Buscar

A análise real do ensino básico - Números reais Alexandre Luiz Tuller Telles

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 71 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 71 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 71 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Ministério da Educação
Secretaria de Educação Profissional e Tecnológica
Instituto Federal do Rio de Janeiro - IFRJ
CURSO DE LICENCIATURA EM MATEMÁTICA
A ANÁLISE REAL DO ENSINO BÁSICO: NÚMEROS REAIS
ALEXANDRE LUIZ TULLER TELLES
Volta Redonda
Julho/2016
A ANÁLISE REAL DO ENSINO BÁSICO: NÚMEROS REAIS
ALEXANDRE LUIZ TULLER TELLES
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao corpo docente de Matemática, como re-
quisito parcial à obtenção do grau de Licen-
ciado em Matemática pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Ja-
neiro.
Orientador: Tiago Soares dos Reis
Volta Redonda
Julho/2016
Telles, Alexandre L. T.
T269a A Análise Real do Ensino Básico: Números Reais / Alexandre
Luiz Tuller Telles. - -
Volta Redonda, 2016.
69 f.
Orientador: Tiago Soares dos Reis.
Trabalho de Conclusão de Curso (licenciatura) − Instituto
Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro,
câmpus Volta Redonda, 2016.
1. Análise Real. 2. Ensino Básico 3. Número Reais I. Reis,
Tiago Soares dos, orient. II. T́ıtulo.
A ANÁLISE REAL DO ENSINO BÁSICO: NÚMEROS REAIS
ALEXANDRE LUIZ TULLER TELLES
Trabalho de Conclusão de Curso apresentado
ao corpo docente de Matemática, como re-
quisito parcial à obtenção do grau de Licen-
ciado em Matemática pelo Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Ja-
neiro.
Aprovada em 20 de julho de 2016
Orientador, Tiago Sores dos Reis, Dr., IFRJ
Andrey Dione Ferreira, MSc., IFRJ
Magno Luiz Ferreira, MSc., IFRJ
Renata Arruda Barros, Dr., IFRJ
Dedico este trabalho à minha mãe Maria Terezinha
Tuller, a quem devo total gratidão por todo esforço
dedicado à minha formação.
Agradeço a Deus por ter me dado saúde e força para desenvolver este trabalho; à minha
esposa Ĺıcia pelo carinho, amor e dedicação durante minha formação; aos meus familiares e
aos familiares da minha esposa que sempre me apoiaram; ao meu amigo Wallace Reis pelo
apoio para realização deste trabalho; aos meus amigos que me incentivaram; ao meu
orientador Tiago Reis pela inspiração e pela paciência.
RESUMO
TELLES, Alexandre L. T. A Análise Real do Ensino Básico: Números Reais. Volta Redonda,
2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) - Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, câmpus Volta Redonda, 2016.
O conjunto dos números reais é um conteúdo dif́ıcil de ser abordado no Ensino Básico, principal-
mente no que diz respeito aos números irracionais. Neste texto, fazemos uma breve discussão
histórica do surgimento dos conjuntos numéricos. Apresentamos uma construção anaĺıtica
dos números reais através das sequências de Cauchy, com as demonstrações necessárias para
esse desenvolvimento. Demonstramos algumas propriedades importantes deste conjunto, que
são frequentemente trabalhadas no Ensino Básico. Fazemos um levantamento histórico dos
números irracionais π e e e demonstramos suas irracionalidades. Por fim, propomos atividades
que objetivam facilitar a abordagem dos números reais no Ensino Básico.
PALAVRAS-CHAVE: Análise Real; Ensino Básico; Números Reais; Números Irracionais; Sequência
de Cauchy; Irracionalidade; Conjuntos Numéricos.
ABSTRACT
TELLES, Alexandre L. T. A Análise Real do Ensino Básico: Números Reais. Volta Redonda,
2016. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Matemática) - Instituto Federal de
Educação, Ciência e Tecnologia do Rio de Janeiro, câmpus Volta Redonda, 2016.
The set of the real numbers is a hard subject to be taught in the Basic Education, mainly due to
the irrational numbers. In this text, we make a brief historical discussion on the development
of numerical sets. We present an analytical construction of the real numbers via Cauchy
sequences with the proofs required for this development. We prove some important properties
of this set which are worked in the Basic Education frequently. We make a historical overview
on the numbers π and e and prove that they are irrationals. Finally, we propose activities that
aim to facilitate the approach of the real numbers in Basic Education.
KEY-WORDS: Real Analysis; Basic Education; Real Numbers; Irrational Numbers; Cauchy
Sequence; Irrationality; Numerical sets.
Sumário
Introdução 10
1 Números reais no Ensino Básico 16
2 Construção dos números reais 21
3 Propriedades de números reais 35
4 O número π 40
4.1 Breve histórico do número π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 40
4.2 A irracionalidade do π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 44
5 O número e 51
5.1 Breve histórico do número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 51
5.2 A irracionalidade do e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 55
6 Algumas sugestões de abordagem dos números reais no Ensino Básico 61
6.1 Definição de números reais . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 61
6.2 O número π . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 63
6.3 O número e . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 65
Considerações finais 68
Referências 70
Introdução
A dificuldade em definir os números reais no Ensino Básico é bem conhecida na comuni-
dade acadêmica matemática. Essa dificuldade, como pude perceber em minhas experiências
durante o curso, está relacionada aos números irracionais. Diferente dos demais (naturais,
inteiros e racionais) os números irracionais não são tão intuitivos, e normalmente não são bem
trabalhados, causando dificuldade no entendimento do estudante.
Ao longo do tempo, foram tomadas medidas que servem de referência aos professores
e autores de livros didáticos buscando melhorias e padronização do Ensino Básico em todo
páıs. Tais como a implementação da nova Lei de Diretrizes e Base (LDB), a elaboração
dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) e as propostas curriculares de cada estado.
Mas, apesar dessas referências, ainda encontramos problemas na apresentação dos números
reais. Em geral, a abordagem dos números irracionais nos livros didáticos é muito vaga.
Normalmente, apresenta-se os números reais como a união dos números racionais com os
irracionais, e diz-se que os irracionais são os reais que não são racionais. Outra maneira
muito utilizada é dizer que os números irracionais são números que não podem ser escritos
como quociente entre números inteiros ou dizer que os irracionais são decimais infinitos e
não periódicos. Todas estas afirmativas são verdadeiras, no entanto não definem um número
irracional. Para o estudante que só conhece os números racionais, dizer que um número
irracional é aquele que não pode ser escrito como quociente entre inteiros é dizer que um
número irracional é nada, é um não-número, é um não-ser. Talvez, por isso o estudante se
sinta espantado ao se deparar com esses números. Um exemplo em que essa dificuldade pode
ser vista, é nas diversas vezes em que o estudante, ao resolver uma equação polinomial do
segundo grau, encontra uma raiz não exata, isto é, uma raiz cujo resultado não é um número
10
11
inteiro. Normalmente, o estudante ou tenta aproximar o resultado por um número racional ou
diz que “a resolução deu errado”. Nesse ponto, o professor se vê obrigado a aplicar exerćıcios
que só resultem em ráızes exatas.
Quando se diz que alguns números racionais, quando escritos na forma decimal, são d́ızimas
periódicas, isto é, possuem infinitas casas decimais, alguns estudantes já criam uma resistência.
Apesar disto, quando o professor mostra que as d́ızimas periódicas podem ser escrita na forma
de fração entre inteiros, os estudantes aceitam este tipo de número de forma melhor. Por outro
lado, existe uma resistência ainda maior quando lhes são apresentados decimais infinitos e nãoperiódicos. Os primeiros exemplos de irracionais mais comuns são
√
2, π, e e. E normalmente
são apresentados com pouca, ou quase nenhuma, explanação. Além disso, estes śımbolos
não são decimais infinitos não periódicos. O estudante que aprendeu que números irracionais
são os decimais infinitos não periódicos tendem a não aceitar que
√
2, π, e e são números
irracionais. Mais do que isso, em nenhum momento fica claro aos alunos por que eles existem
ou como foram descobertos.
