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Platao_A_Republica_Livros_VI_e_VII

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28 P l a t ã o
mas podem reduzir-se a quatro, que constituem, de alguma 
maneira, a réplica das formas pervertidas de govêmo. Sócrates 
só as estudará mais tarde, pois seus amigos o instam, agora, 
a completar a descrição da cidade ideal, analisando de mais 
perto a organização da classe dos guardiães e a dos chefes 
(445 c).
VI. — 0 Governo da Cidade Justa 
(449 a -541 b).
I. Organização da classe dos guardiães. As três ondas.
A. Comunidade das funções entre os dois sexos. — Em 
nosso Estado, homens e mulheres serão aplicados às mesmas 
tarefas e, para se prepararem neste sentido, receberão a mesma 
educação. Com efeito, entre os dois sexos não existe nenhuma 
diferença de natureza quanto às aptidões técnicas. No homem, 
tais capacidades são suscetíveis de um desenvolvimento mais 
completo, porque servidas por maior fôrça corporal; trata-se, 
porém, de superioridade puramente quantitativa. Devendo parti­
cipar das rudes fainas da guerra, as mulheres de nossos guardiães 
exercitar-se-ão com os homens nos ginásios. Como êles, não 
temerão despir as vestes, pois que a nudez convém aos exer­
cícios da palestra. Sem dúvida, os motejadores não deixarão 
de rir, de zombar do bizarro espetáculo que se lhes oferecerá, 
quando homens e mulheres, de tôdas as idades, se adestrarem 
nus, despreocupados com as rugas e as marcas indeléveis que 
a passagem dos anos possa deixar-lhes sôbre o corpo. Mas que 
importa? Quem persegue um fim excelente — o desenvol­
vimento harmonioso de sua natureza — não tem de levar em 
conta as zombarias ditadas pela imbecilidade e ignorância. 
Além disso, o hábito logo passará a justificar práticas que 
não chocam, no fim de contas, senão à usança recebida.
Serão escolhidas, entre as mulheres, as que forems dotadas 
de uma natureza própria à guarda e, depois de cultivadas as 
sueis qualidades naturais pela música e ginástica, serão dadas 
como companheiras e colaboradoras aos guardiães e chefes, pois 
não há função elevada que não possam eixercer (457 b).
B. Comunidade das mulheres e das crianças. — Tendo
escapado a esta primeira “onda de ridículo” , Sócrates é amea­
çado por outra. Decorrência lógica da comunidade dos bens e 
da comunidade das funções, uma nova reforma impõe-se: a
da família. Com efeito, esta, sob a forma atual, implica, de 
um lado, a existência de um patrimônio — em tômo do qual 
ela se constitui e graças ao qual subsiste — e de outro a 
especialização da mulher nas funções domésticas. Ora, já pri­
vamos os guardiães do direito de propriedade e procedemos à 
repartição das funções, baseando-nos nas exclusivas aptidões 
naturais, sem tomar em conta o sexo. Cumpre-nos, portanto, 
adaptar o quadro da família a estas inovações, o que significa
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alargá-lo até os próprios limites da cidade. Decretaremos que 
as mulheres devem ser comuns a todos os guardiães. Isto não 
quer dizer que pretendamos instaurar, entre os dois sexos, uma 
baixa promiscuidade. Muito ao contrário, a comunidade que 
estabelecemos, distinguir-se-á por seu caráter moral e religioso. 
Em certas épocas, celebrar-se-ão casamentos, com grande pompa, 
entre os melhores indivíduos, a fim de que a raça conserve tôda 
a pureza. Para afastar os inferiores, recorrer-se-á a engenhoso 
sistema de sorteio, que permitirá aos magistrados favorecer os 
indivíduos de escol, embora dando aos outros uma razão plau­
sível de seu malogro. O tempo da procriação será severamente 
regulamentado para ambos os sexos. Para além, deixaremos 
aos cidadãos maior liberdade, prevenindo-os, todavia, de que 
os filhos gerados por uniões tardias e não sancionadas pelo 
casamento não poderiam, em caso algum, ser criados pela 
cidade. Quanto aos filhos legítimos, serão levados, desde o 
nascimento, a um lar comum, exceto os que sofrerem de alguma 
deformidade. Com respeito a êstes, não haverá a menor mise­
ricórdia: como já é prática em certos Estados — Platão pensa 
provàvelmente em Esparta — serão expostos em lugar secreto. 
Destarte, a cidade compreenderá, um dia, tão-sòmente bons e 
belos cidadãos. É, como vemos, a doutrina do eugenismo aplicada 
com todo o rigor.
Resta especificar um último ponto. Como serão evitadas 
as uniões incestuosas ? De forma muito simples: tôdas as 
crianças nascidas sete meses, ao menos, após a celebração de 
um himeneu coletivo, e durante o seu período de validade, 
serão consideradas filhos e filhas dos guardiães e suas compa­
nheiras unidos por êste himeneu. Nenhum filho conhecerá o 
verdadeiro pai; nenhum pai, o verdadeiro filho. Assim não se 
poderá introduzir, em nossa cidade, o temível egoísmo que os 
laços familiares demasiado estreitos engendram. Por desumanas 
que pareçam — e que talvez sejam na realidade — tais pres­
crições, é mister confessar, defluem inevitàvelmente do princípio 
que presidiu à fundação da cidade ideal: realizar a justiça na 
associação política e na alma humana através da harmonia, 
dentro da perfeita unidade, dos elementos componentes de uma 
e de outra (462 e).
C. Os filósofos-reis. — Que a constituição que acabamos
de descrever é a melhor possível, nenhum espírito sensato ousará 
contestar. Resta, pois, saber se é realizável e, em caso afir­
mativo, como será realizada. A primeira questão não ocupará 
longamente Sócrates. Com efeito, se as instituições que preco­
niza são conformes à natureza, elas nada têm, por isso mesmo, 
de impossível. Após uma digressão bastante comprida sôbre
as leis da guerra, em cujo transcurso é resolvido um problema
de direito internacional 47, eis que se desencadeia a “terceira
47. Esta digressão, observa Gomperz (op. cit., II, pág. 496), é 
sem dúvida intercalada “para que o leitor se abasteça de novas 
fôrças” .
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onda” , a mais alta e a mais furiosa de tôdas. O Estado ideal 
não pode sair do domínio das puras virtualidades, a não ser por 
uma condição, de estranha aparência, que não deixará de sus­
citar risos e sarcasmos: é preciso que os filósofos se tomem 
reis, ou os reis e os soberanos dêste mundo, realmente e since­
ramente filósofos. Ciência e poder político devem estar reunidos 
num mesmo homem para se prestarem mútuo auxílio. Belo para­
doxo! exclamar-se-á. Outrossim, Sócrates, que acaba de enunciar 
esta proposição, prepara-se para enfrentar o rude assalto dos 
campeões do bom senso vulgar. Concedemos a êstes impetuosos 
adversários, diz êle, que os que se adornam com o título de 
filósofos são muitas vêzes depreciados com justa razão, mas 
precisemos o nosso pensamento definindo o verdadeiro filósofo. 
Segundo nós, é o homem que ama a ciência sob a sua forma 
universal, e não esta ou aquela ciência particular. Ora, a 
ciência tem por objeto o ser real, isto é, o conjunto das es­
sências ou idéias. Entre ela e a ignorância, que versa sôbre 
o não-ser, há um poder intermediário apreendendo a mul­
tidão das coisas que, diferentes do ser assim como do puro nada, 
erram perpètuamente entre êstes dois pólos. O referido poder é 
a opinião. Mudando como os fenômenos que a opinião nos 
permite apreender, ela é para a ciência o que o devir é para o 
ser. Assim, às três partes que discernimos na alma corres­
pondem três poderes distintos: ciência, opinião e ignorância — a 
última não sendo, de fato, senão um poder negativo. Ao 
contrário do vulgo, cuja percepção se limita aos fenômenos, em 
outros têrmos, às coisas que caem sob os diversos sentidos, o 
filósofo penetra as realidades e fixa seu conhecimento no domínio 
do imutável e do eterno. Como sua alma se abre para o mundo 
das idéias, onde divisa a justiça em todo o esplendor, está em 
condições, mesmo, qual um pintor, de reproduzir cá embaixo 
o exemplar divino. Hesitar-se-á ainda em confiar-lhe o govêrno 
da cidade perfeita? Eqüivaleria, havendo necessidade de escolher 
um guia, a titubear entre um homem dotado de vista clara e 
outro cego. Além disso, não carece de qualquer das qualidades 
que é justo exigir de um chefe. Sincero, detesta a mentira e a 
fraude. O amor, que o impele à ciência e à verdade, qual a 
torrenteque nada pode desviar de seu curso natural, nem dispersar 
em múltiplos riachos, absorve todos os desejos de sua alma e os 
faz concorrer para o seu próprio fim. O verdadeiro filósofo 
não busca, pois, os prazeres do corpo. Do ponto de vista sublime 
em que se coloca, não poderia conceder à vida terrena uma 
importância que ela não tem. Assim, despreza a morte e 
distinguei-se pela grandeza d’alma e pela coragem. Ê ao mesmo 
tempo liberal e sóbrio, entusiasta e desinteressado. Seu espírito 
vivo é servido por uma memória segura e a sua fôrça é embe­
lezada pela medida e pela graça. Amigo e como que aliado da 
verdade, cumulado dos dons mais raros, é tal enfim que Momo
— cujas zombarias, dizem, não poupa os deuses — não encon­
traria nêle o que repreender (484 a-487 a).
Daí se impõe a conclusão: a índole filósofa, amadurecida 
pela educação e pelo tempo, é a única que convém aos chefes
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supremos da cidade. Adimanto o admite. Mas, observa, a questão 
foi colocada abstratamente. Sócrates pintou o verdadeiro filó­
sofo, ou, se se quer, o filósofo tal qual deve ser, e não tal como 
o vemos na realidade. No mais das vêzes, com efeito, êle 
se nos apresenta sob as feições de uma criatura bizarra e 
insuportável; e, embora não tivesse os defeitos que lhe atribuem, 
não o julgaríamos menos inapto a gerir os negócios públicos. 
