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28 P l a t ã o mas podem reduzir-se a quatro, que constituem, de alguma maneira, a réplica das formas pervertidas de govêmo. Sócrates só as estudará mais tarde, pois seus amigos o instam, agora, a completar a descrição da cidade ideal, analisando de mais perto a organização da classe dos guardiães e a dos chefes (445 c). VI. — 0 Governo da Cidade Justa (449 a -541 b). I. Organização da classe dos guardiães. As três ondas. A. Comunidade das funções entre os dois sexos. — Em nosso Estado, homens e mulheres serão aplicados às mesmas tarefas e, para se prepararem neste sentido, receberão a mesma educação. Com efeito, entre os dois sexos não existe nenhuma diferença de natureza quanto às aptidões técnicas. No homem, tais capacidades são suscetíveis de um desenvolvimento mais completo, porque servidas por maior fôrça corporal; trata-se, porém, de superioridade puramente quantitativa. Devendo parti cipar das rudes fainas da guerra, as mulheres de nossos guardiães exercitar-se-ão com os homens nos ginásios. Como êles, não temerão despir as vestes, pois que a nudez convém aos exer cícios da palestra. Sem dúvida, os motejadores não deixarão de rir, de zombar do bizarro espetáculo que se lhes oferecerá, quando homens e mulheres, de tôdas as idades, se adestrarem nus, despreocupados com as rugas e as marcas indeléveis que a passagem dos anos possa deixar-lhes sôbre o corpo. Mas que importa? Quem persegue um fim excelente — o desenvol vimento harmonioso de sua natureza — não tem de levar em conta as zombarias ditadas pela imbecilidade e ignorância. Além disso, o hábito logo passará a justificar práticas que não chocam, no fim de contas, senão à usança recebida. Serão escolhidas, entre as mulheres, as que forems dotadas de uma natureza própria à guarda e, depois de cultivadas as sueis qualidades naturais pela música e ginástica, serão dadas como companheiras e colaboradoras aos guardiães e chefes, pois não há função elevada que não possam eixercer (457 b). B. Comunidade das mulheres e das crianças. — Tendo escapado a esta primeira “onda de ridículo” , Sócrates é amea çado por outra. Decorrência lógica da comunidade dos bens e da comunidade das funções, uma nova reforma impõe-se: a da família. Com efeito, esta, sob a forma atual, implica, de um lado, a existência de um patrimônio — em tômo do qual ela se constitui e graças ao qual subsiste — e de outro a especialização da mulher nas funções domésticas. Ora, já pri vamos os guardiães do direito de propriedade e procedemos à repartição das funções, baseando-nos nas exclusivas aptidões naturais, sem tomar em conta o sexo. Cumpre-nos, portanto, adaptar o quadro da família a estas inovações, o que significa A R e p ú b l i c a 29 alargá-lo até os próprios limites da cidade. Decretaremos que as mulheres devem ser comuns a todos os guardiães. Isto não quer dizer que pretendamos instaurar, entre os dois sexos, uma baixa promiscuidade. Muito ao contrário, a comunidade que estabelecemos, distinguir-se-á por seu caráter moral e religioso. Em certas épocas, celebrar-se-ão casamentos, com grande pompa, entre os melhores indivíduos, a fim de que a raça conserve tôda a pureza. Para afastar os inferiores, recorrer-se-á a engenhoso sistema de sorteio, que permitirá aos magistrados favorecer os indivíduos de escol, embora dando aos outros uma razão plau sível de seu malogro. O tempo da procriação será severamente regulamentado para ambos os sexos. Para além, deixaremos aos cidadãos maior liberdade, prevenindo-os, todavia, de que os filhos gerados por uniões tardias e não sancionadas pelo casamento não poderiam, em caso algum, ser criados pela cidade. Quanto aos filhos legítimos, serão levados, desde o nascimento, a um lar comum, exceto os que sofrerem de alguma deformidade. Com respeito a êstes, não haverá a menor mise ricórdia: como já é prática em certos Estados — Platão pensa provàvelmente em Esparta — serão expostos em lugar secreto. Destarte, a cidade compreenderá, um dia, tão-sòmente bons e belos cidadãos. É, como vemos, a doutrina do eugenismo aplicada com todo o rigor. Resta especificar um último ponto. Como serão evitadas as uniões incestuosas ? De forma muito simples: tôdas as crianças nascidas sete meses, ao menos, após a celebração de um himeneu coletivo, e durante o seu período de validade, serão consideradas filhos e filhas dos guardiães e suas compa nheiras unidos por êste himeneu. Nenhum filho conhecerá o verdadeiro pai; nenhum pai, o verdadeiro filho. Assim não se poderá introduzir, em nossa cidade, o temível egoísmo que os laços familiares demasiado estreitos engendram. Por desumanas que pareçam — e que talvez sejam na realidade — tais pres crições, é mister confessar, defluem inevitàvelmente do princípio que presidiu à fundação da cidade ideal: realizar a justiça na associação política e na alma humana através da harmonia, dentro da perfeita unidade, dos elementos componentes de uma e de outra (462 e). C. Os filósofos-reis. — Que a constituição que acabamos de descrever é a melhor possível, nenhum espírito sensato ousará contestar. Resta, pois, saber se é realizável e, em caso afir mativo, como será realizada. A primeira questão não ocupará longamente Sócrates. Com efeito, se as instituições que preco niza são conformes à natureza, elas nada têm, por isso mesmo, de impossível. Após uma digressão bastante comprida sôbre as leis da guerra, em cujo transcurso é resolvido um problema de direito internacional 47, eis que se desencadeia a “terceira 47. Esta digressão, observa Gomperz (op. cit., II, pág. 496), é sem dúvida intercalada “para que o leitor se abasteça de novas fôrças” . 30 P l a t ã o onda” , a mais alta e a mais furiosa de tôdas. O Estado ideal não pode sair do domínio das puras virtualidades, a não ser por uma condição, de estranha aparência, que não deixará de sus citar risos e sarcasmos: é preciso que os filósofos se tomem reis, ou os reis e os soberanos dêste mundo, realmente e since ramente filósofos. Ciência e poder político devem estar reunidos num mesmo homem para se prestarem mútuo auxílio. Belo para doxo! exclamar-se-á. Outrossim, Sócrates, que acaba de enunciar esta proposição, prepara-se para enfrentar o rude assalto dos campeões do bom senso vulgar. Concedemos a êstes impetuosos adversários, diz êle, que os que se adornam com o título de filósofos são muitas vêzes depreciados com justa razão, mas precisemos o nosso pensamento definindo o verdadeiro filósofo. Segundo nós, é o homem que ama a ciência sob a sua forma universal, e não esta ou aquela ciência particular. Ora, a ciência tem por objeto o ser real, isto é, o conjunto das es sências ou idéias. Entre ela e a ignorância, que versa sôbre o não-ser, há um poder intermediário apreendendo a mul tidão das coisas que, diferentes do ser assim como do puro nada, erram perpètuamente entre êstes dois pólos. O referido poder é a opinião. Mudando como os fenômenos que a opinião nos permite apreender, ela é para a ciência o que o devir é para o ser. Assim, às três partes que discernimos na alma corres pondem três poderes distintos: ciência, opinião e ignorância — a última não sendo, de fato, senão um poder negativo. Ao contrário do vulgo, cuja percepção se limita aos fenômenos, em outros têrmos, às coisas que caem sob os diversos sentidos, o filósofo penetra as realidades e fixa seu conhecimento no domínio do imutável e do eterno. Como sua alma se abre para o mundo das idéias, onde divisa a justiça em todo o esplendor, está em condições, mesmo, qual um pintor, de reproduzir cá embaixo o exemplar divino. Hesitar-se-á ainda em confiar-lhe o govêrno da cidade perfeita? Eqüivaleria, havendo necessidade de escolher um guia, a titubear entre um homem dotado de vista clara e outro cego. Além disso, não carece de qualquer das qualidades que é justo exigir de um chefe. Sincero, detesta a mentira e a fraude. O amor, que o impele à ciência e à verdade, qual a torrenteque nada pode desviar de seu curso natural, nem dispersar em múltiplos riachos, absorve todos os desejos de sua alma e os faz concorrer para o seu próprio fim. O verdadeiro filósofo não busca, pois, os prazeres do corpo. Do ponto de vista sublime em que se coloca, não poderia conceder à vida terrena uma importância que ela não tem. Assim, despreza a morte e distinguei-se pela grandeza d’alma e pela coragem. Ê ao mesmo tempo liberal e sóbrio, entusiasta e desinteressado. Seu espírito vivo é servido por uma memória segura e a sua fôrça é embe lezada pela medida e pela graça. Amigo e como que aliado da verdade, cumulado dos dons mais raros, é tal enfim que Momo — cujas zombarias, dizem, não poupa os deuses — não encon traria nêle o que repreender (484 a-487 a). Daí se impõe a conclusão: a índole filósofa, amadurecida pela educação e pelo tempo, é a única que convém aos chefes A R e p ü b l i c a 31 supremos da cidade. Adimanto o admite. Mas, observa, a questão foi colocada abstratamente. Sócrates pintou o verdadeiro filó sofo, ou, se se quer, o filósofo tal qual deve ser, e não tal como o vemos na realidade. No mais das vêzes, com efeito, êle se nos apresenta sob as feições de uma criatura bizarra e insuportável; e, embora não tivesse os defeitos que lhe atribuem, não o julgaríamos menos inapto a gerir os negócios públicos. Semelhante opinião, conquanto fundada em certos casos, é em geral absolutamente falsa. Em um navio igualmente, cuja tripulação é formada de homens ignorantes e grosseiros, o verdadeiro pilôto passa por um inútil, uma espécie de “sonhador com as estréias” ; os