoração de impostos que contribuam para a redistribuição da riqueza. A concepção de que cortes tributários na camada mais rica da população geram crescimento econômico, embora comum na justificativa de polí- ticas públicas, está praticamente superada entre economistas. Um estudo recente desenvolvido na Universidade de Chicago analisou os efeitos de trinta e uma reformas tributárias desde a guerra. Os resultados demonstraram que a redução de tributos beneficiando os 10% mais ricos não produziram crescimento na taxa de emprego e renda, enquanto cortes de impostos para os outros 90% da popu- lação sim25. Impostos progressivos sobre a renda, assim como a tri- butação da riqueza, podem exercer papel importante na construção de uma saída equânime e eficiente para a implementação da renda universal. Meios existem – as dificuldades estão na vontade política de implementá-los. No Brasil, o imposto sobre grandes fortunas, embora previsto na Constituição, nunca foi regulamentado. Também outras soluções merecem ser estudadas. No Alaska, um fundo permanente financiado por parte das receitas estataiscom a produção de óleo tem gerado dividendos anuais aos residen- tes desde 198226. O valor, pago anualmente, não é suficiente para o 25 ZIDAR, O. Tax Cuts for Whom? Heterogeneous Effects of Income Tax Changes on Growth and Employment. Journal of Political Economy 127, nº 3, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1086/701424 Acesso em 22/4/2020; BANERJEE; DUFLO, op. cit., 2019. 26 PARIJS, P. V.; VANDERBORGHT, Y. Basic Income. A Radical Proposal for a Free Society and a Sane Economy. Londres: Harvard Univerty Press, 2017; STANDING, Guy. Basic Income and How We Can Make It Happen. Londres: Pelican Books, 2017. 28 custeio das despesas básicas do cidadão americano, mas é significativo: em média $ 1.200 por ano, cerca de 2% do PIB do estado. Na intenção de se evitar conflitos de interesse, 95% dos in- vestimentos são realizados fora do Alaska27. Essa medida também previne que os resultados do fundo possam depender da economia local. Entre as críticas, está a de que a riqueza absorvida pelo fundo poderia ter outra destinação. Hoje seu valor total ultrapassa $ 60 bilhões.28 Em relatório fiscal de 2017, o FMI apurou que a implementação de renda básica universal de R$ 1.266 por ano custaria o equiva- lente a 4,6% do PIB nacional. Embora módico, o valor reduziria a pobreza em 11,6 pontos percentuais. Também geraria recuo de 0,05 ponto no índice Gini de desigualdade (a escala varia de 0 a 1)29. O potencial da transferência de renda vai além do impacto positivo em indicadores sociais, de caráter prioritário. Seu efeito multiplica- dor fomenta a economia, produzindo riqueza superior aos valores desembolsados. No programa Bolsa Família, por exemplo, estima- -se que cada real adicional gasto gere um crescimento de R$ 1,78 no PIB nacional e de R$ 2,40 no consumo final das famílias30. O valor e a forma de custeio de uma renda universal e suficien- te para atender às necessidades básicas dos indivíduos são temas controversos, mas que precisam ser enfrentados. A falta de clareza sobre esses pontos foi decisiva para que a Suíça rejeitasse a proposta 27 GREGOR, Mattie. The Alaska Permanent Fund. Disponível em: https://www.swar thmore.edu/writing/alaska-permanent-fund Acesso em 22/4/2020. 28 OUR PERFORMANCE. Disponível em: https://apfc.org/our-performance/ Acesso em 22/4/2020. 29 FUNDO MONETÁRIO INTERNACIONAL. Fiscal Monitor: Tackling Inequality, 2017. Disponível em https://www.imf.org/en/Publications/FM/Issues/2017/10/05/fis cal-monitor-october-2017 Acesso em 22/4/2020. 30 IPEA. Programa Bolsa Família – uma década de inclusão e cidadania. Brasília, 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_conten t&id=20408 Acesso em 22/4/2020. 29 de renda básica, no referendo realizado em 2016. Em uma pesquisa conduzida na semana seguinte à votação, mais de 2/3 responderam que esse era o início de uma longa conversa sobre renda básica, não seu fim31. Não existe caminho único e a construção de um projeto sustentável possivelmente envolve mais de uma das solu- ções apresentadas. Considerações finais: crise, diálogo e mudança O conceito de renda básica universal, de singeleza marcante, tem atraído ao longo da história defensores de diferentes grupos, de democratas a republicanos. Parte dessa diversidade se deve à sim- plicidade de seus contornos. Eles permitem que sua adoção tome formas diferentes e, por consequência, produza efeitos diversos. Na luta contra a pobreza e a desigualdade, a busca do consenso democrático não pode sucumbir a divergências que soem inconci- liáveis. Não são. Aqui também vale comparar a crise da COVID- 19 com a Grande Depressão: foi o alinhamento de interesses de grupos distintos que tornou possível a aprovação de medidas de auxílio social e recuperação econômica. A superação da crise de 1929 foi, então, seguida de um período de grande desenvolvimento social e prosperidade. Os efeitos sociais e econômicos da renda básica universal apenas poderão ser dimensionados com precisão quando ela for adotada com todas as suas características. Até lá, estudo, debate, planeja- mento e implementação gradual são passos necessários, que de- mandam atuação dialogada. Em tempos de crise e depois dela, que essa ideia antiga, mas inovadora, aponte para novos caminhos. 31 STANDING, op. cit., 2017. 31 PANDEMIA, POPULISMO E NOVA ORDEM SOCIAL Anjuli Tostes32 “The rule is, jam to-morrow and jam yesterday – but never jam to-day.” “It must come sometimes to ‘ jam to-day,’” Alice objected. “No, it ca’n’t,” said the Queen. “It’s jam every other day: to-day isn’t any other day, you know” Lewis Carroll, Through the Looking-Glass and What Alice Found There, 1871 O fenômeno do populismo já era estudado com interesse por cientistas políticos e sociais de todo o mundo. Um dos moti- vos da atratividade que a questão representa para esses acadêmicos é comum também aos leigos: o caráter desafiador da retórica po- pulista diante dos consensos da democracia liberal. A pandemia da Covid-19 surge nesse contexto, já bastante tensionado, a inserir mais um ingrediente de complexidade proporcionado pelo medo e pela incerteza. No entanto, o mais provável é que mesmo uma 32 Advogada, Auditora da Controladoria-Geral da União, Bacharel em Relações Internacionais, Especialista em Gestão Pública e Doutoranda em Direito e Economia na Universidade de Lisboa (Portugal). Integrou as comissões de Direitos Humanos e Direito do Trabalho da OAB-DF (2017-2018). Autora de livros e artigos em temas relacionados a Direito, Economia e Democracia. 