Semelhante opinião, conquanto fundada em certos casos, é em 
geral absolutamente falsa. Em um navio igualmente, cuja 
tripulação é formada de homens ignorantes e grosseiros, o 
verdadeiro pilôto passa por um inútil, uma espécie de “sonhador 
com as estréias” ; os marujos não negam apenas a sua ciência, 
mas inclusive a possibilidade de um conhecimento racional das 
coisas da navegação. Cercam o bravo patrão, que não é muito 
mais sabedor do que êles 48, e o obsidiam com suas preces para 
obter o comando do timão. É-lhes êsse recusado? Revoltam-se e 
apoderam-se dêle à fôrça; depois disso, senhores do barco, pi­
lham a carga, embriagam-se, empanzinam-se e correm de olhos 
vedados ao encontro de um fim trágico. A situação desta nave 
perdida no mar, sem direção, é a do bem dos Estados. Os 
cidadãos imaginam que a política não é arte nem ciência; não 
exigem qualquer competência aos chefes que escolhem, mas os 
querem devotados a seus interêsses mais mesquinhos, e dis­
postos a tôdas as complacências. Alegará alguém que os filó­
sofos incidem em êrro quando não se colocam a serviço de 
seus compatriotas? Mas responderemos que não fica bem ao 
médico ir oferecer seus préstimos ao doente: cabe a êste requi­
sitá-los (489 d).
Além disso, cumpre reconhecer que freqüentemente as na­
turezas melhor dotadas para a filosofia se pervertem e produzem 
apenas maus frutos. Se desde cedo são orientadas para o mal, 
sua corrupção, mesma, é função da excelência de seus dons, 
pois, assim como são incapazes de praticar as mais altas 
virtudes, os indivíduos medíocres são também incapazes de 
cometer os mais baixos crimes. A educação atual contribui, por 
certo, em larga medida para tais quedas. Mas o grande 
culpado é a opinião pública, esta mestra de erros que submete 
a seu império tantas belas inteligências. Como recusar-s© a 
servi-la nos Estados onde ela detém a onipotência, proporciona o 
êxito e dispensa a glória? Quando a multidão, nas assembléias, faz 
rjessoar o eco envolvente de seus gritos e de seus aplausos, 
distribuindo alternadamente, segundo a forma passageira de 
seu capricho, o elogio e a censura com igual exagêro, que 
homem, que adolescente sobretudo, é assaz forte para guardar 
o sangue frio, para resistir a semelhante torrente de paixões 
____________ ;
48. Êste bravo pilôto “superando em tamanho e em fôrça todos 
os membros da equipagem, mas algo surdo, algo míope, e dispondo, 
em matéria de navegação de conhecimentos tão curtos quanto sua 
vista” , lembra o bonacheirão Demos que Aristófanes pôs em palco 
nos Cavaleiros.
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desencadeadas que tudo submerge e tudo arrasta? O próprio 
sofista, apesar das aparências, não assujeita esta fôrça cega e 
tirânica. Assemelha-se a um homem que, após haver observado 
atentamente os movimentos de um animal de grande porte, 
chegasse a conhecer seus gostos, a aproximar-se dêle e a li- 
sonjeá-lo: êle sabe que palavras e que gestos podem despertar 
a cólera da multidão ou apaziguá-la, mas, como êste pretenso 
domador, é, no fundo, escravo dos instintos de um temível 
monstro. Denomina bom ou mau aquilo que a êste apraz ou 
desapraz; sua falaciosa ciência cessa aí.
A menos que algum gênio benevolente os proteja, os me­
lhores entre os jovens desertam a filosofia, trocando-a pela 
política. São a isso impelidos não só pelo atrativo do poder, 
como pelos conselhos e exortações dos que os rodeiam e contam 
lucrar com esta elevação. Abandonada como órfã nobre sem 
fortuna, a filosofia fica então entregue a sêres inferiores que 
a desonram. Eis a causa do descrédito em que tombou. Mas 
o que fará o verdadeiro filósofo, aquêle ao qual um favor 
sobrenatural preservou da corrupção? Como a eminente dig­
nidade die sua alma e a razão nela dominante impedem-no de 
servir às baixas paixões populares, refugiar-se-á na vida pri­
vada, feliz se, longe das agitações e das demências humanas, 
consegue permanecer isento de tôda sujeira e aguardar com 
bela esperança o fim de sua estada neste mundo. Como o 
viajor acometido pela tempestade, põe-se ao abrigo de um dêstes 
pequenos muros que se erguem ao longo dos caminhos, a fim 
de aguardar aí a acalmia (496 e).
Tal a sorte do filósofo nos Estados em que a soberania 
pertence à multidão. Mas suponhamo-lo situado lem circuns­
tâncias favoráveis — os chefes ou o povo concordam em obe­
decer-lhe 49 .— 0u transportado a um Estado cuja perfeição 
corresponde à sua — a cidade ideal que fundamos — e veremos 
que sua arte não possui medida comum com as artes que os 
mortais cultivam.
Agora que já indicamos as razões que o afastam da cena 
política e especificamos em quais casos êle pode e deve voltar, 
resta-nos descrever a educação especial, complemento da educação 
geral há pouco caracterizada, que há de prepará-lo para o go- 
vêmo da cidade 50.
Atualmente cultiva-se a filosofia no breve intervalo que 
separa a infância da vida ativa. Vê-se nela apenas, de alguma 
forma, um passatempo distinto a ser abandonado tão logo se
49. Platão alude sem dúvida às esperanças que depositara em 
Dion, cunhado de Dionísio, tirano de Siracusa.
50. A educação elementar que foi descrita no terceiro e quarto 
livros destinava-se a todos os guardiães (cpú^axEç) que devessem tor- 
nar-se chefes ou continuar simples auxiliares (êmxoveoi). A educação 
que estará em pauta dirige-se unicamente aos chefes (õpxovteç).
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abram as frutuosas carreiras do comércio e da política. Ora, 
é exatamente o contrário que conviria fazer. Enquanto o 
espírito não atinge a maturidade, seria mister formá-lo por 
meio de exercícios simples; enquanto o corpo não conclui seu 
crescimento, cumpre flexibilizá-lo e acostumá-lo a obedecer à 
alma, de modo que esta encontre nêle um auxiliar dócil no dia 
em que ela abordar o estudo da filosofia. Tal estudo será então 
o essencial e, após um período de atividade a serviço do Estado, 
o único objeto de suas preocupações. Certamente não é sem 
dificuldade que se admitirá tal reforma, pois todos os que tratam 
destas matérias preferem construir belas frases a enunciar a 
verdade em todo o seu rigor. Não obstante, a realização da 
cidade perfeita implica o reino da filosofia.
Quando a multidão contemplar o filósofo à sua verdadeira luz, 
e compreender que sua ciência é tão grande quanto seu desin­
teresse, as prevenções que nutre contra êle cairão por si mesmas. 
E o sábio poderá alicerçar em terra uma cidade que dotará de 
justiça, bondade e temperança, inspirando-se em modelos eternos 
destas virtudes. A empresa, cumpre confessá-lo, apresenta-se 
permeada de óbices, mas não está provado que não possa 
realizar-se com êxito em todo ocurso dos tempos (502 c).
II. Educação dos /ilóso/os-reis
A. A Idéia do Bem objeto supremo da ciência. — Assim 
como escolhemos os melhores cidadãos para estabelecê-los como 
guardiães, escolheremos os melhores guardiães para estabelecê-los 
como chefes de Estado. Severas provas regerão a escolha. 
Consistirão em exuor os guardiães a tôda sorte de tentações e 
perigos. Os que daí saírem puros como o ouro do cadinho
— inabaláveis no patriotismo, insensíveis aos mais vivos assaltos 
do prazer e da dor — serão destinados ao poder supremo. Mas 
antes de exercê-lo deverão, mediante uma série de estudos apro­
priados, elevar-se à contemplação da Idéia do Bem.
O Bem não se identifica ao prazer — pois existem bons e 
maus prazeres — nem ao conhecimento — pois está implicado 
na definição dêste. Para concebê-lo tão nitidamente quanto 
possível, teremos de recorrer a uma analogia. No mundo 
sensível o Bem engendrou um Filho, o Sol, cuja luz permite a 
nosso ôlho distinguir os objetos materiais. Pela vista e demais 
sentidos, percebemos êstes objetos em sua aparente multipli­
cidade, e pelo espírito, na real unidade de suas Formas ou 
Idéias sempre idênticas a si próprias. Entre êste mundo do 
espírito e o mundo dos sentidos, façamos um paralelo e digamos 
que o Bem é na esfera inteligível, em relação à inteligência 
e a seus objetos, o que o Sol é na esfera visível, em relação à 
vista e a seus objetos. Ora, o Sol dá aos objetos materiais não 
só a possibilidade de serem vistos, mas o nascimento, o cresci­
mento e a nutrição. Do mesmo modo, o Bem, luz da alma, 
condição de inteligibilidade das Idéias, é a fonte de sua essência 
e ultrapassa, por conseguinte, em poder e dignidade, esta própria
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essência, de que êle é, ao mesmo tempo, causa eficiente e causa 
final (509 b).
B. Símbolo da Linha. — Levemos adiante a comparação 
entre os reis dêstes dois mundos. Representemos os respectivos 
domínios por dois segmentos tomados sôbre uma reta, um — o 
do inteligível — é mais comprido do qule o outro e está com 
êle em razão determinada. Dividamos êstes segmentos segundo 
uma mesma razão, igual à precedente. Sôbre a parte da linha 
que figura o mundo sensível obtieremos duas divisões: a pri­
meira correspondente às imagens dos objetos materiais — 
sombras, reflexos nas águas ou nas superfícies polidas — 
a segunda a êstes próprios objetos materiais — obras da na­
tureza ou da arte. Similarmente, sôbre a seção da linha que 
representa o mundo inteligível, a primeira corresponderá a 
imagens e a segunda a objetos reais, as Idéias. Ora, se o 
mundo visível é o domínio da opinião (§ó|a) e o mundo inte­
ligível o domínio da ciência (èjticrrr||iT|), estamos autorizados a 
formular a seguinte proposição: a opinião é para a ciência o 
que a imagem é para o original. As imagens dos objetos ma­
teriais dão ensejo a uma representação confusa, que chama­
remos imaginação (eíxaoía ôó£a T<õv ekóvcov); os objetos ma­
teriais, a uma representação mais precisa que arranca a adesão, 
a crença (júcmç) do sujeito que os percebe; as imagens das 
Idéias, a um conhecimento discursivo (conhecimento do pensa­
mento médio ou ôiávoia), e as próprias Idéias a um conhe- 
mento noético (conhecimento da pura inteligência, voíç ou 
VÓT)aiç).
As noções matemáticas que, de um lado, refletem Idéias 
puras, mas de outro só podem traduzir-se através de símbolos 
sensíveis, nos fornecem o tipo das noções mistas da diánoia 51. 