marujos não negam apenas a sua ciência, mas inclusive a possibilidade de um conhecimento racional das coisas da navegação. Cercam o bravo patrão, que não é muito mais sabedor do que êles 48, e o obsidiam com suas preces para obter o comando do timão. É-lhes êsse recusado? Revoltam-se e apoderam-se dêle à fôrça; depois disso, senhores do barco, pi lham a carga, embriagam-se, empanzinam-se e correm de olhos vedados ao encontro de um fim trágico. A situação desta nave perdida no mar, sem direção, é a do bem dos Estados. Os cidadãos imaginam que a política não é arte nem ciência; não exigem qualquer competência aos chefes que escolhem, mas os querem devotados a seus interêsses mais mesquinhos, e dis postos a tôdas as complacências. Alegará alguém que os filó sofos incidem em êrro quando não se colocam a serviço de seus compatriotas? Mas responderemos que não fica bem ao médico ir oferecer seus préstimos ao doente: cabe a êste requi sitá-los (489 d). Além disso, cumpre reconhecer que freqüentemente as na turezas melhor dotadas para a filosofia se pervertem e produzem apenas maus frutos. Se desde cedo são orientadas para o mal, sua corrupção, mesma, é função da excelência de seus dons, pois, assim como são incapazes de praticar as mais altas virtudes, os indivíduos medíocres são também incapazes de cometer os mais baixos crimes. A educação atual contribui, por certo, em larga medida para tais quedas. Mas o grande culpado é a opinião pública, esta mestra de erros que submete a seu império tantas belas inteligências. Como recusar-s© a servi-la nos Estados onde ela detém a onipotência, proporciona o êxito e dispensa a glória? Quando a multidão, nas assembléias, faz rjessoar o eco envolvente de seus gritos e de seus aplausos, distribuindo alternadamente, segundo a forma passageira de seu capricho, o elogio e a censura com igual exagêro, que homem, que adolescente sobretudo, é assaz forte para guardar o sangue frio, para resistir a semelhante torrente de paixões ____________ ; 48. Êste bravo pilôto “superando em tamanho e em fôrça todos os membros da equipagem, mas algo surdo, algo míope, e dispondo, em matéria de navegação de conhecimentos tão curtos quanto sua vista” , lembra o bonacheirão Demos que Aristófanes pôs em palco nos Cavaleiros. 32 P l a t ã o desencadeadas que tudo submerge e tudo arrasta? O próprio sofista, apesar das aparências, não assujeita esta fôrça cega e tirânica. Assemelha-se a um homem que, após haver observado atentamente os movimentos de um animal de grande porte, chegasse a conhecer seus gostos, a aproximar-se dêle e a li- sonjeá-lo: êle sabe que palavras e que gestos podem despertar a cólera da multidão ou apaziguá-la, mas, como êste pretenso domador, é, no fundo, escravo dos instintos de um temível monstro. Denomina bom ou mau aquilo que a êste apraz ou desapraz; sua falaciosa ciência cessa aí. A menos que algum gênio benevolente os proteja, os me lhores entre os jovens desertam a filosofia, trocando-a pela política. São a isso impelidos não só pelo atrativo do poder, como pelos conselhos e exortações dos que os rodeiam e contam lucrar com esta elevação. Abandonada como órfã nobre sem fortuna, a filosofia fica então entregue a sêres inferiores que a desonram. Eis a causa do descrédito em que tombou. Mas o que fará o verdadeiro filósofo, aquêle ao qual um favor sobrenatural preservou da corrupção? Como a eminente dig nidade die sua alma e a razão nela dominante impedem-no de servir às baixas paixões populares, refugiar-se-á na vida pri vada, feliz se, longe das agitações e das demências humanas, consegue permanecer isento de tôda sujeira e aguardar com bela esperança o fim de sua estada neste mundo. Como o viajor acometido pela tempestade, põe-se ao abrigo de um dêstes pequenos muros que se erguem ao longo dos caminhos, a fim de aguardar aí a acalmia (496 e). Tal a sorte do filósofo nos Estados em que a soberania pertence à multidão. Mas suponhamo-lo situado lem circuns tâncias favoráveis — os chefes ou o povo concordam em obe decer-lhe 49 .— 0u transportado a um Estado cuja perfeição corresponde à sua — a cidade ideal que fundamos — e veremos que sua arte não possui medida comum com as artes que os mortais cultivam. Agora que já indicamos as razões que o afastam da cena política e especificamos em quais casos êle pode e deve voltar, resta-nos descrever a educação especial, complemento da educação geral há pouco caracterizada, que há de prepará-lo para o go- vêmo da cidade 50. Atualmente cultiva-se a filosofia no breve intervalo que separa a infância da vida ativa. Vê-se nela apenas, de alguma forma, um passatempo distinto a ser abandonado tão logo se 49. Platão alude sem dúvida às esperanças que depositara em Dion, cunhado de Dionísio, tirano de Siracusa. 50. A educação elementar que foi descrita no terceiro e quarto livros destinava-se a todos os guardiães (cpú^axEç) que devessem tor- nar-se chefes ou continuar simples auxiliares (êmxoveoi). A educação que estará em pauta dirige-se unicamente aos chefes (õpxovteç). A R e p ú b l i c a 33 abram as frutuosas carreiras do comércio e da política. Ora, é exatamente o contrário que conviria fazer. Enquanto o espírito não atinge a maturidade, seria mister formá-lo por meio de exercícios simples; enquanto o corpo não conclui seu crescimento, cumpre flexibilizá-lo e acostumá-lo a obedecer à alma, de modo que esta encontre nêle um auxiliar dócil no dia em que ela abordar o estudo da filosofia. Tal estudo será então o essencial e, após um período de atividade a serviço do Estado, o único objeto de suas preocupações. Certamente não é sem dificuldade que se admitirá tal reforma, pois todos os que tratam destas matérias preferem construir belas frases a enunciar a verdade em todo o seu rigor. Não obstante, a realização da cidade perfeita implica o reino da filosofia. Quando a multidão contemplar o filósofo à sua verdadeira luz, e compreender que sua ciência é tão grande quanto seu desin teresse, as prevenções que nutre contra êle cairão por si mesmas. E o sábio poderá alicerçar em terra uma cidade que dotará de justiça, bondade e temperança, inspirando-se em modelos eternos destas virtudes. A empresa, cumpre confessá-lo, apresenta-se permeada de óbices, mas não está provado que não possa realizar-se com êxito em todo ocurso dos tempos (502 c). II. Educação dos /ilóso/os-reis A. A Idéia do Bem objeto supremo da ciência. — Assim como escolhemos os melhores cidadãos para estabelecê-los como guardiães, escolheremos os melhores guardiães para estabelecê-los como chefes de Estado. Severas provas regerão a escolha. Consistirão em exuor os guardiães a tôda sorte de tentações e perigos. Os que daí saírem puros como o ouro do cadinho — inabaláveis no patriotismo, insensíveis aos mais vivos assaltos do prazer e da dor — serão destinados ao poder supremo. Mas antes de exercê-lo deverão, mediante uma série de estudos apro priados, elevar-se à contemplação da Idéia do Bem. O Bem não se identifica ao prazer — pois existem bons e maus prazeres — nem ao conhecimento — pois está implicado na definição dêste. Para concebê-lo tão nitidamente quanto possível, teremos de recorrer a uma analogia. No mundo sensível o Bem engendrou um Filho, o Sol, cuja luz permite a nosso ôlho distinguir os objetos materiais. Pela vista e demais sentidos, percebemos êstes objetos em sua aparente multipli cidade, e pelo espírito, na real unidade de suas Formas ou Idéias sempre idênticas a si próprias. Entre êste mundo do espírito e o mundo dos sentidos, façamos um paralelo e digamos que o Bem é na esfera inteligível, em relação à inteligência e a seus objetos, o que o Sol é na esfera visível, em relação à vista e a seus objetos. Ora, o Sol dá aos objetos materiais não só a possibilidade de serem vistos, mas o nascimento, o cresci mento e a nutrição. Do mesmo modo, o Bem, luz da alma, condição de inteligibilidade das Idéias, é a fonte de sua essência e ultrapassa, por conseguinte, em poder e dignidade, esta própria 34 P L A T Ã O essência, de que êle é, ao mesmo tempo, causa eficiente e causa final (509 b). B. Símbolo da Linha. — Levemos adiante a comparação entre os reis dêstes dois mundos. Representemos os respectivos domínios por dois segmentos tomados sôbre uma reta, um — o do inteligível — é mais comprido do qule o outro e está com êle em razão determinada. Dividamos êstes segmentos segundo uma mesma razão, igual à precedente. Sôbre a parte da linha que figura o mundo sensível obtieremos duas divisões: a pri meira correspondente às imagens dos objetos materiais — sombras, reflexos nas águas ou nas superfícies polidas — a segunda a êstes próprios objetos materiais — obras da na tureza ou da arte. Similarmente, sôbre a seção da linha que representa o mundo inteligível, a primeira corresponderá a imagens e a segunda a objetos reais, as Idéias. Ora, se o mundo visível é o domínio da opinião (§ó|a) e o mundo inte ligível o domínio da ciência (èjticrrr||iT|), estamos autorizados a formular a seguinte proposição: a opinião é para a ciência o que a imagem é para o original. As imagens dos objetos ma teriais dão ensejo a uma representação confusa, que chama remos imaginação (eíxaoía ôó£a T<õv ekóvcov); os objetos ma teriais, a uma representação mais precisa que arranca a adesão, a crença (júcmç) do sujeito que os percebe; as imagens das Idéias, a um conhecimento discursivo (conhecimento do pensa mento médio ou ôiávoia), e as próprias Idéias a um conhe- mento noético (conhecimento da pura inteligência, voíç ou VÓT)aiç). As noções matemáticas que, de um lado, refletem