32 ruptura política não nos leve à nova ordem social ansiada pelos crí- ticos do sistema. Apesar de divergências sobre a natureza do populismo – se uma estratégia ou lógica política (LACLAU, 2005), um discurso (PANIZZA, 2005) ou uma “ideologia fina” (MUDDE, 2007, 2009; STANLEY, 2008; MUDDE et KALTWASSER, 2011, 2013), há ra- zoável consenso na sua caracterização a partir da divisão da socie- dade em dois campos antagônicos - o povo excluído e as elites que estão no poder – e de um forte sentido anti-establishment. A sociedade contemporânea é marcada por uma clivagem social profunda entre os vencedores e os perdedores do processo de mo- dernização. Uma underclass com empregos precários, baixos sa- lários e pouca qualificação engrossa a multidão dos descontentes com um sistema que nunca a contemplou. Diante desse cenário, a rejeição do status quo é natural, bem como de tudo o que remete a ele: os partidos tradicionais, que se al- ternam no poder sem trazer mudanças estruturais; a grande mídia, que reproduz o discurso dos poderosos e das corporações que a fi- nanciam; as instituições, que nada fazem contra a reprodução deste estado de coisas, e mais servem para legitimá-la. No Brasil, a equivalência feita pela população entre as opções de um sistema partidário pouco responsivo propiciou terreno fértil para o florescimento do populismo, que explorou as inconsistên- cias nesta ordem ao escancarar a oposição existente entre uma elite microscópica em número, mas gigante em poder, e a massa da po- pulação com poder e influência marginais. A janela de oportunidade populista (ou “momento populista”, na definição de Mouffe, 2019) não aproveitada pela esquerda bra- sileira proporcionou à extrema direita caminho livre para dar às inconsistências evidenciadas no status quo a explicação causal mais útil e de acordo com a sua ideologia. A tese vendida a essas massas com quem o populista se comu- nica foi a de que o grande plano das elites por trás das instituições 33 seria a instalação de um regime comunista no Brasil, a partir da destruição dos valores e da família tradicional. Contra isso, valeria tudo, até uma guerra civil. Metralhar a petralhada. Mandar para a ponta da praia. Matar 30 mil. O importante é eliminar o inimigo demonizado, culpado por levar o país a esse estado de coisas, “a esquerda no poder”, o PT, os comunistas, a própria síntese do mal - o que é muito bem explica-do por Freud ao tratar dos processos de coesão interna dos grupos sociais. A eficiência com que o populismo de extrema direita alcan- çou as grandes massas no Brasil é digna de nota. A pandemia é o elemento novo nesse já muito complexo e in- trincado cenário. A escalada da doença causada pelo novo coro- navírus, em uma magnitude não conhecida por esta geração, é efetivamente chocante. Mas não tem, por si só, o condão de ensejar mudanças realmente profundas. A Gripe Espanhola, outra pande- mia de escala até superior, também não teve. O que tem capacidade de alterar o curso da história, a caracterizar uma efetiva ruptura da ordem política e econômica, são as transformações nos modos de reprodução da vida em sociedade. Foi a adoção da lógica “bárbara”, na verdade mais adaptável e mais coletivista, que levou ao fim do Império Romano e ao nas- cimento do feudalismo. Foi o surgimento da burguesia e o ressur- gimento das cidades que levou à Revolução Francesa e ao ocaso da Idade Moderna. Foi a escolha pelo modo de vida socialista que levou ao mundo bipolar. Mesmo catástrofes de grande magnitude humanamente provocadas, como a Primeira e a Segunda Grandes Guerras Mundiais, são incapazes de gerar mudanças estruturais no sistema econômico quando não alteram as bases do modo de re- produção da vida em sociedade. Mas o novo coronavírus surge em um contexto em que o siste- ma atual já se encontrava com uma legitimidade bastante fragiliza- da, não só no Brasil, mas em várias partes do mundo. Para aqueles que têm como projeto uma nova ordem, o caos social, político e 34 econômico gerado por uma pandemia proporciona a “tempestade perfeita” para uma possível transição. E é de forma radicalmente política que o tema tem sido maneja- do pelo governo Bolsonaro, mesclando negacionismo da pandemia, grandes conspirações da esquerda nacional e mundial, e o remédio milagroso da Cloroquina. A recalcitrância da mídia e das institui- ções em divulgar o medicamento, ainda em fase de testes, como a solução definitiva da doença é que seria responsável pelas milhares de mortes – e não a campanha ostensiva do próprio Presidente da República contra o isolamento social. Novamente, o fio narrativo é o mesmo: tudo terá sido feito para criar as condições de instalar uma ditadura comunista no Brasil - inclusive o próprio vírus, sin- tetizado em laboratório pelo governo chinês. É antagonizando com a imprensa, com as instituições e com os partidos que Bolsonaro segue adotando a estratégia populista como método de governo, e alimentando sua base política entre os descontentes com a ordem. Se fizesse diferente, como muitos su- punham que faria após a campanha, seria automaticamente iden- tificado com o sistema e perderia o magnetismo que exerce junto a essas massas. Propostas de saída fora da ordem democrática liberal, como um autogolpe, se tornam cada vez mais fortes, mais presentes, mais ruidosas, a ponto de produzir buzinaços na frente de hospitais em que doentes de Covid-19 agonizam. O Brasil atual já era um barril de pólvora. A pandemia – que, tomada por si só, mudaria pouco - é a fagulha que faltava para fazê-lo explodir. Mas, ainda que o