Mas as matemáticas baseiam-se em hipóteses que elas consi­
deram como princípios. Ao contrário, a dialética, ciência das 
Idéias, parte de hipóteses que considera como tais — são, aliás,
51. Na realidade, as noções matemáticas são muito próximas das 
Idéias puras. Sua inferioridade consiste apenas em que, irredutíveis 
a elementos perfeitamente simples, não podem ser definidas sem o 
auxílio de uma representação figurada. Todavia, “ traços de redução 
dêste gênero encontram-se nos escritos platônicos posteriores, onde o 
filósofo se refere nomeadamente às idéias fundamentais do limitado 
e do ilimitado. Observou-se, não sem razão, que uma ciência como a 
geometria analítica moderna, que transforma os conceitos de espaço 
em conceitos numéricos, que exprime o círculo e a elipse, por exemplo, 
por uma mesma fórmula ligeiramente modificada, teria correspondido 
em certa medida — assim como a teoria geral dos números — a êste 
desejo de Platão. Em certa medida, mas não completamente. Pois, 
incontestàvelmente, concederia sempre o primeiro lugar à ciência dos 
conceitos, a única que dispensa tôdas as hipóteses” (Gomperz, op. cit.,
II, pág. 505).
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Formas libertas de todo elemento heterogêneo — (e só as utiliza 
como pontos de apoio provisórios para tomar impulso. De grau 
em grau, eleva-se, em seguida, até o princípio universal e 
supremo (xr|v TOÍ jkÍvtoç dç/T|v), a Idéia do Bem. Uma v/ez 
apreendido êste princípio an-hipotético, torna a descer, por via 
dedutiva, até a derradeira conclusão 52. Ela é portanto, para 
falar pròpriamente, a única verdadeira ciência, pôsto que através 
das Formas onde êste princípio se manifesta, ela remonta à 
fonte do ser (511 e).
C. Alegoria da Caverna. — Uma alegoria nos mostrará agora 
a situação dos homens em face da verdadeira luz. Suponhamo-los 
cativos, acorrentados num local subterrâneo, com o rosto voltado 
para a paredie oposta à entrada e impossibilitados de ver algo 
além desta parede. Iluminam-na os reflexos de um fogo que 
arde fora, sôbre uma elevação, em cuja metade passa um ca­
minho bordejado por um pequeno muro. Atrás dêste muro 
desfilam pessoas carregando sôbre os ombros objetos heteró- 
clitos, estatuetas de homens, animais etc. Dêstes objetos, os 
cativos enxergam apenas a sombra projetada pelo fogo sôbre 
o fundo da caverna; do mesmo modo, ouvem apenas o eco das 
palavras que os portadores trocam entre si. Habituados desde 
a infância a contemplar estas imagens vãs, a escutar êstes 
sons confusos cuja origem ignoram, vivem em um mundo de 
fantasmas que tomam por realidades. Porque se um dêles, liberto 
de suas cadeias, fôr arrastado para a luz, sentir-âe^á de início 
ofuscado e nada distinguirá do que o circunda. Por instinto, 
dirigirá o olhar para as sombras que não lhe feriam os olhos 
e durante algum tempo crê-las-á mais reais do que os objetos 
do nôvo mundo para onde o transportaram. Mas, quando seus 
olhos se acostumarem à ambiência luminosa, poderá percfeber 
êstes objetos refletidos nas águas e depois fitá-los diretamente. 
A noite, contemplará a lua e as constelações, e enfim tomar-se-á 
capaz de agüentar o fulgor do sol. Então compreenderá que 
sua vida anterior não passava de um sonho sombrio, e lasti­
mará os antigos companheiros de cativeiro. Mas, se voltar a
52. Na passagem aqui resumida “reconhece-se fàcilmente, escreve 
Rodier, a dialética ascendente e a dialética descendente, a cwayioyii 
e a ôiaÍQEOiç. A primeira consiste em elevar-se, de Idéia em Idéia, 
até a ávujtóftETOv que servirá de princípio para percorrer a mesma 
série em sentido inverso, mas, desta vez engendrando racionalmente, 
graças ao princípio descoberto, cada uma das Idéias. A divisão
aparece aqui como o mais importante dos dois momentos da dialética 
e o único verdadeiramente racional. A dialética ascendente sobe de 
generalidade em generalidade até o princípio das coisas; as Idéias não 
constituem ainda para ela senão pontos de apoio (ÈTiêaasiç xal ÒQfiáç) 
para chegar a êle. Permanecem generalidades empíricas até que 
a divisão, partindo do principio que elas lhe permitiriam atingir, as 
construa racionalmente” (Eludes de philosophie grecque: Les mathé-
matiques et la dialectique dans le système de Platon, pág. 45).
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descer para junto dêles a fim de instruí-los, de mostrar-lhes a 
inanidade dos fantasmas da caverna e descrever-lhes o mundo 
da luz, quem o ouvirá sem rir, quem, sobretudo, dará crédito à 
sua divina revelação? Os mais sábios tratá-lo-ão de louco e 
irão a ponto de ameaçá-lo de morte, caso persistana gienerosa 
tentativa.
Não é difícil discernir a significação desta alegoria. Os 
homens são neste mundo escravos de seus sentidos: na obscuri­
dade do mundo da matéria, em perpétuo devir, não apreendem 
senão sombras ou vagos reflexos. Porém, os modelos destas 
sombras, a fonte luminosa dêstes reflexos, permanecem a tal 
ponto desconhecidos para êles que não suspeitam sequer de 
sua existência. A única ciência dêles — ou a que chamam 
com êsse nome — consiste em descobrir certa ordem nas apa­
rências, uma seqüência prevista no interminável desfile das 
sombras, que passam e repassam diante dêles, movendo-se sôbre 
um fundo de mistério. O puro esplendor das essências, êste só 
é dado a contemplar e fixar na alma a quem, rompendo os 
grilhões, se tenha elevado além das trevas da caverna até o 
reino do Sol. Mas, depois de ficar bastante tempo neste reino, 
seus olhos, habituados às clarezas ideais, não mais conseguem 
distinguir as sombras daqui de baixo: eis por que o julgam 
inapto a gerir sàbiamente os negócios humanos. Com efeito, a 
alma é como a vista perturbada, quer pela brusca passagem da 
luz à obscuridade, quer da obscuridade à luz. Possui natural­
mente a faculdade de conhecer, como o ôlho a de ver. A 
educação não tem outro escopo senão bem orientar ©sta facul­
dade, isto é, desviá-la das perspectivas fugazes do devir para 
as formas imutáveis do ser.
E nosso dever, como legisladores, fazer chegar as melhores 
naturezas à contemplação do Sol do universo inteligível e
obrigá-las depois a presidir, por seu turno, aos destinos da 
cidade. Alguém poderá evidentemente dizer-nos que, agindo 
assim, damos-lhes a felicidade apenas para tirá-la em seguida; das 
Ilhas Afortunadas aonde, vivos ainda, as transportaremos, recon­
duzi-las-emos de fato à terra e colocá-las-emos em luta com as 
mais humildes realidades. Mas já declaramos não visar de 
modo algum a felicidade própria de uma classe de cidadãos: 
além disso, a quem nos acusasse de dureza para com os nossos 
magistrados, podemos responder que êstes devem às nossas
instituições o fato de seriem o que são. 2 justo, pois, que 
paguem sua dívida à cidade e a seus fundadores, aceitando, uma 
vez terminada a sua educação, ocupar-se dos negócios públicos. 
Seus compatriotas ganharão com isso por terem chefes não só 
competentes mas desinteressados, porque ricos em suas almas 
do mais precioso de todos os bens (521 b). Como regra geral, 
para que um Estado seja prudentemente governado, cumpre
que a condição privada dos homens destinados ao poder seja 
para êles preferível ao exercício do próprio poder — o qual 
nunca deve constituir uma isca oferecida às ambições mais
malsãs.
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D. Propedêutica à verdadeira ciência. — A dialética, como 
vimos, é a ciência suprema, a única que atinge o ser em tôda 
a sua perfeição. Mas não se pode abordar esta ciência antes 
de haver percorrido todo um ciclo de estudos preparatórios, 
destinados a levar o pensamento a debruçar-se sôbre si mesmo 
e a arrebatá-lo à esfera do devir. Ora, os objetos elementares 
do conhecimento são de duas espécies: uns suscitam percepções 
confusas e passivas que não implicam qualquer contradição; 
outros, percepções mais nítidas porém contraditórias. Só estas 
são capazes de despertar o espírito e provocar o exame e a 
reflexão. Desta classe, o representante mais característico é o 
número, que se nos apresenta ao mesmo tempo como unidade 
e multiplicidade, expressão do finito e do infinito. A ciência 
dos números — logística e aritmética 53 — é portanto a primeira 
das ciências preparatórias. Podemos assinalar de passagem suas 
vantagiens práticas, tão importantes para os guerreiros, mas não 
se deve esquecer que a consideramos aqui em si mesma — como 
estudo dos número puros — e não em suas aplicações. Segue-lhe 
a ciência das figuras planas ou geometria. A seu respeito faremos 
a mesma observação que a respeito da aritmética. Não se 
trata da geometria no sentido vulgar, da planimetria ou da 
agrimensura, mas da ciência das verdadeiras figuras e de suas 
propriedades, que, tendo por objeto o que existe eternamente 
(tò dei ov), atrai a alma à contemplação das coisas do alto 
(327 c). A terceira ciência introdutória será a ciência dos 
sólidos ou a estereometria. Platão, como os geômetras de seu 
tempo, distingue-a da geometria propriamente dita. De fato, 
no comêço do século IV, mal estava constituída. Alguns pro­
blemas isolados, nomeadamente o da duplicação do cubo, haviam 
solicitado a atenção dos geômetras e recebido soluções diversas, 
mas os princípios gerais da nova ciência restavam ainda por 
descobrir. O nomóteto da Republica, confiando na onipotência 
da razão, não duvida que semelhante descoberta possa efetuar-se 
sem demasiada dificuldade, desde que um Estado queira propô-la 
aos estudiosos. No domínio científico, como alhures, a pesquisa 
d|eive estar organizada para realizar-se ràpidamente, e a melhor 
organização é, ainda aqui, a que se efetua no quadro da 
cidade.
