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Nonada • 19 • 2012 145 Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina Cultural studies of gender and reception aesthetics: reading in a feminine perspective Cecil Jeanine Albert Zinani RESUMO A Estética da Recepção é uma vertente teórica que coloca o leitor no centro do sistema literário. Se vivências e experiências do leitor são constituintes fundamentais do processo de leitura, o sentido da obra apresentará diferenças conforme a categoria de gênero do leitor. Este texto, além de situar a figura feminina como sujeito da representação, veri- fica a possibilidade de delinear o processo de leitura realizado pela mulher. PALAVRAS-CHAVE Estudos de gênero; Estética da recepção; Leitor; Leitura. ABSTRACT Reception Aesthetics is a theoretical approach that puts the reader in the centre fo the literary sistem. If the reader’s experiences and learnig are fundamental components of the reading process, the meaning of the work will present differences acording to gender category of the reader. This text, besides locating the feminine figure as a subject of representation, checks the possibility to outlining the reading process performed by a woman. KEY WORDS Gender studies; Reception aesthetics; Reader; Reading. O que é crucial aqui é que a leitura é uma atividade aprendida, que, como muitas outras estratégias interpretativas aprendidas em nossa sociedade, é inevitavelmente codificada pelo sexo e modulada pelo gênero. Anette Kolodny Nonada • 19 • 2012 146 INTRODUÇÃO Os Estudos de Gênero, entre outros aspectos, abordam a pesquisa teórica que associa ciências sociais e literatura e discutem questões relacionadas a diversos aspectos, tais como, identidade, sexualidade, pós-modernidade, pós-colonialismo, desterritorialização, multicul- turalismo, procurando evidenciar não apenas a diferença entre os gêneros, mas também a subordinação da mulher em muitos setores da sociedade. Muito embora posições feministas defendidas por escrito- ras datem já de mais de um século, época em que batalhavam em prol do voto feminino e do acesso à educação, o feminismo organizou-se, como movimento, a partir da década de 60 do século XX, quando foram fundadas entidades que se destinaram à discussão dos direitos das mulheres, tendo se consolidado na década de 80, do mesmo sécu- lo. Devido aos Estudos Culturais que valorizaram a produção artística proveniente de minorias e de segmentos subalternos da sociedade, a literatura produzida por mulheres adquiriu visibilidade, passando a ser reconhecida, independentemente do processo de canonização, o qual, por sua vez, também foi objeto de questionamento. Dentro dessa perspectiva, têm sido não somente resgatados e exaustivamente estudados inúmeros textos de escritoras do passado, como também examinadas produções contemporâneas à luz de teo- rias de diferentes matrizes, possibilitando o desenvolvimento de uma crítica literária atenta às especificidades da representação do sujeito feminino bem como do papel da instância narrativa. Esse trabalho resultou no reconhecimento de autoras que hoje são respeitadas e estudadas, ombreando-se aos colegas homens. De outra parte, essa modalidade de crítica também lança luz sobre outro componente do sistema literário: a leitora, assim, a leitura realizada por esse segmento também se tornou objeto de atenção. A preocupação com a recepção tem sido discutida desde a Antigui- dade, com Aristóteles, porém a relevância do leitor evidenciou-se, so- bremaneira, com os estudos que culminaram na Estética da Recepção. Inicialmente, voltada à História da Literatura, essa teoria preconiza que a obra só se concretiza no ato da leitura, o que amplia suas possi- bilidades teóricas, visto que o leitor transforma-se em detentor de um papel extremamente relevante no sistema literário. Considerando os estudos de gênero, que evidenciam as particularidades de uma escrita gendrada, além de a materialização da obra no processo de leitura, obedecendo aos mesmos parâmetros, impõe-se um questionamento maior: quais as particularidades que definem uma leitura realizada pelo gênero feminino? Isso posto, pretende-se, neste estudo, ao situar o sujeito feminino não mais como objeto de representação, focalizar a modalidade de