Idéias puras, mas de outro só podem traduzir-se através de símbolos sensíveis, nos fornecem o tipo das noções mistas da diánoia 51. Mas as matemáticas baseiam-se em hipóteses que elas consi deram como princípios. Ao contrário, a dialética, ciência das Idéias, parte de hipóteses que considera como tais — são, aliás, 51. Na realidade, as noções matemáticas são muito próximas das Idéias puras. Sua inferioridade consiste apenas em que, irredutíveis a elementos perfeitamente simples, não podem ser definidas sem o auxílio de uma representação figurada. Todavia, “ traços de redução dêste gênero encontram-se nos escritos platônicos posteriores, onde o filósofo se refere nomeadamente às idéias fundamentais do limitado e do ilimitado. Observou-se, não sem razão, que uma ciência como a geometria analítica moderna, que transforma os conceitos de espaço em conceitos numéricos, que exprime o círculo e a elipse, por exemplo, por uma mesma fórmula ligeiramente modificada, teria correspondido em certa medida — assim como a teoria geral dos números — a êste desejo de Platão. Em certa medida, mas não completamente. Pois, incontestàvelmente, concederia sempre o primeiro lugar à ciência dos conceitos, a única que dispensa tôdas as hipóteses” (Gomperz, op. cit., II, pág. 505). A R e p ú b l i c a 35 Formas libertas de todo elemento heterogêneo — (e só as utiliza como pontos de apoio provisórios para tomar impulso. De grau em grau, eleva-se, em seguida, até o princípio universal e supremo (xr|v TOÍ jkÍvtoç dç/T|v), a Idéia do Bem. Uma v/ez apreendido êste princípio an-hipotético, torna a descer, por via dedutiva, até a derradeira conclusão 52. Ela é portanto, para falar pròpriamente, a única verdadeira ciência, pôsto que através das Formas onde êste princípio se manifesta, ela remonta à fonte do ser (511 e). C. Alegoria da Caverna. — Uma alegoria nos mostrará agora a situação dos homens em face da verdadeira luz. Suponhamo-los cativos, acorrentados num local subterrâneo, com o rosto voltado para a paredie oposta à entrada e impossibilitados de ver algo além desta parede. Iluminam-na os reflexos de um fogo que arde fora, sôbre uma elevação, em cuja metade passa um ca minho bordejado por um pequeno muro. Atrás dêste muro desfilam pessoas carregando sôbre os ombros objetos heteró- clitos, estatuetas de homens, animais etc. Dêstes objetos, os cativos enxergam apenas a sombra projetada pelo fogo sôbre o fundo da caverna; do mesmo modo, ouvem apenas o eco das palavras que os portadores trocam entre si. Habituados desde a infância a contemplar estas imagens vãs, a escutar êstes sons confusos cuja origem ignoram, vivem em um mundo de fantasmas que tomam por realidades. Porque se um dêles, liberto de suas cadeias, fôr arrastado para a luz, sentir-âe^á de início ofuscado e nada distinguirá do que o circunda. Por instinto, dirigirá o olhar para as sombras que não lhe feriam os olhos e durante algum tempo crê-las-á mais reais do que os objetos do nôvo mundo para onde o transportaram. Mas, quando seus olhos se acostumarem à ambiência luminosa, poderá percfeber êstes objetos refletidos nas águas e depois fitá-los diretamente. A noite, contemplará a lua e as constelações, e enfim tomar-se-á capaz de agüentar o fulgor do sol. Então compreenderá que sua vida anterior não passava de um sonho sombrio, e lasti mará os antigos companheiros de cativeiro. Mas, se voltar a 52. Na passagem aqui resumida “reconhece-se fàcilmente, escreve Rodier, a dialética ascendente e a dialética descendente, a cwayioyii e a ôiaÍQEOiç. A primeira consiste em elevar-se, de Idéia em Idéia, até a ávujtóftETOv que servirá de princípio para percorrer a mesma série em sentido inverso, mas, desta vez engendrando racionalmente, graças ao princípio descoberto, cada uma das Idéias. A divisão aparece aqui como o mais importante dos dois momentos da dialética e o único verdadeiramente racional. A dialética ascendente sobe de generalidade em generalidade até o princípio das coisas; as Idéias não constituem ainda para ela senão pontos de apoio (ÈTiêaasiç xal ÒQfiáç) para chegar a êle. Permanecem generalidades empíricas até que a divisão, partindo do principio que elas lhe permitiriam atingir, as construa racionalmente” (Eludes de philosophie grecque: Les mathé- matiques et la dialectique dans le système de Platon, pág. 45). 36 P L A T Ã O descer para junto dêles a fim de instruí-los, de mostrar-lhes a inanidade dos fantasmas da caverna e descrever-lhes o mundo da luz, quem o ouvirá sem rir, quem, sobretudo, dará crédito à sua divina revelação? Os mais sábios tratá-lo-ão de louco e irão a ponto de ameaçá-lo de morte, caso persistana gienerosa tentativa. Não é difícil discernir a significação desta alegoria. Os homens são neste mundo escravos de seus sentidos: na obscuri dade do mundo da matéria, em perpétuo devir, não apreendem senão sombras ou vagos reflexos. Porém, os modelos destas sombras, a fonte luminosa dêstes reflexos, permanecem a tal ponto desconhecidos para êles que não suspeitam sequer de sua existência. A única ciência dêles — ou a que chamam com êsse nome — consiste em descobrir certa ordem nas apa rências, uma seqüência prevista no interminável desfile das sombras, que passam e repassam diante dêles, movendo-se sôbre um fundo de mistério. O puro esplendor das essências, êste só é dado a contemplar e fixar na alma a quem, rompendo os grilhões, se tenha elevado além das trevas da caverna até o reino do Sol. Mas, depois de ficar bastante tempo neste reino, seus olhos, habituados às clarezas ideais, não mais conseguem distinguir as sombras daqui de baixo: eis por que o julgam inapto a gerir sàbiamente os negócios humanos. Com efeito, a alma é como a vista perturbada, quer pela brusca passagem da luz à obscuridade, quer da obscuridade à luz. Possui natural mente a faculdade de conhecer, como o ôlho a de ver. A educação não tem outro escopo senão bem orientar ©sta facul dade, isto é, desviá-la das perspectivas fugazes do devir para as formas imutáveis do ser. E nosso dever, como legisladores, fazer chegar as melhores naturezas à contemplação do Sol do universo inteligível e obrigá-las depois a presidir, por seu turno, aos destinos da cidade. Alguém poderá evidentemente dizer-nos que, agindo assim, damos-lhes a felicidade apenas para tirá-la em seguida; das Ilhas Afortunadas aonde, vivos ainda, as transportaremos, recon duzi-las-emos de fato à terra e colocá-las-emos em luta com as mais humildes realidades. Mas já declaramos não visar de modo algum a felicidade própria de uma classe de cidadãos: além disso, a quem nos acusasse de dureza para com os nossos magistrados, podemos responder que êstes devem às nossas instituições o fato de seriem o que são. 2 justo, pois, que paguem sua dívida à cidade e a seus fundadores, aceitando, uma vez terminada a sua educação, ocupar-se dos negócios públicos. Seus compatriotas ganharão com isso por terem chefes não só competentes mas desinteressados, porque ricos em suas almas do mais precioso de todos os bens (521 b). Como regra geral, para que um Estado seja prudentemente governado, cumpre que a condição privada dos homens destinados ao poder seja para êles preferível ao exercício do próprio poder — o qual nunca deve constituir uma isca oferecida às ambições mais malsãs. A R e p ú b l i c a 37 D. Propedêutica à verdadeira ciência. — A dialética, como vimos, é a ciência suprema, a única que atinge o ser em tôda a sua perfeição. Mas não se pode abordar esta ciência antes de haver percorrido todo um ciclo de estudos preparatórios, destinados a levar o pensamento a debruçar-se sôbre si mesmo e a arrebatá-lo à esfera do devir. Ora, os objetos elementares do conhecimento são de duas espécies: uns suscitam percepções confusas e passivas que não implicam qualquer contradição; outros, percepções mais nítidas porém contraditórias. Só estas são capazes de despertar o espírito e provocar o exame e a reflexão. Desta classe, o representante mais característico é o número, que se nos apresenta ao mesmo tempo como unidade e multiplicidade, expressão do finito e do infinito. A ciência dos números — logística e aritmética 53 — é portanto a primeira das ciências preparatórias. Podemos assinalar de passagem suas vantagiens práticas, tão importantes para os guerreiros, mas não se deve esquecer que a consideramos aqui em si mesma — como estudo dos número puros — e não em suas aplicações. Segue-lhe a ciência das figuras planas ou geometria. A seu respeito faremos a mesma observação que a respeito da aritmética. Não se trata da geometria no sentido vulgar, da planimetria ou da agrimensura, mas da ciência das verdadeiras figuras e de suas propriedades, que, tendo por objeto o que existe eternamente (tò dei ov), atrai a alma à contemplação das coisas do alto (327 c). A terceira ciência introdutória será a ciência dos sólidos ou a estereometria. Platão, como os geômetras de seu tempo, distingue-a da geometria propriamente dita. De fato, no comêço do século IV, mal estava constituída. Alguns pro blemas isolados, nomeadamente o da duplicação do cubo, haviam solicitado a atenção dos geômetras e recebido soluções diversas, mas os princípios gerais da nova ciência restavam ainda por descobrir. O nomóteto da Republica, confiando na onipotência da razão, não duvida que semelhante descoberta possa efetuar-se sem demasiada dificuldade, desde que um Estado queira propô-la aos estudiosos. No domínio científico, como alhures, a pesquisa d|eive estar organizada para realizar-se ràpidamente, e a melhor organização é, ainda aqui, a que se efetua no quadro da cidade. Do estudo dos sólidos em si mesmos, passa-se naturalmente ao dos sólidos em movimento ou astronomia, sendo que a ordem lógica do desenvolvimento das ciências, na presente classificação, corresponde à ordem didática destas ciências. Tal como Platão a concebe, a astronomia não é uma mecânica celeste baseada na observação dos astros. O físico-geômetra do Timeu não tem a menor intuição da possibilidade das descobertas de Galileu e Kepler; nunca suspeitou que, da aparente diversidade dos fenô 53. Os matemáticos gregos chamavam logística a arte do cálculo e reservavam o nome de aritmética à teoria dos números. 