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Tratado_Teologico-Politico_de_Espinosa

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Título: Tratado Teológico-Político 
3.' edição 
Autor: Baruch de Espinosa 
Edição: Imprensa Nacional-Casa da Moeda 
Concepção gráfica: Departamento Editorial da INCM 
Revisão do texto: Levi Condinho 
Tiragem: 950 exemplares 
Data de impressão: Outubro de 2004 
ISBN: 972-27-1336-1 
Depósito legal: 215 831/04 
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TRATADO 
TEOLÓGICO-POLÍTICO 
Tradução, introdução e notas de Diogo Pires Aurélio 
3.ª edição, integralmente revista 
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IMPRENSA NACIONAL-CASA DA MOEDA 
LISBOA 
2004 
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NOTA À PRESENTE EDIÇÃO 
A presente versão da tradução portuguesa do Tratado Teoló-
gico-Político altera profundamente a anterior, editada pela Im-
prensa Nacional-Casa da Moeda, em 1988, e pela Martins Fon-
tes, no Brasil, em 2003. Semelhante alteração poderá surpreender 
numa tradução que, ao tempo em que surgiu pela primeira vez, 
já se propunha, tal como vem explicitamente afirmado na intro-
dução, apresentar-se o mais fiel possível ao texto espinosano. 
Esse propósito mantém-se, todavia , inalterável. Foi, de resto, 
graças a ele que se tomou necessário, quinze anos depois, rever 
· da primeira à última linha as várias centenas de páginas do Tra-
tado. O que Walter Benjamin afirma , no conhecido ensaio sobre 
«A tarefa do tradutor », poderá, de algum modo, explicar este 
aparente paradoxo: «ao contrário da palavra do escritor, que 
sobrevive na sua própria língua, a melhor das traduções tem 
por destino integrar-se no desenvolvimento da sua e perecer 
quando ela se renovar » 1. As alterações agora introduzidas cons-
tituem, pois, uma nova tentativa de ir ao encontro do mesmo 
texto, um texto que, por continuar vivo, ainda que numa língua 
morta, condena as suas versões em outras línguas, ainda que 
vivas, a um perecimento a prazo mais ou menos curto. 
Que o texto continua vivo, ninguém, decerto, o negará, pe-
rante o lastro de «teológico-político » que de novo assoma à su-
perfície da modernidade, tão enfaticamente inaugurada, no que 
à política diz respeito, por Espinosa, lastro esse que, no seu 
recorrente emergir, a confronta com o seu próprio negativo e 
exibe à transparência a imbricação de poder e sagrado sobre 
1 «La tâche du traducteur », trad . in CEuures, 1, Paris , Gallimard , Folio, 2000, 
p . 250. 
7 
cuja denúncia e recalcamento ela se construiu e mantém . Imagi-
nar o Tratado Teológico-Político confinado à circunstância específica 
e, em muitos aspectos, absolutamente ímpar da Holanda do sé-
culo xvn, sem olhar ao que nessa obra se nos impõe como ele-
mento matricial da política quando pensada à luz da liberdade 
individual, é passar simultaneamente ao lado do texto de Espi-
nosa e do que realmente constitui a modernidade em polític_a. 
Se, de facto, pelo menos nó Ocidente e desdé ·há dois século~, 
recusamos esse cruzamento do poder e d~ religião que transfi-
gura a lei em mandamento e o discurso político em teologia/ é_ · · 
principalmente porque Espinosa, como já alguém disse, ·sé nos 
antecipou a ir espreitar por detrás do espelho, a indagar a natu-
reza da imagem que qualquer sociedade tem de si própria e da 
sua lei ou ordem interna, concluindo que ela não é senão isso 
mesmo, ou seja, uma simples imagem que a perspectiva irreme-
diavelmente particular de cada um e de cada povo tende a repre-
sentar como espaço onde a transcendência irrompe soberana, 
de modo a que a potência do legislador se cubra de legitimi-
dade inquestionável. 
Perante um texto assim, o tradutor é corno que impelido a 
recuperar a vitalidade que a cada momento emana das suas 
palavras. Vitalidade do sentido, certamente, mas vitalidade, so-
bretudo, do que nele é recomeço, eco latente do começo. Louis 
Althusser explicita, a propósito desse outro alicerce da moder-
nidade que é Maquiavel, a diferença que há entre o verdadeiro 
começo e uma simples novidade: «A novidade pode não residir 
senão à superfície das coisas e não afectar senão um aspecto 
das coisas, passando com o momento que a produziu. O come-
ço, pelo contrário, está, se assim podemos falar, enraizado na 
essência de uma coisa, visto ser o começo dessa coisa: ele afecta 
todas as suas determinações e não passa com o instante, dura 
com a própria coisa.» 2 É por isso que a tradução é sempre um 
regresso à nascente, ao original que a cada nova leitura se reve-
la mais actual e, por isso mesmo, já distante da tradução em 
que, tempos atrás, o julgávamos ter aprisionado. 
No essencial, a tradução que proponho nesta nova edição 
segue os critérios já adaptados na primeira. Uma parte signifi-
2 Écrits Philosophiques et Politiques, tome 11, Paris, Éditions Stock/IMEC, 1997, 
p. 46. 
8 
cativa do trabalho agora realizado destina-se, por isso, ora a 
corrigir algum erro entretanto detectado ou assinalado por lei-
tor amigo, ora a tentar uma aproximação ainda ma ior ao texto 
de Espinosa . Se tivesse de apontar, resumidamente, a diferença 
entre a presente edição do Tratado Teológico-Político e as que a 
precederam, diria que ela reside no compromisso, agora incom-
paravelmente mais decidido, com a literalidade, ou melhor, na 
certeza de que traduzir não se resume em dar a compreender, 
muito menos em interpretar e isolar o sentido, corno se este 
alguma vez se desse isolado, mas sim em «dizer quase a mesma 
coisa», como quer Umberto Eco 3, refazer na língua do tradutor 
o continuum discursivo que faz do texto original um corpo vivo 
a respirar por sob a letra morta. «Traduzir é encenar», diz Henri 
Meschonnic 4 . A tradução do ITP, para justificar cabalmente esse 
nome, deveria ser a representação em língua portuguesa do dis-
curso espinosano, que o mesmo é dizer, de tudo quanto no ori-
ginal latino se repercute corno ideia ou afecto, ritmo ou respira-
ção, mente ou corpo. 
Semelhante desígnio de literalidade esteve na origem e é a 
razão principal da revisão, bastante profunda, que aqui tem lu-
gar. O leitor mais familiarizado com a obra de Espinosa conhe-
ce, decerto, a diversidade de opções com que se debatem os 
tradutores. Abandonado, há já algum tempo, o modelo de tra-
dução como simples via de acesso ao sentido, o corpo a corpo 
com o original impõe-se como método obrigatório, mas levanta, 
aqui e ali, algumas questões de difícil solução. O vocabulário 
jurídico-político é uma delas, entre outras razões pela dificulda-
de que há de encontrar para os termos usados por Espinosa, 
comuns no seu tempo, uma equivalência satisfatória na rede de 
conceitos e nomes de que se faz o pensamento e a prática polí-
tica de hoje em dia, pelo menos no mundo ocidental, rede essa 
que apenas há pouco mais de dois séculos começou a implantar-
-se. A dificuldade não é de mera transposição terminológica de 
uma língua para outra: é, sobretudo, de transposição do uni-
verso político de Seiscentos para aquele em que se situa a reali-
dade que nos é dado viver. O que ocorreu, de facto, na sequência 
3 Dire Q11asi La Stessa Cosa, Esperienze di traduzione, Milano, Bompiani, 
2003. 
4 Poétiq11e du traduire, Paris, Éditions Verdier, 1999, p. 394. 
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da Revolução Francesa foi a definição de um novo jogo de con-
ceitos e a fixação, sob o ponto de vista semântico, de uma série 
de termos, alguns deles já utilizados antes, mas que passam então 
a apresentar, nas diversas línguas, uma significação por vezes 
bem diferente da que tinham no universo monolinguístico da 
cultura seiscentista 5. Quando falamos de república, não pensa-
mos o mesmo que Espinosa quand? fala de respublica; a socie-
dade civil, depois de Hegel, é uma coisa · diferente da societas 
civilis dos juristas de dois séculos antes; : o · Estado não çorres-
ponde exactamente, nem à cives, nem à réspublica; o povo não :~ . . 
o mesmo que a multitudo, a plebs ou o vulgus; a cidad_e nãç, _é a 
cives nem a urbs; etc., etc. O problema ·reside, pois, · em fazer as 
línguas actuais dizerem uma realidade «que lá não mora», como 
diria Vitorino Nemésio. 
Ao longo dos séculos, a soluçãoadoptada pela maioria dos 
tradutores foi a de transpor para o tempo e a língua em que 
traduziam o sentido que lhes pareceu estar por detrás da formu-
lação original. Uma tal solução, na tentativa de tornar o autor 
legível aqui e agora, arrisca-se, porém, a perdê-lo totalmente de 
vista, porquanto leva a rasurar tudo quanto se imagina ser ana-
cronismo, ambiguidade, imprecisão, experimentação de concei-
tos e flutuação terminológica, em resumo, tudo quanto é real-
mente escrita em acto. Num texto como o Tratado Teológico-Político, 
escrito numa altura em que os alicerces da conceptualização 
moderna do político estão ainda por consolidar, semelhante risco 
não é de somenos. 
As traduções mais recentes ensaiam, por tudo isto, uma 
aproximação o mais estreita possível ao texto, nele descobrindo, 
não raro, inflexões e tonalidades de que as anteriores, preo-
cupadas sobretudo com a recuperação do sentido, dificilmente 
poderiam suspeitar. Aquilo que tentei fazer nesta nova versão 
vai nesse sentido e depara-se, por conseguinte, com as dificul-
dades inerentes. Como dizer, por exemplo, algo que se confi-
gura como problema na língua de partida numa língua onde 
esse problema já não existe? Como evitar que as palavras não 
5 Veja-se, a este propósito, o que diz Paolo Cristofolini, «Le parole-chiave 
dei Trattato Político e !e traduzioni modeme », in Pina Totaro (a cura di), Spino-
ziana, Ricerce di terminologia filosofica e critica testuale, Firenze, Leo S. Olschki 
Editores, 1997, pp . 22-38. 