Do estudo dos sólidos em si mesmos, passa-se naturalmente 
ao dos sólidos em movimento ou astronomia, sendo que a ordem 
lógica do desenvolvimento das ciências, na presente classificação, 
corresponde à ordem didática destas ciências. Tal como Platão a 
concebe, a astronomia não é uma mecânica celeste baseada na 
observação dos astros. O físico-geômetra do Timeu não tem a 
menor intuição da possibilidade das descobertas de Galileu e 
Kepler; nunca suspeitou que, da aparente diversidade dos fenô­
53. Os matemáticos gregos chamavam logística a arte do cálculo e 
reservavam o nome de aritmética à teoria dos números.
38 P L A T A O
menos, seriam tiradas, um dia, leis fixas e gerais54. Para êle, 
a experiência, processo banâusico, não é de modo algum útil 
ao cientista cujo pensamento se esforça por apreender Formas 
puras. Não ocorreria a ninguém de bom senso, observa êle, 
a idéia de estudar o mundo nas pinturas ou nos desenhos de 
algum artista hábil — mesmo que êste artista fôsse o próprio 
Dédalo. Similarmente, o astrônomo digno do nome não cogita 
estudar os astros de nosso céu material 55, mas seus eternos 
arquétipos, nos quais considera, libertos de tôda imagem gros- 
sleira, o verdadeiro número, a verdadeira figura e o verdadeiro 
movimento 56.
Irmã da astronomia, como ensinam os Pitagóricos, a música 
pròpriamente dita 51 entrará também em nosso programa de 
educação superior. Ela imita, com efeito, no domínio sonoro, 
a harmonia luminosa das esferas celestes. Do mesmo modo 
que a astronomia, concebê-la-emos como ciência pura, isto é, 
como se ocupando dos sons em si mesmos e não como os 
percebem nossos ouvidos.
Acostumados por êstes diversos estudos a fazer abstração 
dos conhecimentos ilusórios que nos vêm dos sentidos, e a ligar
54. Tampouco pressentiu a identidade das leis da mecânica terrestre 
e da astronomia. A aparente multiplicidade e a ação entrecruzada dos 
fatores que concorrem para a produção dos fenômenos físicos escondem, 
é verdade, a regularidade dêstes fenômenos e a simplicidade das leis 
que os regem — regularidade e simplicidade que são, entretanto, susce­
tíveis de dar satisfação às mais altas exigências do espírito.
55. Embora os astros sejam o que há de mais belo no mundo sensível, 
cumpre encará-los, segundo Sócrates, apenas como “ornamentos de um 
teto” . Enquanto tais, não podem volver “o ôlho da alma” para a? 
verdadeiras realidades. Pouco importa, para contemplar estas últimas, 
que se levante ou que se abaixe a cabeça, que se olhe a terra ou o céu, 
uma vez que elas não revestem qualquer aparência sensível e não residem 
no espaço, domínio do devir.
56. A astronomia platônica é uma astronomia matemática a priori: 
com efeito, fazendo abstração dos dados da experiência sensível, propõe-se 
definir as trajetórias perfeitas dos movimentos siderais, e os números, 
igualmente perfeitos, que os medem; em outros têrmos, coloca seu 
objeto no absoluto. A astronomia moderna, ao contrário, é matemática 
a posteriori, no sentido de- que,apoiando-se nos dados da observação, 
procura expressar as leis constantes dos fenômenos sob uma forma 
rigorosamente matemáíica. A primeira procede por dedução, partindo 
de formas matemáticas puras; a segunda, tanto por indução, partindo 
de fenômenos para chegar às leis, como por dedução, partindo de leis 
hipotéticas ou de corolários de leis verificadas para reencontrar os dados 
positivos da observação.
57. Até agora esta palavra serviu para designar o conjunto das artes 
às quais presidem as Musas. Agora é tomada em sua acepção es­
trita.
A R e p ú b l i c a 39
entre sí os verdadeiros conhecimentos que são fruto da razão, 
nossos futuros chefies poderão penetrar no reino do ser e aí 
contemplar a Idéia do Bem. A dialética, sublime coroamento 
do ledifício das ciências, rematar-lhes-á a educação e torná-los-á 
dignos de exercer o govêmo na cidade (534 e).
E. As fases do “ Cursus studiorum” . — Como já dissemos, 
êste ciclo de estudos só é destinado aos indivíduos de escol. 
Reconhecê-los-emos pela firmeza, pela valentia, pelo gôsto do 
esfôrço físico e intelectual; mas elegeremos de preferência os 
que, a tais virtudes, aliarem a beleza. Em compensação, afas­
taremos impiedosamente todos os talentos bastardos, tôdas essas 
índoles "coxas” que se entregam hoje a especulações indignas, 
e desonram a filosofia.
Aos adolescentes melhor dotados, uma vez concluída sua 
educação glmnica, ensinaremos os elementos das ciências prepa­
ratórias. Êste ensinamento será, na medida do possível, isento 
de coerção, pois um homem livre nada deve aprender como 
escravo. Semelhante método pouco beneficiará, sem dúvida, 
os espíritos medíocres, que só progridem quando amparados e 
empurrados, por assim diaer, por uma vontade exterior que se 
lhes impõe; mas evidenciará o ardor destas felizes naturezas 
que correm intrèpidamente ao encontro das dificuldades e con­
vertem em prazer o poder vencê-las. Destarte, permitir-nos-á 
proceder judiciosamente à segunda escolha, que se verificará 
quando nossos discípulos tiverem alcançado os vinte anos. Aquêles 
que então selecionarmos, dedicar-se-ão até os trinta anos ao 
estudo sinóptico e aprofundado das ciências já abordadas sepa­
radamente. Tentarão descobrir as diversas relações que unem 
essas ciências entre si e a relação comum que as une ao ser. 
Ao umbral do trigésimo ano, os que se houverem salientado 
pela segurança de julgamento ao mesmo tempo que pela viva­
cidade da inteligência 58, serão iniciados no estudo da dialética. 
Consagrar-lhe-ão cinco anos e depois, passando da teoria 59 à 
ação, exercerão, durante quinze anos, as grandes magistraturas 
políticas e militares do Estado. Aos cinqüenta, tendo completado 
sua experiência das coisas divinas com a das coisas humanas, 
governarão, por seu turno; mas, nos intervalos de liberdade, 
continuarão a cultivar a filosofia, até a hora em que, depois 
de haverem designado os sucessores, partirão para as Ilhas 
Afortunadas. A cidade elevar-lhes-á soberbos túmulos e, por 
meio de sacrifícios públicos, honrá-los-á a título de gênios tute- 
lanes e divinos (540 c).
Chegando ao têrmo da descrição do Estado perfeito, Sócrates 
especifica como se fará a transição da desordem atual para
58. A segunda destas qualidades, sem a primeira, favorece, com 
efeito, o gôsto natural que os jovens sentem pela erística, mãe do 
ceticismo.
59. Tomamos a palavra no sentido próprio de contemplação.
!
a ordem que êle pretende instaurar. Quando os filósofos alcan­
çarem o poder, relegarão a longínquos campos todos os cidadãos 
com mais die dez anos, a fim de subtrair as crianças a sua 
perniciosa influência. Medida quase impraticável que seriamos 
tentados a qualificar de expediente, se Platão, propondo-a, não 
quisesse mostrar que tôda reforma social deve apoiar-se numa 
ação educativa empreendida desde o albor mesmo da vida, 
enquanto a alma, ainda pura e maleável, pode ser afeiçoada 
segundo o modêlo da virtude (541 b)..
*
* •
40 PLATÃO
A Cidade Platônica Paradigma Político e Moral
•
Eis, portanto, concluído o estudo da cidade ideal, o qual 
devia permitir-nos ler em grandes caracteres a definição dle 
justiça. Antes de prosseguir na análise da obra, tentemos res­
ponder a duas questões que o leitor não pode deixar de pro­
por-se :
1* Cumpre ver na constituição descrita por Sócrates um 
projeto de reforma efetivamente realizável, ou um simples para­
digma, parcial © imperfeitamente imitável na realidade?
2* Qual o verdadeiro sentido das proposições que o próprio 
filósofo denomina paradoxos?
Observemos primeiro que o objetivo inicial do colóquio era 
puramente moral: Sócrates e seus amigos propunham-se pesquisar 
a natureza da justiça. Considerando que convinha estudá-la 
no meio mais favorável ao seu florescimento, fundaram a cidade 
ideal. Significará isto que a encaravam apenas como um meio 
de investigação científica, uma vasta hipótese que permite re­
solver um problema de aparência insolúvel? De nenhum modo, 
pois, para todo filósofo grego da época clássica, para Platão 
assim como para Aristóteles, a política é inseparável da moral, 
servindo-lhe, de alguma forma, de instrumento. Mas importa 
remontar mais alto, pois o pensamento do fundador da Academia 
é muito mais sintético do que o crêem aquêles que acentuam 
suas pretensas contradições.
Segundo Platão, já o dissemos, a suprema Essência con­
funde-se com a suprema Excelência. Todo ser vivo tende natu­
ralmente ao Bem e manifesta tal tendência procurando imi- 
tá-lo na medida de suas fôrças. Segue-se que o conhecimento 
tem por resultado imediato iluminar a ação e facilitar o esfôrço 
para o Bem, enquanto a ignorância paralisa êste esfôrço ou o 
desvia de seu verdadeiro fim.
Isto significa dizer, em têrmos de filosofia moderna, que 
a moral, rainha das ciências normativas, deve tomar seus prin­
cípios fundamentais à metafísica, rainha das ciências explicativas. 
Mas o progresso individual, objeto da moral, é inconcebível fora 
de um quadro social determinado — no caso que nos ocupa,
A R e p ú b l i c a 41
fora da cidade, associação política por excelência dos povos 
helênicos.
O problema moral da justiça alarga-se, pois, ràpidamente, 
no decurso dos primeiros livros da República, em problema 
social, sem perder por isso seu primitivo caráter. A conciliação 
das duas formas que êle ataca quase simultâneamente opera-se 
pela descoberta da relação dle homotetia existente entre a cidade 
e a alma humana. Numa como noutra, a justiça é a mesma 
virtude de ordem, de submissão e de harmonia. A ação social 
dela prolonga-se em ação individual, pôsto que, definitivamente, 
permibe a cada um responder ao chamado de seu destino e 
assegurar a salvação de sua alma imortal. Mas, como êstes 
resultados são obtidos apenas a título excepcional, quando ela 
não reina no Estado, é preciso, para conhecer-lhe a natureza 
profunda e a amplitude dos efeitos, estudá-la djemtro de con­
dições ideais. É assim que Platão, pela própria lógica de sua 
indagação, é levado a fundar a cidade da Sabedoria.