Dentre estes três números, apesar da dificuldade, o
√
2 é o menos complicado aos estu-
dantes. Isto se dá por ele ser obtido pela operação de radiciação, que já é conhecida, com o
número 2, que também já é conhecido. Isto é, embora dizer que
√
2 não é o resultado de uma
divisão entre números inteiros torna o
√
2 um objeto completamente novo, fora do universo
de conhecimento do estudante, o
√
2 é obtido por elementos já conhecidos: a operação de
radiciação e o número 2. Já os números π e e não são resultados de operações e números já
conhecidos. Com o tempo, os exerćıcios vão aparecendo e os estudantes vão aceitando que
estes números são irracionais, porque o professor e o livro disseram. Na sequência, π, que é
irracional, se torna igual a 3, 14, que é racional, com a justificativa de facilitar os cálculos,
sem muita ênfase na questão de que o que está sendo feito é uma aproximação. Não é raro
estudantes de Ensino Básico afirmarem que π é igual a 3, 14. O número e passa a não ser
mais lembrado, foi apenas um exemplo momentâneo e voltará (se voltar) a ser visto nova-
mente apenas no estudo dos logaritmos. As ráızes inexatas são os exemplos mais utilizados
para lembrar da existência dos números irracionais. A matemática volta a “normalidade” tão
rapidamente que o estudante se conforma em não entender o que são os números irracionais.
12
Infelizmente, é comum egressos do Ensino Médio que sequer conhecem o número e, outros,
não sabem dizer o que é um número irracional, embora tenham ouvido falar. O número π, por
outro lado, é mais conhecido, a maioria sabe que é um irracional, mas não sabe explicar de
onde ele surgiu. O número π é definido pela divisão do comprimento, C, de uma circunferência
pelo seu diâmetro, d, ou seja, π =
C
d
. Para muitos estudantes, isso não faz sentido, afinal,
se número irracional não pode ser escrito como uma fração e π é um número irracional, como
π é igual à fração
C
d
? Eis aqui uma dificuldade que o estudante traz desde o aprendizado
dos números racionais. Falta, ao estudante, saber que os números racionais são frações
especificamente entre números inteiros. O que não ocorre na definição de π uma vez que
pelo menos um dos números, C ou d, é irracional.
O número e é mais dif́ıcil de ser trabalhado no Ensino Básico. Sua definição geométrica
depende, além de conceitos estudados no Ensino Básico, de conceitos de Integral, que só
serão vistos no Ensino Superior. Por outro lado, suas definições anaĺıticas usam o conceito de
Limite, que por sua vez, também são vistas no Ensino Superior. Contudo, a origem do número
e está relacionada à criação dos logaritmos, e seus estudos, no Ensino Básico, começam muito
depois da apresentação dos números reais. Talvez, por isso os livros apenas comentam sua
existência.
Pommer (2012), em seu trabalho, pesquisa como são abordados os números irracionais nos
livros didáticos. Ele observa lacunas existentes principalmente quanto a definição do número
e quando diz que, referindo-se às coleções de livros didáticos que pesquisou, “o discurso das
coleções pouco ilustra o significado do número de Euler, não havendo possibilidade de haver
ampliação conceitual”. O professor pode, se houver interesse de sua parte, buscar outras
informações para complementar o que está sendo dado pelo livro. Mas, infelizmente, a falta
de conhecimento, muitas vezes por falhas em sua formação, inibe o professor a trabalhar mais
conceitos sobre números irracionais. A dificuldade de entender estes números não está relaci-
onada somente à resolução de exerćıcios, uma vez que os estudantes aprendem a reproduzir
algoritmos e se acostumam a trabalhar com eles. O problema está no fato de os estudantes
não entenderem o que são tais números, qual a natureza deles, qual o significado, qual a
necessidade de suas existências.
13
É claro, concordamos com os PCN (BRASIL, 1998), quando dizem que “ancorar o estudo
do conjunto dos racionais e irracionais no âmbito do formalismo matemático não é certamente
indicado nessa etapa [...] julga-se inadequado um tratamento formal do conceito de número
irracional no quarto ciclo.”e, portanto, as construções rigorosas dos reais, das definições de π e
e e demonstrações da irracionalidade destes dois, de fato, não são adequadas ao Ensino Básico.
Entretanto, estas construções, definições e demonstrações são parte do conteúdo estudado
em Análise Real nas licenciaturas em Matemática, embora, estas construções, definições e
demonstrações, em si, normalmente não são estudadas nos cursos de Análise Real. O que
queremos dizer é que: os conteúdos de sequências, séries, limites, derivadas e integrais são
estudados nas disciplinas de Análise Real nas licenciaturas em Matemática; que estes conteúdos
são utilizados nas construções dos números reais, nas definições de π e e e nas demonstrações
de irracionalidade dos dois; mas as disciplinas de Análise Real não abordam estas construções,
definições e demonstrações em si. Curioso é um dos resultados na pesquisa de Moreira, Cury
e Vianna (2005) que mostra que apenas um, dentre trinta e um professores universitários que
responderam o questionário sobre quais conteúdos deveriam ser trabalhados na disciplina de
Análise Real para licenciaturas em Matemática, disse que a irracionalidade de e e π deveria
ser trabalhado. E apenas dois professores citaram a construção dos reais como conteúdo
importante.
A disciplina de Análise Real trabalha conteúdos inicialmente dif́ıceis, o que exige uma
atenção redobrada do licenciando e uma capacidade de abstrair os conteúdos das disciplinas de
Cálculo e transformá-los em casos generalizados. Isso gera uma dificuldade para o licenciando
que muitas vezes não teve contato suficiente com demonstrações durante boa parte da sua
formação. A dificuldade dos licenciandos em entender os conceitos de Análise Real tem sido
discutida. Um exemplo é o trabalho de Moreira, Cury e Vianna (2005), citado acima, onde
alguns professores universitários consideram que seria importante que não se trabalhasse com
muito rigor os conteúdos dados às licenciaturas, limitando-os a questões que se relacionam
com assuntos do Ensino Básico.
O presente trabalho é direcionado ao licenciando em Matemática que cursa a disciplina
Análise Real. Não como substituto do livro texto da disciplina, mas como um material adicional
14
ao seu estudo. O leitor perceberá que este trabalho não traz, no corpo do texto, o conteúdo
tradicionalmente apresentado nos livros, como as definições de limite, derivada e integral e
os tradicionais teoremas acerca destes conceitos. O que esta monografia faz é aplicar estes
conceitos e resultados a conteúdos estudados no Ensino Básico. Mais especificamente, este
trabalho usa os conteúdos normalmente estudados nos cursos de Análise Real para definir
objetos e demonstrar resultados relativos aos números reais conhecidos no Ensino Básico, que
não podem ser definidos ou demonstrados apenas com as ferramentas estudadas no próprio
Ensino Básico. Mais a frente, comentaremos as definições e resultados dos quais estamos
falando. O objetivo de se tratar este tema é mostrar ao licenciando em Matemática que
existe, e qual é, a relação entre o que é estudadopor ele nas disciplinas de Análise Real
e o conteúdo que ele trabalhará junto a seus estudantes. Não é raro vermos licenciandos
em Matemática questionando o porquê de se estudar Análise Real. O licenciando não vê
ligação entre esta disciplina e sua prática profissional. Ainda, o presente trabalho pode ser útil
ao professor em atuação que, porventura, sinta a necessidade de entender algumas questões
acerca dos números reais.