autogolpe se concretize e consolide uma rup- tura política, esta não levará à mudança esperada pela multidão de descontentes. Porque a ordem econômica capitalista não apenas permanecerá intacta em seus princípios estruturantes, como terá efeitos ainda mais gravosos sobre os perdedores do processo de modernização, a partir do aprofundamento da ideologia ultralibe- ral. Não há alternativa no capitalismo porque a lógica deste sistema 35 e a de uma sociabilidade sustentável e inclusiva são muito distintas. O objetivo do primeiro é a maximização do lucro. O da segun- da, a coexistência solidária entre seres humanos e a preservação do planeta. É possível conciliá-las? Talvez em teoria - foi o que buscaram os economistas clássicos, com seus altíssimos níveis de abstração e excessos dedutivistas. Quanto mais egoístas forem os indivíduos, melhor para a coletividade, diziam eles. “It is not from the benev- olence of the butcher, the brewer, or the baker that we expect our dinner, but from their regard to their own self-interest”33, asseverou Adam Smith, em um dos trechos mais célebres d’A Riqueza das Nações (An Inquiry into the Nature and Causes of the Wealth of Nations, 1776), argumento repetido por escolas posteriores. Mas, na prática, o que temos visto desse sistema são os seus efei- tos devastadores em termos de aumento da poluição e do aqueci- mento global, da cultura do descarte e do consumismo, das desi- gualdades extremas, das centenas de milhões de vidas em absoluta pobreza, das famílias de refugiados fenecendo à deriva. E das pan- demias e catástrofes evitáveis. Uma proposta de ruptura em direção a uma sociedade mais so- lidária será, essencialmente, uma proposta anticapitalista. De fato, a história produz três tipos de mudanças na ordem social, a partir da dinâmica entre Estado e sociedade. As marginais, que envolvem um pequeno deslize ao longo do espectro Estado- Mercado para algumas políticas. As conjunturais, que representam alterações na concepção do papel do Estado, em medida suficien- te para que o próprio sistema não entre em colapso, e que podem durar algumas décadas; e as estruturais, que são transformações nas formas de reprodução da vida em sociedade. 33 Em tradução livre: “Não é pela benevolência do açougueiro, do cervejeiro ou do padeiro que nós contamos com o nosso jantar, mas pela consideração do seu próprio interesse.” 36 Dentro do capitalismo não haverá mudanças profundas. No máximo, uma concepção Estado-mercado menos desumana, em que se atribua ao primeiro deste binômio maiores ferramentas para a proteção dos mais vulneráveis, em situações de pandemia ou fora delas. Naturalmente algo que não virá de graça, mas como respos- ta para evitar um contramodelo que eventualmente ganhe força diante das sociedades. É o que houve nos EUA após a crise de 1929. Naquele contexto histórico, havia um contraponto real ao modo de vida capitalista, o que fez com que os próprios mediadores deste sistema, em seus respectivos países, produzissem a resposta necessária para evitar “o mal maior” – a ruptura, a revolução, o socialismo – produzindo o que ficou conhecido como o Estado de Bem-Estar Social. Roosevelt não acordou um belo dia, após a crise de 1929, e re- solveu editar o New Deal. Nem Bismarck lançou os fundamentos do Estado de Bem-Estar Social alemão, no final do século XIX, sem que isso representasse uma reação ao perigo de crescimento da ideologia socialista que ganhava corpo em seu país, a partir da edição do Manifesto Comunista em 1848 – ou mesmo como uma resposta aos social democratas, com quem disputava poder. Em ambos os casos, as melhoras trazidas à maioria da popu- lação em termos de regras trabalhistas menos opressivas (ou uma suavização da exploração) e da garantia de um mínimo existencial responderam ao perigo ao sistema que representava a conversão de países ao socialismo – em última análise, o próprio fim do capita- lismo para aqueles países. O Welfare State foi um rearranjo conjuntural em resposta à crise e à correlação de forças existentes naquele momento, até que as forças do próprio sistema pudessem se reorganizar para perseguir a lógica capitalista fundamental da maximização do lucro acima de tudo - o que só foi possível a partir da década de 70, com a dete- rioração do regime soviético e a ascensão do paradigma neoliberal, com Reagan nos EUA e Tatcher no Reino Unido. 37 Não é isso o que está posto agora. As condições são muito di- ferentes. Embora a China politicamente funcione em torno do Partido Comunista Chinês - PCC, no seio do qual a vida estatal acontece, no âmbito econômico vigora atualmente a economia so- cialista de mercado, introduzida a partir das reformas levadas a cabo por Deng Xiaoping em 1978. Segundo a definição de Jiang Zemin, durante o 14ºCongresso Nacional do Partido Comunista Chinês em 1992, trata-se de um estágio preliminar do desenvolvimento socialista chinês - concep- ção que se amolda à teoria marxista tradicional como uma etapa necessária ao desenvolvimento das forças produtivas rumo a uma sociedade socialista avançada. A economia socialista de mercado chinesa se caracteriza pela combinação entre propriedade estatal e coletiva de empresas - com especial foco em setores estratégicos - e empresas privadas, ambas atuando a partir do mercado, mas orientadas a partir de um pla- nejamento sistêmico. Uma “integração orgânica entre economia planificada e economia de mercado, com total uso das vantagens de ambos” (JIANG, 2006, p.203) para o processo de modernização chinesa. Há maior controle macroeconômico do que nas social-democra- cias ocidentais (CHUN, 2009), e forte intervencionismo estatal. Sob Xi Jinping34, os representantes do PCC têm atuado “como observa- dores ou membros do conselho em empresas estatais e empresas pri- vadas, a fim de verificar e promover a implementação dos segmentos relevantes do planejamento” (PELKMANS, 2018, p. 269).35 No entanto, apesar de muito diversa do paradigma neoliberal, a “economia de socialista de mercado com características chinesas” 34 Atual Presidente da República Popular da China e Secretário-Geral do Partido Comunista Chinês (PCC). 