Mas esta Calípolis que o filósofo modela na matéria plasti- 
cizante do discurso, como o artista modela a figura na cêra, 
crerá êle realizável em todos os pontos ? A esta pergunta 
Platão mesmo respondeu sem ambigüidade. Em 473 a (livro V), 
confessou que a prática tem menos poder sôbre a verdade 
do que a teoria; em outra parte (472 d), observa que o valor 
do pintor quie cria um modêlo ideal de beleza não depende da 
existência do referido modêlo na natureza. Do mesmo modo, a 
cidade perfeita e o homem perfeito, tais como os pinta o nomó- 
teta, são paradigmas que devemos tentar imitar, sem dissimular, 
entretanto, que jamais o conseguiremos com absoluta pureza 6°. 
Representam, se se quer, o limite para o qual tende o esfôrço 
humano — coletivo e individual — mas que êle não poderia 
atingir, pois um duplo obstáculo lhe entrava o progresso: a 
presença na cidade de uma classe inferior e, na alma, de uma 
parte epitimética, ambas estranhas à verdadeira sabedoria. 
Estaimpotência é o preço da vida terrena submetida às lieis 
do devir.
Explica-se assim que Sócrates vacile tanto em descrever a 
constituição da cidade ideal «i. Êle não duvida de sua perfeição,
60. Cf. igualmente 473 a.
61. Estas hesitações não constituem, em nosso parecer, simples pro­
cessos dramáticos destinados a incrementar o interêsse da discussão.
Sócrates, é verdade, costuma fazer-se de rogado por seus amigos antes 
de atacar o exame de qualquer questão importante, e esta atitude 
prudente é às vêzes algo fingida (vide liv. V I, 506 c e nota) ; no 
caso, porém, ela traduz a real inquietação que lhe matiza singularmente 
as afirmativas. A cidade dos Sábios é, sem dúvida, a mais perfeita das 
cidades, mas será concebível fora da esfera ideal onde êle a contempla? 
Seguramente, diz Sócrates, é possível por ser conforme à natureza
(xatà <púaiv; liv. V , passim): mas, no fundo, sente realmente que 
não resolve por aí as dificuldades inerentes à realização desta cidade e.
mas s« dá conta de que será quase impossível aplicá-la cá 
embaixo, enquanto os homens continuarem sendo o que são.
Daí o nome de paradoxos que atribui às suas inovações. 
Entretanto, se observarmos de perto, conviremos que tais “para­
doxos” se impõem inervitàvelmente a quem sonha instituir no 
Estado uma justiça integral 62. Divisão rigorosa do trabalho, 
comunidade dos bens, das mulheres e dos filhos, govêm o — 
aristocrático ou monárquico ® — de um pequeno número de
42 P L A T Ã O
embora descrevendo-a com. o amor de poeta, teme que permaneça 
para todo o sempre, como as Formas puras, um “paradigma no 
céu” .
Pensamos que não seria inútil ressaltar estas vacilações:
O quinto livro abre-se com uma espécie de intermédio (450 a-451 c:
« oíov... EiQyáoaattt êm?.a6ó|XEvoí nou. ôoov Xóyoy jtáXiv... xlveíte... ovx 
ícrrs oaov êa|iòv Xóym\ ineyeÍQexE xxX. (450 a b ).”
Sócrates indica, em seguida, a causa de seus receios: não tem certeza 
daquilo que vai dizer e não gostaria de enganar os amigos em matéria 
tão grave. Os estímulos dêstes acrescem seu embaraço (450 d-451 a).
Tendo recebido a garantia de que, caso se engane, seus amigos 
absolvê-lo-ão do crime cometido contra as suas pessoas, recobra a cora­
gem e declara que é preciso enfrentar as asperezas do objeto (452 c ) .
Mas, surgindo novas dificuldades, relembra os temores e observa 
quão justificados eram (453 d-e).
Em tais circunstâncias deve-se contar apenas com a energia do 
desespêro. Seja o perigo grande ou não, o reflexo salvador é o 
mesmo (453 d).
Em 457 b, Sócrates compara as dificuldades com que acaba de se 
defrontar a uma primeira onda, e anuncia uma segunda mais alta, à 
qual só escapará a custo.
Mas eis que lhe importa mostrar não só a excelência, como a 
possibilidade das medidas propostas: é ter de arrostar uma “ liga de 
discursos” : Xóywv aúoxaoiv (457 e). Abordar o problema de frente 
é impossível. Sócrates pede que lhe permitam “retirar-se” — Saoóv (ie 
ÈOQTÓaai — Considerava, primeiro resolvida a questão da possibilidade. 
Tranqüilidade fugaz! A segunda onda adianta-se (472 a).
Esta última onda “que rebentasse de riso” ameaça submergir o 
imprudente nomóteta e seus amigos (473 c ) .
Antes de atingir o ponto central do tema, Sócrates recorda de 
nôvo seus receios (473 e).
E pronunciada a grande palavra, não se decide a sustentar o assalto 
dos paladinos do “bom senso” , exceto após certificar-se de que Glauco 
lhe prestará mão forte (473 e-474 b).
62. Sôbre a lógica interna da constituição platônica, veja-se Gomperz, 
op. cit., II, pág. 527 segs.
63. Cf. 445 d. Observar-se-á todavia que “se o único critério da 
legitimidade do poder é o que deve ser, a capacidade racional dos que
\
filósofos, eis as mais importantes condições requeridas para 
assegurar êste reino. Ora, elas não são realizáveis, 'salvo em 
um Estado composto de homens excelentes, de natureza de 
alguma forma divina, e formados pelo melhor método de edu­
cação. Mas, como colocou o problema da justiça no absoluto, 
o autor da República não pretendia legislar, parece, senão para 
cidadãos perfeitos.
Estas poucas reflexões nos levam a concluir que o caráter 
paradoxal da constituição platônica se deve ao fato de ser esta 
constituição paradigmática, ou, em outros têrmos, puramente 
teórica 64. Conciliar o problema da prática com o da teoria
— resolver a antinomia da experiência e da razão pura — é 
algo com que o filósofo, no ardor das suas preocupações meta­
físicas e no entusiasmo de sua recente descoberta da teoria das 
Idéias, não se preocupa ainda. Só se proporá êste objeto mais 
tarde, na Política e sobretudo nas Leis. Mas não cabe ante­
cipar aqui o andamento ulterior de seu pensamento 65.
A R e p ú b l i c a 43
VII. — Gênese das Cidades Injustas 
Males Ligados à Injustiça (543 a ■ 529 b).
I. Da aristocracia à timarquia
No comêço do oitavo livro, Sócrates retoma a exposição 
no ponto onde a abandonara a fim de descrever a organização 
da cidade justa (liv. V, 449 b) e enceta o exame das cidades 
pervertidas. Invertendo ousadamente a posição anterior do 
problema, parte da constituição ideal e estuda as suas metamor­
foses na ordem cronológica considerada, por petição de princípio, 
como uma ordem de corrupção crescente. As constituições
o pretendem, êle poderá ser o quinhão de alguns, mesmo de dois, mas 
tenderá para a unidade de comando. O verdadeiro Estado só existe 
para um chefe único que comanda com arte” . (R.L. Klee: La Théorie
et la Pratique dans la Cité platonicienne. — Revue d’Histoire de la 
Philosophie, 1931, I, pág. 7.)
A idéia monárquica, em germe na República, encontra expressão 
definitiva na Política: “A ciência real, para Platão, encarna-se, viva e
soberana como a verdade, no regime pessoal do Príncipe. Êste fica 
livre de todo entrave coletivo porque traz a lei política no receptáculo 
de sua alma de ouro” . (Id. Ibid., pág. 8.)
64. Cf. a respeito as eruditas observações de um dos primeiros 
tradutores franceses da República, J. de Grou: Prefácio à edição de 
1762, pág. X X II .
65. Sôbre a evolução das idéias políticas de Platão, v. o estudo de 
R.-L. Klee, acima citado (Rev. d’Hist. de la Ph.il., 1930, IV , pág. 
309-353, e 1931, I, pág. 1-41).
I
44 P l a t A o
degiemeradas, provindas da aristocracia, são em número de quatro. 
Em primeiro lugar vem a timarquia, de que os governos de 
Creta e da Lacedemônia oferecem exemplos históricos; a oli­
garquia que lhe sucede não tarda, em geral, a ser suplantada 
pela democracia; enfim, no último grau, a tirania consuma o 
triunfo da injustiça. A êstes quatro tipos de constituições 
viciosas correspondem quatro caracteres da alma nos quais se 
afirma o progresso da ignorância e do mal (545 c).
O abalo inicial, que provoca a decadência do govêmo e 
dos costumes na aristocracia, produz-se no dia em que as raças 
de ferro e bronze ascendem ao poder. As gerações humanas, 
como as de todos os sêres vivos, estão submetidas a leis: por 
não conhecerem sua misteriosa fórmula 66, os chefes celebram 
às vêzes casamentos fora do tempo. Destas uniões nascem 
filhos inferiores, dos quais os menos defeituosos são indignos 
de herdar as funções dos pais. Quando atingem a idade varonil, 
abandonam-se ao mais triste de seus pendores, aspiram apenas 
a enriquecer, desejo que engendra a divisão na cidade. Após 
muitas lutas, conseguem, entretanto, partilhar entre si os bens, 
as terras e as casas dos artesãos e lavradores que, de cidadãos 
protegidos que eram, se vêem reduzidos à servidão. Destarte, a 
economia da constituição é subvertida, a hierarquia das três 
classes destruída. O respeito dedicado aos magistrados desa­
parece. O apetite do lucro instala-se nos guardiães e, excitado 
pela posse, não cessa de crescer. A guerra torna-se depressa 
um meio de satisfazê-lo. Em tais conjunturas, não são mais 
os sábios chamados aos postos de comando, porém homens iras­
cíveis e astutos, amantes da aventura, seduzidos pelo proveito 
que ela comporta, e resolvidos a todos os riscos para conduzi-laa bom fim. Êstes homens, em meio das vicissitudes de uma 
carreira agitada, desfrutarão em segrêdo das riquezas adqui­
ridas, pois, libertos do freio da lei, guardam-lhe mêdo incons­
ciente. Entrincheirados em suas moradas como outros tantos 
ninhos privados, adoram aí o ouro e a prata e saciam as paixões 
brutais — envergonhados talvez de si próprios, porém incapazes de 
se dominar.
Em suma, a cidade timárquica, que substitui pela honra 
guerreira o culto da virtude, está totalmente entregue às ferozes 
rivalidades que a ambição desencadeia (548 d).