É preciso enfatizar, que não é o objetivo deste texto ser um manual ou livro texto para
as aulas de matemática no Ensino Básico. É claro, as definições rigorosas e demonstrações
da Análise Real não são adequadas para este ńıvel de ensino. Tanto é, que no caṕıtulo
6 fazemos breves sugestões de como apresentar os números reais ao estudante do Ensino
Básico. Na verdade, este trabalho pretende proporcionar ao professor de matemática um
sólido entendimento dos números reais e suas propriedades (o que passa pelos conteúdos
de Análise), entretanto, fazendo sugestões de como abordar este tema no Ensino Básico.
Mesmo que o professor não vá fazer construções rigorosas dos números reais, dar as definições
anaĺıticas de π e e e demonstrar a irracionalidade destes dois no Ensino Básico, é importante
que ele conheça os fundamentos por detrás destas questões. Conhecendo estes fundamentos,
o professor não fica desprotegido e, assim, pode elaborar suas próprias explicações e linhas de
racioćınio que apresentará a seus estudantes.
Este trabalho é dividido em três partes. A primeira, composta apenas pelo primeiro
caṕıtulo, fala sobre a dificuldade em ensinar números reais no Ensino Básico. Para isso,
15
fazemos uma breve apresentação da existência dos conjuntos numéricos durante a história da
matemática até se chegar aos números reais, passando pela descoberta dos incomensuráveis
até chegar na construção dos reais por Dedekind1. Na segunda parte, fazemos uma cons-
trução rigorosa do conjunto dos reais através das sequências de Cauchy2, no segundo caṕıtulo,
e demonstramos algumas propriedades importantes dos números reais, no terceiro caṕıtulo.
Em seguida, apresentamos um breve histórico dos números π e e, além de demonstrar suas
irracionalidades, nos caṕıtulos quatro e cinco respectivamente. Por fim, na terceira parte,
fazemos algumas breves sugestões de como apresentar os números reais no Ensino Básico, no
sexto caṕıtulo.
1Julius Wilhelm Richard Dedekind. ? Braunschweig, 6 de outubro de 1831, † Braunschweing, 12 de fevereiro
de 1916)
2Augustin-Louis Cauchy. ? Paris, 21 de agosto de 1789, † Paris, 23 de maio de 1857
Caṕıtulo 1
Números reais no Ensino Básico
Definir o conjunto dos números reais, R, no Ensino Básico é uma tarefa dif́ıcil. A origem
deste conjunto parte da existência do conjunto dos números racionais Q (que contém os
números inteiros Z que, por sua vez, contém os números naturais N) e do surgimento do
conjunto dos números irracionais I. Entretanto, a dificuldade não se encontra na quantidade
de conjuntos a serem constrúıdos e ensinados, mas especificamente nos números irracionais.
Quando os números reais são apresentados pela primeira vez a um estudante, a grande
novidade para ele são os números irracionais. Normalmente, eles são apresentados como um
complemento necessário para a existência dos reais. Isto é, o conjunto dos números reais
consiste na união Q ∪ I. Apesar de essa informação ser verdadeira, reside áı um problema
grave: o novo conjunto, I, é apresentado ao estudante sem qualquer motivação. Os livros
costumam afirmar que os números irracionais são números reais que não são racionais. E que
os reais são a união dos racionais com os irracionais. E esse é um pensamento ćıclico.
A dificuldade em ensinar os números reais não é um tema inédito no meio acadêmico.
Há alguns trabalhos que lidam com essa questão. Como, por exemplo: (FERREIRA; MO-
REIRA; SOARES, 1999), que propõe uma nova abordagem sobre os conjuntos numéricos
fazendo um paralelo com a concepção dos licenciandos e a formação matemática na licenci-
atura; (POMMER, 2012) e (MOZER, 2013), que falam, principalmente, sobre a dificuldade
de aprendizagem e ensino dos números irracionais; e (GARCIA; SOARES; FRONZA, 2005),
que propõe uma aboragem dos números irracionais no ńıvel fundamental. Em geral, os livros
didáticos e os professores não se aprofundam no conceito de número irracional, apenas enun-
16
17
ciam a sua existência e, então, passam a trabalhar com eles, fazendo com que o estudante se
acostume a utilizar este tipo de número sem entendê-lo de fato. Números tais como
√
2, π e e
vão surgindo nos exerćıcios; os estudantes executam operações com eles, porém não conhecem
sua verdadeira natureza. Isso não acontece pela falta de atenção dos autores ou pela incom-
petência dos professores, mas pela dificuldade em transformar um conteúdo tão profundo e
complexo em uma aula ilustrativa, criativa e realizável. Afinal, como ensinar cálculo de limites,
derivada e integral para estudantes do Ensino Básico?
Antes de tratarmos dos números irracionais, comentaremos rapidamente a ideia de o que
são e de como são apresentados no Ensino Básico os conjuntos N, Z e Q. Para saber mais
sobre a construção desses conjuntos, procure sobre a Teoria dos Conjuntos em (LIMA, 1976).
O entendimento do conjunto N baseia-se no prinćıpio da contagem. Em diversos livros
didáticos, podemos observar a utilização da história das civilizações para mostrar ao estudante
o que levou a criação deste conjunto. A ideia de contagem é intuitiva e, na maioria das vezes,
bem recebida pelo estudante por este também utilizar, com frequência, os números naturais
fora do ambiente escolar.
Alguns autores utilizam o mesmo prinćıpio, o da contagem, para desenvolverem o conjunto
dos números inteiros, Z. Contudo, é interessante que o professor fale em sala de aula sobre o
fato de o conjunto N ser fechado1 para as operações de adição e multiplicação, mas não para
a operação de subtração. Por exemplo, a operação 1− 2 não está definida em N. Dáı surge
a necessidade de ampliação deste conjunto para conjunto dos números inteiros. O universo
numérico começa a ser expandido e novamente, através da experiência própria, observa-se que
o estudante não tem dificuldade em aceitar a existência de números negativos quando são
dados exemplos de fora do ambiente escolar, como temperatura negativa e saldo de conta
bancária negativa, possibilitando a continuidade da aplicação do conteúdo.
A definição do conjunto Q é, usualmente, dada pela divisão entre inteiros, apresentada
em modo de fração (
a
b
com a, b ∈ Z e b 6= 0) e na forma decimal. Nesse momento, alguns
estudantes sentem um pouco de dificuldade. No entanto, os números racionais são trabalhados
com elementos numéricos que podemos chamar de “palpáveis”, por terem sido obtidos a partir
1Dizer que o conjunto A é fechado em relação a uma operação significa dizer que, ao tomar dois elementos,
x1,x2 ∈ A, e aplicar a operação com estes dois elementos, resultará em um elemento x3 ∈ A.
18
dos conjuntos anteriormente citados. Um exemplo muito utilizado na apresentação de Q é
a partição de uma barra de chocolate num exerćıcio como o seguinte: Seja uma barra de
chocolate que tenha marcações de divisão em oito pedaços iguais, como na figura abaixo.
Queremos dividir esta barra igualmente para quatro pessoas. Quanto de chocolate cada
pessoa irá receber? Solução: Repartindo o chocolate em 8 partes e dando 1 parte para
cada pessoa, ainda restarão 4 partes. Das partes restantes será posśıvel dar mais uma parte
para cada pessoa. Sendo assim, cada pessoa recebeu 2 partes de 8, ou seja
2
8
da barra de
chocolate. Esses exemplos com materiais concretos são facilmente trabalhados por se trataremde números inteiros.
Figura 1.1: Barra de chocolate
As formas mais conhecidas de construção dos números Reais a partir dos números racionais
são via cortes de Dedekind e via sequências de Cauchy. No Caṕıtulo 2, concentraremos nossa
atenção na construção dos reais via sequências de Cauchy, pois esta envolve o conteúdo
de Sequências, que é trabalhado diretamente em um curso de Análise Real. Entretanto,
cronologicamente, a proposta de Dedekind foi a primeira e, além disso, é mais intuitiva. Por
isso, apesar de não detalhá-la, a abordaremos brevemente.