leitura desse sujeito, conforme os pressupostos teóricos da Estética da Recepção, considerando também a relevância das abordagens dos Estudos Culturais de Gênero e atendendo às especificidades do sujeito Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina Nonada • 19 • 2012 147 feminino, na medida em que esse se apropria da voz, para legitimar um posicionamento que reivindica o reconhecimento. TEORIAS DA RECEPÇÃO Ainda que a recepção do objeto estético tenha sido discutida por Aristóteles, em sua Poética, três séculos antes de Cristo, quando apre- senta a catarse como efeito da tragédia, ou que o leitor tenha estado presente em posições críticas desde o formalismo, essa figura tornou- se objeto maior de preocupação, a partir da Estética da Recepção, vertente teórica cujo marco inicial foi a conferência lida por Hans Robert Jauss, na Universidade de Konstanz, em 1967, publicada, pos- teriormente, com o título A história da literatura como provocação à teoria literária. No entanto, a preocupação com o leitor também pode ser encon- trada em outra corrente crítica, contemporânea à Estética da Recep- ção, denominada Reader-response criticism. Essa abordagem procura investigar qual é o papel do leitor na produção do sentido da obra. Dialoga, inicialmente, com o New Criticism, de Richards, que, na década de 20 (séc. XX), propunha uma abordagem mais próxima do texto (conhecida posteriormente como close reading), evitando in- terpretações de cunho biográfico ou sociológico, herança positivista. Mais adiante, o Reader-response afasta-se dessa orientação, para sa- lientar que o sentido é produzido pelo leitor, guiado pelo texto, con- ferindo a essa instância um papel ativo nesse processo. Stanley Fish (1980) afirma que a literatura somente se materializa a partir do mo- mento de leitura, o que também é apontado por Iser. Reforçando esse posicionamento, reiteram Selden, Widdowson e Brooker (2005, p. 47) que “the meaning of the text is never self-formulated: the reader must act upon the textual material in order to produce meaning”. Em vista disso, a construção de sentido difere de leitor para leitor, porque as formas de ler são diversas; embora o código utilizado seja o mesmo, as histórias de leitura são particulares. A competência do leitor para selecionar as possibilidades e a habilidade para complementar o que não está dito são aspectos fundamentais para a construção do sentido de um texto literário que se caracteriza, a priori, pela indeterminação e incompletude. Entre os seguidores do Reader-response criticism, podem ser cita- dos, além de Stanley Fish e Jonathan Culler, Jauss e Iser, expoen- tes da Estética da Recepção. Regina Zilberman (1989) considera a denominação dessa corrente um tanto vaga, uma vez que engloba críticos com filiações ecléticas. Assim, ao lado de pós-estruturalistas, alinham-se desconstrutivistas, semioticistas, seguidores da abordagem psicanalítica, entre outros. Efetivamente, a obra editada por Jane P. Tompkins reúne uma gama de ensaios variados. Na introdução, a au- tora afima:“Reader-response criticism is not a conceptually unified critical position, but a term that has come to be associated with the Cecil Jeanine Albert Zinani Nonada • 19 • 2012 148 work of critics who use the words reader, the reading process, and response to mark out an area of investigation” (TOMPKINS, 1980, ix, grifos da autora). Entre os estudos, destacam-se por sua relevân- cia “Introduction on the study of the narratee”, de Gerald Prince, e “The reading process: a phenomenological approach”, de Wolfgang Iser. Enquanto Prince discute a identificação e, mesmo, uma tipologia do narratário,Iser remete à ideia de concretização (Konkretisation) do texto, formalizada, inicialmente, por Ingarden1, para a qual a presença do leitor é indispensável. Um aspecto significativo é, segundo o autor, a presença de dois polos, em uma obra de arte literária: o artístico, criado pelo autor e o estético, realizado pelo leitor (ISER, 1980, p. 50). No entanto, a vertente que mais se notabilizou em suas pesquisas sobre o leitor foi efetivamente a Estética da Recepção. Nos anos 60 do século XX, as correntes teóricas dominantes, estruturalismo e marxismo, aliadas ao desprestígio do paradigma historicista, con- tribuíram