O caráter do homem que lhe corresponde é dominado pelo 
elemento corajoso, o {h)[AÓç, que avassala o elemento razoável. 
Daí a preferência dada à ginástica sôbre a música, e a ruptura 
do justo acôrdo delas, sem o qual não há sabedoria. O homem 
timárquico pode ser generoso na juventude, e buscar a honra 
mais do que o dinheiro, a idade, porém, o toma ávido e impõe 
silêncio a seus bons sentimentos. Êle viu o pai pobre, modesto,
66. Platão deu dessa fórmula uma expressão que se tomou célebre 
sob o nome de número platônico. V . nota ad loc.
A r e p ú b l i c a 45
e desacreditado, devido à sua virtude mesma: evita como a 
um lôgro imitar-lhe o exemplo (548 e-550 c).
II. A. oligarquia
A passagem da timarquia à oligarquia efetua-se da maneira 
mais simples. O gôsto pelas riquezas, transformando-se em 
avareza, converte-se no móvel principal da atividade dos ci­
dadãos. Êles acumulam, entesouram, e, quanto mais estima 
concedem ã fortuna, menos dessa estima conservam pela virtude. 
Na balança dos valores, o prato de uma desce, enquanto, ali- 
geirado, o da outra sobe.
O peculiar ao governo oligárquico é adotar o censo como 
medida de capacidade para o exercício do poder. Mas o absurdo 
dêste critério, que priva o Estado de grande número de talentos 
aptos a servi-lo, quase não carece de demonstração. Ousar-se-ia 
escolher o pilôto de um navio segundo o censo, com abstração 
das qualidades e conhecimentos profissionais requeridos ao ma­
nejo do timão? Assim, a oligarquia repousa sôbre um princípio 
vicioso. Dividindo os cidadãos em dois clãs adversos, dos ricos 
e dos pobres, quebra irremediavelmente a unidade do Estado 
cuja segurança é, aliás, incapaz de garantir. Seus magistrados 
devem, com eíeito, ou armar a multidão, e neste caso tudo 
temer de sua parte, ou restringir-se a uma milícia pouco nume­
rosa, composta de membros da classe dirigente, e sem valor 
guerreiro, porquanto, nesta classe, a primazia do espírito de 
lucro e de vil negócio sucedeu ao primado da coragem.
A constituição oligárquica opõe-se, portanto, à manutenção 
da divisão do trabalho. Cumpre, além do mais, denunciar, como 
seu maior vício, o liberalismo econômico que introduz no Estado. 
Sendo os cidadãos livres para alienar totalmente seus bens, 
forma-se logo uma classe de proletários sem função determinada: 
verdadeiros zangões da raça humana, muito mais nocivos que 
os seus similares da espécie alada, porque armados de perigosos 
ferrões. Em tôda parte onde grassa o flagelo do pauperismo, 
encontram-se em multidão mendigos, ratoneiros, hierodulas e 
outrosi malfeitores.
Examinemos agora como se produz, no indivíduo, a passagem 
do espírito timárquico ao oligárquico. Um caso particular nos 
informará sôbre a evolução geral. Tomemos um estratego ou 
um magistrado cuja boa vontade “se rompeu contra o Estado 
como um barco contra o escolho” . Sicofantas fazem com que 
seja condenado à pana de morte ou de exílio e ao confisco 
dos bens. Seu filho, que até então o tomou como modelo, 
considera com estupor tantas desgraças imerecidas. Cheio de 
temor por si próprio e humilhado pela pobreza, “precipita do 
trono em que colocara, na alma, a ambição e a coragem guer­
reira”. E a êste trono eleva, na dignidade de Grande Rei, o 
mais sórdido desejo “ao qual coroa com a tiara e cinge com o 
colar e a cimitarra” .
46 P l a t ã o
A partir dêste momento, não tem mais do que um objetivo: 
ganhar, economizar sem descanso, juntar pacientemente, ao pouco 
dinheiro que possui, recusando-se as satisfações mais legítimas. 
Honra acima de tudo os ricos e a riqueza, e põe tôda a glória 
em adquirir grande fortuna. Avaro, mesquinho, com a alma 
fervilhando de maus desejos, tomou-se a réplica exata do segundo 
dos Estados pervertidos (555 a).
III. A democracia
Ao terceiro grau de decadência corresponde a democracia. 
Ela é o produto dos mesmos fatores que a oligarquia, porém 
elevados, se se pode dizer, a maior potência. A oposição entre 
ricos e pobres cresce dia a dia, sem que a classe dirigente, 
preocupada ünicamente em enriquecer, cuide de conjurar os 
temíveis efeitos dêste antagonismo. Bem depressa os “zangões 
armados de ferrões” — gente sobrecarregada de dívidas ou man­
chada de infâmia — assumem a chefia do povo e o incitam à 
revolta. Esperam, graças à revolução política, recuperar a posse 
dos bens que dissiparam, ou apagar a vergonha que lhes enodoa 
os nomes 67. a maioria, embora pervertida, é bem dotada e 
sabe explorar hàbilmente as paixões populares. Em face dêles, 
os oligarcas, efeminados por uma vida sem nobreza, inspiram 
apenas desprêzo. O estado de tensão criado pelo surdo antago­
nismo entre as duas classes não poderia prolongar-se muito 
tempo. Ao menor choque deflagra a luta que levará ao estabe­
lecimento da democracia. Na realidade, tal estabelecimento 
opera-se de uma das três seguintes maneiras:
l .9 O partido no poder solicita auxílio a uma cidade oligár- 
quica vizinha para conter a agitação popular. O gesto atiça 
a cólera do povo e provoca a revolução.
2.5 O partido popular pede socorro a uma cidade democrática 
vizinha para derrubar o regime oligárquico: daí a guerra e a 
revolução.
3.ç Enfim, o choque inicial pode surgir no interior mesmo do 
Estado, quando os ódios e as cobiças atingem o grau de inten­
sidade em que, sem mais fingimento, se traduzem na vio­
lência.
Quais são, agora, as características dêste govêmo nascido 
da guierra ou da sedição? Ele pode pretender a tudo menos 
à unidade, porquanto é um composto de instituições das mais 
diversas e das mais inconciliáveis. Daremos uma justa idéia 
dêle representando-o como uma espécie de “bazar de consti­
tuições” (jtavTOJKÓXiov JtoXiTSWÕv) onde o amador só tem o 
trabalho de escolha. É comparável, ainda, a estas variegadas
67. Os “zangões” são os cidadãos arruinados que a classe dirigente 
excluiu de seu seio.
A R e p ú b l i c a 47
vestimentas que constituem a alegria das mulheres e das crianças, 
mas que os homens de gôsto acham ridículas. E isto será 
exibi-la à luz mais favorável, pois se esta variedade, esta rica 
policromia, representa um defeito aos olhos do filósofo, não 
carece de encanto para o artista que se compraz no domínio das 
aparências. Mas o exame nos revela uma realidade muito menos 
sedutora: é da essência da democracia conceder aos cidadãos 
uma liberdade demasiado grande que degenera fatalmente em 
licenciosidade. Que ordem, com efeito, continua possível, quando 
tôda coerção é abolida, quando as regras morais são abandonadas 
ao juízo do primeiro a chegar, que as adota ou as rejeita, con­
forme os caprichos de seu humor ou dos propósitos que con­
cebeu? Como, de outro lado, se mostraria alguém severo com 
os criminosos, quando conta com a indulgência pública a fim 
de obter perdão para os seus próprios crimes? No Estado 
popular, a sanção por uma falta não é, de modo algum, propor­
cional à gravidade, mas, em razão inversa, ao sentimento de 
comiseração que o culpado sabe inspirar a seus juizes. Além 
disso, mesmo que castigado por justa sentença, êste culpado, por 
menos hábil que seja, escapa à pena incorrida. Condenado ao 
exílio, por exemplo, permanece na pátria e aparece em público 
sem que o notem, “como um herói, dotado do poder de se 
tomar invisível” .
Para alcançar as mais altas funções, não é preciso estar 
preparado por longos trabalhos, ter auferido os benefícios de 
excelente educação e ter-se exercitado, desde a infância, na 
prática de tôdasas virtudes. Ao homem que ingressa na carreira 
política, ninguém pede que dê prova de sua ciência e sabedoria, 
assim como da honestidade de seu passado. Basta, para que 
lhe concedam confiança, que afirme seu devotamento à causa 
do povo. Pois é um espírito “largo e nada escrupuloso” quB 
reina neste Estado, onde todos se contentam com vagas pro­
messas sem procurar saber se quem as formula é capaz de 
cumpri-las! Trata-se de um espírito “brando” que, por aversão 
a tôda legítima hierarquia, proclama a igualdade de elementos 
por natureza desiguais (558 b).
Semelhante espírito caracteriza o homem democrático. Êste 
é geralmente filho de um oligarca, o qual lhe inculcou desde 
cedo o senso da poupança e da parcimônia. Habituado a satis- 
faaar apenas os desejos necessários e proveitosos, domina pri­
meiramente os desejos supérfluos, que se poderiam denominar 
pródigos, pois quase sempre são prejudiciais e custosos. Mas 
um dia não resiste às tentações dos zangões e prova-lhes o 
perigoso mel. A partir de então, seus instintos reprimidos en­
contram poderosos aliados nestes insetos ardentes e terríveis, e 
a sedição eleva-se nêle e o dilacera. Embora seus sentimentos 
oligárquicos recebam o auxílio das advertências ie dos conselhos 
dados pelos pais e próximos, o desfecho dêste conflito interior 
não dá margem à dúvida. E não tarda a vir o momento em 
quie, “a êstes sábios embaixadores enviados por sábios anciãos, 
êle fecha as portas do recinto real da sua alma” . Nesta acrópole, 
os desejos pródigos reinarão doravante sem freio nem lei. Ex-
48 P l a t ã o
pulsaxão tôdas as virtudes — tanto mais fàcilmente quanto 
elas não se acham aí sob a guarda da ciência — e as cobrirão 
de ultrajes, chamando ao pudor simplicidade, à temperança fra­
queza e à moderação, rusticidade. E em seu lugar, introduzirão 
“brilhantes, seguidos de um côro numeroso, e coroados” a inso­
lência, a anarquia, a licenciosidade, o descaramento, aos quais 
hão de louvar e de enfeitar com os belos nomes de polidez, liber­
dade, magnificência e coragem.