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veiculem um significado diferente do que possuem no texto ori-
ginal? Ou como reconstituir a constelação de vocábulos por que 
estava disperso um significado que nas línguas de hoje se aloja 
em uma única palavra, clara e precisa? Será lícito traduzir impe-
rium por Estado, conforme vêm fazendo as traduções mais re-
centes, e não usar Estado para traduzir a respublica ou a societas 
civilis? É certo que há boas razões para semelhante opção e é, 
de resto, a que adoptamos aqui a maioria das vezes. Mas há 
trechos em que imperium aparece claramente, à semelhança do 
que ainda hoje acontece, a significar o mando ou o domínio 
sobre algo, como, por exemplo, as paixões. Pode, neste caso, o 
tradutor levar a coerência a um ponto tal que caísse na infideli-
dade ao autor? Penso que seria incompreensível um tão extre-
mado excesso de zelo. Não conheço, aliás, nenhum exemplo em 
que se tenha levado o afã de uniformizar as correspondências 
vocabulares tão longe que, uma vez por outra, não se recue 
perante a evidência de que é impossível, sem violentar o texto, 
fazer o significado que hoje em dia possui determinado con-
junto de vocábulos retroagir sobre um passado onde cada um · 
deles se integrava, do ponto de vista semântico, em conjuntos 
diferentes. Traduzir, em casos assim, é também não abolir hesi-
tações e flutuações conceptuais ou vocabulares, nem impor ao 
discurso de ontem uma ordem que só conhecemos hoje e que, 
nessa medida, não deve tomar-se por universal. 
Boa parte deste elenco de problemas sobre tradução é hoje 
tema de pesquisa e debates no seio da comunidade científica, a 
isto acrescendo, no que a Espinosa diz respeito, a profunda re-
visão, ainda não terminada e muito menos pacificada, que tem 
vindo a processar-se, ao longo das últimas duas décadas, nos 
estudos sobre a sua filosofia --política. Ao carácter irremediavel-
mente precário de toda a tradução, vem, por isso, no caso pre-
sente, aliar-se a necessidade de adoptar, algumas vezes, solu-
ções insuficientemente abonadas, ou mesmo sem abonação. Não 
vejo, todavia, outro modo de ultrapassar anteriores soluções, 
porventura abonadas, mas que me parecem insatisfatórias no 
estado actual da investigação sobre esta matéria. 
Mantém-se, entretanto, na íntegra, com uma ou outra cor-
recção de pormenor, o texto introdutório que já acompanhava a 
primeira edição. Acredito que, no essencial, a sua actualidade 
permanece, pese embora a mencionada revisão por que passam 
os estudos espinosistas em geral e a filosofia política de Espi -
nosa em particular. Não faria, por isso, grande sentido refazê-
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-lo, tanto mais que uma boa parte dos temas que aí abordo 
foram por mim retomados em publicações ulteriores 6, para as 
quais remeto o leitor eventualmente intere ssado. 
Lisboa, 7 de Outubro de 2003 
6 
Ver, especialmente, Imaginação e Poder, Lisboa, Edições Colibri, 2000; 
A Vontade de Sistema, Lisboa, Edições Cosmo s, 1998. 
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NOTA A EDIÇÃO BRASILEIRA 
O Tratado Telógico-Político é a principal das obras que Espi-
nosa publicou em vida. O seu intento, expressamente afirmado 
no subtítulo, é demonstrar que a liberdade de pensamento cons-
titui um dispositivo essencial para a manutenção da paz no inte-
rior dos Estados. Longe, porém, de limitar esse intento a um 
simples enunciado estratégico, estabelecendo empiricamente, atra-
vés de factos históricos ou do seu tempo, uma relação de causa-
-efeito entre liberdade e paz, Espinosa elabora aquela que é a 
primeira e, porventura, a mais profunda reflexão alguma vez 
publicada sobre a democracia, regime que designa como o «mais 
natural e o que mais se aproxima da liberdade que a natureza 
concede a cada um». 
Durante séculos, o escândalo que semelhante proclamação 
representou aos olhos de todas as ortodoxias foi enorme. Mes-
mo em nossos dias, se a encararmos em toda a sua dimensão, 
não é ainda absolutamente seguro que já o tenha deixado de 
ser. E por uma simples razão: Espinosa inscreve a liberdade no 
âmago da natureza humana, para demonstrar que só a partir 
dela é possível pensar e executar uma política para os homens 
tal como eles são realmente, invertendo assim a convicção se-
cular e comummente arreigada segundo a qual a política se ali-
cerça numa verdade que teria de se impor aos homens e que 
determinaria o limite até onde eles podem ser livres. Ao arre-
pio do contratualismo, que encara toda a política como uma forma 
de reprimir o «estado de natureza » e vê no Estado uma garan-
tia do não-retomo deste, Espinosa apresenta a democracia como 
uma forma de realização da própria natureza humana, porquan-
to as instituições políticas aí aparecem como realização objectiva 
da liberdade que está inscrita na essência de cada indivíduo : 
«o fim do Estado é, realmente, a liberdade ». 
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Como se tal não bastasse, como se a tese que acabamos de 
resumir não fosse já suficientemente deva stadora para os co-
nhecidos estereótipos do «bom governo » e do «bom príncipe », 
a linguagem utilizada neste livro é de um desassombro raro na 
história da filosofia, ao ponto de fazer, por vezes, lembrar as 
invectivas de um Nietzsche que estivesse a braços com outro 
tipo de dogmas . Já houve quem lhe chamasse um manifesto . 
E o é, sem dúvida. Um manifesto á favor · da ·democracia; um 
manifesto contra a tirania, a super:stição : ~ todas . é\S .outras for-
mas de escravizar os indivíduos, . ou seja·, de os fazer alienar, 
sujeitando-os pelo medo de castigos, nesta ou na oU:tra vida, a· 
leis que violentam a sua verdadeira natureza e, nessa · rttedida, 
lhes vedam o caminho para a felicidade e a plena realização de 
si mesmos. O Tratado Teológico-Político, porém, não se esgota 
nesse manifesto erguido contra o império da tristeza, do res-
sentimento e do ódio. Ele é também, na designação com que se 
lhe referem alguns contemporâneos de Espinosa, um «Tratado 
das Escrituras», um livro em que a Bíblia é apresentada como 
reflexo da imaginação dos Hebreus e em que a formação das 
instituições sócio-políticas do «povo eleito» se revela como um 
processo histórico transfigurado em obra de um Deus soberano 
e zeloso do seu império e dos seus súbditos. 
A maioria dos intérpretes desta obra tem sublinhado, a meu 
ver excessivamente, a enorme distância que vai do alegado es-
boço que ela apresentaria do pensamento político do autor à 
formulação clara e definitiva com que este aparece, depois, no 
Tratado Político.Semelhante leitura tem, decerto, alguma base de 
sustentação. Mas é, no mínimo, redutora e ignora por completo 
a originalidade com que no Teológico-Político se recorre ao texto 
bíblico a título de paradigma de todo o fenómeno político, des-
vendando a paradoxal dimensão dos seus fundamentos, desig-
nadamente na versão democrática, onde a obediência só faz sen-
tido se for destinada a produzir a liberdade. Talvez em mais 
nenhuma obra, com excepção dessa outra fulguração do génio 
que é O Príncipe, de Maquiavel, se ilumine com tanta lucidez a 
essência do político. 
A tradução agora apresentada foi feita e teve a sua pri-
meira edição há mais de uma década (Lisboa, INCM, 1988), numa 
altura, portanto, em que os estudos sobre o pensamento político 
de Espinosa eram bem mais raros do que são hoje. Anos depois, 
tive o privilégio de colaborar com o Grupo de Estudos Espino-
sanos, da Associação de Estudos Filosóficos do Século XVII, di -
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rigid o por Marilena de Souza Ch aui, na Un iversidade de São 
Paulo , onde veio a surgir a iniciativa de propor à Editora Mar -
tins Fonte s a sua reimpressão, inclu sive porqu e a obra se encon-
trava já esgotada no mercado. No momento da sua publicação 
no Brasil, é-me grato recordar quão estimulante foi essa expe-
riência de leccionar para estudiosos de Espinosa em quem a li-
berdade de pensar e a naturalidade da crítica se sentiam, espi-
nosanamente, como «ideia » do grupo . Devo, porém, uma palavra 
especial de agradecimento a Homero Santiago, que colocou todo 
o seu interesse e saber r:testa reimpressão da tradução portu -
guesa do Tratado Teológico-Político. Quanto às insuficiências que 
o leitor, com certeza, aqui vai encontrar, essas, são todas da 
minha responsabilidade. 
Lisboa, 31 de Agosto de 2002 
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ABREVIATURAS 
UTILIZADAS NA INTRODUÇÃO E NAS NOTAS 
TRE - Tratado da Reforma do Entendimento, Opera, vol. n 
PM - Pensamentos Metafísicas 
E - Ética, Opera, vol. 11 
TTP - Tratado Teológico-Político, Opera, vol. m 
TP - Tratado Político, Opera, vol. Ili 
CG - Compêndio de Gramática da Língua Hebraica, Opera, vol. r 
A tradução dos trechos de qualquer destas obras, bem como a da Cor-
respondência (Opera, vol. rv), a seguir citados, são da nossa responsabilidade. 
A edição utilizada foi a das Opera, lm Auftrag der Heidelberg Akademie der 
Wissenschaften, herausgegeben von Carl Gebhardt, Carl Winters Universitaets-
buchhandlung, Heidelberg , 1925, 4 vols . 
As obras de Descartes, também referidas com frequência, são citadas a 
partir da edição de Charles Adam e Paul Tannery, Paris, 1897-1909, 12 vols. 
(abreviatura AT). 
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ABERTURA 
E DEUS ESTAVA NO MUNDO 
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Recapitulação da Ética 
Este livro trata de religião e política, conforme sugere o 
título, o índice das matérias e a interminável contestação de· que 
foi alvo durante séculos. Uma tal evidência não _esgota, porém, 
o seu conteúdo, nem esclarece grandemente o alcance dos seus 
enunciados. Pelo contrário, talvez não andemos longe da verda-
de se a considerarmos responsável por toda uma longa cadeia 
de interpretações do espinosismo 1 que tomam o Tratado Teoló-
gico-Político como uma espécie de parêntesis, um sobressalto mo-
mentâneo que teria levado o filósofo a descer da mansarda onde 
há anos elabora, na frieza intemporal do «more geometrico», o 
seu sistema metafísico, à realidade conflitual das seitas religio-
sas e políticas que se degladiam no tempo. Como adiante vere-
mos, e como tem sido abundantemente sublinhado no último 
meio século, a imagem não poderia ser mais equívoca e redu-
tora . Ninguém, a bem dizer, já hoje contesta que a religião e a 
1 Utilizamos aqui a grafia Espinosa e, por conseguinte, espinosano e espino-
sismo. Há, de facto, algumas razões a favor da versão Spinoza, a começar pela 
maneira como o autor assinou por diversas vezes, mas a origem castelhana 
do apelido, realçada por filólogos como Leite de Vasconcelos e C. Michaelis de 
Vasconcelos, aconselha a que se prefira a transcrição com s e com E inicial 
(cf. Carvalho, 1930, ed. 1978, pp. 367-368). Quanto ao nome Baruch, que na 
versão latina aparece como Benedictus, julgamos ser de manter a versão he-
braica, tal como faz, no artigo citado, o mesmo Joaquim de Carvalho, muito 
embora , anos mais tarde, na sua tradução da I parte da Ética, tenha cedido à 
tentação de o aportuguesar, escrevendo Bento de Espinosa . 