para a decadência da história da literatura, que havia sido amplamente valorizada no século XIX. Na tentativa de recuperar o prestígio dessa disciplina, Jauss apresenta as bases epistemológicas para orientar a nova historiografia, que, conferindo um papel proemi- nente ao leitor, ao mesmo tempo, procura associar o Formalismo, muito embora essa abordagem desconheça a história, com as teorias sociais, as quais ignoram o texto. Considerando o texto literário como um evento, Jauss postula a existência de um leitor ativo, comprometido com a construção do sentido. A transformação dos sistemas interpretativos iniciada com as teses de Jauss, fundamentadas na hermenêutica, de Gadamer, modificou o estatuto do leitor. Jauss utiliza o conceito “horizonte de expectativas” – originário da hermenêutica –, a fim de apresentar os fundamentos que explicitam o papel do leitor ao avaliar as obras literárias de deter- minada época. Horizonte de expectativas2, na visão do autor, consiste em uma série de convenções de que o leitor dispõe, cuja mobilização propicia o diálogo com o texto (JAUSS, 1994). Ao assinalar o horizonte de expectativas do leitor, o autor refere à sua destruição e posterior re- construção como um processo dialético através do qual a obra produz efeito estético. Como o horizonte de expectativas não é estático, mas perma- nentemente atualizado tendo em vista o acúmulo de conhecimentos e experiências, a interpretação da obra literária modifica-se no decorrer do tempo. Assim, é o ambiente cultural de cada época que possibilita o levantamento de questões a que a obra deve responder. Essa concep- ção questiona a adequação de qualquer interpretação, desde a primei- ra, quando, possivelmente, a potencialidade da obra pode não ter sido avaliada adequadamente, o que é passível de ocorrer no presente. Outro estudioso relevante para essa nova estética foi Iser, cujas for- mulações teóricas estão fundamentadas, especialmente, na fenomeno- logia, de Ingarden e também nos trabalhos de Gadamer. As questões sobre o leitor foram desenvolvidas, por Iser, inicialmente, na obra The 1 Uma referência seminal para essa vertente teórica, na per- spectiva de Iser, consiste na obra de Roman Ingarden A obra de arte literária. 2. ed. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1979. (A edição original foi publicada em alemão, em 1931). 2 A estruturação e a objetivação do horizonte de expectativas encontram-se discutidas na seg- unda tese de Jauss (1994, p. 27), enquanto a reestruturação está na terceira tese (31). Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina Nonada • 19 • 2012 149 implied reader, de 1974, contribuindo, decisivamente para a discussão sobre a função do receptor do texto literário. No entanto, a obra essen- cial para o estudo de questões referentes à leitura e ao leitor é O ato da leitura: uma teoria do efeito estético, publicada em 1978. O posiciona- mento de Iser diferencia-se do postulado por Jauss, pois procura desis- toricizar e descontextualizar texto e leitor. Iser apresenta o texto como uma estrutura potencial que é concretizada pelo leitor, de acordo com sua bagagem pessoal: conhecimentos, valores, experiência. Na me- dida em que o leitor lê, ocorrem transformações em sua bagagem de vida. Essa relação dialética é responsável por promover alterações de sentido durante o próprio processo de leitura. No entanto, essa concre- tização não pode ignorar as sobredeterminações do texto que, de certa forma, orientam as realizações possíveis. Um dos aspectos assinalados por Iser, em The implied reader, refere-se ao papel do narrador no sentido de induzir determinada forma de participação do leitor. O narrador torna-se o mediador en- tre os eventos e o leitor, regulando essa distância, o que promove o efeito estético. Iser propõe que o leitor só receba informações que o mantenham interessado na história, ficando em aberto as inferências provenientes das informações dadas. A relação entre narrador e perso- nagens também é relevante para orientar a leitura. Na realidade, Iser assinala a existência de um espaço entre a apresentação do narrador e as ações das personagens, o que também é muito importante para o posicionamento do leitor. Afirma o autor:” The actual gap between the characters’ actions