35 Segundo Pelkmans (2018), cerca de 150.000 empresas possuem membros do PCC em seus conselhos, com tendência a crescimento deste número. 38 não se diferencia hoje o suficiente para servir como um contrapon- to ao capitalismo ocidental, como foi o modelo soviético, em espe- cial no que se refere a um esquema de desenvolvimento produtivo combinado com um sistema avançado de proteção social. Situação que também pode mudar na medida em o país atinja o nível que espera em termos de “desenvolvimento”36 - é o que sugere o argu- mento37 em torno da prioridade ao “direito ao desenvolvimento” pelos mandatários chineses como fundamento para o exercício material de outros direitos. Em alguns aspectos, como a ênfase no direito ao desenvolvi- mento e a comprovação fática de que medidas heterodoxas fun- cionam - em contraste com as experiências fracassadas que repre- sentaram as aplicações do Consenso de Washington aos países em desenvolvimento – pode se legitimar uma melhoria nas regras in- ternacionais para países mais pobres. Mesmo sobre este último ponto há de se ter uma certa dose de ceticismo, em face do nível de desenvolvimento já alcançado pela China e sua recente aceitação de diversas das “regras do jogo” em nível internacional, algo perfeitamente explicado no livro Kicking Away the Ladder (2002), de Ha-Joon Chang. Não deveremos ver nada realmente substantivo em termos de ruptura com o sistema capitalista, ao menos não por agora, enquan- to o processo socialista chinês não está consolidado. No máximo, a Covid-19 terá funcionado como um catalizador do processo de surgimento da China como o novo hegemon no sistema interna- cional, de modo semelhante ao que a Segunda Guerra Mundial 36 O termo desenvolvimento aqui é abordado de forma crítica, uma vez que reflete um caminho civilizatório que ignora outras formas de vida e visões de mundo mais adaptadas ao planeta, como a de diversos povos tradicionais. 37 O White Paper produzido pelo Gabinete de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China, em dezembro de 2016, intitulado “The Right to Development: China’s Philosophy, Practice and Contribution” traz uma boa síntese deste argumento. 39 representou para o processo de conquista do poder hegemônico pelos EUA. O mais provável para os próximos anos é o cenário de “caos sis- têmico”, definido por Arrighi e Silver (1999) na Teoria do Sistema- Mundo, caracterizado pelo dissolvimento das estruturas de poder em torno da hegemonia decadente - que já não consegue apresentar seu interesse particular como universal - diante da emergência do novo paradigma político e econômico. Nesse contexto, o conflito entre EUA e China deve se radicalizar, com a proposição, pela última, de estruturas novas e concorrentes que precipitam as anteriores ao colapso. O projeto de desenvolvi- mento e integração sinocêntrico denominado “Nova Rota da Seda” (Belt and Road Initiative - BRI) e o Banco Asiático de Investimento em Infraestrutura (Asian Infrastructure Investiment Bank - AIIB), alternativo ao Banco Mundial, antecipam a natureza dessa disputa. Em termos marginais à regulação geral do sistema, algumas ins- tituições podem, sim, mudar. Por exemplo, o paradigma fiscalista, que escondia recursos urgentes para políticas públicas sob a justi- ficativa de um supostamente necessário equilíbrio fiscal, pode ruir parcialmente. “There Is No Alternative”38 – TINA, slogan político de Tatcher para significar que não há alterativas às regras ditadas pelo capitalismo neoliberal, argumento semelhante ao que muitos governos utilizam para justificar o contingenciamento de tudo que não seja o pagamento de juros da dívida, mostrou ser o que sempre foi: um argumento político, não uma fatalidade econômica ou uma inexorabilidade jurídica. Mas, mesmo neste último caso, tudo dependerá de uma even- tual mudança na atual correlação de forças. Em uma economia altamente financeirizada e mais dependente das “regras do jogo” do que dos ganhos de produção da economia real, o cenário é pouco favorável até a alterações marginais que tenham o condão de 38 Em tradução livre: “Não há alternativa.” 40 contrariar os interesses dos grandes investidores e conglomerados econômicos. Mais ainda quando o país é comandado por um governo de ideologia marcadamente ultraliberal. Magicamente, os 40 bilhões de contingenciamento ”inevi- tável” para o primeiro semestre no Brasil deixaram de existir. Magicamente, surgiram 600 a 1200 reais para garantia mínima de sobrevivência das famílias. Magicamente, surgiram recursos para a compra de dezenas de milhares de respiradores e para a criação de leitos de UTI e novos hospitais. Magicamente descobriu-se o óbvio: esses recursos sempre existiram, mas não eram utilizados graças a decisões políticas, cujas motivações são bastante duvido- sas, para sermos generosos. Justificativas, não ciência, não “técni- ca”, não algo que deva ser situado fora do contexto democrático, como muitas vezes se faz. Por outro lado, o povo é saqueado com a aprovação de leis e pacotes de resgate escandalosos que favorecem banqueiros, como a “PEC do Orçamento de Guerra”, PEC 10/2020, que auto- riza a compra de títulos podres dos bancos privados pelo Banco Central, convertendo-os em dívida pública. Colocadas lado a lado, as “ajudas” têm dimensões incomparáveis. Mais uma vez, utiliza- -se a crise para validar decisões com consequências permanen- tes de favorecimento dos super-ricos, em prejuízo das massas de trabalhadores endividadas e precarizadas. O suporte teórico de acadêmicos e think thanks muito bem pagos que contribui para conferir um lastro de legitimidade ao atual sistema também deve sofrer duro golpe. Os preços negativos do petróleo atingidos em 20.04 – menos 40 dólares o barril, no caso do West Texas Intermediate (WTI) - um dia antes do vencimento de seus contratos, escancaram o fato de que a racionalidade econômica dos agentes do mercado, em es- pecial do financeiro, não é muito funcional diante de cenários de incerteza. 