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política de que se fala aqui estão intimam ente conectada s com a 
filo sofia demon strada na Ética. E, no entanto, dizer isto ainda 
não é tudo. Porque o Tratado Teológico-Político não é apenas uma 
obra que tenha subjacente a concepção da realidade reivindica-
da pelo autor ou que para ela remeta, como teria irremediavel -
mente de acontecer: é, sim, a primeira e, em muitos aspectos, 
definitiva explanação do sistema espinosano, a tentativa progra-
mada de recuperar o que a racionalidade em moldes «georrtétri- · 
cos » insinuava como desordem _ ou seryidão a. Iesgatar pela li-
berdade intelectual, sem suspeitar .que .. é precisamente aí que se-
decide toda a gama de possibilidades de interacção dessa~ par-
tículas do todo que são os homens. · 
Como se justifica que um livro assim tenha estado tanto tem-
po condenado ao estatuto de simples manifesto, erudito embo-
ra e de efeitos reconhecidamente demolidores, mas de qualquer 
modo fora da problemática filosófica? A explicação só pode ser 
uma: é que o Tratado comete a ousadia inédita de chamar a si o 
privilégio de julgar na sua globalidade o mundo constituído e o 
mundo a constituir, sem se deter face à região habitualmente 
considerada inacessível e que ele detecta como o fulcro em tomo 
do qual gira toda a questão da ordem prática, a região do sa-
grado. Projecto de uma filosofia sem resíduos, este livro teria 
também de ser um livro sobre o Livro, um «tratado sobre a 
Escritura», como lhe chamam os contemporâneos, uma escalpeli-
zação literal daquilo que todos consideram o Verbo feito carne . 
Carne dilacerada, acrescente-se, pela infinda guerra que se trava 
entre os seus intérpretes. E acaso poderia ser de outro modo? 
Encarnar é sair da intemporalidade em que se pressupõe o Verbo 
divino e manifestar-se no plano da extensão, das partes extra par-
tes. Dizer o Verbo feito carne é dizer o verbo divino, o corpo 
múltiplo da palavra transfigurado em corpos de leis que por 
natureza se ajustam às circunstâncias de espaço e tempo sem 
deixar cada um deles de reivindicar o estatuto de universali-
dade e intemporalidade que assiste apenas ao Verbo primitivo. 
Esse o equívoco das interpretações, dos comentários pretensa-
mente destinados a reconstituir a verdade de uma palavra au-
sente e condenados, de facto, a reparti-la em vez de repeti-la, a 
representá -la sempre em corpos diferentes . É trágico o destino 
deste texto que as religiões - o judaísmo, o cristianismo, o isla-
mismo - invocam a título de fundamento da lei e que na reali-
dade se constitui com essa mesma lei e por isso se esgota em 
cada uma dessas invocações! Trágico porque se desenha por 
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sobr e a eterna impo ssibilidade d e pensar a assimetria entr e a 
lei dos deuses e a lei dos homens, na medida em que isso equi -
valeria à aniquilação da própr ia lei como ordem absoluta ; mas 
trágico ainda porque nele se protagoniza o paradoxo da opinião 
que se ignora como tal, tornando assim inexorável a guerra pela 
verdade, que o mesmo é dizer, as cruzadas pela fé. 
Espinosa retoma este paradoxo em toda a amplitude das 
suas consequências teóricas e práticas. A tese fundamental é a 
de que filosofia e religião devem estar separadas, e nisto parece 
repetir o gesto de tantos dos seus contemporâneos, como Gali-
leu ou Descartes, que pagam a liberdade de especulação teórica 
ao preço de deixar intacta a ordem prática e jurar a inocência 
das suas descobertas face à Bíblia e a tudo o que sob os auspí -
cios desta se de termina socialmente. Mas a separação que o Tra-
tado defende não é de natureza estratégica, é de natureza polí-
tica. Como tal, a análise de Espinosa não pode passar à margem 
do Livro em que se fundamentam as leis. Pelo contrário, se a 
Bíblia é a principal fonte de legitimação do poder, e se o poder 
se destina a garantir a segurança e a paz entre os indivíduos, · 
há que explicar por que razão estes se combatem em nome da 
mesma Bíblia, tornando assi_m ineficaz a suposta legitimação . Só 
depois disto é que se podem sugerir outros fundamentos do 
poder, os quais implicam, já o veremos, a separação dos domí-
nios do saber e da fé como condição para a paz e a unidade 
dos Estados. · 
Mas vejamos, antes de mais, as primeiras notícias que nos 
falam desta obra. Nos princípios do Verão de 1665, Espinosa 
tem praticamente pronta a m parte da Ética. Acaba de se curar 
de mais um ataque de hemoptise crónica, o livro vai adiantado, 
mas revela-se mais difícil do que o autor contava. É por esta 
altura que as cartas amiúde trocadas com os amigos indiciam 
uma inflexão no seu trabalho. De Londres, H . Oldenburg e 
R. Boyle dão-lhe conta da perseverança com que os membros 
da Royal Society, de que o primeiro é secretário, prosseguem a 
título individual experiências científicas - «uns sobre a mecânica, 
a hidrostática, outros sobre a anatomia, a mecânica ou outras 
matérias» -, apesar de a situação política impedir que mante-
nham reuniões públicas. Depois de anunciar para muito breve o 
pequeno tratado que Boyle compôs para criticar «a origem das 
formas e das qualidades, tal como ela é apresentada pela Escola 
e seus professores », Oldenburg lança, ainda na mesma carta, 
esta invectiva a Espinosa : «Quanto a vós, vejo que filosofais 
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menos do que teologizais (se assim me posso exprimir), visto 
que ocupais os vossos pensamentos com os anjos, a profecia e 
os milagres; mas com certeza que o fazeis filosoficamente e, seja 
como for, estou seguro de que a obra será digna de vós e dese-
jo vivamente conhecê-la.» Segue-se um parágrafo com algumas 
reflexões a propósito da guerra entre a Inglaterra e a Holanda 
(«mas porquê a gente queixar-se? Enquanto houver homens _ha-
verá vícios; todavia, o rnál não é eterno ·e ôs ·melhores podem 
combatê-lo») e Oldenburg toma: às -novíq.ades científicas que dia 
a dia ocorrem no seu meio (Corrrspondêncía, carta XXIX). 
A esta carta Espinosa responde ·num estado de · espírjtà . que . 
manifestamente não sintoniza com o do seu · interlocutor, pois o -
que neste é preocupação transitória representa para aquele exac-
tamente o núcleo da sua reflexão . É o célebre texto em que o 
autor refere as razões que o levaram a compor um «tratado 
sobre a Escritura». De tão minuciosamente explicitadas, essas 
razões ofuscaram boa parte dos intérpretes, que não só as des-
ligam do contexto em que vêm como, inclusivamente, as tomam 
por um enunciado das demonstrações a fazer no livro, quando, 
afinal, elas referem apenas o seu pretexto e os objectivos pre-
tendidos. Convirá, por isso, que nos detenhamos, ainda uma 
vez, sobre a carta na sua globalidade. A forma como começa é, 
desde logo, um desvio algo forçado no diálogo com Oldenburg: 
«fico feliz por saber que, na vossa Sociedade, os filósofos se 
preocupam, não só com eles próprios, mas também com o seu 
país. Vou esperar, para conhecer os seus trabalhos mais recen-
tes, que os beligerantes fiquem saciados de sangue e façam uma 
trégua para recobrar forças» (idem, carta xxx). Aparentemente, a 
frase confirmaria a observação algo irónica de Oldenburg a pro-
pósito do alegado «desvio teológico» de Espinosa. O que se passa 
é, na realidade, o contrário. Se os seus correspondentes se 
alheiam da guerra para filosofar, Espinosa não se alheia da filo-
sofia para «teologizar» nem para pensar a guerra: «Estas per-
turbações não me provocam o riso, nem tão-pouco as lágrimas; 
levam-me é a filosofar e a conhecer melhor a natureza humana. 
Porque eu julgo não ter o direito de me divertir à custa da 
natureza, e muito menos de me queixar, quando penso que os 
homens, como os outros seres, não são senão uma parte da 
natureza e eu ignoro como cada uma destas partes convém com 
o todo e lhe está conforme, e como, por outro lado, cada parte 
se liga com as outras.» Só depois disto e na sua sequência di-
recta é que surgem os motivos que justificam a feitura do Tra-
24 
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tado: «l. º - os preconceitos dos teólogos; sei, com efeito, que 
são sobretudo eles que impedem os homens de se consagrarem 
com todo o ânimo à filosofia e esforço-me, portanto, por de-
nunciar esses preconceitos e desembaraçar deles os espíritos mais 
esclarecidos; 2.0 - a opinião que tem de mim o vulgo, que não 
pára de me acusar de ateísmo, colocando-me na obrigação de 
combater o mais possível essa opinião; 3.0 - a liberdade de fi-
losofar e de dizer o que sentimos , que eu quero defender por 
.todos os meios, pois ela é suprimida pela excessiva autoridade 
e petulância dos demagogos» (idem, ibidem). 