Ao olharmos para a história da matemática, observamos diversas situações em que es-
tudiosos encontravam algo que contrariava o que acreditavam. A existência de segmentos
incomensuráveis é uma delas. Os pitagóricos2, acreditavam que tudo pudesse ser explicado
pelos números inteiros e suas razões (racionais). Além disso, acreditavam que, dados dois seg-
mentos de reta, estes eram comensuráveis, ou seja, existia um terceiro segmento que pudesse
medir os dois iniciais. Isso significa que os dois segmentos iniciais eram múltiplos inteiros do
terceiro. Segue o exemplo abaixo:
De certa forma, a intuição os levou ao erro, pois com novas experimentações descobriram
2Como se chamavam os seguidores da filosofia de Pitágoras. ? Samos ≈ 569 a.C. , † Metaponto, ≈ 475
a.C.
19
A B C D E F
A B C D
Figura 1.2: Segmentos comensuráveis
tamanhos de objetos que não eram posśıveis de serem medidos com a unidade criada e, mesmo
que fossem criadas novas medidas para a unidade através da divisão da unidade inicialmente
criada, por menor que fosse o resultado, não seria posśıvel a medição. Um exemplo disso é
a diagonal do quadrado, que consideraremos mais à frente na proposta que será feita para a
apresentação dos números irracionais. Essas medidas que não se pode medir são chamadas
incomensuráveis.
A incomensurabilidade de alguns segmentos mostrou aos que nem tudo podia ser explicado
pelo que hoje conhecemos como racionais. Os racionais seriam, então, insuficientes para medir
comprimentos. Para que possamos medir qualquer tamanho, precisamos completar o conjunto
dos racionais e, se assim for feito, teremos como resultado um novo conjunto, o dos números
reais R.
Até o século V a.C., a matemática tratava apenas de problemas concretos. Para resolvê-
los, utilizava-se o racioćınio intuitivo. Entretanto, a descoberta dos incomensuráveis trouxe
questões de maior complexidade, o que obrigou os matemáticos a substitúırem essa forma de
pensar por uma mais abstrata e objetiva; as demonstrações tornaram-se necessárias. Apesar
da nova conjuntura, foi a intuição que auxiliou na construção do conceito de continuidade.
Não é dif́ıcil admitir intuitivamente que uma reta (ou segmento) seja cont́ınua. Se olhar-
mos para um pedaço de linha, por exemplo, não veremos nenhuma interrupção entre os dois
extremos. E era essa a forma com que se lidava com a ideia de continuidade. A situação em
relação aos números é análoga: bastava conhecer sua existência, mas seu conceito carecia de
definição.
O matemático alemão Richard Dedekind, consciente dessa lacuna, foi o primeiro a caracte-
rizar a continuidade da reta. Ao escolher um número racional qualquer, como exemplo escolhe-
mos o número 1, este número divide os racionais em duas partes. Identificamos que todos os
20
números à esquerda (ou, menores) de 1 continuarão à esquerda de todos os números à direita
(ou, maiores) que 1. Isto é, todo número racional divide os racionais em duas partes de forma
que todo número de uma parte esta à esquerda de todos os números da outra parte e todo
número da outra parte esta à direita de todos os números da primeira parte. No entanto, nos
racionais, a rećıproca não é verdadeira. Por exemplo, sejam A = {x ∈ Q; x < 0 ou x2 < 2}
e B = {x ∈ Q; x > 0 e x2 > 2}. Note que A ∪ B = Q e a < b para todos a ∈ A e b ∈ B,
mas não existe c ∈ Q tal que a ≤ c ≤ b para todos a ∈ A e b ∈ B. Este tipo de divisão de
um conjunto é chamada de corte. Esta é a propriedade da reta que falta aos racionais: todo
corte na reta passa por um ponto. Isto significa o fato de a reta ser cont́ınua. Dedekind usou
sua noção de corte para obter uma construção dos números irracionais a partir dos números
racionais. Assim, os irracionais foram elevados à condição de números concretos, prescindindo
da intuição para afirmação de sua existência.
Como dissemos, a seguir nos concentraremos na construção via sequências de Cauchy.
Caṕıtulo 2
Construção dos números reais
Quando trabalhamos com os números reais, costumamos utilizar aproximações racionais
para representar os números irracionais. Um exemplo é o número π, cujos valores mais utiliza-
dos são π ≈ 3,14 ou π ≈ 3. Essas aproximações são úteis para o contexto do Ensino Básico,
apesar de estarem distantes de seu valor verdadeiro.
Já são conhecidos mais de dois quatrilhões de d́ıgitos decimais de π e, por ser irracional,
o número π possui infinitos d́ıgitos decimais não periódicos. Portanto, se desejarmos ter
uma aproximação melhor para π, devemos considerar um número maior de casas decimais.
Podemos utilizar π ≈ 3,14159265 com 8 casas decimais, por exemplo, ou ainda um valor
maior. À vista disso, é posśıvel formar uma sequência de números racionais que se aproximam
de π. Em Kemp(2014), encontramos alguns exemplos de tais sequências. O primeiro é: 3;
3,14; 3,14159265 . . .. Outra sequência pode ser formada por frações que aproximam π:
3;
22
7
;
333
106
;
355
113
;
52163
16604
;
104348
33215
;
1043835
332263
;
245850922
78256779
. . . .
Uma terceira pode ser apresentada da seguinte forma:
1; 0,35; 3,14; 90; 3,1416; 3,14159; 3,1415926; 3,141592653589 . . . .
Como Kemp observa, o que acontece no ińıcio da sequência não interfere na aproximação do
número π, mas sim o que acontece em sua cauda. Além disso, nossa intuição nos faz julgar
21
22
que existem diversas sequências que levam para o mesmo valor. E, de fato, devemos tomar
cuidado ao construir os números reais através de sequência de números racionais. Para tanto,
definiremos cada número real como um determinado tipo de classe de sequências de números
racionais, todas com o mesmo comportamento de cauda.
Uma sequência de números racionais é uma função x : N → Q para a qual denotamos o
valor de x em n por xn. Usaremos com frequência a notação (xn)n∈N para representar uma
sequência, e diremos que xn é o termo de ordem n.
Definição 2.1. Uma sequência (xn)n∈N é dita de Cauchy se para todo ε > 0, existe N ∈ N
tal que n,m ≥ N implica que |xn − xm| < ε.
Definição 2.2. Seja R o conjunto de todas as sequências de Cauchy de números racionais.
Dados (xn)n∈N, (yn)n∈N ∈ R, dizemos que (xn)n∈N ∼ (yn)n∈N, isto é, que (xn)n∈N é equiva-
lente a (yn)n∈N pela relação ∼ se, e só se, lim
n→∞
|xn − yn| = 0.
Segue a proposição que prova que a relação definida acima é uma relação de equivalência.
Proposição 2.3. A relação ∼ é uma relação de equivalência em R.
Demonstração. Para ser relação de equivalência, ∼ deve satisfazer as propriedades: (i) refle-
xiva, (ii) simétrica e (iii) transitiva. Sejam (xn)n∈N, (yn)n∈N, (zn)n∈N ∈ R. De fato:
(i) (xn)n∈N ∼ (xn)n∈N, pois lim
n→∞
|xn − xn| = 0.
(ii) (xn)n∈N ∼ (yn)n∈N ⇔ lim
n→∞
|xn − yn| = 0⇔ lim
n→∞
|yn − xn| = 0⇔ (yn)n∈N ∼ (xn)n∈N.
(iii) (xn)n∈N ∼ (yn)n∈N ⇒ lim
n→∞
|xn − yn| = 0 e (yn)n∈N ∼ (zn)n∈N ⇒ lim
n→∞
|yn − zn| = 0.
Mas, 0 ≤ |xn − zn| = |xn − yn + yn − zn| ≤ |xn − yn|+ |yn − zn|.