A metamorfose fica então concluída. O jovem não mais 
sente vergonha de viver na sociedade dos zangões. Como êles, 
perdeu o senso da ordem e da honra. Tôdas as coisas se lhe 
tornam iguais: bem e mal, virtudes e vícios, prazeres nobres 
e prazeres baixos. Privado de firme comando — como o Estado 
popular — entrega-se inteiramente à tentação do momento, ao 
desejo que o solicita, ao vão capricho que o arrasta. Escravo 
dêstes inumeráveis amos, é, na plena acepção da palavra, o 
homem democrático: frívolo, leviano, incapaz de lógica na deli­
beração e perseverança no esfôrço. Sua vida, que êle considera 
livre e feliz, oferece, na realidade, o espetáculo de uma decep­
cionante anarquia. E sem que o saiba, tece a trama dos males 
que mais teme (558 c-562 a).
XV. A tirania
Está, com efeito, na ordem da natureza que à licenciosidade 
extrema suceda extrema servidão. Por seus excessos mesmos, 
a democracia engendra inevitàvelmente a tirania. O povo, alterado 
pela liberdade, tendo prestado ouvidos a maus escanções que o 
embriagam com êste vinho puro para além de tôda decência, 
perde logo o contrôle de seus atos, apavora-se com a mjenor 
sombra de coerção e trata por oligarcas os que gostariam de 
mantê-lo nos caminhos da prudência. Seu favor bafeja, em 
compensação, os espertos que afetam maneiras simples e lhe 
lisonjeiam os pendores grosseiros. Numa cidade desorganizada, 
onde o pai receia os filhos e o mestre, os discípulos, onde o 
escravo sie arroga todos os direitos, os magistrados não gozam 
de qualquer autoridade e as leis permanecem letra morta. A 
classe dos zangões, poderosa e ativa no malefício, não pode 
viver e conservar a confiança da plebe, a não ser partilhando-lhe 
os bens — dos quais se atribui, aliás, o melhor quinhão — 
que arranca aos cidadãos ricos e econômicos. Êstes tentam 
inutilmente defender-se: o tumulto das assembléias sufoca seus 
lamentos; e, se persistem em denunciar os decretos de espoliação, 
são acusados de nutrir ambições criminosas e querer atentar 
contra a liberdade do Estado. O populacho teme ser privado 
das migalhas do festim que lhe atiram os demagogos, e desta 
praciosa independência die que tem a ilusão de desfrutar. Para 
manter em xeque os que denomina inimigos, toma um protetor 
a quem confere podêres proporcionais às esperanças que nêle 
deposita. Crendo assim aumesntar a própria fôrça, aumenta na 
realidade, desmesuradamente, a do homem que se tomará o senhor 
dela.
A R e p ú b l i c a 49
Primeiro o protetor consegue uma guarda para a sua pessoa, 
que êle pretende estar ameaçada. Em seguida, arrasta aos 
tribunais e manda condenar os cidadãos que julga capazes de 
entravar a execução de seus intuitos. Em caso de necessidade, 
não hesita mesmo em derramar e “provar com bôca e língua 
ímpias o sangue de sua raça” ; mata, desterra, ao mesmo tempo 
que faz luzir aos olhos da multidão a próxima abolição das 
dívidas e a divisão das terras. Aspire ou não a suportar-lhe 
a lei, entra então no círculo de seu nôvo diestino: deve “ou 
perecer pela mão dos adversários ou tornar-se tirano e, de homem, 
converter-se em lôbo” . Como o papel de vítima é o último 
quie lhe convém, “ derruba numerosos rivais, monta no carro da 
cidade e revela-se, enfim, déspota consumado” . No início, porém, 
desejoso de agradar, recompensa os seus partidários. Mas bem 
depressa é levado a vigiar os melhores dentre êles, e a buscar 
na guerra externa um derivativo para as energias que sente 
erguerem-se secretamente contra êle. Se deseja continuar senhor, 
é obrigado a desfazer-se de todos os homens de valor com que 
a cidade conta, sem excetuar mesmo os seus amigos. Ao contrário 
do médico que purga o corpo dos elementos nocivos, o tirano 
purga o Estado dos cidadãos mais estimáveis. Depois, constitui 
a sua guarda, dia a dia mais numerosa, de mercenários estran­
geiros e escravos forros. Tem por favoritas personagens sem 
dignidade, zangões que o falso brilho da fortuna do tirano atrai 
de tôdas as partes; pois tal é, doravante, o dilema que se lhe 
coloca: viver com os perversos — que o adulam, mas no fundo 
lhe dedicam apenas ódio — ou renunciar à vida.
E neste ponto Sócrates não deixa de lembrar que lhe 
assistia realmente razão ao excluir da cidade os poetas trágicos. 
Com efeito, celebram êles os louvores da tirania e gabam a sorte 
dos tiranos “aos quais o comércio dos hábeis torna hábeis 68” ., 
Acabamos de verificar de que espécie de habilidade se trata 
e quão invejável é! Os que a apreciam, pois, que procurem 
outros Estados para trabalhar pelo advento da tirania e da 
democracia. Sob êstes regimes, são honrados e enriquecem. 
Mas à medida que remontam o declive das constituições 
(tò SvavTEç Tajv Itoí-iteiüv), o renome dêles enfraquece, “como 
se a falta de fôlego o reduzisse à impotência de ir adiante” .
Fechado êste parêntese, apresenta-se uma questão: como 
sustentará o tirano êste numeroso e variegado bando que o 
escolta? Nos primeiros tempos, confiscará as riquezas dos 
templos; depois, esgotada esta fonte de renda, apoderar-se-á 
dos bens de seu “pai”, o povo, que o criou, cuidou e elevou ao 
poder supremo. E se o povo. finalmente consciente do êrro, 
tenta expulsar o filho indigno da casa paterna, castigado impie­
dosamente por êle, conhecerá a própria fraqueza e a extensão 
de suas misérias. Por ter recusado a submeter-se a homens
68. Eurípides: Troianas, v. 1177.
4
50 P l a t ã o
livres, caiu na mais dura e mais amarga das servidões: a que 
inflige o despotismo dos escravos (569 c).
V. Miséria do tirano. Felicidade do justo
O estudo da natureza tirânica ocupará, agora, Sócrates, ao 
longo do nono livro. Mas antes de descrever a gênese desta 
natureza, tenta especificar a distinção que estabeleceu mais acima 
entre os desejos proveitosos e os desejos supérfluos (554 a). 
Se se quer conhecer a maleficência dêstes, basta observá-los 
no homem que adormece após beber ou comer desmedidamente; 
neste momento, tais desejosacham-se à sôlta de tôda coerção, 
pois a razão, vencida por tantos excessos, já não os vigia. Ora, 
o que fazem êles? Longe de se manterem em repouso, saltam 
e correm empós das mais grosseiras satisfações. O assassínio, o 
incesto mesmo, não os detêm, e não há extravagância ou 
infâmia que então o dormidor não cometa em sonho. Ao con­
trário, quando o homem temperado e prudente se abandona ao 
sono, após haver desperto o elemento razoável de sua alma e 
havê-lo nutrido de belos pensamentos, entra, melhor ainda do 
que na vigília, em íntimo contato com a verdade. Assim pois, 
entregues a si próprios, nossos maus desejos descambam nos 
piores desregramentos, enquanto reprimidos, adormecem e cessam 
de coibir o nobre surto da razão.
O homem democrático, já o vimos, não faz distinção entre 
os seus desejos: acolhe a todos, ao capricho do acaso que os 
engendra, sem conceder preferência a nenhum. Seu filho, im­
buído dos mesmos princípios, o imita na mocidade. Porém, 
maus conselheiros, ansiosos por firmar influência sôbre esta 
jovem alma, favorecem nela o desenvolvimento de um grande 
desejo que reinará sôbre todos os outros. Êste déspota é o 
amor-luxúria, ao qual as tristes companhias, a embriaguez e a 
demência, alimentaram e dotaram de perigoso ferrão. O que 
vem a ser o adolescente sujeito a esta abjeta dominação? Ator­
mentado por insaciáveis apetites, dissipa as rendas pessoais nas 
festas, banquetes e orgias. Depois, nada mais lhe restando, 
apodera-se pela violência •—■ como o tirano da cidade — dos 
haveres do pai e da mãe. E isto por uma cortesã, um amante, 
conhecidos ontem, esquecidos amanhã, em quem se encarna 
efêmero capricho. Mas não findam aí seus crimes. Para saciar 
suas paixões mais vivas do que nunca, far-se-á ladrão, traficante 
de escravos ou sicofanta. Se nasceu numa cidade bem poli­
ciada, irá abandoná-la a fim de pôr-se a serviço de um tirano 
estrangeiro; mas se a pátria já é prêsa da desordem, esfor- 
çar-se-á, com a gente de sua laia, para implantar nela a tirania 
em prol de um perfeito celerado. Suponhamos que a tentativa 
logre êxito, qual há de ser o destino dêste último? Importa, 
aqui, não se fiar nas aparências. Arranquemos a êste faustoso 
senhor o seu aparato teatral, vejamo-lo viver nos momentos de 
abandono e desvendaremos os males secretos que o devoram. 
Dizem que é poderoso. Na verdade é duplamente escravo: na 
alma, dos piores desejos; na cidade, dos homens mais baixos
A R e p ú b l i c a 51
e mais iníquos aos quais é obrigado a adular para manter-se 
no poder. Julgam que é rico. Mas êle só pode satisfazer 
pequena porção de seus apetites que são ilimitados. Na rea­
lidade, é pobre de tudo quanto não possui, dos inumeráveis bens 
que lhe escapam ao domínio e em cuja posse êle resume a 
felicidade. Privado de tôda amizade sincera, não sente menos 
temor, em sua própria solidão, do que o inspira a seus súditos. 
Sabe que a inveja e o ódio o espreitam e que um dia virão 
golpeá-lo no fundo do palácio onde se esconde — dêste palácio 
que constitui para êle como que uma prisão. Assim, roído de 
vícios e vítima de incessantes terrores, no apogeu do destino 
reservado à sua natureza tirânica, é ao mesmo tempo o mais 
desprezível e o mais infeliz dos homens. Mas não é esta a 
verdade que, de há muito, Sócrates se propunha demonstrar? 
No respeitante à felicidade, assim como à justiça e à virtude, 
a ordem das constituições e dos caracteres aparece tal como 
êle a fixou: no cimo, a cidade e a alma reais; depois, nos 
declives da decadência, as cidades e as almas timárquicas, oli- 
gárquicas, democráticas e, enfim, tirânicas. O escopo do filó­
sofo foi alcançado. Seu júbilo se expressa por um grito de 
triunfo. Que se procure um arauto para proclamar o senti­
mento do filho de Ariston: o homem mais justo é também o 
mais feliz, enquanto o mais injusto é o mais infeliz, escapem ou 
nâo aos olhares dos deuses e dos homens (580 c).