A conexão entre as duas partes deste texto escapará em de-
finitivo a Oldenburg, corno, até há muito pouco tempo, à gene-
ralidade dos leitores do TTP. Por isso, na carta seguinte, o seu 
interesse vai direito ao problema da conformidade das partes 
com o todo a que Espinosa aludira, pedindo-lhe instantemente 
que lhe transmita a sua ideia sobre o assun to. Quanto a um 
«Tratado de Escritura», o sábio inglês confessa, muito cortes-
mente, compreender as razões que levam o seu correspondente 
a ter de se explicar sobre tal assunto, mas não lhe atribui grande . 
importância e muito menos suspeita que ele venha a ser o lugar 
privilegiado de explicitação e solução original do problema do 
acordo entre as partes e o todo. O que, de resto, se compreen-
de. Em boa verdade, o tema explicitamente anunciado por Espi-
nosa deveria constituir, já em 1665, aos olhos do mundo culto 
um problema ultrapassado. Sem querer antecipar o que sobre o 
assunto se dirá mais adiante, lembrarei apenas que a doutrina 
da reivindicação do poder temporal face ao Papado, desenvol-
vida a partir dos inícios do século XIV, tinha minado os alicerces 
da representação medieval do «império» cristão, abrindo, sob a 
inspiração do averroísmo, o caminho à autonomia do político, 
como se pode ver pelas obras de Marsílio de Pádua e Guilher-
me Occam. Mais tarde, na própria Inglaterra de onde Olden-
burg escreve, Giordano Bruno publicara, em 1584, esse diálogo 
. demolidor contra os aristotélicos de Oxford que tem por título 
La cena de le ceneri e Ónde-se pode ler: «se os deuses se tivessem 
dignado ensinar-nos a teoria das coisas da natureza corno nos 
ensinaram a prática das coisas morais, vergar-me-ia antes de 
mais perante a fé nas suas revelações, em vez de me guiar pela 
certeza das minhas próprias razões e sentimentos. Porém, como 
qualquer um podé ver com toda a clareza, nos livros divinos 
postos ao serviço do nosso intelecto não são tratadas demons-
trações e especulações relacionadas com as coisas naturais, como 
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se fossem livros de filosofia; o que aí se ordena, através de leis 
e para ajudar o nosso entendimento e os nossos sentimentos, é 
a prática das acções morais» (Bruno, ed. 1984, p. 103). Galileu, 
por seu turno, não diz outra coisa : «Se em todos os casos em 
que as obras não concordam com o verbo considerarmos a Sa-
grada Escritura como secundária, isto em nada a prejudicará, 
pois ela está muitas vezes adaptada à opinião do vulgo e atri-
bui frequentemente a Deus qualidades que são de todo em todo . 
erróneas» (cit. irt Préposiét, 1967, p. 157f E ·güem poderia então 
ignorar o Leviathan, que fora publicado ~m 1650.-e ·que dedicava 
metade das suas páginas, mais precisamente, as terceira e qqá!'{a · 
partes, à discussão do tema bíblico ri.a perspectiva de _ urhá _ r_econ-_ 
sideração do poder em termos adequados ao avanço . dasciên-
cias? A curiosidade que a obra anunciada por Espinosa pudesse, 
ainda assim, despertar, não vinha, por conseguinte, da matéria, 
mas quando muito do tratamento que o autor lhe iria imprimir. 
Quanto à compreensão que Oldenburg manifestava pelo projecto, 
essa partia da convicção igualmente fundada de que, se em ter-
mos teóricos o problema parecia solucionado, em termos prá-
ticos a realidade era bem diferente e legitimava, a título de de-
fesa circunstancial, qualquer escrito a reivindicar o separar de 
águas entre teologia e ciência, já enunciado mas evidentemente 
longe de ser aceite. Aquilo que Oldenburg fica a aguardar é, 
pois, um texto de natureza táctica, original embora, um texto a 
remeter para os domínios da retórica e nunca para os da heu-
rística. É aqui que surge o primeiro equívoco, aquele que ditará 
os destinos da interpretação. O livro vem a público em 1670, 
com as precauções que as circunstâncias exigiam, isto é, anóni-
mo e com falsas indicações sobre o impressor e a respectiva 
cidade. É um cuidado inútil, como o próprio Espinosa rapida-
mente terá percebido, uma vez que, em Novembro do ano se-
guinte, já revela a Leibniz a intenção de lhe enviar um exemplar 
no caso de ainda o não conhecer (carta XLVI). Tinham, entretan-
to, começado a surgir as primeiras críticas, vindas algumas de 
sectores os mais liberais que nem por isso poupavam o autor. 
«Não me lembro de alguma vez ter lido um livro mais pestilen-
cial» (cit. in Moreau, 1982, p. 9), comenta Philip van Limborch, 
o pastor que, não obstante a severidade aqui demonstrada, ·virá 
a divulgar, em 1687, o Exemplar Vitae Humanae, de Uriel da Costa, 
e se indignara, já em 1662, pelo excessivo poder de que gozam 
na Holanda as sinagogas sobre os seus fiéis, acusando-as de 
constituírem verdadeiros Estados dentro do Estado (v. Aurélio, 
26 
1985, pp. 23-31). «Esforçou-se mais do que seria necessário para 
se libertar de toda a superstição - comenta, por sua vez, Lam-
bert van Velthuisen -; querendo prevenir-se contra ela, precipi-
tou-se no pólo oposto; querendo evitar o pecado da superstição, 
acabou por rejeitar toda a religião » (carta incluída na Correspon-
dência de B. Espinosa , com o n.0 XLII). E, em 1674, na livre e 
florescente república por mais de uma vez invocada no livro, 
um decreto promulgado pelas Cortes da Holanda proibia a cir-
culação do ITP, juntamente com outras obras , entre elas as duas 
traduções, em holandês e em latim, do Leviathan. 
Tal proibição não impedirá que algumas edições continuem 
a surgir, sob os títulos mais diversos. Chegar á, no entanto, para 
ir rarefazendo o contacto, quer com esta, quer com as restantes 
obras do autor, que vão sair a público logo após a sua morte. 
Boa parte do que a seguir se foi dizendo e, durante séculos, 
julgando sobre ele tem como fonte quase exclusiva o Diction-
naire historique e critique de Pierre Bayle, publicado em 1696, que 
lhe dedica um longo artigo e o classifica com uma fórmula que 
fará fortuna: «ele foi um ateu de sistema» (Bayle, ed. 1983, p. 21) .. 
A própria Enciclopédie, no texto dedicado a Espinosa, limitar-se-á 
a transcrever o início do artigo de Bayle e a remeter para a pa-
lavra «ateísmo» (cf. Préposiet, pp. 128-129, nota). E quando não 
é o ateu que se reverbera, surge em seu lugar uma persona-
gem ainda mais distante, admirada embora, qual seja o Espi-
nosa invocado na Alemanha por Jacobi e outros «filósofos da 
religião» que procuram no autor da Ética «novos meios para 
conciliar a discursividade da linguagem com o conhecimento 
intuitivo do ser, a liberdade do indivíduo com a totalidade do 
absoluto» (Zac, 1980, p . 239). É o mito do orientalismo de Espi-
nosa, de que o próprio Hegel se faz eco (ed. 1954, pp. 254, 276 
e 293) e que transparece na expressão entusiástica com que Scho-
penhauer se refere a ele e a Giordano Bruno: «para génios deste 
tipo, a verdadeira pátria eram as margens do Ganges!» (cit. in 
Hulin, p. 139). 
Tudo isto, por ass im dizer, já pertence hoje à pré-história 
do espinosismo, se por espinosismo entendermos o movimento 
de reposição do sentido dos textos em parâmetros aceitáveis à 
luz, quer da sua leitura e do respectivo confronto, quer do con-
texto intelectual em que eles circularam ainda em vida do autor 
e que permite determinar, com relativa certeza , o significado 
dos conceitos a que recorrem. Se compulsarmos a imensa biblio-
grafia sobre o assunto, veremos que ela esteve, as mais das 
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vezes, prejudicada pela opção que julgou ter de fazer entre o 
autor da Ética e o autor dos tratados que versam sobre matéria 
política . Só muito recentemente, no prosseguimento aliás de al-
guns estudos pioneiros como os de Gioele Solari (1927, ed . 1974, 
pp. 195-294) e os de Leo Strauss (1930, ed. 1965), se removeram 
os preconceitos antimetafísica na interpretação da doutrina polí-
tica e a investigação inflectiu num sentido em que já não é pos- _ 
sível continuar a· ver ·em Espinosa apenas · o anti-hobbesiano pre -
cursor dos Estados democráticos. A _pouco .é pouco, foi-se 
tornando evidente a estreita inter .dependência entre os vá:r_ios. 
livros e tanto o Tratado Teológico-Político como o Tratado_ Polftlco _ 
assumiram o verdadeiro papel de elementos irripreséindívels no -
sistema. Todavia, se esta mudança revolucionou, de facto, o en-
tendimento do espinosismo, já o mesmo se não poderá dizer, 
pelo menos com a mesma certeza e alcance, em relação à leitura 
propriamente dita dos tratados políticos, em particular do TTP. 
Repen sou-se, é verdade, a doutrina nele compendiada. Mas foi 
um pouco como se, em reconhecimento dá coerência do autor, 
se presumisse que os seus conceitos filosóficos já então elabora-
dos constituíam necessariamente a retaguarda e preenchiam as 
entrelinhas dos estudos sobre a Bíblia e a política. Ora, o que 
se aqui pretende, ainda que inscrito na mesma perspectiva, é 
um pouco diferente. Resumindo em duas palavras, o que se pro-
cura evidenciar é que o TTP não é um anexo, coerente embora, 
mas sim uma formulação do sistema, formulação esta onde os 
conceitos vão subsumir, em simultâneo, a realidade e as suas 
versões anteriores, o mundo e a Escritura, os seres e os sabe-
res, refundindo-os numa totalidade que não aparece em mais 
nenhuma das obras de Espinosa. 
Posta a questão nestes termos, poderia pensar-se que estamos 
a sugerir uma reavaliação de toda a obra de Espinosa . O que 
de facto se passa é bastante mais simples e vem , aliás, ao en-
contro de alguns problemas decisivos que se levantam face à 
mencionada interrupção na feitura da Ética. Se não, vejamos. 
Em 1665, na carta já citada, o filósofo dá praticamente por ter-
minada a m parte da obra. No essencial, poderíamos dizer que 
estava concluída a ontologia espinosana. Deus ou a natureza, a 
alma ou a ideia do corpo, as afecções ou as relações de mera 
concomitância entre o pensamento e a extensão tinham sido de-
duzidas e concatenadas segundo o método dos geómetras, num 
conjunto a que, aparentemente, nada mais havia a acrescentar. 
No entanto, só dez anos depois Espinosa faz menção de a pu-
28 
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blicar - o que não chegar á a fazer pelas circunstância s adv ersas 
qu e lh e surgiram . Tudo quanto lhe acrescentou entretanto, se 
virmos bem, não é muito do ponto de vista inicialmente reivin -
dicad o pelo autor, nem sequer respeita já esse mesmo ponto de 
vista, posto que nas duas últimas partes se trata da servidão e 
da liberdade humanas, ou seja, se consideram as afecções ou 
paixões passivas e activas, não como linhas e superfícies, à se-
melhança do que acontecera na rn parte , mas como coisas boas 
ou más, que salvam ou deitam a perder os homens, que se to-
mam, em suma, no plano da exfstência quando antes tinham 
sido tomadas como puras essências . Isto mesmo ressalta Vítor 
Goldschmidt, para daí retirar a conclusão de que, a partir do 
meio da Ética, se dá uma ruptura que é caracterizada pela emer-
gência do «eu empírico » e que se bifurca em dois sentidos : o da 
'moral , desenvolvido nas duas últimas partes do livro, e o da 
política, que surgirá só depois no Tratado Político (Goldschmidt, 
1978, pp. 105-122). 