Como lim
n→∞
|xn − yn| = 0 e lim
n→∞
|yn − zn| = 0, pelo Teorema do Sandúıche (LIMA,
2006, Teorema 2, p. 61)1, lim
n→∞
|xn − zn| = 0 donde (xn)n∈N ∼ (zn)n∈N.
1Sejam f, g, h : X → R, a ∈ X ′ e lim
x→a
f(x) = lim
x→a
g(x) = L. Se f(x) ≤ h(x) ≤ g(x) para todo
x ∈ X − {a} então lim
x→a
h(x) = L.
23
Paracada (xn)n∈N ∈ R, denotaremos a classe de equivalência de (xn)n∈N por [xn], isto é,
[xn] :=
{
(yn)n∈N ∈ R; (yn)n∈N ∼ (xn)n∈N
}
. O que significa que [xn] é o conjunto de todas
as sequências que são equivalentes a (xn)n∈N. O conjunto quociente de R com respeito a ∼
será denotado por R/∼, isto é, R/∼:=
{
[xn]; (xn)n∈N ∈ R
}
. Em outras palavras, R/∼ é o
conjunto de todas as classes de equivalência de elementos de R.
Agora, definimos em R/ ∼ operações que estenderão as operações aritméticas entre
números racionais. O leitor pode verificar que se (xn)n∈N e (yn)n∈N são sequências de Cauchy,
então também o são (xn + yn)n∈N e (xnyn)n∈N.
Definimos aqui, as operações de adição e multiplicação.
Definição 2.4. Dados [xn], [yn] ∈ R/∼ quaisquer, definimos:
a) (Adição) [xn]⊕ [yn] := [xn + yn] e
b) (Multiplicação) [xn]⊗ [yn] := [xnyn].
Aqui, provamos que as operações estão bem definidas.
Proposição 2.5. As operações ⊕ e ⊗ estão bem definidas. Isto é, [xn] ⊕ [yn] e [xn] ⊗ [yn]
independem da escolha dos representantes das classes [xn] e [yn].
Demonstração. Sejam [xn], [yn] ∈ R/∼ e (zn)n∈N ∈ [xn], (wn)n∈N ∈ [yn].
Como (xn)n∈N ∼ (zn)n∈N e (yn)n∈N ∼ (wn)n∈N, temos que lim
n→∞
|xn−zn| = 0 e lim
n→∞
|yn−
wn| = 0. Ainda,
0 ≤ |(xn + yn)− (zn + wn)| = |xn − zn + yn − wn| ≤ |xn − zn|+ |yn − wn|.
Pelo Teorema do Sandúıche, lim
n→∞
|(xn+yn)−(zn+wn)| = 0. E dáı (xn+yn)n∈N ∼ (zn+wn)n∈N
donde [xn + yn] = [zn + wn]. Por isso, a operação ⊕ está bem definida.
Além disso, temos que
|xnyn − znwn| = |xnyn − xnwn + xnwn − znwn|
= |xn(yn − wn) + wn(xn − zn)|
≤ |xn||yn − wn|+ |wn||xn − zn|.
24
Como (xn)n∈N e (wn)n∈N são sequências de Cauchy de números racionais, sabemos que
são limitadas (LIMA, 1976, Lema 1, p. 126)2 e, assim, existem c, d ∈ Q com c > 0 e d > 0
tais que |xn| ≤ c, |wn| ≤ d para todo n ∈ N. Dáı,
|xnyn − znwn| ≤ |xn||yn − wn|+ |wn||xn − zn| ≤ c|yn − wn|+ d|xn − zn|.
Como lim
n→∞
|xn − zn| = 0 e lim
n→∞
|yn − wn| = 0, pelo Teorema do Sandúıche, lim
n→∞
|xnyn −
znwn| = 0. E dáı (xnyn)n∈N ∼ (znwn)n∈N donde [xnyn] = [znwn].
Portanto a operação ⊗ está bem definida.
Definimos, agora, uma relação de ordem em R/∼.
Aqui, definimos a relação de ordem em R/∼.
Definição 2.6. Sejam [xn], [yn] ∈ R/∼ arbitrários. Dizemos que [xn] ≺ [yn] se, e somente
se, existe d ∈ Q, d > 0, e n0 ∈ N tais que yn − xn > d para todo n ≥ n0. Dizemos que
[xn] � [yn] se, e somente se, [xn] ≺ [yn] ou [xn] = [yn].
Proposição 2.7. A relação � está bem definida.
Demonstração. Sejam [xn], [yn] ∈ R/∼ e (zn)n∈N ∈ [xn], (wn)n∈N ∈ [yn] e suponha que
[xn] � [yn]. Queremos mostrar que [zn] � [wn]. De fato, por hipótese, ou [xn] = [yn] ou
[xn] ≺ [yn].
i) Se [xn] = [yn], então [zn] = [xn] = [yn] = [wn] donde [zn] � [wn].
ii) Se [xn] ≺ [yn], então existem d ∈ Q, d > 0, e n1 ∈ N tais que tais que d < yn−xn para
todo n ≥ n1. Como (xn)n∈N ∼ (zn)n∈N e (yn)n∈N ∼ (wn)n∈N, temos que lim
n→∞
|xn −
zn| = 0 e lim
n→∞
|yn−wn| = 0. Dáı, existem n2, n3 ∈ N tais que −
d
4
< zn−xn <
d
4
para
todo n ≥ n2 e −
d
4
< yn−wn <
d
4
para todo n ≥ n3. Tomando n0 = max{n1, n2, n3},
temos que −d
4
− d
4
< zn−xn+wn−yn <
d
4
+
d
4
donde −d
2
< (yn−xn)−(wn−zn) <
d
2
para todo n ≥ n0. Logo, d < yn − xn < wn − zn +
d
2
donde
d
2
= d − d
2
< wn − zn
para todo n ≥ n0. Portanto, [zn] ≺ [wn] donde [zn] � [wn].
2Toda sequência de Cauchy é limitada.
25
Proposição 2.8. A relação � é uma relação de ordem sobre R/∼.
Demonstração. Para ser relação de ordem, � deve satisfazer as propriedades: (i) reflexiva,
(ii) anti-simétrica e (iii) transitiva. De fato, sejam [xn], [yn], [zn] ∈ R/∼. Claramente (i)
[xn] � [xn] e (ii) se [xn] � [yn] e [yn] � [xn], então [xn] = [yn]. Agora vejamos que �
satisfaz (iii). Suponha que [xn] � [yn] e [yn] � [zn]. Se [xn] = [yn] ou [yn] = [zn], então o
resultado é imediato. Caso contrário, como [xn] ≺ [yn], existem d1 ∈ Q, d1 > 0, e n1 ∈ N
tais que yn − xn > d1 para todo n ≥ n1. E, como [yn] ≺ [zn], existem d2 ∈ Q, d2 > 0, e
n2 ∈ N tais que zn − yn > d2 para todo n ≥ n2. Tomando n0 = max{n1, n2}, temos que
yn − xn + zn − yn > d1 + d2 donde zn − xn > d1 + d2 para todo n ≥ n0. Como d1 + d2 ∈ Q
e d1 + d2 > 0, temos que [xn] ≺ [zn].
Lema 2.9. Se (xn)n∈N ∈ R e não converge para zero, e ainda, xn 6= 0 para todo n ∈ N,
então
(
1
xn
)
n∈N
∈ R.
Os dois lemas seguintes são utilizados na demonstração da Proposição 2.11.