41 Some-se a esse contexto a falência generalizada de empresas que deve se seguir, em especial das acostumadas a operar com capital de giro reduzido, das que abusaram (mais uma vez) na distribuição de lucros a acionistas e de bônus a CEOs, e das que integram se- tores ligados ao turismo, como o aéreo e o hoteleiro. Essas, exceto quando vinculadas ao Estado ou quando deste receberem genero- sos auxílios, tenderão a sucumbir. O sistema de saúde caríssimo e altamente privatizado dos EUA certamente jogou um papel central para transformar o país hoje no maior epicentro dapandemia. Uma doutrina que dispute a nova ortodoxia possuirá material farto para demonstrar que o Estado é mais necessário do que muitas teorias econômicas mainstream advogam. Citando outro famoso enunciado de Tatcher “There is no such thing as society. There are individual men and women and there are families”39, a disseminação da Covid-19 transversalmente a raças, nacionalidades e classes sociais mostrou à humanidade que ela está mais conectada do que pensava, ou, ao menos, do que a ideologia neoliberal ultraindividualista pretendia nos fazer pensar. Os super- -ricos não estão tão protegidos quanto eles próprios imaginavam. Ao menos, esse legado positivo o coronavírus terá. Conclusão O sistema atual não é bom o suficiente, ao menos para uma larga parcela da população. A clivagem profunda existente em di- versas das sociedades atuais reflete-se em um descontentamento com a ordem estabelecida que atinge patamares desafiadores. Não é por acaso que o populismo e seu caráter iconoclasta grassam no 39 Em tradução livre: “Não existe tal coisa como a sociedade. Há indivíduos homens e mulheres e há famílias.”. 42 cenário atual. No Brasil, a combinação entre populismo e o caos temporário causado pela pandemia abre espaço para a tentativa de uma ruptura democrática que, no entanto, não representará a nova ordem que as massas de trabalhadores insatisfeitos esperam. Uma nova ordem que rompa com o capitalismo ou mesmo uma nova onda de Estados de Bem-Estar Social só será possível com a consolidação de um contramodelo em nível mundial, o que pode acontecer, futuramente, a partir da China. A mitigação do para- digma fiscalista, a fragilização do suporte teórico ao ultraliberalis- mo e a percepção de que os seres humanos estão mais conectados do que imaginavam podem ser legados positivos da crise do novo Coronavírus para as classes populares. Referências ARRIGHI, G. & SILVER, B. J. Beverly (1999). Chaos and governance in the modern world system. Minneapolis: University of Minnesota Press. CHANG, H. (2002). Kicking Away the Ladder: Development Strategy in Historical Perspective. Londres: Anthem Press. CHUN, L. (2009). ‘China and the World’. Science & Society, Vol. 73, No. 2, pp. 235–241. Gabinete de Informação do Conselho de Estado da República Popular da China (2016). The Right to Development: China’s Philosophy, Practice and Contribution. Disponível em http://www.scio.gov.cn/32618/ Document/1534069/1534069.htm. Acesso em 20.04.2020. GONG, X., & CORTESE, C. (2017). A socialist market economy with Chinese characteristics: The accounting annual report of China Mobile. Accounting Forum, 41(3), 206–220. doi:10.1016/j.accfor.2017.04.002 HAWKINS, K. A. et al. (eds) (2018) The Ideational Approach to Populism: Concept, Theory, and Analysis. Abingdon: Routledge. http://www.scio.gov.cn/32618/Document/1534069/1534069.htm http://www.scio.gov.cn/32618/Document/1534069/1534069.htm 43 JIANG, Z. M. (2006). Selected works of Jiang Zemin, Vol. I. Pequim: People’s Publishing house. LACLAU, E. (2005). On Populist Reason. Nova York e Londres: Verso. MOUFFE, Chantal (2019). For a left populism, London/New York: Verso. MUDDE, C. (2007) Populist Radical Right Parties in Europe. Cambridge: Cambridge University Press. _________. (2009) ‘Populist Radical Right Parties in Europe Redux’, Political Studies Review, 7 (3), 330–337. MUDDE, C. et KALTWASSER, C. (eds) (2012). Populism in Europe and the Americas: Threat or Corrective to Democracy? Cambridge: Cambridge University Press. _________________________. (2013). ‘Populism’, in Freeden, M., Sargent, L. T., and Stears, M. (eds) The Oxford Handbook of Political Ideologies. Oxford: Oxford University Press, pp. 493–512. PANIZZA, F. (2005) ‘Introduction: Populism and the Mirror of Democracy’, in F. Panizza (ed.), Populism and the Mirror of Democracy. London: Verso, pp. 1–31. PELKMANS, J. (2018). ‘China’s Socialist Market Economy: A Systemic Trade Issue.’ Intereconomics, 53(5), 268–273. doi:10.1007/s10272-018- 0764-1 SMITH, A. (1997[1776]). The Wealth of Nations - An Inquiry Into the Nature and Causes of the Wealth of Nations. Chicago: University Of Chicago Press STANLEY, B. (2008) ‘The Thin Ideology of Populism’, Journal of Political Ideologies, 13 (1), 95–110. 45 VÍRUS: TUDO O QUE É SÓLIDO DESMANCHA NO AR Boaventura de Sousa Santos40 Existe um debate nas ciências sociais sobre se a verdade e a qua-lidade das instituições de uma dada sociedade se conhecem melhor em situações de normalidade, de funcionamento corrente, ou em situações excepcionais, de crise. Talvez os dois tipos de situa- ção sejam igualmente indutores de conhecimento, mas certamente permitem-nos conhecer ou relevar coisas diferentes. Que poten- ciais conhecimentos decorrem da pandemia do coronavírus? A normalidade da exceção. A atual pandemia não é uma situa- ção de crise claramente contraposta a uma situação de normali- dade. Desde a década de 1980 – à medida que o neoliberalismo se foi impondo como a versão dominante do capitalismo e este se foi sujeitando mais e mais à lógica do setor financeiro – o mundo tem vivido em permanente estado de crise. Uma situação duplamente anômala. Por um lado, a ideia de crise permanente é um oximoro, já que, no sentido etimológico, a crise é por natureza excepcional e passageira e constitui a oportunidade para ser superada e dar origem a um melhor estado de coisas. Por outro lado, quando a crise é passageira, ela deve ser explicada pelos fatores que a pro- vocam. Mas quando se torna permanente, a crise transforma-se 40 Professor Catedrático Jubilado da Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra e Distinguished Legal Scholar da Universidade de Wisconsin-Madison. Director Emérito doCentro de Estudos Sociaisda Universidade de Coimbra e Coordenador Científico do Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. https://www.ces.uc.pt/pt 46 na causa que explica tudo o resto. Por exemplo, a crise financeira permanente é utilizada para explicar os cortes nas políticas so- ciais (saúde, educação, previdência social) ou a degradação dos salários. E assim impede que se pergunte pelas verdadeiras causas da crise. O objetivo da crise permanente é não ser resolvida. Mas qual é o objetivo deste objetivo? Basicamente, são dois os objeti- vos: legitimar a escandalosa concentração de riqueza e impedir que se tomem medidas eficazes para impedir a iminente catástro- fe ecológica. Assim temos vivido nos últimos quarenta anos. Por isso, a pandemia vem apenas agravar uma situação de crise a que a população mundial tem vindo a ser sujeita. Daí a sua específica periculosidade. Em muitos países, os serviços públicos de saúde estavam há dez ou vinte anos mais bem preparados para enfrentar a pandemia do que estão hoje. A elasticidade do social. Em cada época histórica, os modos dominantes de viver (trabalho, consumo, lazer, convivência) e de antecipar ou adiar a morte são relativamente rígidos e parecem decorrer de regras escritas na pedra da natureza humana. É ver- dade que eles se vão alterando paulatinamente, mas as mudanças passam quase sempre despercebidas. A irrupção de uma pan- demia não se compagina com tal tipo de mudanças. Exige mu- danças drásticas. E, de repente, elas tornam-se possíveis como se sempre o tivessem sido. Torna-se possível ficar em casa e voltar a ter tempo para ler um livro e passar mais tempo com os filhos, consumir menos, dispensar o vício de passar o tempo nos cen- tros comerciais, olhando para o que está à venda e esquecendo tudo o que se quer mas só se pode obter por outros meios que não a compra. A ideia conservadora de que não há alternativa ao modo de vida imposto pelo hipercapitalismo em que vivemos cai por terra. Mostra-se que só não há alternativas porque o sistema político democrático foi levado a deixar de discutir as alternati- vas. Como foram expulsas do sistema político, as alternativas irão entrar cada vez mais frequentemente na vida dos cidadãos pela47 porta dos fundos das crises pandêmicas, dos desastres ambien- tais e dos colapsos financeiros. Ou seja, as alternativas voltarão da pior maneira possível. A fragilidade do humano. A rigidez aparente das soluções so- ciais cria nas classes que tiram mais proveito delas um estranho sentimento de segurança. É certo que sobra sempre alguma inse- gurança, mas há meios e recursos para os minimizar, sejam eles os cuidados médicos, as apólices de seguro, os serviços de empre- sas de segurança, a terapia psicológica, as academias de ginástica. Este sentimento de segurança combina-se com o de arrogância e até de condenação para com todos aqueles que se sentem viti- mizados pelas mesmas soluções sociais. O surto viral interrompe este senso comum e evapora a segurança de um dia para o outro. Sabemos que a pandemia não é cega e tem alvos privilegiados, mas mesmo assim cria-se com ela uma consciência de comunhão planetária, de algum modo democrática. A etimologia do termo pandemia diz isso mesmo: todo o povo. A tragédia é que neste caso a melhor maneira de sermos solidários uns com os outros é isolarmo-nos uns dos outros e nem sequer nos tocarmos. É uma estranha comunhão de destinos. Não serão possíveis outras? Os fins não justificam os meios. O abrandamento da atividade econômica, sobretudo no maior e mais dinâmico país do mundo, tem óbvias consequências negativas. Mas tem, por outro lado, al- gumas consequências positivas. Por exemplo, a diminuição da po- luição atmosférica. Um especialista da qualidade do ar da agência especial dos EUA (NASA) afirmou que nunca se tinha visto uma quebra tão dramática da poluição numa área tão vasta. Quererá isto dizer que no início do século XXI a única maneira de evitar a cada vez mais iminente catástrofe ecológica é por via da des- truição massiva de vida humana? Teremos perdido a imaginação preventiva e a capacidade política para a pôr em prática? É também conhecido que, para controlar eficazmente a pandemia, a China acionou métodos de repressão e de vigilância 48 particularmente rigorosos. É cada vez mais evidente que as medidas foram eficazes. Acontece que a China, por muitos méritos que tenha, não tem o de ser um país democrático. É muito questionável que tais medidas pudessem ser acionadas ou acionadas com igual eficácia num país democrático. Quer isto dizer que a democracia carece de capacidade política para responder a emergências? Pelo contrário, The Economistmostrava no início deste ano que as epidemias tendem a ser menos letais em países democráticos devido à livre circulação de informação. Mas como as democracias estão cada vez mais vulneráveis àsfake news,teremos de imaginar soluções democráticas assentes na democracia participativa ao nível dos bairros e das comunidades e na educação cívica orientada para a solidariedade e cooperação, e não para o empreendedorismo e competitividade a todo custo. A guerra de que é feita a paz.O modo como foi inicialmente construída a narrativa da pandemia nas mídias ocidentais tornou evidente a vontade de demonizar a China. As más condições hi- giênicas nos mercados chineses e os estranhos hábitos alimen- tares dos chineses (primitivismo insinuado) estariam na origem do mal. Subliminarmente, o público mundial era alertado para o perigo de a China, hoje a segunda economia do mundo, vir a dominar o mundo. Se a China era incapaz de prevenir tamanho dano para a saúde mundial e, além disso, incapaz de o superar eficazmente, como confiar na tecnologia do futuro proposta pela China? Mas terá o vírus nascido na China? A verdade é que, se- gundo a Organização Mundial de Saúde, a origem do vírus ainda não está determinada. É, por isso, irresponsável que os meios ofi- ciais do EUA falem do “vírus