Esta hipótese contém um elemento importante para aquilo 
que estamos a dizer, qual seja o de que, na altura de passar à' 
moralidade e à política, Espinosa muda de «ponto de vista », 
substituindo a dedução sub specie aeternitatis pela historicidade 
do eu empírico. Porém , a complementaridade que ela parece 
sugerir entre os dois grandes blocos da obra assim delineados 
levar -nos-ia a paradoxos insolúveis. Na verdade, ao presumirem -
-se, e com razão, as três primeiras partes da Ética como um 
todo, somos obrigados a assumi-las como uma ontologia sem 
resíduos problemáticos, o que significa que a substância, os atri -
butos e os modos aí se conjugam teoricamente, esgotando todo 
o discurso filosófico sobre o ser e os seres . Nem outra coisa se 
poderia, aliás, deduzir do necessitarismo aí consignado, que de-
fine a substância como produção (actuosa), mas inscreve a genea-
logia das suas produções (os modos) na moldura de uma razão 
que no limite ignora o acidente. Como teorizar, então, no inte-
rior desse quadro, a existência concreta dos modos finitos, que 
por essência estão também in fieri mas não podem conhecer a 
globalidade das suas conexões com o todo, que o mesmo é di-
zer, a globalidade de sentido da sua acção? Eis o que nos leva 
a duv idar da referida complementaridade, por muito que o pró-
prio autor a pudesse presumir no momento em que tenta publi -
car os cinco livros da Ética. 
Há, com certeza , uma ruptura e não apenas uma interrup -
ção nesse momento da obra . Mas é uma ruptura cujo alcance se 
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tem de considerar como reinvestindo a metafísica de Espinosa 
de uma nova problemática e, só nessa medida, de um novo 
«ponto de vista». É precisamente esta a operação que tem lugar 
no Tratado Teológico-Político, obra que está omissa na hipótese 
aventada por Goldschmidt e que, a ser tida em conta, a poderia 
aprofundar e responder até a algumas interrogações por ela dei-
xadas. Talvez só Antonio Negri (1982, pp. 155-185), e com pressu-
postos diferent!;!s, tenha, até hoje, sublinhado a verdadeira di-· 
mensão metafísica de uma ol?ra que, não _obstaI}t~, quase toda a 
gente reconhece como ocasião ~e viragem no espinosismo. A seµ. 
tempo se discutirá esta questão. Para -já, e· ainda a propós~to · do 
verdadeiro lugar do Tratado Teológico7Político no conjunto- do sis~ 
tema, mencionarei apenas uma divergência: Negri, com efeito, 
toma este livro como um local de passagem, um salto obriga-
tório em direcção ao que chama «segunda fundação» da filoso-
fia de Espinosa, onde a política se tomaria «a alma da metafí-
,sica» e a imaginação conquistaria um estatuto ontológico através 
··.da «constituição do real pelo homem»; aqui, pelo contrário, dá-
-se por adquirido que a substituição de alguns conceitos verifi-
cada em obras subsequentes e contemporânea, aliás, das anota-
ções acrescentadas pelo autor ao Tratado Teológico-Político não 
invalida o que já estava dito nem o altera no fundamental. 
2 
A estrutura do TrP 
Resumindo, os dados são estes: no momento em que a filo-
sofia de Espinosa passa da metafísica e da física para o que hoje 
designaríamos por antropologia, o sistema oscila nos seus fun-
damentos, confrontado que fica com a questão, por ele próprio 
equacionada na carta a Oldenburg, de saber como as partes se 
conjugam (conveniant) entre si e com o todo. Da necessidade 
com que o todo (a substância) actua e se autoproduz à contin-
gência com que as suas manifestações modais, os diversos se-
res, se fazem ou desfazem no jogo que opõe as diferentes capa-
cidades de preservação (conatus), o mundo não se esgota, pois 
há ainda a realidade dos homens, os quais, sem deixarem de 
ser igualmente modos finitos, se autopropõem no entanto fins, 
isto é, têm a possibilidade de suspender, ainda que precaria-
mente, o que a lei de constituição dos modos lhes dita. Esta 
30 
'-
suspensão, pela qual se pode definir a política, emerge como 
algo de incompaginável na produção genético-dedutiva dos se-
res, tal como ela ficara assente desde as primeiras páginas da 
Ética, obrigando a um recomeço. Hobbes apercebera-se deste 
mesmo problema e concluíra pela impossibilidade de um dis-
curso exacto e fundado sobre a natureza, isto é, de uma ciência 
física, contrariamente à política, que por originar-se em princí-
pios determinados pelo homem - as leis resultantes do con-
trato - se poderia deduzir racionalmente 2. Mas a Espinosa uma 
tal compartimentação pareceria sempre suspeita ou insuficiente, 
na medida em que implicava abdicar do postulado da raciona-
lidade do real. Daí que, ao passar à abordagem do político, 
tenha de repensar a metafísica e a física de modo a que elas 
abarquem o ser na sua plenitude e os seres na plenitude das 
suas inter-relações . Para tanto, é necessário confrontar-se com a 
matriz para a qual remete toda a política, se mais não for a 
título de exemplaridade, confrontar-se, em suma, com o discurso 
por excelência que é o discurso da lei: a Sagrada Escritura. Será 
este o objecto explícito do ITP. 
A partir daqui, o binómio servidão-liberdade tomar-se-á o 
problema de Espinosa: servidão encarada como impotência face 
à natureza e face aos outros para reger a própria vida, como se 
pode ver pela singular coincidência entre as primeiras linhas dos 
prefácios do Tratado Teológico-Político e da IV parte da Ética; li-
berdade que é autonomia, independência perante a fortuna, e 
que se aponta como ideal ditado pela razão. O ideal, repare-se, 
não é aqui uma ideia de que se possa fazer decorrer a realida-
de política. Se assim fosse, esta deveria surgir na continuação 
directa das primeiras partes da Ética e apareceria apenas como 
um hobbismo metafísicamente legitimado. Em vez disso, o que 
há de mais original no projecto espinosano é precisamente o 
considerar a política como uma instância que pode garantir as 
condições para o homem se libertar, para a razão se exprimir, e 
não como uma instância produtora da liberdade e tradutora da 
razão. Vê-lo-emos mais adiante. Por ora, interessa apenas pôr 
em evidência o programa que, mais do que estar subjacente, é 
2 Em boa verdade, e se bem que esta conclusão prevaleça, a natureza e a 
classificação das ciências será objecto de oscilações de obra para obra, ao longo 
de quase toda a vida do autor do Leviathan (cf. Aurélio, 1985, b, pp . 481-482). 
31 
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de senvolvido de uma forma explícita ao longo do Tratado Teoló-
gico-Político. 
À primeira vista, nada disto transparece na obra . Percor -
rendo as suas páginas segundo a leitura tradicional, deparamos 
unicamente com treze capítulos sobre problemas teológicos e es-
criturais, dois a reivindicar a separação entre a fé e a razão e 
cinco, finalmente, sobre política, onde se faz ~. 9-efesa da liber-
dade de pensamento e de expressão e se assegura que ela em 
nada prejudica o Estado. É necessário,. pç,rtànto, · procurar uma 
nova distribuição dos temas que vá -~lém do. _seu enunciado no_ · 
índice e contemple o verdadeiro conteúdo dqs célpítulos." . _ ~ 
Assim, nos três primeiros, poderemos ler, através da análi-
se do conceito de profecia e da função profética, uma reformu-
lação do problema do conhecimento. Nos três seguintes, em que 
se fala da lei divina, das cerimónias e dos milagres, é toda a 
ontologia espinosana que apjirece refeita, mediante o reconheci-
mento de uma fractura irremediável entre o natural e o artifi-
cial e a tentativa de os conjugar no sistema. Entra-se então na 
questão da Bíblia: primeiro, o método de interpretação (cap. vu); 
em seguida, a análise do Antigo (caps. vm-x) e do Novo Tes-
tamento (cap. x1); depois, o conteúdo global de todo o Livro 
(caps. XII-XIII); e, finalmente, os limites do saber aí apurado e a 
necessidade de o não tomar por filosofia(caps. XIV-XV). A termi-
nar, vêm os capítulos expressamente dedicados à política . Esque-
matizando, a distribuição seria a seguinte: 
Caps. 1-m: o conhecimento. 
Caps. IV-vi: o ser e os seres. 
Caps. vu-xv: o saber, ou o Livro. 
Caps. xv1-xx: o poder. 
É esta a leitura que a seguir se propõe. Estranhar-se-á, tal-
vez, que o Livro ocupe, ainda assim, boa parte da obra . Assim 
acontece, de facto . E porquê? Urna explicação fácil, tentadora 
mesmo, consistiria em ver aí o tributo pago por Espinosa às 
suas origens judaicas, de sangue e formação, uma espécie de 
tardio ajuste de contas com a Sinagoga ou, o que seria mais 
exacto, uma irrupção torrencial do saber bíblico durante anos 
recalcado sob o jogo dos axiomas e deduções. Não falta quem 
leve a interpretação por esse caminho . De uma forma ou de 
outra, é mesmo essa a imagem consagrada do Tratado Teológico-
-Político, ainda quando ele é tomado, e justificadamente, como o 
32 
'O,'. 
precur sor da mod erna exege se bíblica, tal como esta viria, doi s 
séculos mai s tarde, a ser feita, inclusivamente por ortodoxia s 
religiosas das mais intransigentes . Mas o que está em causa no 
Tratado não é propriamente a verdade ou falsidade deste ou 
daquele aspecto da Escritura. Isso fora a discussão em que se 
enredara o Renascimento e que Galileu repetirá tragicamente. 