Platão não foi o primeiro a estudar metòdicamente as 
principais formas de organização política. Heródoto, Protá- 
goras, Hípias de Élis — cujas pretensões dois diálogos socrá- 
ticos ridicularizam — e Crítias, entre outros, o precederam 
neste caminho 69. Mas o oitavo e nono livros da República quase 
não devem, ao que parece, aos trabalhos dêstes autores, pois tratam 
menos das grandes constituições do mundo antigo do que de 
seus eternos protótipos. No domínio da história, a ordem de 
sucessão dos diversos regimes não é, sem dúvida, tão imutável 
como acreditava Platão; mas o quadro que pintou da gênese 
dêles e os traços pelos quais os caracterizou continuam sendo, 
após vinte e três séculos, de impressionante verdade.
*
# #
69. Heródoto (III, 80, 82) estudara os méritos respectivos da mo­
narquia, da aristocracia e da democracia. Protágoras, em suas Antilogias, 
que não chegaram até nós, devia examinar a origem e a natureza das 
constituições (cf. Diógenes Laércio, IX , 50). Hípias de Élis aplicara-se 
ao estudo da constituição oligárquica de Esparta (y. Filostrato, Vit. 
Sophist., I, 11, e Platão, Hípias maior, 285 b). Enfim, Crítias escrevera 
sôbre os governos da Tessália, Lacedemônia e Atenas. Encontrar-se-á 
na coletânea de H. Diels (Vorsok., II, pág. 622 segs.), os raros frag­
mentos que Ateneu, Clemente de Alexandria e Eustato nos conservaram 
destas obras.
52 P L A T Ã O
Uma segunda prova da felicidade ligada à justiça deduz-se 
da teoria das três partes da alma. Cada uma destas partes, 
razão, orgulho e apetite sensual, busca prazeres distintos. Ora, 
quando uma domina, concede a preeminência aos prazeres que 
respondem à sua natureza, e subestima ou despreza os outros. 
É o que faz dizer de um homem que êle é filósofo, ambicioso 
ou amigo do lucro. Trata-se, portanto, de saber qual dêstes 
três caracteres é suscetível de desfrutar o prazer mais verdadeiro 
e mais isento de pena.
Observemos, primeiramente, que o amigo do lucro ignora 
os prazeres que a ambição e o amor à ciência proporcionam. 
O campo de sua experiência é extremamente limitado. O ambi­
cioso goza evidentemente satisfações mais nobres. Mas não será, 
no fim de contas, o filósofo quem degusta os prazeres mais 
puros? Na juventude, pôde êle colhêr os frutos da sensua­
lidade e da coragem, e na idade madura, os do saber. A extensão 
de sua experiência confere, pois, um valor todo particular à 
escolha que fêz. Sem menosprezar a glória, única meta do 
ambicioso, propõe-se fins mais serenos; vive absorvido na con­
templação das coisas eternas e desfruta de uma felicidade que 
nenhum sofrimento altera e nenhuma decepção compromete.
Da pureza desta felicidade daremos uma terceira e última 
prova. Entre o prazer e a dor, situa-se um estado intermediário, 
que se pode considerar como um estado de repouso, caso assinale 
a suspensão da dor, ou como um estado de privação, caso assinale 
a suspensão do prazer. Na primeira eventualidade é assimilado 
ao prazer, no segundo à dor, mas, assim procedendo, comete-se 
um abuso: confundem-se, com efeito, formas puramente nega­
tivas da sensibilidade com suas formas positivas contrárias.
Suponhamos que um homem se eleve à região média do 
mundo: situando o lugar em que êle se encontra em relação 
ao que deixou, julgar-se-á na região superior se não conhecer 
esta última. Do mesmo modo, quem ignora os gozos verda­
deiramente puros resume o praaer na cessação da dor.
Num sentido, cada prazer enche o vazio de uma de nossas 
necessidades físicas ou espirituais. Mas estas necessidades, como 
seus respectivos centros, o corpo e a alma, são muito desiguais 
em dignidade. A alma tem mais realidade que o corpo, pois que 
só ela é capaz de conhecer as Formas imutáveis;, similarmente, 
os alimentos que lhe apaziguam a fome — opinião verdadeira, 
ciência e virtude — são bem mais substanciais do que aquêles 
com os quais o corpo se aplaca. Por conseguinte, os prazeres 
que nascem da plenitude da alma são os mais reais e os mais 
autênticos prazeres.
Infelizmente, a maioria dos homens não o compreende. Como 
animais no pasto,inclinam obstinadamente a cabeça para o 
chão; e, tão logo um objeto grosseiro lhes excita a cobiça, lutam, 
para dêle se apoderar, a cornadas e a coices. No entanto, a 
posse dêste objeto proporciona-lhes apenas alegrias ilusórias, 
seguidas ordinàriamente de pesares e dores. Em definitivo, ba­
A R e p ú b l i c a 53
tem-se pela sombra de um prazer, “como os troianos se bate­
ram, no dizer de Estesicoro, pela sombra de Helena que nunca 
tinham visto” .
Decepç&o análoga está reservada aos que buscam dema­
siado àvidamente os prazeres do thimos, se não confiaram prè- 
viamente o govêmo de suas almas à razão. Em troca, quando 
esta reina, confere aos prazeres da ambição e do interêsse, 
que contêm em justos limites, um caráter de realidade que em 
si mesmos êles não possuem. Afastar-se da ciência e da 
sabedoria significa, pois, de todos os pontos de vista, afastar-se 
da verdadeira felicidade.
Como, agora, exprimir a distância que separa o homem real 
e sábio de sua antítese viva, o tirano? Êste, já o vimos, só co­
nhece, do prazer, a mais vã das sombras. Se observarmos que 
êle se encontra no terceiro grau a partir do oligarca, que 
também se acha no terceiro grau a partir do rei, poderemos 
representar esta sombra pelo número plano 9 (3 x 3), e seu 
afastamento do prazer real pelo cubo de 9, ou seja, 729. Êste 
número corresponde às somas respectivas dos minutos do dia, 
das horas do mês, dos dias e das noites do ano’ ®. Assim, a 
cada divisão do tempo, o prazer do tirano permanece infinita­
mente distanciado do do rei. Que se considere um ano, uma 
hora ou um minuto qualquer de sua vida, encontrá-la-emos no 
mesmo grau, privada de felicidade. Mas se o sábio predomina, 
em felicidade, sôbre o perverso e o injusto, não predominará ainda 
mais em decência, beleza e virtude? (588 a).
VI. Resposta aos apologistas da injustiça
Eis-nos, pois, em condições de responder a êstes admiradores 
da injustiça dos quais Glauco foi o brilhante intérprete no início 
do colóquio71. “A alma humana, dir-lhes-emos em substância, 
é comparável a estas criaturas fabulosas — a Quimera, Cila ou 
Cérbero — que, num só corpo, unem as formas de muitas 
espécies de sêres vivos. Podemos representar-nos suas diversas 
partes sob os traços respectivos de um monstro policéfalo de 
grandie porte, de um leão de tamanho médio e, enfim, de um 
pequeníssimo homem. Ora, o que afirmais, ao proceder, a apo­
logia da injustiça, se não que é preciso nutrir, em detrimento 
do homem, o monstro e o leão? Ou, em outros têrmos, que é 
proveitoso entregar à sanha das feras o que há em nós de 
essencialmente humano? Os laudadores da justiça, ao con­
trário, pretendem que se fortaleça o homem e que lhe dêem 
o leão como auxiliar para domar o monstro inominável. E é
70. “ Philolaus annum naturalem dies habere prodidit CC CLXIV et 
dimidiatum.” (Censorinus, De die natali, 12, 2.) É o número que 
Platão adota no caso.
7J, Vide liv. II, 360 e-362 c.
54 P L A T Ã O
exato que não é possível estabelecer de outro modo a paz e a 
harmonia interiores.
Daí por que o sábio se esforça por regrar segundo a justiça 
o govêmo de sua alma. E, para tanto, negligenciando as vãs 
atividades que visam apenas a fortuna ou a glória, mantém o 
olhar fixo no plano da cidade ideal, que se lhe oferece como um 
modêlo no céu.” (592 b).
VIII. — Poesia e Filosofia
As recompensas eternas da Justiça 
(595 a -621 b).
I. Reexame da condenação da poesia
A condenação da poesia, proferida no terceiro livro, encon­
trará aqui a necessária justificação. Mediante numerosos exem­
plos, Sócrates já mostrou que os poetas são, o mais das vêzes, 
apenas mestres enganosos. Mas importa precisar que isto decorre, 
sobretudo, da natureza da arte que professam. Êles são, com 
efeito, simples imitadores. Ora, no que exatamente consiste a 
imitação? Em reproduzir a imagem de um objeto material 
que, por sua vez, não passa da cópia de uma idéia. O artesão 
(SrjmoDQyóç) que fabrica um móvel se inspira na Forma dêste 
móvel, de que Deus é o autor ( (puTO U Q yÓ ç) ; mas o artista que 
o pinta contenta-se em copiar a obra do artesão. Seu quadro 
tem, pois, menos consistência e verdade do que o móvel e êste 
menos do que o arquétipo do qual não passa de imperfeitíssima 
reprodução. Donde se conclui que tôda imitação dista em ter­
ceiro grau da pura realidade.
O próprio Homero, considerado a justo título como o pai 
dos poetas trágicos, jamais criou algo mais do que fantasmas 
vãos. Se fôsse apto a apreender melhor o real, não teria perdido 
o seu tempo em relatar aventuras lendárias, em emitir vagas 
opiniões sôbre o govêrno das cidades e a educação dos homens; 
teria, como Licurgo e Sólon, dado leis a seus compatriotas, ou, 
como Pitágoras, instruído discípulos fiéis. De qualquer maneira, 
muita gente ligar-se-ia à sua pessoa para receber lições e 
conselhos. Em vez disso, errou, só, durante tôda a vida, de 
cidade em cidade, recitando os seus versos e mendigando o 
pão.
Se o imitador ignora as qualidades dos objetos que imita, 
ignora-lhes também o uso. A arte da fabricação é guiada 
pela da utilização: eis por que se pode dizer estar uma para 
outra como a reta opinião (ôq{K| ôó|a) para a verdadeira 
ciência (èjtlOtr|(xr)). Mas a arte da imitação, que só leva em 
çonta simples aparências, brota da opinião vulgar, inconstante

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