estrangeiro” ou mesmo do “coro- navírus chinês”, tanto mais que só em países com bons sistemas públicos de saúde (os EUA não são um deles) é possível fazer testes gratuitos e determinar com exatidão os tipos de influenza ocorri- dos nos últimos meses. Do que sabemos com certeza é que, muito para além do coronavírus, há uma guerra comercial entre a China 49 e os EUA, uma guerra sem quartel que, como tudo leva a crer, terá de terminar com um vencedor e um vencido. Do ponto de vista dos EUA, é urgente neutralizar a liderança da China em quatro áreas: a fabricação de celulares, as telecomunicações da quinta ge- ração (a inteligência artificial), os automóveis elétricos e as ener- gias renováveis. A sociologia das ausências. Uma pandemia desta dimensão causa justificadamente comoção mundial. Apesar de se justificar a dramatização é bom ter sempre presente as sombras que a vi- sibilidade vai criando. Por exemplo, os Médicos Sem Fronteiras alertam para a extrema vulnerabilidade ao vírus por parte dos muitos milhares de refugiados e imigrantes detidos nos campos de internamento na Grécia. Num desses campos (campo de Moria) há uma torneira de água para 1300 pessoas e falta sabão. Os in- ternados não podem viver senão colados uns aos outros. Famílias de cinco ou seis pessoas dormem num espaço com menos de três metros quadrados. Isto também é Europa – a Europa invisível. 51 NADA MAIS SERÁ COMO ANTES Ciro Gomes41 Vivemos hoje o impacto da maior crise sanitária desde a gripe espanhola, que se transformou, no Brasil, que já vinha sob o jugo de uma longa estagnação, na maior crise econômica de nossa história. No momento em que entrego esse texto para considera- ção dos organizadores desse livro, ainda é cedo para estimar como vamos sair desse drama político, econômico e principalmente sani- tário. Mas, como quer que saiamos, acredito que o Brasil e o mundo nunca mais serão os mesmos. Essa pandemia materializou alguns dos piores temores que tenho abordado ao longo de minha militância nos últimos cinco anos. Neste texto, quero levar principalmente quatro conjuntos de considerações para vocês sobre a crise mundial e brasileira do COVID-19. Primeiro, as medidas sanitárias que devem ser toma- das, de acordo com os especialistas, para diminuir o número de mortes, mas o que é minha seara, que medidas econômicas e ad- ministrativas tem que ser adotadas em conjunto para viabilizar as sanitárias. Segundo, a evidenciação pela crise do que tenho defen- dido há anos: a necessidade de termos um complexo industrial de saúde forte e soberano. Terceiro, a impotência do neoliberalismo diante de um quadro pandêmico. Quarto, a possibilidade de que essa crise gere uma mudança de hábitos e tomada de consciência 41 Advogado. Professor de Direito Constitucional. Foi Prefeito de Fortaleza, Governador do Ceará, Deputado Federal e Ministro de Estado da Fazenda e da Integração Nacional. Candidato a Presidente da República em 1998, 2002 e 2018. 52 de uma parte maior da humanidade sobre a loucura do rumo que estamos tomando. O que fazer agora? Neste momento, é terrivelmente falso afirmar que “primeiro a gente cuida da vida das pessoas, depois da economia”, pois se a economia se desintegrar, a saúde e a vida das pessoas se desintegra- rão juntos. Também é terrivelmente falso, e perverso, afirmar que a gente “tem que cuidar da economia primeiro senão vai ser pior para a vida dos pobres” porque se a saúde pública se desintegrar, a economia desintegra junto. As medidas necessárias a serem tomadas são simultâneas no campo da saúde pública e da economia. Não só para salvar a maior quantidade de vidas humanas, como para garantir a menor desor- ganização de nossa economia. A única opção moralmente responsável nesse cenário de incer- teza é nos basearmos no melhor que a ciência tem a oferecer para tomar nossas decisões. E segundo ela, precisamos radicalizar a quarentena e o isolamento social, com testes maciços. Este livro terá especialistas muito mais gabaritados do que eu para abordar em detalhes esse problema. Mas não é difícil enten- der que com um vírus que tem uma taxa de letalidade alta e uma transmissibilidade idem, o isolamento social de todos aqueles que não estãodiretamente envolvidos na manutenção de atividades es- senciais cumpre o objetivo de distribuir ao longo do tempo o con- tágio com o vírus e ganhar tempo para preparar os hospitais, testar medicamentos paliativos e diminuir a quantidade de doentes na rede de saúde. A tragédia em Milão e em Nova York nos ensina bem o que acontece quando isso não é feito. 53 Só que para garantir o isolamento da maioria da população é preciso garantir sua sobrevivência, e isso só pode ser feito com po- derosos pacotes fiscais para financiar a renda das pessoas e das em- presas, salvando nossa economia. A rapidez de todas essas medidas é vital. Mesmo o ministério da Saúde tem gerido terrivelmente a crise até o momento. Ainda sob o comando do Ex-ministro da Saúde Henrique Mandetta, passou dois meses sem efetuar qualquer con- trole de entrada no país de cidadãos vindos da Itália e Espanha, assim como impediu o início do isolamento em Brasília quando surgiram os primeiros casos de transmissão comunitária na cidade. Com dois meses de dianteira para preparar o país para a falta de UTIs e respiradores, nada fez. Ainda hoje, o Brasil é o último colo- cado no mundo em testes por população, que é o que nos poderia dar não só a exata dimensão da extensão da doença como o cami- nho para uma flexibilização futura segura do confinamento. Não podemos deixar de reconhecer, no entanto, que a maior responsabilidade por essa irresponsabilidade assassina com o povo brasileiro foi da personagem inqualificável que se encontra agora no mais alto cargo executivo brasileiro, um genocida que aposta no caos econômico e social por inconfessáveis interesses políticos. O resultado dessa crise que tem alta possiblidade de previsibili- dade seguindo os ditames da ciência e o valor da vida em primeiro lugar, se torna, na ausência disso, imprevisível. As lideranças políticas brasileiras, que hoje se articulam ao redor do Congresso Nacional e dos governadores, assumiram a frente da resolução desses graves problemas. É a política, principalmente, que deverá proteger o país na crise, e implementar as profundas transformações que o Brasil precisará para sair dela. Nesse momento, não resta opção, o Estado brasileiro terá que aumentar seu endividamento, e é isso o que estão fazendo todas as economias desenvolvidas do mundo. 