Se Espinosa convoca a Bíblia, não é tanto a título de saber como 
a título de poder, não é como tutela da ciência mas sim como 
tutela da obediência. Porque se o objectivo é situar a realidade 
dos homens no âmbito da realidade total, há que remover os 
alicerces em que está fundada a lei, integrar as narrativas bíbli-
cas no quadro mais amplo do discurso pelo qual se constituem 
as sociedades e ver até que ponto essas narrativas são intrinse-
camente extraordinárias, na medida em que, para instaurar a 
ordem moral e a ordem civil, têm de corrigir a ordem natural 
dos humanos que é o conflito. Passar ao lado desta questão é 
limitar-se a questionar a autenticidade deste ou daquele legisla-
dor, exercício que é comum a todos quantos tentam apenas res-
guardar a possibilidade da livre investigação científica, como 
Galileu, ou reservar para o Príncipe o que a tradição confere ao 
Papa, como Thomas Hobbes . O problema de Espinosa não é 
saber quem tem o direito de legislar, é saber o que é o direito 
e o que é a lei. E a lei é palavra, como a língua hebraica deixa 
transparecer ao tomá-las por sinónimos. A Bíblia, palavra de 
Deus, é Deus feito lei. A questão, portanto, é compreender como 
o Deus sive natura, este Deus que é a natureza exprimindo-se na 
infinidade dos seus atributos e modos, se desdobra em palavra-
-lei humana. 
Na Ética, consumando-se embora a recusa da transcendên-
cia através da afirmação da unicidade da substância absoluta-
mente infinita e da constituição dos modos como expressões da 
infinidade dos seus atributos, o sistema compreendia a reali-
dade dos seres e do pensamento mas deixava por determinar a 
constituição específica dos agrupamentos humanos . Mesmo as 
duas partes que o autor lhe acrescentará, muito depois, contem-
plam apenas a possibilidade de libertação individual pela razão, 
ou seja, pelo conhecimento do verdadeiro lugar de cada um no 
concerto da totalidade. A política era apenas indirectamente aflo-
rada, parecendo não se atribuir qualquer estatuto especial à rea-
lidade constituída mediante a imaginação humana ou remeten-
do-a para a lei da formação de todos os outros modos. Ora, a 
política, sem ser propriamente uma ruptura na ordem da totali-
33 
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dade, pelo menos como a entende Espinosa, que nesse aspecto 
reivindica absoluta divergência com Hobbes, define-se no en-
tanto como tentativa de limitar e orientar a produção e consti-
tuição da natureza, afirmando-se como uma modalidade dife-
rente na ordem dos seres. Não basta, por isso, uma simples 
delimitação dos campos, uma partilha da autoridade entre fé e 
razão, teologia e política, consubstanciada no pacto de não-
-agressão até aí reiv-indicado pelo-saber e pelo -poder face à igrejà. 
É preciso rever a autoridade, . reler a :Bíblia, reins.crevê-la no cir-
cuito de produção da substânçi"a e dos modos ·e rescrever :assim 
a ontologia de maneira a entender como : ~<convêm entre _si~>- es-
sas partes do todo que são os homens. É esse o projecto do 
Tratado Teológico-Político. 
34 
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1 
Conhecer 
.. ;,• 
I . 
A VERDADE E AS OPINIÕES 
Ler a Bíblia significa, antes de mais, identificar os conheci-
mentos que aí se nos oferecem. Trata-se de profecias ou revela-
ções, como diz a tradição e Espinosa não vai contra. O proble- · 
ma está em saber o que é a profecia e se a sua definição legitima 
o posicionamento que habitualmente se lhe atribui na esfera dos 
saberes. É daqui que parte o Tratado Teológico-Político. 
Este começo, repare-se, não difere grandemente daquele que 
tantas vezes os comentadores sublinharam na Ética, e só na apa-
rência ele remete para o cogito cartesiano. No princípio, o que 
há, uma vez mais, não é o cogito, é Deus: «Profecia ou Revela-
ção é o conhecimento certo de alguma coisa revelada por Deus 
aos homens» (infra, p. 133). A divergência com Descartes a tal 
respeito é uma constante de toda a obra de Espinosa. E por 
razões que M. Guéroult (1968, p. 34) enuncia assim: «o cogito 
não pode ser o ponto de partida da ciência. Longe de pôr termo 
à dúvida, ele torna-a inelutável. Separando Deus e o nosso enten-
dimento, torna as nossas ideias inadequadas, sendo a própria 
ideia de um tal entendimento separado inadequada e ligada a 
todos os fantasmas da imaginação: criação, livre arbítrio divino 
e humano, etc. O processo da sua instituição, identificando o eu 
sou com a inteligência que se descobre como essência do eu, 
liga de facto o ser pensante à forma do pensar, o que equivale, 
quer se queira quer não, a constituir a coisa pela reflexão sobre 
a coisa, quando, na realidade, é a coisa, o eu sou, que, pelo seu 
ser determinado, envolve e toma possível o conhecimento refle-
xivo do que ela é, quer dizer, do eu sou pensante». Espinosa parte 
35 
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de Deus. Mas este partir e este Deus não têm nada de uma 
autobiografia que passasse a escrito e à teoria o abandono da 
Sinagoga pelo judeu excomungado . Deus é a substância única e 
absolutamente infinita, o horizonte de ser onde os seres estão 
irremediavelmente instalados e de onde se não sai por qualquer 
via, criacionista ou emanatista . Por isso, o cogito, concebido na 
sua solidão supostamente . fundadora da ciência, jamais poderá 
ser urna ideia clara e distinta . Recortá-,lo na · p·aisagem substan-
cial através de urna distinção tllllÍlériça ·~làtivarnente aos outros 
seres é ainda trabalhar com noções · gerais, fruto da irnaginaçã_o.: 
Uma ideia verdadeira deverá ser, não apena~ a: designação ·_e~acta 
de urna coisa, a sua definição nominal, ainda que esta seja im-
portante para não nos perdermos no labirinto das palavras, mas 
também a tradução da sua essência, ou seja, a sua definição real. 
Definir urna coisa é indicar a sua possibilidade intrínseca, a es-
trutura essencial que permite pensá-la corno verdadeira. «Para 
que urna definição se possa considerar corno perfeita deverá ex-
plicar a essência íntima da coisa» (TRE, § 95). O entendimento 
não é, de resto, outra coisa senão esta potência do verdadeiro 
que produz essências objectivas segundo leis que regulam a sua 
actividade espontânea . Nisto reside a sua diferença relativamente 
à imaginação, que é associação passiva e fortuita de percepções, 
reflexo do encontro casual dos corpos. Se urna ideia contém, 
portanto, uma essência objectiva, isto é, se não envolve contra-
dição, se ela é pensável, então ela é um produto do entendi-
mento e, nessa medida, é intrinsecamente verdadeira. E não há 
necessidade de se tentar depois urna sua validação extrínseca, já 
que, «se a verdade não requer nenhum sinal, bas tando possuir 
as essências objectivas das coisas ou, se se prefere, as ideias, 
para suprimir todaa dúvida, segue-se que o método que pretende 
que se procure o sinal da verdade posteriormente à aquisição 
das ideias não é o verdadeiro» (TRE, § 36). Duvidar das ma-
temáticas, corno faz Descartes, até se demonstrar a veracidade 
de Deus, será, portanto, um absurdo, visto que toda a reali-
dade dos seres matemáticos se esgota na sua possibilidade intrín-
seca concebida segW1do o entendimento, que o mesmo é dizer, 
na sua verdade. Da mesma forma, procurar a validação de urna 
ideia pela experiência também não faz sentido : «a forma do 
pensamento verdadeiro deve residir nesse mesmo pensamento, 
sem fazer apelo a outros. E não reconhece um objecto exterior 
ao pensamento corno causa; deve, sim, depender da potência e 
da própria natureza do entendimento» (TRE, § 71). 
36 
A ser as sim, todavia, corno garantir a verda de de defini-
ções que contemplam coisas existentes fora do entendimento, 
cuja verdade não se esgota, por conseguinte, no princípio da 
sua possibilidade? O processo, segundo Espinosa, é ainda e sem-
pre o mesmo que se verifica nas matemáticas e em particular na 
Geometria . Há, com efeito, certas noções (notiones communes), 
como a de causa e efeito, que se dão no entendimento da mes-
ma forma que as ideias matemáticas. Urna delas, a substância, 
definindo-se como causa de si, não pode ser pensada senão corno 
existente e como absolutamente infinita, pelo que tanto a exten-
são corno o pensamento têm nela o seu princípio e a sua razão 
de ser (cf. infra, pp. 56-61). Melhor dizendo, são seus atributos . 
Em consequência, as ideias que se deduzem adequadamente a 
partir da noção de substância, quer se refiram à ordem das es-
sências quer à ordem dos existentes, reproduzem objectivarnen-
te o seu referente, ou seja, são verdadeiros . E porque a infini-
dade da substância exige que a concebamos como única, a 
racionalidade do universo exprimir-se-á tanto através das es-
sências objectivas, as ideias adequadas, corno através das essên-
cias formais, as coisas, ambas se correspondendo na medida em 
que correspondem ambas ao processo expressivo da substância 
na diversidade dos seus atributos. As ideias adequadas estão, 
pois, ligadas entre si pelas mesmas conexões necessárias que li-
gam as coisas. É por essa razão que o entendimento «envolve a 
certeza, quer dizer, sabe que as coisas são formalmente corno 
nele estão contidas objectivamente» (TRE, § 108). A verdade é 
critério de si mesma, repete Espinosa várias vezes. 
Para o que vimos dizendo, é de somenos importância a enu-
meração dos graus de conhecimento que Espinosa enuncia de 
forma diferente de livro para livro (três no Curto Tratado: opi-
nião, crença verdadeira, conhecimento claro; quatro no Tratado 
da Reforma do Entendimento: por ouvir dizer, por experiência vaga, 
por raciocínio e por intuição; novamente três na Ética: imagina-
ção, razão e saber intuitivo). Com mais ou menos variações, a 
classificação é clássica e tradicionaimente oscilante entre a for-
mulação platónica do livro VI da República (eikasia, pistis, dianoia e 
noesis) e a aristotélica do De Anima (aistesis, doxa, episteme e naus). 
Qualquer destes esquemas, ainda que pressuponha sempre urna 
ascensão progressiva, desde a simples suposição até à intuição 
exacta, é todavia atravessado por um corte que instaura a sepa-
ração mais ou menos rígida entre, por um lado, conhecimento 
claro e, por outro, conhecimento confuso. O que é importante 
37 
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notar, no que a Espinosa se refere, é que esses dois tipos de 
conhecimento não se distinguem entre si apenas pelo diferente 
grau de verdade e de certeza subjectiva que os acompanha. Tudo 
isso são meras consequências daquilo que verdadeiramente os 
separa e que é a sua diferente origem, o seu diferente modo de 
produção, já que «as ideias claras e distintas que nós formamos 
parecem derivar unicamente da necessidade da nossa natureza 
e <?-ependem apenas . e em absolut~ da nossa potência, enq{ianto . 
as ideias confusas se formam · muitas :':lezes independentemente 
de nós» (TRE, § 108). Ou seja; aquelas formam-se pelà activi-
dade do entendimento, que por definição . se processa _segundo 
um encadeado lógico e, por isso, elas são verdadeiras; · estas·; 
pelo contrário, resultam da passividade do entendimento, da 
associação fortuita de percepções. O próprio entendimento, 
repare-se, não é mais do que esta actividade que se manifesta 
num encadeado de ideias verdadeiras, pelo que não há sequer 
nele lugar para o erro. Fora dessa actividade, desse conatus, não 
há nada que se possa identificar com uma faculdade à maneira 
escolástica ou de Descartes. A alma humana é simplesmente um 
complexo de ideias que correspondem às modificações do modo 
finito que é o corpo de um homem, melhor dizendo, toda a 
alma é a ideia de um corpo. O Tratado Teológico-Político é, a este 
propósito, de uma coerência que escapou a alguns tradutores e 
intérpretes: jamais, ao longo das suas páginas, encontramos o 
termo anima, e mesmo spiritus, quando aparece, ·é em citação. 