38 P L A T A O menos, seriam tiradas, um dia, leis fixas e gerais54. Para êle, a experiência, processo banâusico, não é de modo algum útil ao cientista cujo pensamento se esforça por apreender Formas puras. Não ocorreria a ninguém de bom senso, observa êle, a idéia de estudar o mundo nas pinturas ou nos desenhos de algum artista hábil — mesmo que êste artista fôsse o próprio Dédalo. Similarmente, o astrônomo digno do nome não cogita estudar os astros de nosso céu material 55, mas seus eternos arquétipos, nos quais considera, libertos de tôda imagem gros- sleira, o verdadeiro número, a verdadeira figura e o verdadeiro movimento 56. Irmã da astronomia, como ensinam os Pitagóricos, a música pròpriamente dita 51 entrará também em nosso programa de educação superior. Ela imita, com efeito, no domínio sonoro, a harmonia luminosa das esferas celestes. Do mesmo modo que a astronomia, concebê-la-emos como ciência pura, isto é, como se ocupando dos sons em si mesmos e não como os percebem nossos ouvidos. Acostumados por êstes diversos estudos a fazer abstração dos conhecimentos ilusórios que nos vêm dos sentidos, e a ligar 54. Tampouco pressentiu a identidade das leis da mecânica terrestre e da astronomia. A aparente multiplicidade e a ação entrecruzada dos fatores que concorrem para a produção dos fenômenos físicos escondem, é verdade, a regularidade dêstes fenômenos e a simplicidade das leis que os regem — regularidade e simplicidade que são, entretanto, susce tíveis de dar satisfação às mais altas exigências do espírito. 55. Embora os astros sejam o que há de mais belo no mundo sensível, cumpre encará-los, segundo Sócrates, apenas como “ornamentos de um teto” . Enquanto tais, não podem volver “o ôlho da alma” para a? verdadeiras realidades. Pouco importa, para contemplar estas últimas, que se levante ou que se abaixe a cabeça, que se olhe a terra ou o céu, uma vez que elas não revestem qualquer aparência sensível e não residem no espaço, domínio do devir. 56. A astronomia platônica é uma astronomia matemática a priori: com efeito, fazendo abstração dos dados da experiência sensível, propõe-se definir as trajetórias perfeitas dos movimentos siderais, e os números, igualmente perfeitos, que os medem; em outros têrmos, coloca seu objeto no absoluto. A astronomia moderna, ao contrário, é matemática a posteriori, no sentido de- que,apoiando-se nos dados da observação, procura expressar as leis constantes dos fenômenos sob uma forma rigorosamente matemáíica. A primeira procede por dedução, partindo de formas matemáticas puras; a segunda, tanto por indução, partindo de fenômenos para chegar às leis, como por dedução, partindo de leis hipotéticas ou de corolários de leis verificadas para reencontrar os dados positivos da observação. 57. Até agora esta palavra serviu para designar o conjunto das artes às quais presidem as Musas. Agora é tomada em sua acepção es trita. A R e p ú b l i c a 39 entre sí os verdadeiros conhecimentos que são fruto da razão, nossos futuros chefies poderão penetrar no reino do ser e aí contemplar a Idéia do Bem. A dialética, sublime coroamento do ledifício das ciências, rematar-lhes-á a educação e torná-los-á dignos de exercer o govêmo na cidade (534 e). E. As fases do “ Cursus studiorum” . — Como já dissemos, êste ciclo de estudos só é destinado aos indivíduos de escol. Reconhecê-los-emos pela firmeza, pela valentia, pelo gôsto do esfôrço físico e intelectual; mas elegeremos de preferência os que, a tais virtudes, aliarem a beleza. Em compensação, afas taremos impiedosamente todos os talentos bastardos, tôdas essas índoles "coxas” que se entregam hoje a especulações indignas, e desonram a filosofia. Aos adolescentes melhor dotados, uma vez concluída sua educação glmnica, ensinaremos os elementos das ciências prepa ratórias. Êste ensinamento será, na medida do possível, isento de coerção, pois um homem livre nada deve aprender como escravo. Semelhante método pouco beneficiará, sem dúvida, os espíritos medíocres, que só progridem quando amparados e empurrados, por assim diaer, por uma vontade exterior que se lhes impõe; mas evidenciará o ardor destas felizes naturezas que correm intrèpidamente ao encontro das dificuldades e con vertem em prazer o poder vencê-las. Destarte, permitir-nos-á proceder judiciosamente à segunda escolha, que se verificará quando nossos discípulos tiverem alcançado os vinte anos. Aquêles que então selecionarmos, dedicar-se-ão até os trinta anos ao estudo sinóptico e aprofundado das ciências já abordadas sepa radamente. Tentarão descobrir as diversas relações que unem essas ciências entre si e a relação comum que as une ao ser. Ao umbral do trigésimo ano, os que se houverem salientado pela segurança de julgamento ao mesmo tempo que pela viva cidade da inteligência 58, serão iniciados no estudo da dialética. Consagrar-lhe-ão cinco anos e depois, passando da teoria 59 à ação, exercerão, durante quinze anos, as grandes magistraturas políticas e militares do Estado. Aos cinqüenta, tendo completado sua experiência das coisas divinas com a das coisas humanas, governarão, por seu turno; mas, nos intervalos de liberdade, continuarão a cultivar a filosofia, até a hora em que, depois de haverem designado os sucessores, partirão para as Ilhas Afortunadas. A cidade elevar-lhes-á soberbos túmulos e, por meio de sacrifícios públicos, honrá-los-á a título de gênios tute- lanes e divinos (540 c). Chegando ao têrmo da descrição do Estado perfeito, Sócrates especifica como se fará a transição da desordem atual para 58. A segunda destas qualidades, sem a primeira, favorece, com efeito, o gôsto natural que os jovens sentem pela erística, mãe do ceticismo. 59. Tomamos a palavra no sentido próprio de contemplação. ! a ordem que êle pretende instaurar. Quando os filósofos alcan çarem o poder, relegarão a longínquos campos todos os cidadãos com mais die dez anos, a fim de subtrair as crianças a sua perniciosa influência. Medida quase impraticável que seriamos tentados a qualificar de expediente, se Platão, propondo-a, não quisesse mostrar que tôda reforma social deve apoiar-se numa ação educativa empreendida desde o albor mesmo da vida, enquanto a alma, ainda pura e maleável, pode ser afeiçoada segundo o modêlo da virtude (541 b).. * * • 40 PLATÃO A Cidade Platônica Paradigma Político e Moral • Eis, portanto, concluído o estudo da cidade ideal, o qual devia permitir-nos ler em grandes caracteres a definição dle justiça. Antes de prosseguir na análise da obra, tentemos res ponder a duas questões que o leitor não pode deixar de pro por-se : 1* Cumpre ver na constituição descrita por Sócrates um projeto de reforma efetivamente realizável, ou um simples para digma, parcial © imperfeitamente imitável na realidade? 2* Qual o verdadeiro sentido das proposições que o próprio filósofo denomina paradoxos? Observemos primeiro que o objetivo inicial do colóquio era puramente moral: Sócrates e seus amigos propunham-se pesquisar a natureza da justiça. Considerando que convinha estudá-la no meio mais favorável ao seu florescimento, fundaram a cidade ideal. Significará isto que a encaravam apenas como um meio de investigação científica, uma vasta hipótese que permite re solver um problema de aparência insolúvel? De nenhum modo, pois, para todo filósofo grego da época clássica, para Platão assim como para Aristóteles, a política é inseparável da moral, servindo-lhe, de alguma forma, de instrumento. Mas importa remontar mais alto, pois o pensamento do fundador da Academia é muito mais sintético do que o crêem aquêles que acentuam suas pretensas contradições. Segundo Platão, já o dissemos, a suprema Essência con funde-se com a suprema Excelência. Todo ser vivo tende natu ralmente ao Bem e manifesta tal tendência procurando imi- tá-lo na medida de suas fôrças. Segue-se que o conhecimento tem por resultado imediato iluminar a ação e facilitar o esfôrço para o Bem, enquanto a ignorância paralisa êste esfôrço ou o desvia de seu verdadeiro fim. Isto significa dizer, em têrmos de filosofia moderna, que a moral, rainha das ciências normativas, deve tomar seus prin cípios fundamentais à metafísica, rainha das ciências explicativas. Mas o progresso individual, objeto da moral, é inconcebível fora de um quadro social determinado — no caso que nos ocupa, A R e p ú b l i c a 41 fora da cidade, associação política por excelência dos povos helênicos. O problema moral da justiça alarga-se, pois, ràpidamente, no decurso dos primeiros livros da República, em problema social, sem perder por isso seu primitivo caráter. A conciliação das duas formas que êle ataca quase simultâneamente opera-se pela descoberta da relação dle homotetia existente entre a cidade e a alma humana. Numa como noutra, a justiça é a mesma virtude de ordem, de submissão e de harmonia. A ação social dela prolonga-se em ação individual, pôsto que, definitivamente, permibe a cada um responder ao chamado de seu destino