and the narrator’s comments stimulates the reader into forming judgments of his own – thereby bridging the gaps – and gradually adopting the position of critic himself” (ISER, 1978, p. 108). O desenvolvimento das faculdades críticas do leitor depende da composição das personagens, na medida em que o narrador apresenta comentários sobre as ações através dos quais é possível tecer juízos de valor. Para o autor, a significação consiste em um evento, não podendo ser relacionada a nenhuma outra realidade, o que modifica a avaliação da própria significação. Nesse sentido “a interpretação ganha uma nova função: em vez de decifrar o sentido do texto, ela evidencia o po- tencial de sentido proporcionado pelo texto” (ISER, 1996, p. 54). Essa perspectiva coloca em destaque, sem minimizar a relevância da obra, a figura do leitor, tanto aquele que faz parte do mundo real quanto aquele que está inscrito no texto. Em O ato da leitura: teoria do efeito estético (1996), Iser considera que a obra literária se realiza na medida em que ocorre o entrecruza- mento da objetividade da obra com a subjetividade do leitor, o que confere ao texto literário a característica da virtualidade, uma vez que não pode subordinar-se, exclusivamente, às imposições do texto ou às disposições do leitor. Sugere, então, a substituição da pergunta sobre o significado da obra por “o que sucede com o leitor quando com sua leitura dá vida aos textos ficcionais” (ISER, 1996, p. 53). Dessa Cecil Jeanine Albert Zinani Nonada • 19 • 2012 150 maneira, caberia questionar se a produção de sentido da leitura é a mesma para leitoras e leitores, e, em caso afirmativo, como poderiam ser observadas essas diferenças. LEITURA E ESCRITA NO UNIVERSO FEMININO A escrita feminina transita, inicialmente, pela possibilidade de ex- pressão, uma vez que, historicamente, as mulheres não possuíam voz. Michele Perrot, em Mulheres públicas (1998), enfatiza a relevância que a apropriação da palavra teve para as mulheres. Constrangidas a permanecerem no reduto do lar, a conquista da palavra, inicialmente, através de jornais e periódicos, e, posteriormente, nas demais manifes- tações escritas, possibilitou o domínio de outros espaços, subvertendo a invisibilidade que a vida entre quatro paredes lhes impunha, per- mitindo que se projetassem num universo impensado anteriormente. Em 1928, Virginia Woolf, em Um teto todo seu, reivindicava para as mulheres uma pensão de 500 libras e um quarto com chave, pois somente com independência financeira e com privacidade as mulheres conseguiriam produzir literatura de qualidade. O cumprimento dessas condições básicas era quase impossível de concretizar-se numa época em que as mulheres eram consideradas cidadãos de segunda classe, uma vez que a legislação vedava-lhes a posse de propriedades, e o trabalho feminino, mesmo mal remunerado, era uma raridade, o que inviabilizava a obtenção de qualquer rendimento. Também o discurso médico se opunha ao desenvolvimento intelectual da figura feminina, sob o pretexto de ser essepernicioso para o equilíbrio emocional e fisiológico, comprometendo a geração de filhos saudáveis. Apesar de tudo isso, muitas mulheres, no século XIX, conseguiram produzir literatura de grande qualidade, muitas reconhecidas tanto em sua época, é o caso, por exemplo, de Jane Austen (Pride and prejudice) e Charlotte Brontë (Jane Eyre); quanto posteriormente, como Emily Dickinson ou Emily Brontë. A produção literária feminina teve lugar a partir do momento em que as mulheres se apropriaram da palavra. Inicialmente, nos salões do século XVII, criou-se um ambiente onde circulavam informações, estabelecendo-se uma espécie de jogo, que possibilitava réplicas en- tre as vozes de ambos os gêneros. É o período em que pontificavam as preciosas, escarnecidas por Molière que as chamava de “precio- sas ridículas” (PERROT, 1998). A atividade oral dos salões facultou o desenvolvimento de uma capacidade expressiva que, posteriormente, passaria à alçada da escrita. De acordo com Michelle Perrot (1998), o domínio da escrita ocorreu, primeiramente, pela correspondência, depois pela literatura e, finalmente, pela imprensa. A correspondência desenvolveu-se intensamente no século XIX, acompanhando o progresso dos meios de transporte e do