O que vemos é o termo mens, que tem na sua raiz indo-europeia 
o verbo men (pensar) e por isso traduz melhor, enquanto for-
ma verbal, a actividade do entendimento, ou então o termo 
animus, quando se trata de referir a acção e a força da vontade. 
Mas eis que abrimos de novo o livro no seu início e a con-
tradição, agora que esboçámos em linhas gerais a gnosiologia 
de Espinosa, aparece ainda mais flagrante. Para quem estava à 
espera de um manifesto avassalador da Bíblia e da religião, como 
pretenderia qualquer libertino da época, para quem, além disso, 
tivesse visto no prefácio a crença em coisas extraordinárias ser 
liminarmente explicada pelo medo, nada mais decepcionante do 
que este enunciado inteiramente fiel à mais estrita ortodoxia: 
«profecia ou revelação é o conhecimento certo de alguma coisa 
revelado por Deus aos homens». Não é só a emergência de um 
Deus estranho ao Deus sive natura o que nos espanta: é sobre-
tudo a classificação de «certo» que se atribui ao conhecimento 
por ele comunicado . Certo, a que título? Não virá depois Espi-
38 
nosa limitar a certeza nas profecias, tanto da parte dos crentes 
como da parte dos próprios profetas, a uma simples «certeza 
•: moral», quer dizer, a uma certeza que, em última instância, não 
,, está racionalmente fundada? Não serão os profetas homens que 
se caracterizam pela vivacidade de imaginação, e não precisará 
o seu testemunho de um sinal para que neles acreditem? A solu-
ção desta passagem é decisiva para a compreensão de todo o 
Tratado e não admira que a ela se tenham votado inúmeros co-
1,·. mentários. Tentemos, resumidamente, ver os tipos de explica-.. , r .. ção que têm sido apresentados. 
, a) Uma primeira explicação consiste em assinalar uma total 
._,,ioontradição entre a Ética e o Tratado Teológico-Político, entre o 
Deus sive natura e este Deus personalizado que deteria a ciência 
e a comunicava fragmentariamente aos homens. Ter-se-ia, afinal, 
Espinosa reconciliado com a tradição judaico-cristã, heterodoxa-
ff ·: mente embora? Impossível, já que toda a correspondência da 
i altura e mesmo posterior no-lo apresentam fiel à doutrina da 
;i, Ética. É isto que condena ao fracasso a tentativa feita por V. Bro-
. chard (1926, pp. 332-370, cit. in Préposiet, 1967, p. 57) no sen-
:, tido de encontrar a hipotética síntese que traduziria o Deus espe-
,,l cffico de Espinosa: um «Jeová melhorado» que estaria presente 
nas duas principais obras do autor. Bem vistas as coisas, não só 
não houve conversão, como inclusivamente os termos que aqui 
nos aparecem a definir a profecia são o menos espinosanos e o 
mais ortodoxos possível. 
b) Explicação bem mais subtil e fecunda é a que dá Leo 
Strauss (1952, pp. 142-201). O autor de Perseguição e Arte de Escre-
ver, detectando embora a contradição, fá-la depender de um 
propósito deliberado de Espinosa que remeteria o Tratado Teoló-
gico-Político para um género literário totalmente estranho ao que 
encontramos na produção científica e filosóficamoderna. Esta-
mos, em resumo, na opinião de Strauss, perante um texto esoté-
rico onde as contradições constituem um elemento estratégico 
com dois objectivos: dissimular aos olhos do não iniciado a rup-
tura implícita com o sistema de crenças dominante; evidenciar, 
para aquele cuja condição de iniciado não pode deixar de notar 
essas contradições, a ausência de verdade em que se estrutura 
o dito sistema. Como se justifica uma tal estratégia? 
Em primeiro lugar, por razões de circunstância, tendo em 
conta o ambiente de suspeição que subsiste, mesmo na libérri-
39 
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ma Holanda a que se acolhem os perseguidos pelas várias orto-
doxias encostadas ao poder temporal, e bem assim as limitações 
em matéria de interpretação da Bíblia, que inibem até os cír-
culos de cristãos reformadores, presumíveis destinatários da 
obra, entre os quais talvez houvesse dúvidas quanto a preten-
sas interpretações infalíveis mas não uma receptividade espon-
tânea para mensagem tão radical corno aquela que o Tratado 
veiculava. · · · · · 
Em segundo lugar, por.que a forl!lação do jovem Baruch se 
tinha processado no interior -da : comunidade judaica de -Ames-
terdão, tanto a nível familiar coino a nível de · escolé,i; Orà, no 
pensamento judaico, corno no pensamento islâmico, a- rilosofia 
quer-se inextricavelmente ligada à lei e assume-se como comen-
tário no interior de uma ordem que regula tanto os comporta-
mentos, morais e sociais, como os pensamentos. A teocracia 
molda o judaísmo e subsiste, muito para lá da destruição do 
Estado hebreu, entre as comunidades que se organizam na diás-
pora, à semelhança do que acontece com os Estados islâmicos 
referidos no TTP como paradigma do autoritarismo 3• Em tais 
condições, todo o filósofo que se quer fiel é também um teó-
logo que tem por ofício tornar racionalmente pensável o dis-
curso da lei. Porém, o discurso da lei resiste, por definição, a 
qualquer racionalidade. Se a lei se justificasse pela razão, tornar-se-
-ia transparente e, como tal, dispensável. A lei regula o mundo 
das opiniões e a opinião, como diz Strauss, «é o elemento da 
sociedade». Consequentemente, o filósofo sente-se dividido entre 
um projecto de vida segundo a lei e um projecto de vida se-
gundo a razão. Em última instância o dilema é insuperável, mas 
na prática suscitará dois tipos de solução: um, que leva o filó-
sofo a «sair da caverna» e a voltar à cidade, projectando-se no 
legislador por excelência - Moisés ou Maomé - e projectando 
neste a actividade filosófica que o tenta, como se pode ver pela 
imagem que Maimónides apresenta do fundador do Estado he-
breu, em tudo decalcada do «rei-filósofo» da República; outro, 
3 Os problemas levantados por esta situação das comunidades judaicas 
na Holanda, que chegam a lamentar o não existir inquisição em matéria de fé e 
se tornam, por isso, suspeitas de querer 11s11rpar jurisdição, como escreve Lim-
borch em 1662, foram a tal ponto sentidos pela municipalidade de Amester-
dão que esta se vê obrigada a encomendar a Hugo Grotius um projecto de 
revisão do direito de asilo (cf. Aurélio, 1985, p. 31). Todo o processo de Uriel 
da Costa é sintomático a este respeito. 
40 
que intui a superioridade da vida segundo a razão e a sua incom-
patibilidade com uma revelação insuficiente e contraditória, colo-
cando assim aqueles que a perfilham numa perigosa posição de 
exterioridade em relação à ordem política. Neste caso, para esca-
par à perseguição, o filósofo inventa uma nova arte de escrever, um 
sistema de simulações e dissimulações destinado a acobertar a 
verdade nas dobras da opinião. Arte de prudência, pois, que 
recupera o modelo platónico do diálogo - a forma mais fre-
quente do texto esotérico - para comunicar uma verdade outra 
que não a que as opiniões expressas reivindicam. Mas arte tam-
bém de lidar com -as antinomias, arte que tem no seu cerne a 
tensão entre a filosofia e a religião ou a política e que, por não 
poder anular essa tensão, reproduz os discursos triviais sobre o 
mundo e a cidade ao mesmo tempo que, subterraneamente, insi-
nua a sua desordem, a sua ausência de logos. Ler um texto eso-
térico traduz-se, pois, em identificar as contradições que o po-
voam como sinais a indicar sempre um outro sentido 4• 
Contudo, a explicação de Strauss não se fica por razões de 
ordem estratégica. Para ele, o esoterismo, mais do que estrata- · 
gema, é consequência necessária da situação da verdade face à 
opinião. Vivendo na cidade, e quer se pretenda ou não legisla-
dor, o filósofo está sujeito à lei e esta apresenta-se-lhe como 
algo inabarcável pela razão, pois o que a constitui como lei é 
precisamente a violência, o corte que instaura, enquanto impe-
rativo, na racionalidade do real. O lugar da filosofia encontra-
-se, então, deslocado do mundo das ideias para o mundo das 
opiniões; o diálogo impõe-se como ponto de encontro entre a 
razão e o que lhe escapa, entre a verdade e as doxas, entre o 
filósofo e o seu público; a arte de escrever, mesmo quando não 
se exprime formalmente no género dialógico, é sempre opera-
4 Anteriormente a Strauss, já outros autores se tinham debruçado sobre 
este processo da emergência das heterodoxias. Abraham Geiger, por exem-
plo, interpreta o Mngen We Tsinah, do célebre rabino Leão de Módena, como 
uma tentativa de fazer passar uma opinião herética juntando-lhe a sua refuta-
ção em termos ortodoxos. No entanto, Carl Gebbart, editor de Espinosa e de 
Uriel da Costa, vê simplesmente aí um testemunho da situação existencial dos 
marranos, em cuja «consciência o catolicismo e o judaísmo não estavam uni-
dos mas manifestavam-se como susceptíveis de se unirem: neste combate in-
terior, a consciência do marrano ficava dividida» (Introdução a Die Schriften 
des Uriel da Costa, 1922, pp. XIX-XXVI, parcialmente traduzida e reproduzida em 
Osier, 1980, pp. 135-141). 
41 
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1 ção de despistagem de uns e orientação de outros, mediante a 
calculada disposição do argumento e das personagens ou das 
simples opiniões contraditórias . 