e assegurar a salvação de sua alma imortal. Mas, como êstes resultados são obtidos apenas a título excepcional, quando ela não reina no Estado, é preciso, para conhecer-lhe a natureza profunda e a amplitude dos efeitos, estudá-la djemtro de con dições ideais. É assim que Platão, pela própria lógica de sua indagação, é levado a fundar a cidade da Sabedoria. Mas esta Calípolis que o filósofo modela na matéria plasti- cizante do discurso, como o artista modela a figura na cêra, crerá êle realizável em todos os pontos ? A esta pergunta Platão mesmo respondeu sem ambigüidade. Em 473 a (livro V), confessou que a prática tem menos poder sôbre a verdade do que a teoria; em outra parte (472 d), observa que o valor do pintor quie cria um modêlo ideal de beleza não depende da existência do referido modêlo na natureza. Do mesmo modo, a cidade perfeita e o homem perfeito, tais como os pinta o nomó- teta, são paradigmas que devemos tentar imitar, sem dissimular, entretanto, que jamais o conseguiremos com absoluta pureza 6°. Representam, se se quer, o limite para o qual tende o esfôrço humano — coletivo e individual — mas que êle não poderia atingir, pois um duplo obstáculo lhe entrava o progresso: a presença na cidade de uma classe inferior e, na alma, de uma parte epitimética, ambas estranhas à verdadeira sabedoria. Estaimpotência é o preço da vida terrena submetida às lieis do devir. Explica-se assim que Sócrates vacile tanto em descrever a constituição da cidade ideal «i. Êle não duvida de sua perfeição, 60. Cf. igualmente 473 a. 61. Estas hesitações não constituem, em nosso parecer, simples pro cessos dramáticos destinados a incrementar o interêsse da discussão. Sócrates, é verdade, costuma fazer-se de rogado por seus amigos antes de atacar o exame de qualquer questão importante, e esta atitude prudente é às vêzes algo fingida (vide liv. V I, 506 c e nota) ; no caso, porém, ela traduz a real inquietação que lhe matiza singularmente as afirmativas. A cidade dos Sábios é, sem dúvida, a mais perfeita das cidades, mas será concebível fora da esfera ideal onde êle a contempla? Seguramente, diz Sócrates, é possível por ser conforme à natureza (xatà <púaiv; liv. V , passim): mas, no fundo, sente realmente que não resolve por aí as dificuldades inerentes à realização desta cidade e. mas s« dá conta de que será quase impossível aplicá-la cá embaixo, enquanto os homens continuarem sendo o que são. Daí o nome de paradoxos que atribui às suas inovações. Entretanto, se observarmos de perto, conviremos que tais “para doxos” se impõem inervitàvelmente a quem sonha instituir no Estado uma justiça integral 62. Divisão rigorosa do trabalho, comunidade dos bens, das mulheres e dos filhos, govêm o — aristocrático ou monárquico ® — de um pequeno número de 42 P L A T Ã O embora descrevendo-a com. o amor de poeta, teme que permaneça para todo o sempre, como as Formas puras, um “paradigma no céu” . Pensamos que não seria inútil ressaltar estas vacilações: O quinto livro abre-se com uma espécie de intermédio (450 a-451 c: « oíov... EiQyáoaattt êm?.a6ó|XEvoí nou. ôoov Xóyoy jtáXiv... xlveíte... ovx ícrrs oaov êa|iòv Xóym\ ineyeÍQexE xxX. (450 a b ).” Sócrates indica, em seguida, a causa de seus receios: não tem certeza daquilo que vai dizer e não gostaria de enganar os amigos em matéria tão grave. Os estímulos dêstes acrescem seu embaraço (450 d-451 a). Tendo recebido a garantia de que, caso se engane, seus amigos absolvê-lo-ão do crime cometido contra as suas pessoas, recobra a cora gem e declara que é preciso enfrentar as asperezas do objeto (452 c ) . Mas, surgindo novas dificuldades, relembra os temores e observa quão justificados eram (453 d-e). Em tais circunstâncias deve-se contar apenas com a energia do desespêro. Seja o perigo grande ou não, o reflexo salvador é o mesmo (453 d). Em 457 b, Sócrates compara as dificuldades com que acaba de se defrontar a uma primeira onda, e anuncia uma segunda mais alta, à qual só escapará a custo. Mas eis que lhe importa mostrar não só a excelência, como a possibilidade das medidas propostas: é ter de arrostar uma “ liga de discursos” : Xóywv aúoxaoiv (457 e). Abordar o problema de frente é impossível. Sócrates pede que lhe permitam “retirar-se” — Saoóv (ie ÈOQTÓaai — Considerava, primeiro resolvida a questão da possibilidade. Tranqüilidade fugaz! A segunda onda adianta-se (472 a). Esta última onda “que rebentasse de riso” ameaça submergir o imprudente nomóteta e seus amigos (473 c ) . Antes de atingir o ponto central do tema, Sócrates recorda de nôvo seus receios (473 e). E pronunciada a grande palavra, não se decide a sustentar o assalto dos paladinos do “bom senso” , exceto após certificar-se de que Glauco lhe prestará mão forte (473 e-474 b). 62. Sôbre a lógica interna da constituição platônica, veja-se Gomperz, op. cit., II, pág. 527 segs. 63. Cf. 445 d. Observar-se-á todavia que “se o único critério da legitimidade do poder é o que deve ser, a capacidade racional dos que \ filósofos, eis as mais importantes condições requeridas para assegurar êste reino. Ora, elas não são realizáveis, 'salvo em um Estado composto de homens excelentes, de natureza de alguma forma divina, e formados pelo melhor método de edu cação. Mas, como colocou o problema da justiça no absoluto, o autor da República não pretendia legislar, parece, senão para cidadãos perfeitos. Estas poucas reflexões nos levam a concluir que o caráter paradoxal da constituição platônica se deve ao fato de ser esta constituição paradigmática, ou, em outros têrmos, puramente teórica 64. Conciliar o problema da prática com o da teoria — resolver a antinomia da experiência e da razão pura — é algo com que o filósofo, no ardor das suas preocupações meta físicas e no entusiasmo de sua recente descoberta da teoria das Idéias, não se preocupa ainda. Só se proporá êste objeto mais tarde, na Política e sobretudo nas Leis. Mas não cabe ante cipar aqui o andamento ulterior de seu pensamento 65. A R e p ú b l i c a 43 VII. — Gênese das Cidades Injustas Males Ligados à Injustiça (543 a ■ 529 b). I. Da aristocracia à timarquia No comêço do oitavo livro, Sócrates retoma a exposição no ponto onde a abandonara a fim de descrever a organização da cidade justa (liv. V, 449 b) e enceta o exame das cidades pervertidas. Invertendo ousadamente a posição anterior do problema, parte da constituição ideal e estuda as suas metamor foses na ordem cronológica considerada, por petição de princípio, como uma ordem de corrupção crescente. As constituições o pretendem, êle poderá ser o quinhão de alguns, mesmo de dois, mas tenderá para a unidade de comando. O verdadeiro Estado só existe para um chefe único que comanda com arte” . (R.L. Klee: La Théorie et la Pratique dans la Cité platonicienne. — Revue d’Histoire de la Philosophie, 1931, I, pág. 7.) A idéia monárquica, em germe na República, encontra expressão definitiva na Política: “A ciência real, para Platão, encarna-se, viva e soberana como a verdade, no regime pessoal do Príncipe. Êste fica livre de todo entrave coletivo porque traz a lei política no receptáculo de sua alma de ouro” . (Id. Ibid., pág. 8.) 64. Cf. a respeito as eruditas observações de um dos primeiros tradutores franceses da República, J. de Grou: Prefácio à edição de 1762, pág. X X II . 65. Sôbre a evolução das idéias políticas de Platão, v. o estudo de R.-L. Klee, acima citado (Rev. d’Hist. de la Ph.il., 1930, IV , pág. 309-353, e 1931, I, pág. 1-41). I 44 P l a t A o degiemeradas, provindas da aristocracia, são em número de quatro. Em primeiro lugar vem a timarquia, de que os governos de Creta e da Lacedemônia oferecem exemplos históricos; a oli garquia que lhe sucede não tarda, em geral, a ser suplantada pela democracia; enfim, no último grau, a tirania consuma o triunfo da injustiça. A êstes quatro tipos de constituições viciosas correspondem quatro caracteres da alma nos quais se afirma o progresso da ignorância e do mal (545 c). O abalo inicial, que provoca a decadência do govêmo e dos costumes na aristocracia, produz-se no dia em que as raças de ferro e bronze ascendem ao poder. As gerações humanas, como as de todos os sêres vivos, estão submetidas a leis: por não conhecerem sua misteriosa fórmula 66, os chefes celebram às vêzes casamentos fora do tempo. Destas uniões nascem filhos inferiores, dos quais os menos defeituosos são indignos de herdar as funções dos pais. Quando atingem a idade varonil, abandonam-se ao mais triste de seus pendores, aspiram apenas a enriquecer, desejo que engendra a divisão na cidade. Após muitas lutas, conseguem, entretanto, partilhar entre si os bens, as terras e as casas dos artesãos e lavradores que, de cidadãos protegidos que eram, se vêem reduzidos à servidão. Destarte, a economia da constituição é subvertida, a hierarquia das três classes destruída. O respeito dedicado aos magistrados desa parece. O apetite do lucro instala-se nos guardiães e, excitado pela posse, não cessa de crescer. A guerra torna-se depressa um meio de satisfazê-lo. Em tais conjunturas, não são mais os sábios chamados aos postos de comando, porém homens iras cíveis e astutos, amantes da aventura, seduzidos pelo proveito que ela comporta, e resolvidos a todos os riscos para conduzi-laa bom fim. Êstes homens, em meio das vicissitudes de uma carreira agitada, desfrutarão em segrêdo das riquezas adqui ridas, pois, libertos do freio da lei, guardam-lhe mêdo incons ciente. Entrincheirados em suas moradas como outros tantos ninhos privados, adoram aí o ouro e a prata e saciam as paixões brutais — envergonhados