correio. As mulheres tornaram-se uma espécie de secretária da família, opinando sobre todos os assuntos e mantendo laços com os familiares que se en- Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina Nonada • 19 • 2012 151 contravam em outros lugares. Perrot assinala que o assunto predomi- nante dessa correspondência pertence à área educacional, lembrando a obra de Mary Woolstonecraft. Com a ampliação do sistema educacional, grande número de mulheres tornaram-se letradas, sendo consumidoras vorazes dos folhetins, publicados nos jornais. No século XIX, o público leitor preferencial era constituído por estudantes e mulheres, haja vista os constantes apelos à ‘prezada leitora’ muito recorrentes na literatura produzida durante o Romantismo e o Realismo. De leitoras passaram a escritoras, utilizando esse mesmo veículo, inicialmente nos rodapés, assim explicitado por Perrot (1998, p. 77): A atividade literária e cultural feminina ampliou-se significativa- mente no século XX, a partir de dois marcos significativos: Virginia Woolf e Simone de Beauvoir. Virginia Woolf, além de discutir os problemas enfrentados pelas mulheres para produzir literatura, em Um teto todo seu, escreveu romances psicológicos, de grande com- plexidade, que se tornaram referências significativas não apenas para as escritoras, mas para a literatura desse século. Muito significativa, também por suas posições políticas, foi a obra da filósofa existencialista Simone de Beauvoir, O segundo sexo, na qual a autora apresenta uma abordagem multidisciplinar da questão feminina, apontando possibi- lidades de libertação. O ponto fulcral de suas reflexões é o fato de a mulher nunca ser o Um, uma vez que é sempre o Outro, já que não consegue operar o retorno. Utilizando suas palavras, é o “inessencial que não retorna ao essencial” (BEAUVOIR, 1980, p. 15). Justificando esse posicionamento, abre o segundo volume de O segundo sexo com o célebre aforismo: “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher” (BEAU- VOIR, 1980, p. 9), o que, de certa maneira, reafirma que o gênero é uma construção cultural. Embora mulheres e homens apresentem inúmeras diferenças, elas detêm o mesmo direito que eles à produção cultural, o que se materializa na medida em que obras de autoria femi- nina multiplicam-se, enriquecendo a literatura ocidental. A partir da década de 80 do século XX, paralelamente à produção de literatura, consolida-se uma modalidade de crítica literária que discute a questão do cânone, eminentemente masculino e patriarcal, reivindicando o reconhecimento de especificidades tanto na repre- sentação do sujeito feminino em obras de autoria masculina quanto em obras produzidas por mulheres. Nesse sentido, Showalter (1994) propõe duas modalidades de crítica: a ideológica, centrada na mulher como leitora, que discute a representação feminina, evidenciando os [...] as mulheres insinuavam-se no jornal pelos roda- pés – a parte de baixo das páginas dos jornais – que lhes eram progressivamente reservados, sob forma de crônicas de viagens ou mundanas e sobretudo de ro- mances-folhetins, cada vez mais femininos por suas intrigas, suas heroínas e até por sua moral. Cecil Jeanine Albert Zinani Nonada • 19 • 2012 152 padrões consagrados e as imagens usuais veiculados pela literatura; e a ginocrítica, que focaliza a mulher como escritora “e seus tópicos são a história, os estilos, os temas, os gêneros e as estruturas dos es- critos de mulheres” (SHOWALTER, 1994, p. 29), além da carreira e da tradição literárias. Em relação à mulher como leitora, a autora apresenta um panora- ma pouco otimista, embora reconheça a possibilidade de emancipação que possa estar embutida nessa modalidade de crítica. Esse aspecto evidencia-se na análise da representação feminina tanto nas perso- nagens, desvelando estereótipos, quanto na atuação do narrador em obras escritas por homens. As formas de interpretação de um texto de acordo com parâmetros feministas, na medida em que propõem novos significados, ampliam consideravelmente sua potencialidade, uma vez que são introduzidas visões do mundo de um segmento da sociedade, cuja voz custou a se fazer ouvir e cujas experiências eram, frequente- mente, desconsideradas. Partindo do princípio que a identidade de gênero é um