Demonstração. Seja ε ∈ Q, ε > 0. Primeiro observamos que
∣∣∣∣ 1xm − 1xn
∣∣∣∣ = ∣∣∣∣xn − xmxmxn
∣∣∣∣ = |xn − xm||xm||xn|
para todos n,m ∈ N. Como xn 6= 0 para todo n ∈ N e (xn)n∈N não converge a zero, temos
que existe k ∈ Q, k > 0, tal que |xn| >
1
k
donde
1
|xn|
< k para todo n ∈ N. Por outro
lado, existe n0 ∈ N de modo que |xn − xm| <
ε
k2
para todos n,m ≥ n0. Assim, para todos
n,m ≥ n0 temos que ∣∣∣∣ 1xm − 1xn
∣∣∣∣ = |xn − xm||xm||xn| < εk2k2 = ε.
Portanto
(
1
xn
)
n∈N
é uma sequência de Cauchy de números racionais.
Lema 2.10. Se (xn)n∈N ∈ R e não converge a zero, então (xn)n∈N é equivalente a uma
sequência de Cauchy (yn)n∈N de termos todos diferentes de zero.
26
Demonstração. Como (xn)n∈N não converge a zero, existe ε ∈ Q, ε > 0, tal que, para todo
l ∈ N, existe nl ≥ l tal que |xnl | ≥ ε. Denotando, para cada l ∈ N, yl := xnl , temos que
(yn)n∈N é uma subsequência de (xn)n∈N tal que yn 6= 0 para todo n ∈ N. Como (yn)n∈N
é uma subsequência de (xn)n∈N, temos que (yn)n∈N é de Cauchy. Além disso, dado ε ∈ Q,
ε > 0, como (xn)n∈N é de Cauchy, existe n0 ∈ N tal que |yl − xl| = |xnl − xl| < ε para todo
l ≥ n0. Logo lim
n→∞
|yn − xn| = 0 donde (yn)n∈N é equivalente a (xn)n∈N.
Proposição 2.11. O espaço quociente R/∼ é um corpo ordenado. Isto é, denote por [0] a
classe da sequência constante igual a 0 e por [1] a classe da sequência constante igual a 1. Se
x, y, z ∈ R/∼, então segue que:
a) (Comutatividade da adição) x⊕ y = y ⊕ x.
b) (Associatividade da adição) (x⊕ y)⊕ z = x⊕ (y ⊕ z).
c) (Elemento neutro da adição) x⊕ [0] = x.
d) (Elemento oposto da adição) Existe 	x ∈ R/∼ tal que x⊕ (	x) = [0].
e) (Comutatividade da multiplicação) x⊗ y = y ⊗ x.
f) (Associatividade da multiplicação) (x⊗ y)⊗ z = x⊗ (y ⊗ z).
g) (Elemento neutro da multiplicação) x⊗ [1] = x.
h) (Elemento inverso da multiplicação) Se x 6= [0], então existe x -1© ∈ R/∼ tal que x⊗x -1© =
[1].
i) (Distributividade) x⊗ (y ⊕ z) = (x⊗ y)⊕ (x⊗ z).
j) (Monotonicidade da adição) Se x � y, então x⊕ z � y ⊕ z.
k) (Monotonicidade da multiplicação) Se x � y e [0] � z, então x⊗ z � y ⊗ z.
Demonstração. Sejam x, y, z ∈ R/∼ quaisquer. Digamos x = [xn], y = [yn] e z = [zn].
a) x⊕ y = [xn]⊕ [yn] = [xn + yn] = [yn + xn] = [yn]⊕ [xn] = y ⊕ x.
27
b) (x⊕y)⊕z = ([xn]⊕ [yn])⊕ [zn] = [xn +yn]⊕ [zn] = [(xn +yn)+zn] = [xn +(yn +zn)] =
[xn]⊕ [yn + zn] = [xn]⊕ ([yn]⊕ [zn]) = x⊕ (y ⊕ z).
c) x⊕ [0] = [xn]⊕ [0] = [xn + 0] = [xn] = x.
d) Note que (−xn)n∈N é uma sequência de Cauchy e defina 	x := [−xn]. Dáı, temos que
	x ∈ R/∼. Além disso, x⊕ (	x) = [xn]⊕ [−xn] = [xn + (−xn)] = [0].
e) x⊗ y = [xn]⊗ [yn] = [xnyn] = [ynxn] = [yn]⊗ [xn] = y ⊗ x.
f) (x⊗y)⊗z = ([xn]⊗[yn])⊗[zn] = [xnyn]⊗[zn] = [(xnyn)zn] = [xn(ynzn)] = [xn]⊗[ynzn] =
[xn]⊗ ([yn]⊗ [zn]) = x⊗ (y ⊗ z).
g) x⊗ [1] = [xn]⊗ [1] = [xn × 1] = [xn] = x.
h) De acordo com Lema 2.10 temos a garantia de que a sequência (xn)n∈N representativa de
[xn] pode ser tomada de modo que todos os seus termos sejam diferentes de zero. Pelo
Lema 2.9,
(
1
xn
)
n∈N
é também uma sequência de Cauchy. Definindo x -1© :=
[
1
xn
]
temos
que x -1© ∈ R/∼ e x⊗ x -1© = [xn]⊗
[
1
xn
]
=
[
xn ×
1
xn
]
= [1].
i) x⊗ (y⊕ z) = [xn]⊗ ([yn]⊕ [zn]) = [xn]⊗ [yn + zn] = [xn(yn + zn)] = [(xnyn) + (xnzn)] =
[xnyn]⊕ [xnzn] = ([xn]⊗ [yn])⊕ ([xn]⊗ [zn]) = (x⊗ y)⊕ (x⊗ z).
j) Suponha que x � y, isto é, [xn] � [yn]. Temos que ou [xn] = [yn] ou [xn] ≺ [yn].
Se [xn] = [yn], então [xn] ⊕ [zn] = [yn] ⊕ [zn] donde [xn] ⊕ [zn]� [yn] ⊕ [zn], isto é,
x⊕ z � y⊕ z. Se [xn] ≺ [yn] então existem d ∈ Q, d > 0, e n1 ∈ N tais que yn− xn > d
para todo n ≥ n1. Como
yn − xn > d⇒ yn − xn + zn − zn > d⇒ (yn + zn)− (xn + zn) > d,
temos que (yn + zn) − (xn + zn) > d para todo n ≥ n1 donde [xn + zn] ≺ [yn + zn]. E,
como [xn + zn] = [xn]⊕ [zn] e [yn + zn] = [yn]⊕ [zn], segue que [xn]⊕ [zn] ≺ [yn]⊕ [zn]
donde [xn]⊕ [zn] � [yn]⊕ [zn], isto é, x⊕ z � y ⊕ z.
28
k) Suponha que x � y e 0 � z, isto é, [xn] � [yn] e 0 � [zn]. Temos que ou [xn] = [yn] ou
[xn] ≺ [yn]. Se [xn] = [yn], então [xn]⊗ [zn] = [yn]⊗ [zn] donde [xn]⊗ [zn] � [yn]⊗ [zn],
isto é, x ⊗ z � y ⊗ z. Se [xn] ≺ [yn] então existem d1 ∈ Q, d1 > 0, e n1 ∈ N, tais
que yn − xn > d para todo n ≥ n1. Temos também que 0 � [zn] donde ou 0 = [zn] ou
0 ≺ [zn]. Se 0 = [zn], então [xn]⊗ [zn] = [0] = [yn]⊗ [zn] donde [xn]⊗ [zn] � [yn]⊗ [zn],
isto é, x ⊗ z � y ⊗ z. Se 0 ≺ [zn], então existem d2 ∈ Q, d2 > 0, e n2 ∈ N tais que
zn > d2 para todo n ≥ n2. Seja n0 = max{n1, n2}. Temos que ynzn − xnzn > d1zn e
d1zn > d1d2 para todo n ≥ n0. Das equações acima, temos que ynzn−xnzn > d1zn > d1d2
donde ynzn − xnzn > d2d1 para todo n ≥ n0. Como d2d1 ∈ Q e d2d1 > 0, segue que
[xnzn] ≺ [ynzn]. E, como [xnzn] = [xn] ⊗ [zn] e [yn + zn] = [yn] ⊗ [zn], segue que
[xn]⊗ [zn] ≺ [yn]⊗ [zn] donde [xn]⊗ [zn] � [yn]⊗ [zn], isto é, x⊗ z � y ⊗ z.