talvez de si próprios, porém incapazes de se dominar. Em suma, a cidade timárquica, que substitui pela honra guerreira o culto da virtude, está totalmente entregue às ferozes rivalidades que a ambição desencadeia (548 d). O caráter do homem que lhe corresponde é dominado pelo elemento corajoso, o {h)[AÓç, que avassala o elemento razoável. Daí a preferência dada à ginástica sôbre a música, e a ruptura do justo acôrdo delas, sem o qual não há sabedoria. O homem timárquico pode ser generoso na juventude, e buscar a honra mais do que o dinheiro, a idade, porém, o toma ávido e impõe silêncio a seus bons sentimentos. Êle viu o pai pobre, modesto, 66. Platão deu dessa fórmula uma expressão que se tomou célebre sob o nome de número platônico. V . nota ad loc. A r e p ú b l i c a 45 e desacreditado, devido à sua virtude mesma: evita como a um lôgro imitar-lhe o exemplo (548 e-550 c). II. A. oligarquia A passagem da timarquia à oligarquia efetua-se da maneira mais simples. O gôsto pelas riquezas, transformando-se em avareza, converte-se no móvel principal da atividade dos ci dadãos. Êles acumulam, entesouram, e, quanto mais estima concedem ã fortuna, menos dessa estima conservam pela virtude. Na balança dos valores, o prato de uma desce, enquanto, ali- geirado, o da outra sobe. O peculiar ao governo oligárquico é adotar o censo como medida de capacidade para o exercício do poder. Mas o absurdo dêste critério, que priva o Estado de grande número de talentos aptos a servi-lo, quase não carece de demonstração. Ousar-se-ia escolher o pilôto de um navio segundo o censo, com abstração das qualidades e conhecimentos profissionais requeridos ao ma nejo do timão? Assim, a oligarquia repousa sôbre um princípio vicioso. Dividindo os cidadãos em dois clãs adversos, dos ricos e dos pobres, quebra irremediavelmente a unidade do Estado cuja segurança é, aliás, incapaz de garantir. Seus magistrados devem, com eíeito, ou armar a multidão, e neste caso tudo temer de sua parte, ou restringir-se a uma milícia pouco nume rosa, composta de membros da classe dirigente, e sem valor guerreiro, porquanto, nesta classe, a primazia do espírito de lucro e de vil negócio sucedeu ao primado da coragem. A constituição oligárquica opõe-se, portanto, à manutenção da divisão do trabalho. Cumpre, além do mais, denunciar, como seu maior vício, o liberalismo econômico que introduz no Estado. Sendo os cidadãos livres para alienar totalmente seus bens, forma-se logo uma classe de proletários sem função determinada: verdadeiros zangões da raça humana, muito mais nocivos que os seus similares da espécie alada, porque armados de perigosos ferrões. Em tôda parte onde grassa o flagelo do pauperismo, encontram-se em multidão mendigos, ratoneiros, hierodulas e outrosi malfeitores. Examinemos agora como se produz, no indivíduo, a passagem do espírito timárquico ao oligárquico. Um caso particular nos informará sôbre a evolução geral. Tomemos um estratego ou um magistrado cuja boa vontade “se rompeu contra o Estado como um barco contra o escolho” . Sicofantas fazem com que seja condenado à pana de morte ou de exílio e ao confisco dos bens. Seu filho, que até então o tomou como modelo, considera com estupor tantas desgraças imerecidas. Cheio de temor por si próprio e humilhado pela pobreza, “precipita do trono em que colocara, na alma, a ambição e a coragem guer reira”. E a êste trono eleva, na dignidade de Grande Rei, o mais sórdido desejo “ao qual coroa com a tiara e cinge com o colar e a cimitarra” . 46 P l a t ã o A partir dêste momento, não tem mais do que um objetivo: ganhar, economizar sem descanso, juntar pacientemente, ao pouco dinheiro que possui, recusando-se as satisfações mais legítimas. Honra acima de tudo os ricos e a riqueza, e põe tôda a glória em adquirir grande fortuna. Avaro, mesquinho, com a alma fervilhando de maus desejos, tomou-se a réplica exata do segundo dos Estados pervertidos (555 a). III. A democracia Ao terceiro grau de decadência corresponde a democracia. Ela é o produto dos mesmos fatores que a oligarquia, porém elevados, se se pode dizer, a maior potência. A oposição entre ricos e pobres cresce dia a dia, sem que a classe dirigente, preocupada ünicamente em enriquecer, cuide de conjurar os temíveis efeitos dêste antagonismo. Bem depressa os “zangões armados de ferrões” — gente sobrecarregada de dívidas ou man chada de infâmia — assumem a chefia do povo e o incitam à revolta. Esperam, graças à revolução política, recuperar a posse dos bens que dissiparam, ou apagar a vergonha que lhes enodoa os nomes 67. a maioria, embora pervertida, é bem dotada e sabe explorar hàbilmente as paixões populares. Em face dêles, os oligarcas, efeminados por uma vida sem nobreza, inspiram apenas desprêzo. O estado de tensão criado pelo surdo antago nismo entre as duas classes não poderia prolongar-se muito tempo. Ao menor choque deflagra a luta que levará ao estabe lecimento da democracia. Na realidade, tal estabelecimento opera-se de uma das três seguintes maneiras: l .9 O partido no poder solicita auxílio a uma cidade oligár- quica vizinha para conter a agitação popular. O gesto atiça a cólera do povo e provoca a revolução. 2.5 O partido popular pede socorro a uma cidade democrática vizinha para derrubar o regime oligárquico: daí a guerra e a revolução. 3.ç Enfim, o choque inicial pode surgir no interior mesmo do Estado, quando os ódios e as cobiças atingem o grau de inten sidade em que, sem mais fingimento, se traduzem na vio lência. Quais são, agora, as características dêste govêmo nascido da guierra ou da sedição? Ele pode pretender a tudo menos à unidade, porquanto é um composto de instituições das mais diversas e das mais inconciliáveis. Daremos uma justa idéia dêle representando-o como uma espécie de “bazar de consti tuições” (jtavTOJKÓXiov JtoXiTSWÕv) onde o amador só tem o trabalho de escolha. É comparável, ainda, a estas variegadas 67. Os “zangões” são os cidadãos arruinados que a classe dirigente excluiu de seu seio. A R e p ú b l i c a 47 vestimentas que constituem a alegria das mulheres e das crianças, mas que os homens de gôsto acham ridículas. E isto será exibi-la à luz mais favorável, pois se esta variedade, esta rica policromia, representa um defeito aos olhos do filósofo, não carece de encanto para o artista que se compraz no domínio das aparências. Mas o exame nos revela uma realidade muito menos sedutora: é da essência da democracia conceder aos cidadãos uma liberdade demasiado grande que degenera fatalmente em licenciosidade. Que ordem, com efeito, continua possível, quando tôda coerção é abolida, quando as regras morais são abandonadas ao juízo do primeiro a chegar, que as adota ou as rejeita, con forme os caprichos de seu humor ou dos propósitos que con cebeu? Como, de outro lado, se mostraria alguém severo com os criminosos, quando conta com a indulgência pública a fim de obter perdão para os seus próprios crimes? No Estado popular, a sanção por uma falta não é, de modo algum, propor cional à gravidade, mas, em razão inversa, ao sentimento de comiseração que o culpado sabe inspirar a seus juizes. Além disso, mesmo que castigado por justa sentença, êste culpado, por menos hábil que seja, escapa à pena incorrida. Condenado ao exílio, por exemplo, permanece na pátria e aparece em público sem que o notem, “como um herói, dotado do poder de se tomar invisível” . Para alcançar as mais altas funções, não é preciso estar preparado por longos trabalhos, ter auferido os benefícios de excelente educação e ter-se exercitado, desde a infância, na prática de tôdasas virtudes. Ao homem que ingressa na carreira política, ninguém pede que dê prova de sua ciência e sabedoria, assim como da honestidade de seu passado. Basta, para que lhe concedam confiança, que afirme seu devotamento à causa do povo. Pois é um espírito “largo e nada escrupuloso” quB reina neste Estado, onde todos se contentam com vagas pro messas sem procurar saber se quem as formula é capaz de cumpri-las! Trata-se de um espírito “brando” que, por aversão a tôda legítima hierarquia, proclama a igualdade de elementos por natureza desiguais (558 b). Semelhante espírito caracteriza o homem democrático. Êste é geralmente filho de um oligarca, o qual lhe inculcou desde cedo o senso da poupança e da parcimônia. Habituado a satis- faaar apenas os desejos necessários e proveitosos, domina pri meiramente os desejos supérfluos, que se poderiam denominar pródigos, pois quase sempre são prejudiciais e custosos. Mas um dia não resiste às tentações dos zangões e prova-lhes o perigoso mel. A partir de então, seus instintos reprimidos en contram poderosos aliados nestes insetos ardentes e terríveis, e a sedição eleva-se nêle e o dilacera. Embora seus sentimentos oligárquicos recebam o auxílio das advertências ie dos conselhos dados pelos pais e próximos, o desfecho dêste conflito interior não dá margem à dúvida. E não tarda a vir o momento em quie, “a êstes sábios embaixadores enviados por sábios anciãos, êle fecha as portas do recinto real da sua alma” . Nesta acrópole, os desejos pródigos reinarão doravante sem freio nem lei. Ex- 48 P l a t ã o pulsaxão tôdas as virtudes — tanto mais fàcilmente quanto elas não se acham aí sob a guarda da ciência — e as cobrirão de ultrajes, chamando ao pudor simplicidade, à temperança fra queza e à moderação, rusticidade. E em seu lugar, introduzirão “brilhantes, seguidos de um côro numeroso, e coroados” a inso lência, a anarquia, a licenciosidade, o descaramento, aos quais hão de louvar e de enfeitar com os belos nomes de polidez, liber