constructo que possibilita a representação e a caracterização do sujeito dentro da trama social, é possível entender que a modalidade de leitura, reali- zada pelo sujeito, apresenta diferentes peculiaridades caso seja esse sujeito masculino ou feminino, com reflexos em sua representação e caracterização. As palavras e sentenças que formam um texto não constituem ob- jetos reais, mas construções imaginárias que o leitor elabora e trans- forma durante o processo de leitura, de acordo com sua história pes- soal, visão de mundo e contexto sociocultural. Se a variável gênero for incorporada à equação, poderão ser observadas realizações diferentes se o sujeito produtor da leitura for masculino ou feminino. Considerando que a categoria leitor constitui um elemento intrínseco à obra, é imprescindível refletir sobre a questão da leitora, se essa con- stitui uma categoria específica ou é apenas uma questão de desinên- cia, estando incluída no masculino universal. Para Queiroz (1997), a dificuldade para o estabelecimento da visibilidade dessa categoria de- riva dos problemas que circundam a crítica feminista. A transformação dos conceitos relacionados à literatura, se, de um lado, promoveram o alargamento e o descentramento do cânone e de crítica, na medida em que absorveram um conjunto diversificado de produções, por outro, colocaram a descoberto as principais dificuldades do projeto crítico feminista em “formular seus pressupostos, definir suas estratégias e re- cortar seus objetos” (QUEIROZ, 1997, p. 58). Na observação da experiência da mulher enquanto leitora, desde os folhetins românticos até a literatura contemporânea, percebe-se a emergência de uma compreensão textual diferenciada. Essa prática é descrita, além de outros, por Jonathan Culler, na obra Sobre a des- construção (1997). A partir da leitura de um texto literário, o autor compara o entendimento conduzido pela fantasia masculina e femi- nina, demonstrando que o universo de vivências e experiências que Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina Nonada • 19 • 2012 153 constituem o imaginário implica uma concretização da leitura par- ticular de acordo com especificidades de gênero. Como a leitura é um conhecimento que se adquire, com a utilização de estratégias inter- pretativas disponíveis, as quais refletem substratos calcados em sexo e gênero, a proposta para ler como mulher acarretadificuldades adi- cionais, uma vez que a leitora é levada a se identificar com situações e personagens que valorizam a perspectiva masculina. Culler (1997, p. 62) acrescenta: “Elas [as mulheres] foram constituídas como sujeitos por discursos que não identificaram ou promoveram a possibilidade de ‘ler como mulher’”. Finaliza sua reflexão, assinalando: Queiroz (1997, p. 32), ao focalizar a leitora, discute que a utili- zação do modelo proposto por Jauss aplicado à crítica feminista im- plica a orientação de “reler as obras da tradição masculina [...] de um lugar marcado pelo gênero”, utilizando novos parâmetros inter- pretativos “definidos por mulheres críticas cujas experiências, na série social e na série literária, não são compatíveis com as experiências definidas e interpretadas por homens críticos na série literária e por leitores homens na série social” (QUEIROZ, 1997, p. 32). Isso significa que o papel do narrador e a atuação das personagens precisam ser redimensionados a partir de um ponto de vista feminino, não signifi- cando, com isso, a proposição de uma crítica reducionista, mas o alar- gamento do horizonte de expectativas e do conhecimento do mundo e das coisas. Uma leitura feminista propõe o desvelamento de estruturas de poder inscritas no texto literário, desestabilizando interpretações consagradas e questionando valores veiculados na obra. No intuito de desvelar os processos de escrita e, consequentemente, de leitura e de crítica feminista, Showalter discute quatro modelos de diferença: o biológico, com ênfase no corpo da mulher; o linguístico, que busca investigar a linguagem feminina; o psicanalítico, funda- mentado no processo criativo; e o cultural que incorpora aspectos dos outros modelos, sendo, talvez por esse motivo, de maior abrangência. Fundamentada em teóricas de linha francesa, Showalter (1994, p. 32) afirma: “A crítica