54 O consenso em torno dessas pesadas políticas fiscais anticíclicas se formou rapidamente entre todos os economistas, mesmo conser- vadores. É o esforço que está sendo feito e liderado no mundo todo pelos governos centrais. Menos no Brasil. O dinheiro a ser liberado pelo governo para os cidadãos que fi- caram sem fonte de renda tem que ser carimbado, em cartão espe- cial da Caixa, só podendo ser gasto em empresas e estabelecimentos que aderirem a um termo de compromisso de não demitir durante o período. E o depósito compulsório só poderia ser liberado para bancos que se comprometam a não cobrar juros durante o período e a emprestar para as empresas que necessitam. Há, no momento em que escrevo, R$1,35 TRILHÃO no caixa único do tesouro nacional e mais de 300 bilhões de dólares em nossas reservas. Parte disto está já liberado (o suficiente para três meses da renda mínima, pelo menos equivalente a R$ 100 bilhões). A outra parte está vinculada a fundos, exigibilidades financeiras, regra de ouro, teto de gastos, enfim, travas institucionais perfeita- mente removíveis por ação legislativa do Congresso Nacional ou liminares judiciais praticáveis ante o estado de calamidade pública já declarado. A conta desse aumento de endividamento, no entanto, vai chegar. E no momento em que ela chegar no segundo país mais desigual do mundo, o nosso conflito distributivo se tornará mais evidente e feroz. O equilíbrio futuro de nossas contas pode ser facilmente alcan- çado cobrando daqueles que sempre foram privilegiados na so- ciedade semi-escravagista brasileira. Num país onde seis pessoas detém a mesma riqueza que a metade mais pobre da população, chegou a hora de pagarem a conta. Deveríamos adotar o imposto progressivo sobre grandes fortu- nas (que consta em nossa Constituição e nunca foi regulamentado), mesmo que, provisoriamente, cobrando algo entre 0,5% sobre pa- trimônios superiores a R$22 milhões de reais, aumentar o imposto 55 sobre heranças em caráter emergencial e o imposto de renda pro- gressivo sobre lucros e dividendos empresariais, que juntos, arreca- dariam, em um ano, ao redor de R$ 200 bilhões. Temos que rever todas as renúncias fiscais hoje existentes no valor de R$320 bilhões por ano, além de promover um corte de saída de 20% nelas. Essas medidas ajudariam a manter nossa dívida sob controle. Porque o equilíbrio fiscal não é uma vaca sagrada, mas ele é desejável, uma vez que dinheiro nós podemos criar do nada, mas riqueza real não. E um país que mantém saúde fiscal é um país que controla a distribuição da riqueza real produzida. Sem um pacote gigante para os cidadãos e as empresas sobrevi- verem a essa situação inédita, assistiremos a uma destruição sem precedentes da já debilitada economia brasileira. Infelizmente é para onde caminha o Brasil hoje sob a falta de comando de Guedes e Bolsonaro. Haverá o tempo de cobrarmos as responsabilidades pelo que virá. Mas no momento em que escrevo estas palavras essa ocasião ainda não chegou. Ainda é tempo de pressionar para que nos unamos na defesa das vidas de nosso povo e da sobrevivência de nossas empresas. A necessidade de um complexo industrial da saúde A tragédia que se abateu sobre nós tornou mais evidente a ne- cessidade soberana de termos um complexo industrial da saúde forte. Hoje estamos sofrendo não somente com a falta de determi- nados bens primários de saúde, mas com a própria incapacidade de produzi-los rapidamente. De máscaras a respiradores, de roupas seguras a reagentes químicos, tudo falta neste país e o governo ge- nocida ainda fabrica uma crise diplomática com a única nação que poderia fornecê-los neste momento para nós. 56 No Brasil todo ano a União importa desde produtos de tecnolo- gia rudimentar, como camas de hospital, próteses, muletas, cadeiras de rodas, até produtos sofisticados, como aparelhos de ressonância magnética e de tomografia computadorizada. Segundo estimativa de Carlos Gadelha, da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), cerca de 80% dos medicamentos que importamos e dos componentes quí- micos usados para produzi-los no Brasil se encontram com a pa- tente vencida. Apenas a prostração ideológica pode justificar que essa área, que gera um déficit perene de cerca de US$6 bilhões só na conta de medicamentos (sem considerar outros produtos químicos e aparelhos hospitalares) e um custo adicional crescente no nosso sis- tema público de saúde, não tenha até agora sido objeto de um grande esforço governamental de desenvolvimento industrial nacional. O problema das patentes de medicamentos se tornou gravíssi- mo no país. O Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi), órgão público brasileiro responsável pela concessão de patentes, tem hoje cerca de 184 mil pedidos de patentes depositadas e não exami- nadas em função de sua carência crônica de servidores. Essa econo- mia de milhões de reais em pessoal que deixa de ser contratado gera um prejuízo anual de bilhões de reais ao Sistema Único de Saúde (SUS). Em 2015, o Ministério da Saúde gastou R$14,8 bilhões com medicamentos, 13,7% do seu orçamento total, o que representou um crescimento de gastos nessa conta de 74% em relação a 2008. Esse é o principal componente do problema dos preços de me- dicamentos no país, e agora, da falta deles. O Brasil hoje está em último lugar no ranking de testes de covid-19 por habitante. Em grande parte, porque não produz os reagentes necessários para fa- bricá-los. Agora não é só mais o problema do custo de importação da química fina usada na fabricação deles, mas o fato de que todos que a podem exportar não podem dispor dela no momento. Muitos, quando consideram este cenário
Compartilhar