dade, magnificência e coragem. A metamorfose fica então concluída. O jovem não mais sente vergonha de viver na sociedade dos zangões. Como êles, perdeu o senso da ordem e da honra. Tôdas as coisas se lhe tornam iguais: bem e mal, virtudes e vícios, prazeres nobres e prazeres baixos. Privado de firme comando — como o Estado popular — entrega-se inteiramente à tentação do momento, ao desejo que o solicita, ao vão capricho que o arrasta. Escravo dêstes inumeráveis amos, é, na plena acepção da palavra, o homem democrático: frívolo, leviano, incapaz de lógica na deli beração e perseverança no esfôrço. Sua vida, que êle considera livre e feliz, oferece, na realidade, o espetáculo de uma decep cionante anarquia. E sem que o saiba, tece a trama dos males que mais teme (558 c-562 a). XV. A tirania Está, com efeito, na ordem da natureza que à licenciosidade extrema suceda extrema servidão. Por seus excessos mesmos, a democracia engendra inevitàvelmente a tirania. O povo, alterado pela liberdade, tendo prestado ouvidos a maus escanções que o embriagam com êste vinho puro para além de tôda decência, perde logo o contrôle de seus atos, apavora-se com a mjenor sombra de coerção e trata por oligarcas os que gostariam de mantê-lo nos caminhos da prudência. Seu favor bafeja, em compensação, os espertos que afetam maneiras simples e lhe lisonjeiam os pendores grosseiros. Numa cidade desorganizada, onde o pai receia os filhos e o mestre, os discípulos, onde o escravo sie arroga todos os direitos, os magistrados não gozam de qualquer autoridade e as leis permanecem letra morta. A classe dos zangões, poderosa e ativa no malefício, não pode viver e conservar a confiança da plebe, a não ser partilhando-lhe os bens — dos quais se atribui, aliás, o melhor quinhão — que arranca aos cidadãos ricos e econômicos. Êstes tentam inutilmente defender-se: o tumulto das assembléias sufoca seus lamentos; e, se persistem em denunciar os decretos de espoliação, são acusados de nutrir ambições criminosas e querer atentar contra a liberdade do Estado. O populacho teme ser privado das migalhas do festim que lhe atiram os demagogos, e desta praciosa independência die que tem a ilusão de desfrutar. Para manter em xeque os que denomina inimigos, toma um protetor a quem confere podêres proporcionais às esperanças que nêle deposita. Crendo assim aumesntar a própria fôrça, aumenta na realidade, desmesuradamente, a do homem que se tomará o senhor dela. A R e p ú b l i c a 49 Primeiro o protetor consegue uma guarda para a sua pessoa, que êle pretende estar ameaçada. Em seguida, arrasta aos tribunais e manda condenar os cidadãos que julga capazes de entravar a execução de seus intuitos. Em caso de necessidade, não hesita mesmo em derramar e “provar com bôca e língua ímpias o sangue de sua raça” ; mata, desterra, ao mesmo tempo que faz luzir aos olhos da multidão a próxima abolição das dívidas e a divisão das terras. Aspire ou não a suportar-lhe a lei, entra então no círculo de seu nôvo diestino: deve “ou perecer pela mão dos adversários ou tornar-se tirano e, de homem, converter-se em lôbo” . Como o papel de vítima é o último quie lhe convém, “ derruba numerosos rivais, monta no carro da cidade e revela-se, enfim, déspota consumado” . No início, porém, desejoso de agradar, recompensa os seus partidários. Mas bem depressa é levado a vigiar os melhores dentre êles, e a buscar na guerra externa um derivativo para as energias que sente erguerem-se secretamente contra êle. Se deseja continuar senhor, é obrigado a desfazer-se de todos os homens de valor com que a cidade conta, sem excetuar mesmo os seus amigos. Ao contrário do médico que purga o corpo dos elementos nocivos, o tirano purga o Estado dos cidadãos mais estimáveis. Depois, constitui a sua guarda, dia a dia mais numerosa, de mercenários estran geiros e escravos forros. Tem por favoritas personagens sem dignidade, zangões que o falso brilho da fortuna do tirano atrai de tôdas as partes; pois tal é, doravante, o dilema que se lhe coloca: viver com os perversos — que o adulam, mas no fundo lhe dedicam apenas ódio — ou renunciar à vida. E neste ponto Sócrates não deixa de lembrar que lhe assistia realmente razão ao excluir da cidade os poetas trágicos. Com efeito, celebram êles os louvores da tirania e gabam a sorte dos tiranos “aos quais o comércio dos hábeis torna hábeis 68” ., Acabamos de verificar de que espécie de habilidade se trata e quão invejável é! Os que a apreciam, pois, que procurem outros Estados para trabalhar pelo advento da tirania e da democracia. Sob êstes regimes, são honrados e enriquecem. Mas à medida que remontam o declive das constituições (tò SvavTEç Tajv Itoí-iteiüv), o renome dêles enfraquece, “como se a falta de fôlego o reduzisse à impotência de ir adiante” . Fechado êste parêntese, apresenta-se uma questão: como sustentará o tirano êste numeroso e variegado bando que o escolta? Nos primeiros tempos, confiscará as riquezas dos templos; depois, esgotada esta fonte de renda, apoderar-se-á dos bens de seu “pai”, o povo, que o criou, cuidou e elevou ao poder supremo. E se o povo. finalmente consciente do êrro, tenta expulsar o filho indigno da casa paterna, castigado impie dosamente por êle, conhecerá a própria fraqueza e a extensão de suas misérias. Por ter recusado a submeter-se a homens 68. Eurípides: Troianas, v. 1177. 4 50 P l a t ã o livres, caiu na mais dura e mais amarga das servidões: a que inflige o despotismo dos escravos (569 c). V. Miséria do tirano. Felicidade do justo O estudo da natureza tirânica ocupará, agora, Sócrates, ao longo do nono livro. Mas antes de descrever a gênese desta natureza, tenta especificar a distinção que estabeleceu mais acima entre os desejos proveitosos e os desejos supérfluos (554 a). Se se quer conhecer a maleficência dêstes, basta observá-los no homem que adormece após beber ou comer desmedidamente; neste momento, tais desejosacham-se à sôlta de tôda coerção, pois a razão, vencida por tantos excessos, já não os vigia. Ora, o que fazem êles? Longe de se manterem em repouso, saltam e correm empós das mais grosseiras satisfações. O assassínio, o incesto mesmo, não os detêm, e não há extravagância ou infâmia que então o dormidor não cometa em sonho. Ao con trário, quando o homem temperado e prudente se abandona ao sono, após haver desperto o elemento razoável de sua alma e havê-lo nutrido de belos pensamentos, entra, melhor ainda do que na vigília, em íntimo contato com a verdade. Assim pois, entregues a si próprios, nossos maus desejos descambam nos piores desregramentos, enquanto reprimidos, adormecem e cessam de coibir o nobre surto da razão. O homem democrático, já o vimos, não faz distinção entre os seus desejos: acolhe a todos, ao capricho do acaso que os engendra, sem conceder preferência a nenhum. Seu filho, im buído dos mesmos princípios, o imita na mocidade. Porém, maus conselheiros, ansiosos por firmar influência sôbre esta jovem alma, favorecem nela o desenvolvimento de um grande desejo que reinará sôbre todos os outros. Êste déspota é o amor-luxúria, ao qual as tristes companhias, a embriaguez e a demência, alimentaram e dotaram de perigoso ferrão. O que vem a ser o adolescente sujeito a esta abjeta dominação? Ator mentado por insaciáveis apetites, dissipa as rendas pessoais nas festas, banquetes e orgias. Depois, nada mais lhe restando, apodera-se pela violência •—■ como o tirano da cidade — dos haveres do pai e da mãe. E isto por uma cortesã, um amante, conhecidos ontem, esquecidos amanhã, em quem se encarna efêmero capricho. Mas não findam aí seus crimes. Para saciar suas paixões mais vivas do que nunca, far-se-á ladrão, traficante de escravos ou sicofanta. Se nasceu numa cidade bem poli ciada, irá abandoná-la a fim de pôr-se a serviço de um tirano estrangeiro; mas se a pátria já é prêsa da desordem, esfor- çar-se-á, com a gente de sua laia, para implantar nela a tirania em prol de um perfeito celerado. Suponhamos que a tentativa logre êxito, qual há de ser o destino dêste último? Importa, aqui, não se fiar nas aparências. Arranquemos a êste faustoso senhor o seu aparato teatral, vejamo-lo viver nos momentos de abandono e desvendaremos os males secretos que o devoram. Dizem que é poderoso. Na verdade é duplamente escravo: na alma, dos piores desejos; na cidade, dos homens mais baixos A R e p ú b l i c a 51 e mais iníquos aos quais é obrigado a adular para manter-se no poder. Julgam que é rico. Mas êle só pode satisfazer pequena porção de seus apetites que são ilimitados. Na rea lidade, é pobre de tudo quanto não possui, dos inumeráveis bens que lhe escapam ao domínio e em cuja posse êle resume a felicidade. Privado de tôda amizade sincera, não sente menos temor, em sua própria solidão, do que o inspira a seus súditos. Sabe que a inveja e o ódio o espreitam e que um dia virão golpeá-lo no fundo do palácio onde se esconde — dêste palácio que constitui para êle como que uma prisão. Assim, roído de vícios e vítima de incessantes terrores, no apogeu do destino reservado à sua natureza tirânica, é ao mesmo tempo o mais desprezível e o mais infeliz dos homens. Mas não é esta a verdade que, de há muito, Sócrates se propunha demonstrar? No respeitante à felicidade, assim como à justiça e à virtude, a ordem das constituições e dos caracteres aparece tal como êle a fixou: no cimo, a cidade e a alma reais; depois, nos declives da decadência, as cidades e as almas timárquicas, oli- gárquicas, democráticas e, enfim, tirânicas. O escopo do filó sofo foi alcançado. Seu júbilo se expressa por um grito de