orgânica e biológica é a manifestação mais ex- trema da diferença de gênero, de um texto indelevelmente marcado pelo corpo: anatomia é textualidade.” Muito embora valorize a me- táfora do corpo como escritura, considera que isso pode significar um retorno ao essencialismo do século XIX, quando os antropólogos Uma mulher ler como uma mulher não significa repe- tir uma identidade ou experiência que é dada, mas assumir um papel que ela constrói com referência à sua identidade como mulher, que é também uma construção, de modo que a série pode continuar: uma mulher lendo como uma mulher lendo como uma mulher. A não-coincidência revela um intervalo, uma divisão interna à mulher ou a qualquer sujeito leitor e à “experiência” daquele sujeito. (CULLER, 1997, p. 77) Cecil Jeanine Albert Zinani Nonada • 19 • 2012 154 atribuíam a superioridade da inteligência masculina ao desenvolvi- mento dos lobos frontais do cérebro nos homens. Para a autora, muito embora considere a questão do corpo fundamental, aponta a necessi- dade de mediação da expressão corporal pelas estruturas linguísticas. Em relação ao modelo linguístico, a grande questão é: existe diferença no uso da linguagem por homens e mulheres? Se se con- siderar o silêncio ao qual o gênero feminino, desde sempre, foi conde- nado, com pouco ou nenhum acesso aos meios que poderiam modi- ficar essa situação, o momento em que as mulheres se apropriaram da palavra causou imensa perturbação. A linguagem, como veículo dis- seminador do discurso patriarcal, precisou ser reinventada, através de uma seleção lexical apropriada, subvertendo a estrutura falocêntrica. Nesse sentido, considera Showalter (1994, p. 38): “A defesa de uma linguagem das mulheres é, portanto, um gesto político que também car- rega uma força emocional enorme”. Com isso, não apresenta a defesa de uma linguagem específica, mas, sim, de garantir o acesso à língua e à expressão. O modelo de escrita relacionado à psicanálise é orientado pelos es- tudos de Lacan, atribuindo as limitações da criação literária feminina à ausência do falo, ou seja, o complexo de castração que impediu as mulheres de entraram na ordem simbólica tornou-se uma metáfora da sua inferioridade no que tange à escrita. No entanto, essa mo- dalidade de crítica evidencia que “as relações entre personagens femi- ninos mas também as relações entre escritoras são determinadas pela psicodinâmica dos vínculos entre as mulheres” (SHOWALTER, 1994, p. 43). Embora esse modelo seja muito relevante, deixa a descoberto transformações históricas, econômicas e culturais. O modelo cultural, apontado por Showalter (1994), evidencia diferenças entre escritoras determinadas por condicionantes outros além do gênero, tais como, classe, nacionalidade, entre outros. Além de possibilitar a compreensão de como a mulher é vista pela estrutura dominante, essa modalidade de crítica viabiliza a visão de si própria. A autora apresenta como um texto escrito por mulher pode ser lido: Nesse aspecto, a leitura das entrelinhas torna-se muito relevante, uma vez que é necessário descobrir o que subjaz ao texto. Na reali- dade, há dois processos narrativos que se cruzam em alguns momen- tos Ou seja, cabe deslindar o processo de codificação das duas vozes para construir o sentido da mensagem. Uma implicação deste modelo é que a ficção das mulheres pode ser lida como um discurso de duas vozes, contendo uma história “dominante” e uma “si- lenciada”, o que Gilbert e Gubar chamam de “palimp- sesto” (SHOWALTER, 1994, p. 47). Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina Nonada • 19 • 2012 155 CONSIDERAÇÕES FINAIS Como a mulher lê? A construção do sentido marcada pelo gênero é um fato já constatado por especialistas nessa modalidade de es- tudo. Tanto a percepção de uma voz narrativa feminina quanto a estruturação das personagens são elementos que podem desvendar a questão posta, muito mais do que a constatação da utilização de um léxico particular ou de desinências específicas, como tem sido apon- tado muitas vezes por estudiosos da linguagem3. Uma leitura de cunho feminista precisa centrar-se, inicialmente, na voz do narrador, posteriormente, na ação das personagens, a fim de examinar as representações de mulher presentes na obra. O confronto entre as