A observação abaixo mostra que, num certo sentido, Q ⊂ R/∼.
Observação 2.12. Denote Q :=
{
[xn] ∈ R/∼; (xn)n∈N é convergente em Q} e defina
f : Q → Q, onde f
(
[xn]
)
= lim
n→∞
xn. Note que f está bem definida, pois se [xn] ∈ Q e
(zn)n∈N ∈ [xn], então (zn)n∈N é convergente e lim
n→∞
zn = lim
n→∞
xn. Além disso, f é injetiva,
pois se [xn], [yn] ∈ Q e lim
n→∞
xn = lim
n→∞
yn, então (xn)n∈N ∼ (yn)n∈N donde [xn] = [yn].
Ainda, f é sobrejetiva, pois se x ∈ Q, denotando por [x] a classe da sequência constante igual
x, temos que [x] ∈ Q e f ([x]) = x. Note, também, que, pelas definições 2.4 e 2.6, temos que
f ([xn]) ≤ f ([yn]) se, e só se, [xn] � [yn] e, além disso, f ([xn]⊕ [yn]) = f ([xn]) + f ([yn])
e f ([xn]⊗ [yn]) = f ([xn]) × f ([yn]) (LIMA, 1976, Teorema 7, p. 200)3. Portanto, f é um
isomorfismo de corpos ordenados. Assim, Q é uma “cópia” de Q em R/∼. Neste sentido,
podemos dizer que Q ⊂ R/∼ e substituiremos os śımbolos ⊕, ⊗, 	, -1© ≺ e � respectivamente
por, +, ×, −, −1, < e ≤.
3Sejam X ⊂ R, a ∈ X ′ e f, g : X → R. Se lim
x→a
f(x) = L e lim
x→a
g(x) = M , então lim
x→a
[f(x) ± g(x)] =
L ±M e lim
x→a
[f(x) · g(x) = L ·M . Se M 6= 0 então lim
x→a
[
f(x)
g(x)
]
=
L
M
. Se lim
x→a
f(x) = 0 e existe uma
constante A tal que |g(x)| ≤ A para todo x ∈ X − a então lim
x→a
[f(x) · g(x)] = 0, mesmo que não exista
lim
x→a
g(x).
29
Todos os lemas a seguir são necessários para provar o Teorema 2.20, isto é, para provar
que R/∼ possui a propriedade do supremo, tornando-o (um corpo ordenado) completo.
Lema 2.13. Sejam (xn)n∈N ∈ R e c ∈ Q. Se existe n0 ∈ N tal que xn < c para todo n ≥ n0,
então [xn] ≤ c. Mais precisamente, se existe n0 ∈ N tal que xn < c para todo n ≥ n0, então
[xn] ≤ [cn], onde (cn)n∈N ∈ R e cn = c para todo n ∈ N.
Demonstração. Sejam (xn)n∈N ∈ R, c ∈ Q e n0 ∈ N tais que xn < c para todo n ≥ n0.
Se (xn)n∈N converge para c, então [xn] = c. Se (xn)n∈N não converge para c, então existem
d ∈ Q, d > 0, e n1 ∈ N, n1 ≥ n0, tais que |xn − c| ≥ d >
d
2
para todo n ≥ n1. Dáı, sendo
(cn)n∈N ∈ R tal que cn = c para todo n ∈ N, temos que cn − xn >
d
2
para todo n ≥ n1
donde, pela Definição 2.6, [xn] < [cn]. Isto é, [xn] < c.
Lema 2.14. Toda sequência (xn)n∈N ∈ R converge em R/∼ para [xn]. Mais precisamente,
seja (xn)n∈N ∈ R e denote x := [xn] ∈ R/∼. Como (xn)n∈N ⊂ Q, pela Observação 2.12,
(xn)n∈N ⊂ R/∼. Segue que lim
n→∞
xn = x em R/∼.
Demonstração. Sejam (xn)n∈N ∈ R e x := [xn]. Seja ε ∈ Q, ε > 0. Consideremos ainda
r > 0 um número racional tal que r < ε. Como (xn)n∈N ∈ R existe n0 ∈ N tal que, para
quaisquer m,n ∈ N com m,n ≥ n0 tem-se |xn − xm| < r donde −r + xn < xm < r + xn.
Assim, para cada m ≥ n0, pelo Lema 2.13, [−r + xn] ≤ xm ≤ [r + xn] donde [−r] + [xn] ≤
xm ≤ [r] + [xn]. Logo −r + x ≤ xm ≤ r + x donde |xm − x| ≤ r para todo m ≥ n0. Assim,
|xm − x| < ε e, portanto (xn)n∈N converge em R/∼ para [xn].
O momento chave nesta jornada de demonstrar que R/∼ é completo é o Lema 2.14.
A prinćıpio, a prova deste lema pode causar estranheza, pois (xn)n∈N é uma sequência de
elementos de Q e, ao mesmo tempo, converge para um elemento de R/∼, que são conjuntos
de naturezas diferentes. No entanto, vimos na Observação 2.12 que R/∼ contém uma cópia
de Q. Portanto, podemos dizer que (xn)n∈N converge para um elemento de R/∼.
Lema 2.15. Qualquer que seja x ∈ R/∼, existe um número natural n tal que x < n.
30
Demonstração. Seja x ∈ R/∼, digamos x = [xn]. Como toda sequência de Cauchy é
limitada, temos que (xn)n∈N é limitada. Dáı existe k ∈ Q com k > 0 tal que |xn| ≤ k donde
−k ≤ xn ≤ k para todo n ∈ N. Seja (yn)n∈N a sequência de Cauchy de termos todos iguais a
k. Então, para todo n ∈ N, temos 0 ≤ yn−xn. donde 0 ≤ lim
n→∞
yn−xn (LIMA, 1976, Teorema
4, p. 111)4. Além disso, pela Observação 2.12, podemos olhar para (xn)n∈N e (yn)n∈N como
sequências em R/∼, isto é, (xn)n∈N, (yn)n∈N ⊂ R/∼. Por isso e pelo Lema 2.14, temos que
lim
n→∞
xn = x e lim
n→∞
yn = k. Dáı, 0 ≤ lim
n→∞
yn − xn = lim
n→∞
yn − lim
n→∞
xn = k − x. Assim,
x ≤ k. Como k é um número racional, existe um número natural n tal que k ≤ n donde
x ≤ n.
Lema 2.16 (Propriedade arquimediana). Dados x, y ∈ R/∼, sendo x > 0, existe um número
natural p tal que y < px.
Demonstração. Sejam x, y ∈ R/∼, sendo x > 0. Suponha que px ≤ y para todo p ∈ N.
Então, pela compatibilidade da multiplicação com a relação de ordem,
px ≤ y ⇒ pxx−1 ≤ yx−1 ⇒ p ≤ yx−1
para todo p ∈ N. Mas isso contradiz o Lema 2.15. Portanto, existe um número natural p tal
que y < px.
Lema 2.17 (Densidade). Sejam x, y ∈ R/∼ tais que x < y. Existe um número racional r tal
que x < r < y.