Estamos, portanto, em face de uma autêntica teoria do texto 
filosófico, que o autor aplica, tanto na · leitura de Espinosa como 
na de Maquiavel (cf. Strauss, 1958), e que tem a virtude de evi-
denciar a estreita cumplicidade entre filosofia e política. Atra-
vés desta via otiginal, Leo Strauss é levado; ·no ensaio Hów to· 
Study Spinoza's Theologico-Poli.tical. Treali_se .(1948(: .reproduzido in 
Strauss, 1952, pp. 142-201), a sublinhar a necessidade de ler ·O · 
Tratado à luz da metafísica espinosãna, nãó obstante ela -e~tai aí 
velada e ter, portanto, de se submeter o texto ao ·mesino ·critério · 
de interpretação a que ele próprio submete a Escritura, ou seja, 
tomá-lo como um texto veiculador de várias mensagens, adap-
tado a vários públicos e susceptível de vários níveis de leitura. 
Basicamente, poderíamos identificar três: um, que corresponde 
à ortodoxia, reproduz a opinião dominante sobre as Escrituras; 
outro, que corresponderia à opinião dos círculos dissidentes, os 
cristãos reformadores ou evangélicos, vê na Bíblia unicamente a 
doutrina da caridade e da justiça; um terceiro, enfim, que cor-
responderia à verdadeira convicção de Espinosa, reduz a mensa-
gem bíblica a um produto da imaginação e à apresentação de 
um projecto que alguns comentadores, na esteira de Strauss, 
pretendem que seria revolucionário e destinado a mobilizar esses 
cristãos que recusam submeter-se ao poder eclesiástico em ma-
téria religiosa mas que cingem a ética a uma exigência indivi-
dual sem horizontes políticos (Negri, 1982, p. 194; Tosel, 1984, 
pp. 94-99). Não sendo aqui o lugar para uma análise da arte de 
escrever assim delineada, limitar-nos-emos a expor algumas ques-
tões que a sua aplicação ao TTP suscita. 
Antes de mais, é de perguntar se este livro é realmente um 
exemplo de esoterismo. Se Espinosa assim o quis, o seu intuito, 
à primeira vista, foi completamente gorado, já que o livropro-
vocou logo o maior escândalo e veio, como dissemos, a ser proi-
bido pouco depois. Além disso, e por muita inovação que o 
Tratado contenha, o mais radical das suas formulações - recusa 
da transcendência, do finalismo e da moralidade entendida como 
obediência - estava já nas três primeiras partes da Ética, as quais 
circulavam, claramente expostas «à maneira dos geómetras», por 
vários círculos da inteligência europeia muito antes de o TTP 
ser publicado. Dir-se-á, e com razão, que o problema, aqui, era 
mais melindroso, porquanto o autor tinha obrigatoriamente de 
42 
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atravessar o terreno que outros filósofos deixavam ao adversá-
rio, ao passo que na Ética poderia simular que lhe passava ao 
lado, minando-lhe os fundamentos sem sequer o mencionar. Com 
efeito, pelo menos até final da mencionada m parte, o sujeito da 
enunciação é na Ética um sujeito universal, ou seja, é o entendi-
mento puro que se constitui reconstituindo a história da eterni-
dade da substância de que é atributo. Como produção do enten-
dimento, o seu conteúdo é totalmente racional e verdadeiro e 
nela se revela o sentido de tudo . No entanto, dizer o sentido 
de tudo é dizer também a insensatez das opiniões e estas, para-
doxalmente, revelam-se com uma certa capacidade de determi-
nar o real no mundo da política. Porque há qualquer coisa de 
positivo na imaginação, como Espinosa repete constantemente 5, 
em particular nesta passagem que é da maior importância para 
o que tentamos mostrar: «nada do que uma ideia falsa tem de 
positivo é suprimido pela presença do verdadeiro enquanto ver-
dadeiro» (E, IV, prop. l, dem. e esc.). É necessário, pois, para 
levar a ontologia até às suas últimas consequências, explicitar 
esta positividade que é a potência criadora da imaginação. O que 
acarreta, como é óbvio, consequências políticas, mas não aque-
las - convirá frisá-lo desde já - que habitualmente se lhe atri-
buem. Referir a potência da imaginação não equivale a negá-la 
ou subsumi-la em racionalidade. Muito pelo contrário, e dado 
que aquilo que a imaginação tem de positivo não é suprimido 
pela presença do verdadeiro, o projecto político de Espinosa está 
longe de se poder aproximar do ideal do filósofo-rei ou sequer 
do ideal do povo-filósofo-rei como o reivindicará Rousseau; é, 
sim, e tão-só, a tentativa de garantir que essa potência da ima-
ginação não esmague ou impeça a potência da razão de se ma-
nifestar. E este objectivo, porque se destina à República e não a 
5 Veja-se, por exemplo, o escólio da prop . 35 da Ética, u: «quando olhamos 
o Sol, imaginamos que ele está afastado de nós aproximadamente 200 pés; 
este erro não consiste, aliás, no facto de, ao imaginarmos assim o Sol, ignorar-
mos a sua verdadeira distância e a causa dessa imaginação. Porque, mais tarde, 
ainda que saibamos que o Sol está afastado de nós mais de seiscentas vezes o 
diâmetro da Terra, não deixaremos de imaginar que ele está perto de nós . 
Não imaginamos, com efeito, o Sol assim tão próximo por ignorarmos a sua 
verdadeira distância, mas porque a afecção do nosso corpo envolve a essência 
do Sol na medida apenas em que por ela é afectado.» Quer dizer, a imagina-
ção não explica, mas envolve, à sua maneira, a essência do imaginado (cf. De-
leuze, 1968, p. 135). 
43 
' 
iniciados, é claro e preciso, apresenta-se sem subterfúgios e com 
conhecimento dos riscos que implica, tenha ou não sido apadri -
nhado por Jean de Witt, como alguns historiadores pretendem. 
Supor outros níveis de leitura no Tratado, outras mensagens que 
estariam latentes, é levar a interpretação da filosofia política de 
Espinosa para margens que parecem, pelo menos, pouco segu-
ras, como a seu tempo tentarei mostrar. 
c) Há, no entanto, uma outra expli_ca5ão p~ra incoerências 
como as que se detectam entre .algumas passagens .do Tratado .e . 
a doutrina da Ética (cf. Zac, 1965, ·p. 27, Deleuze~ 1%8, p. ·47, 
Corsi, 1978, p. 65). Basta que, em vez de se tornar o texto 1:omo-
um entrelaçamento de mensagens cifradas, o consideremos apenas 
como conjunto de enunciados que remetem horizontalmente uns 
para os outros e dessa interpenetração recolhem todo o sentido 
possível. Vejamos, a esta luz, a questão de onde partíramos. 
Tínhamos dito que aquilo que constituía problema era a certeza 
imputada por Espinosa ao conhecimento profético. Ora, se repa-
rarmos no cap. vrr, onde se enuncia o método de interpretação 
da Bíblia, concluiremos que o autor, ao definir assim a profecia, 
está a reproduzir o sentido do texto bíblico e não a analisar o 
seu conteúdo ou a sua verdade. A regra básica daquele método 
consiste em não aceitar como ensinamento da Escritura nada 
que não possa extrair-se com total certeza da mesma Escritura. 
Trata-se, pois, de um trabalho unicamente de exegeta, que se 
socorre dos instrumentos disponíveis - o conhecimento da língua 
e da história - com o objectivo de evidenciar o carácter não 
filosófico do texto analisado. Conforme ele próprio sintetiza, 
«mostrámos que a Escritura não ensina questões filosóficas, mas 
apenas a piedade, e que tudo quanto ela contém está adaptado 
à compreensão e às opiniões preconcebidas do vulgo. Quem, 
por conseguinte, a quiser adaptar à filosofia tem de atribuir fal-
samente aos profetas muitas coisas que eles nem por sonhos 
pensaram e de interpretar mal o seu pensamento. Quem, pelo 
contrário, faz da razão e da filosofia a serva da teologia tem de 
admitir como coisas divinas preconceitos do vulgo de tempos 
antigos, deixando que estes o ceguem e lhe inundem a mente. 
Assim, um com a razão, o outro sem ela, hão-de ensandecer os 
dois.» (Infra, p. 315.) 
Extremados, porém, que estão os campos, o problema sub-
siste. De um ponto de vista político, não é, evidentemente, des-
tituído de importância sublinhar o infundado das pretensões dos 
44 
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teólogo s, quer eles recorram à razão ou a condenem . Mas, de 
um ponto de vista filosófico, perguntar-se -á sempre onde está o 
conhecimento verdadeiro. E, de facto, Espinosa, se por um lado 
condena aqueles para quem a sabedoria está na lei, isto é, na 
vontade absoluta e incompreensível de Deus, conforme sugere 
Calvino, não condena menos, por outro lado, aqueles que ten-
tam abrir espaço para a razão, como o já citado Maimónides ou 
São Tomás de Aquino, subordinando a vontade de Deus à sua 
inteligência e legitimando assim a compossibilidade e a concor-
dância da filosofia e da teologia. É, de resto, para estes que a 
sua crítica se mostra, paradoxalmente, mais implacável. E há 
razões para isso, como passaremos a ver. 
A doutrina expressa por Maimónides no Guia dos Perplexos 
guia daqueles que hesitam entre uma e outra verdade, é prati-
camente copiada da filosofia árabe, em particular da de A ver-
róis, que lhe dedicara já uma obra com o título sintomático de 
Acordo da Religião e da Filosofia, Exame Crítico e Solução. Nesse livro, 
cuja edição se fazia acompanhar de um outro em que se deter-
minava «o método de ensinar os dogmas da religião à generali-
dade dos homens de maneira a fazer desaparecer as seitas e 
evitar conflitos entre razão e fé», A verróis enuncia assim, logo 
a princípio, o seu intuito: «examinar, do ponto de vista da especula-
ção religiosa, se o estudo da filosofia e das ciências lógicas é per-
mi tido ou proibido pela lei religiosa ou se é por ela determi-
nado, quer a título meritório, quer a título obrigatório» (cit. in 
Gauthier, 1909, p. 46, subi . nosso). O pano de fundo é, por-
tanto, ainda a mesma concepção teocrática, segundo a qual Deus 
dá ordens e as ordens exprimem-se por palavras, pelo que os 
homens só o podem conhecer ouvindo os seus porta-vozes - os 
profetas - ou o seu eco explicitado na tradição. São as ordens 
de Deus que ins tauram a existência do bem e do mal, os quais 
equivalem, por conseguinte, a acções permitidas ou proibidas e 
não a entidades ontológicas, a ideais que a razão pudesse de-
duzir. Porque esta, se foi dada ao homem, é simplesmente para 
ele descortinar o que lhe é útil

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