descrições do narrador e a experiência da leitora produzem significados diferenciados. Aspectos que na fantasia masculina podem ter um apelo positivo, na fantasia feminina mostram-se negativos, uma vez que a mulher tem a possibilidade de se colocar no lugar do outro. A esse respeito, Culler (1997) coloca um caso muito interes- sante. Se determinados atos (como, por exemplo, olhar garotas) são não apenas aceitos naturalmente, mas valorizados, pelos homens, na experiência feminina detêm um caráter negativo (no caso, ser olhada pelos homens), visto que o processo de experienciar a realidade é diferente. Outra situação relevante na constituição da leitura feminina trata da questão das personagens. A representação da mulher na literatura vai depender do ponto de vista narrativo, da ideologia que perpassa o texto. Se o texto presentificar problemas feministas e der visibilidade e voz a essas personagens, poderá ocorrer uma leitura sintonizada com a experiência de vida. Em textos em que a mulher é representada dentro dos paradigmas tradicionais, a leitura feminista evidenciará a submis- são e a opressão que dominaram o gênero desde o início dos tempos. Se o sentido é construído mediante a ação do leitor, no aspecto de projetar experiências, conhecimentos, sentimentos e aspirações sobre a estrutura do texto, ou ainda, de o imaginário feminino ser diferente do masculino, é possível verificar uma forma de leitura par- ticular e diferenciada, isso significa uma leitura marcada pelo gênero. Esse exercício, por sua vez, pode deflagrar a perquirição a respeito de modalidades de leitura de cunho androcêntrico que têm permeado boa parte da crítica literária. Assim, a leitura feminina se reveste de cunho político, na medida em que oportuniza o questionamentodos pressupostos da crítica tradicional, resgatando obras que caíram no ostracismo e valorizando a escrita feminina. Essa modalidade faculta, também, a promoção da autoafirmação de um segmento que esteve por muito tempo sem espaço e sem voz. Para Iser, o texto literário se compõe de múltiplas perspectivas, tais como narrador, enredo, perso- nagens, ficção do leitor, as quais marcam “centros de orientação no texto, que devem ser relacionados, para que se concretize o quadro co- mum das referências” (ISER, 1996, p. 74). Se essas perspectivas forem 3 Para maiores detalhes, exami- nar a obra Linguagem e sexo, de Malcolm Coulthard (SP: Ática, 1991). Cecil Jeanine Albert Zinani Nonada • 19 • 2012 156 orientadas para uma abordagem de gênero, será possível materializar uma leitura feminista, permitndo o reconhecimento do sujeito mulher no processo de interpretação. Dessa maneira, ‘ler como mulher’ consolida-se como uma ex- periência de transformação e de deslocamento de forças, uma vez que leva em conta, primeiramente, a experiência de vida da mulher, e, posteriormente, os avanços que os estudos de gênero obtiveram nos últimos anos do século XX e na primeira década do século XXI. Finalmente, essa leitura, por seu caráter subversivo, possibilita a des- construção de mitos e da ideologia que têm naturalizado a experiência feminina através dos tempos. REFERÊNCIAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Milliet. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1980. CULLER, Jonathan. Sobre a desconstrução: teoria e crítica do pós-es- truturalismo. Trad. Patrícia Burrowes. Rio de Janeiro: Record: Rosa dos Tempos, 1997. FISH, Stanley E. Literature in the reader: affective stylistics. In: TOMPKINS, Jane P. (Ed). Reader-response criticism: from formalism to post-structuralism. Baltimore; London: John Hopkins University Press, 1980 (70-100). 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Profes- sora e pesquisadora no Curso de Graduação em Letras; no PPGLET - Pro- grama de Mestrado em Letras, Cultura e Regionalidade (UCS) e no PDLET - Programa de Doutorado em Letras (Associação ampla UCS/UniRitter). E-mail: cezinani@terra.com.br Recebido em 30/08/2012 Aceito em 30/11/2012 ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Estudos culturais de gênero e estética da recepção: leitura na perspectiva feminina. Nonada Letras em Revista. Porto Alegre, ano 15, n. 19, p. 145-157, 2012. Cecil Jeanine Albert Zinani
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