triunfo. Que se procure um arauto para proclamar o senti mento do filho de Ariston: o homem mais justo é também o mais feliz, enquanto o mais injusto é o mais infeliz, escapem ou nâo aos olhares dos deuses e dos homens (580 c). Platão não foi o primeiro a estudar metòdicamente as principais formas de organização política. Heródoto, Protá- goras, Hípias de Élis — cujas pretensões dois diálogos socrá- ticos ridicularizam — e Crítias, entre outros, o precederam neste caminho 69. Mas o oitavo e nono livros da República quase não devem, ao que parece, aos trabalhos dêstes autores, pois tratam menos das grandes constituições do mundo antigo do que de seus eternos protótipos. No domínio da história, a ordem de sucessão dos diversos regimes não é, sem dúvida, tão imutável como acreditava Platão; mas o quadro que pintou da gênese dêles e os traços pelos quais os caracterizou continuam sendo, após vinte e três séculos, de impressionante verdade. * # # 69. Heródoto (III, 80, 82) estudara os méritos respectivos da mo narquia, da aristocracia e da democracia. Protágoras, em suas Antilogias, que não chegaram até nós, devia examinar a origem e a natureza das constituições (cf. Diógenes Laércio, IX , 50). Hípias de Élis aplicara-se ao estudo da constituição oligárquica de Esparta (y. Filostrato, Vit. Sophist., I, 11, e Platão, Hípias maior, 285 b). Enfim, Crítias escrevera sôbre os governos da Tessália, Lacedemônia e Atenas. Encontrar-se-á na coletânea de H. Diels (Vorsok., II, pág. 622 segs.), os raros frag mentos que Ateneu, Clemente de Alexandria e Eustato nos conservaram destas obras. 52 P L A T Ã O Uma segunda prova da felicidade ligada à justiça deduz-se da teoria das três partes da alma. Cada uma destas partes, razão, orgulho e apetite sensual, busca prazeres distintos. Ora, quando uma domina, concede a preeminência aos prazeres que respondem à sua natureza, e subestima ou despreza os outros. É o que faz dizer de um homem que êle é filósofo, ambicioso ou amigo do lucro. Trata-se, portanto, de saber qual dêstes três caracteres é suscetível de desfrutar o prazer mais verdadeiro e mais isento de pena. Observemos, primeiramente, que o amigo do lucro ignora os prazeres que a ambição e o amor à ciência proporcionam. O campo de sua experiência é extremamente limitado. O ambi cioso goza evidentemente satisfações mais nobres. Mas não será, no fim de contas, o filósofo quem degusta os prazeres mais puros? Na juventude, pôde êle colhêr os frutos da sensua lidade e da coragem, e na idade madura, os do saber. A extensão de sua experiência confere, pois, um valor todo particular à escolha que fêz. Sem menosprezar a glória, única meta do ambicioso, propõe-se fins mais serenos; vive absorvido na con templação das coisas eternas e desfruta de uma felicidade que nenhum sofrimento altera e nenhuma decepção compromete. Da pureza desta felicidade daremos uma terceira e última prova. Entre o prazer e a dor, situa-se um estado intermediário, que se pode considerar como um estado de repouso, caso assinale a suspensão da dor, ou como um estado de privação, caso assinale a suspensão do prazer. Na primeira eventualidade é assimilado ao prazer, no segundo à dor, mas, assim procedendo, comete-se um abuso: confundem-se, com efeito, formas puramente nega tivas da sensibilidade com suas formas positivas contrárias. Suponhamos que um homem se eleve à região média do mundo: situando o lugar em que êle se encontra em relação ao que deixou, julgar-se-á na região superior se não conhecer esta última. Do mesmo modo, quem ignora os gozos verda deiramente puros resume o praaer na cessação da dor. Num sentido, cada prazer enche o vazio de uma de nossas necessidades físicas ou espirituais. Mas estas necessidades, como seus respectivos centros, o corpo e a alma, são muito desiguais em dignidade. A alma tem mais realidade que o corpo, pois que só ela é capaz de conhecer as Formas imutáveis;, similarmente, os alimentos que lhe apaziguam a fome — opinião verdadeira, ciência e virtude — são bem mais substanciais do que aquêles com os quais o corpo se aplaca. Por conseguinte, os prazeres que nascem da plenitude da alma são os mais reais e os mais autênticos prazeres. Infelizmente, a maioria dos homens não o compreende. Como animais no pasto,inclinam obstinadamente a cabeça para o chão; e, tão logo um objeto grosseiro lhes excita a cobiça, lutam, para dêle se apoderar, a cornadas e a coices. No entanto, a posse dêste objeto proporciona-lhes apenas alegrias ilusórias, seguidas ordinàriamente de pesares e dores. Em definitivo, ba A R e p ú b l i c a 53 tem-se pela sombra de um prazer, “como os troianos se bate ram, no dizer de Estesicoro, pela sombra de Helena que nunca tinham visto” . Decepç&o análoga está reservada aos que buscam dema siado àvidamente os prazeres do thimos, se não confiaram prè- viamente o govêmo de suas almas à razão. Em troca, quando esta reina, confere aos prazeres da ambição e do interêsse, que contêm em justos limites, um caráter de realidade que em si mesmos êles não possuem. Afastar-se da ciência e da sabedoria significa, pois, de todos os pontos de vista, afastar-se da verdadeira felicidade. Como, agora, exprimir a distância que separa o homem real e sábio de sua antítese viva, o tirano? Êste, já o vimos, só co nhece, do prazer, a mais vã das sombras. Se observarmos que êle se encontra no terceiro grau a partir do oligarca, que também se acha no terceiro grau a partir do rei, poderemos representar esta sombra pelo número plano 9 (3 x 3), e seu afastamento do prazer real pelo cubo de 9, ou seja, 729. Êste número corresponde às somas respectivas dos minutos do dia, das horas do mês, dos dias e das noites do ano’ ®. Assim, a cada divisão do tempo, o prazer do tirano permanece infinita mente distanciado do do rei. Que se considere um ano, uma hora ou um minuto qualquer de sua vida, encontrá-la-emos no mesmo grau, privada de felicidade. Mas se o sábio predomina, em felicidade, sôbre o perverso e o injusto, não predominará ainda mais em decência, beleza e virtude? (588 a). VI. Resposta aos apologistas da injustiça Eis-nos, pois, em condições de responder a êstes admiradores da injustiça dos quais Glauco foi o brilhante intérprete no início do colóquio71. “A alma humana, dir-lhes-emos em substância, é comparável a estas criaturas fabulosas — a Quimera, Cila ou Cérbero — que, num só corpo, unem as formas de muitas espécies de sêres vivos. Podemos representar-nos suas diversas partes sob os traços respectivos de um monstro policéfalo de grandie porte, de um leão de tamanho médio e, enfim, de um pequeníssimo homem. Ora, o que afirmais, ao proceder, a apo logia da injustiça, se não que é preciso nutrir, em detrimento do homem, o monstro e o leão? Ou, em outros têrmos, que é proveitoso entregar à sanha das feras o que há em nós de essencialmente humano? Os laudadores da justiça, ao con trário, pretendem que se fortaleça o homem e que lhe dêem o leão como auxiliar para domar o monstro inominável. E é 70. “ Philolaus annum naturalem dies habere prodidit CC CLXIV et dimidiatum.” (Censorinus, De die natali, 12, 2.) É o número que Platão adota no caso. 7J, Vide liv. II, 360 e-362 c. 54 P L A T Ã O exato que não é possível estabelecer de outro modo a paz e a harmonia interiores. Daí por que o sábio se esforça por regrar segundo a justiça o govêmo de sua alma. E, para tanto, negligenciando as vãs atividades que visam apenas a fortuna ou a glória, mantém o olhar fixo no plano da cidade ideal, que se lhe oferece como um modêlo no céu.” (592 b). VIII. — Poesia e Filosofia As recompensas eternas da Justiça (595 a -621 b). I. Reexame da condenação da poesia A condenação da poesia, proferida no terceiro livro, encon trará aqui a necessária justificação. Mediante numerosos exem plos, Sócrates já mostrou que os poetas são, o mais das vêzes, apenas mestres enganosos. Mas importa precisar que isto decorre, sobretudo, da natureza da arte que professam. Êles são, com efeito, simples imitadores. Ora, no que exatamente consiste a imitação? Em reproduzir a imagem de um objeto material que, por sua vez, não passa da cópia de uma idéia. O artesão (SrjmoDQyóç) que fabrica um móvel se inspira na Forma dêste móvel, de que Deus é o autor ( (puTO U Q yÓ ç) ; mas o artista que o pinta contenta-se em copiar a obra do artesão. Seu quadro tem, pois, menos consistência e verdade do que o móvel e êste menos do que o arquétipo do qual não passa de imperfeitíssima reprodução. Donde se conclui que tôda imitação dista em ter ceiro grau da pura realidade. O próprio Homero, considerado a justo título como o pai dos poetas trágicos, jamais criou algo mais do que fantasmas vãos. Se fôsse apto a apreender melhor o real, não teria perdido o seu tempo em relatar aventuras lendárias, em emitir vagas opiniões sôbre o govêrno das cidades e a educação dos homens; teria, como Licurgo e Sólon, dado leis a seus compatriotas, ou, como Pitágoras, instruído discípulos fiéis. De qualquer maneira, muita gente ligar-se-ia à sua pessoa para receber lições e conselhos. Em vez disso, errou, só, durante tôda a vida, de cidade em cidade, recitando os seus versos e mendigando o pão. Se o imitador ignora as qualidades dos objetos que imita, ignora-lhes também o uso. A arte da fabricação é guiada pela da utilização: eis por que se pode dizer estar uma para outra como a reta opinião (ôq{K| ôó|a) para a verdadeira ciência (èjtlOtr|(xr)). Mas a arte da imitação, que só leva em çonta simples aparências, brota da opinião vulgar, inconstante
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