Demonstração. Sejam x, y ∈ R/∼ tais que x < y, digamos x = [xn] e y = [yn]. Se
x < 0 < y, então basta tomarmos r = 0. Vejamos o caso 0 ≤ x < y, o caso x < y ≤ 0 é
análogo. Temos que
y − x
2
=
[
yn − xn
2
]
. Como x < y,
y − x
2
6= 0 donde
(
yn − xn
2
)
n∈N
não converge para zero. Dáı, existem subsequências (xnk)k∈N ⊂ (xn)n∈N e (ynk)k∈N ⊂ (yn)n∈N
tais
ynk − xnk
2
> h para algum h ∈ Q, h > 0. Logo y − x
2
≥ h. Além disso, como h > 0,
pelo Lema 2.16, existe t ∈ N tal que y < th. Disso e de x < y, obtemos x < th. Seja
A := {k ∈ N; x < kh}. Note que A 6= ∅, pois t ∈ A. Pelo Prinćıpio da Boa Ordem (LIMA,
4Toda sequência monótona limitada é convergente
31
1976, Teorema 1, p. 39)5, A possui ḿınimo. Denotemos p = minA e r := ph. Se p = 1,
então x < h = r e
r = h = 0 + h ≤ x+ 1
2
(y − x) < x+ (y − x) = y
donde x < r < y. Se p > 1, então p− 1 ∈ N e, portanto,
r = (p− 1)h+ h ≤ x+ 1
2
(y − x) < x+ (y − x) = y,
donde x < r < y.
Lema 2.18. Se (xn)n∈N é uma sequência monótona e limitada de números racionais, então
(xn)n∈N ∈ R.
Demonstração. Consideremos que (xn)n∈N seja monótona não-decrescente. Como (xn)n∈N é
limitada superiormente, então existe a ∈ Q tal que xn < a, para todo n ∈ N. Assim,
x1 ≤ x2 ≤ . . . ≤ xn ≤ . . . < a.
Suponhamos, por absurdo, que (xn)n∈N não pertença a R, isto significa que, existe ε ∈ Q,
ε > 0, tal que, qualquer que seja n0 ∈ N, existem dois ı́ndices r e s, podemos supor r < s
com r > n0 e s > n0 tais que xs − xr ≥ ε. Então, para tal ε, podemos determinar números
naturais, r1 e s1, r2 e s2, . . . ri e si, com ri < si, i ∈ N, tais que si ≤ ri+1. Assim,
xs1 ≥ xr1 + ε,
xs2 ≥ xr2 + ε ≥ xs1 + ε ≥ xr1 + ε+ ε = xr1 + 2ε,
...
xsl ≥ xr1 + lε
para todo l ∈ N. Tendo em vista a propriedade arquimediana, Lema 2.16, podemos tomar
5Todo subconjunto não-vazio A ⊂ N possui um elemento ḿınimo.
32
k ∈ N de modo que, kε > a− xr1 . Então,xsk ≥ xr1 + kε > xr1 + a− xr1 = a.
Deste modo existe pelo menos um elemento de (xn)n∈N que é maior que a, isto contradiz o
fato de que xn < a para todo n ∈ N. Portanto (xn)n∈N ∈ R.
As demonstrações para os outros casos posśıveis de sequências monótonas são análogas.
Lema 2.19. Sejam (xn)n∈N,(yn)n∈N ∈ R. Se para cada ε ∈ Q, ε > 0, existe n0 ∈ N tal que
|xn − yn| < ε para todo n ≥ n0, então lim
n→∞
xn = lim
n→∞
yn.
Demonstração. Sejam (xn)n∈N,(yn)n∈N ∈ R e ε ∈ Q, ε > 0, arbitrário. Por hipótese, existe
n0 ∈ N tal que |xn − yn| <
ε
3
para todo n ≥ n0. Pelo Lema 2.14, (xn)n∈N e (yn)n∈N
convergem, respectivamente, para [xn] e [yn]. Denotando x := [xn] e y := [yn], temos que
lim
n→∞
xn = x e lim
n→∞
yn = y. Logo, existem n1 ∈ N e n2 ∈ N tais que |xn − x| <
ε
3
para todo
n ≥ n1 e |yn − y| <
ε
3
para todo n ≥ n2. Assim
|x− y| = |x− xn + xn − yn + yn − y| ≤ |x− xn|+ |xn − yn|+ |yn − y| <
ε
3
+
ε
3
+
ε
3
= ε
para todo n ≥ max{n0, n1, n2}. Isto é, |x− y| < ε para todo ε ∈ Q, ε > 0.
Se ocorresse x 6= y, teŕıamos 0 < |x − y| donde, pelo Lema 2.17, existiria ε ∈ Q tal que
0 < ε < |x− y|. Dáı, |x− y| < ε < |x− y|. O que é um absurdo. Portanto, x = y.
Teorema 2.20. R/∼ é um corpo ordenado completo. Isto é, se A ⊂ R/∼ é não vazio e
limitado superiormente, então A possui supremo em R/∼.
Demonstração. Seja A ⊂ R/∼ não vazio e limitado superiormente e consideremos u uma
cota superior de A. Pelo Lema 2.15, existe x1 ∈ Q tal que u < x1 donde x1 é cota superior
de A. Seja v ∈ R/∼ tal que v não é cota superior de A. Pelo Lema 2.17, existe y1 ∈ Q tal
que y1 < v donde y1 não é cota superior de A. Observe que y1 < x1, pois y1 < v < x1.
Tomemos x2 ∈ R/∼ da seguinte forma: se
x1 + y1
2
é cota superior de A, então x2 :=
x1 + y1
2
, mas se
x1 + y1
2
não é cota superior de A, então x2 := x1. E tomemos y2 ∈ R/∼
33
da seguinte forma: se x2 =
x1 + y1
2
então, y2 := y1, mas se x2 = x1 então, y2 :=
x1 + y1
2
.
Observe que x2 − y2 =
x1 − y1
2
. Generalizando, para cada n ∈ N, tomamos indutivamente
xn+1 ∈ R/∼ da seguinte forma: se
xn + yn
2
é cota superior de A, então xn+1 :=
xn + yn
2
,
mas se
xn + yn
2
não é cota superior de A, então xn+1 := xn. E, para cada n ∈ N, tomamos
yn+1 ∈ R/∼ da seguinte forma: se xn+1 =
xn + yn
2
então, yn+1 := yn, mas se xn+1 = xn
então, yn+1 :=
xn + yn
2
.
Observe que constrúımos sequências (xn)n∈N, (yn)n∈N ⊂ Q monótonas e limitadas. Pelo
Lema 2.18, (xn)n∈N, (yn)n∈N ∈ R. Temos, ainda, que xn+1−yn+1 =
xn − yn
2
donde xn−yn =
x1 − y1
2n−1
para todo n ∈ N. Dado ε ∈ Q, ε > 0, pelo Lema 2.16, existe p ∈ N tal que
x1 − y1 < pε. Tomando n0 ∈ N tal que 2n0−2 > p, temos que
x1 − y1
2n0−2
< ε. Dáı,
xn − yn =
x1 − y1
2n−1
<
x1 − y1
2n0−2
< ε
para todo n ≥ n0. Além disso, temos que xn − yn =
x1 − y1
2n−1
> 0 donde yn < xn para todo
n ∈ N. Assim, |xn − yn| = xn − yn < ε para todo n ≥ n0. Portanto, estão satisfeitas as
hipóteses do Lema 2.19. Sendo assim, existe k ∈ R/∼ tal que lim
n→∞
xn = k = lim
n→∞
yn.
Afirmamos que k é o supremo de A. De fato, qualquer que seja x ∈ A, se tem x ≤ xn
para todo n ∈ N. E, então, x ≤ lim
n→∞
xn = k. Suponhamos que exista s ∈ R/∼ tal que s < k
e s é cota superior de A. Assim, k − s > 0. Como lim
n→∞
yn = k, então existe n0 ∈ N, tal que
para todo n ≥ n0 tem-se
|yn − k| < k − s⇒ s− k < yn − k < k − s⇒ s < yn < 2k − s.
Logo, para n ≥ n0, segue que s < yn. Mas por construção, nenhum termo de yn é cota
superior de A , então s também não o é. Deste modo temos uma contradição pois supomos
que s é cota superior de A. Portanto k ∈ R/∼ e k é supremo de A.
Observação 2.21. Pelo Teorema 2.20, R/∼ é um corpo ordenado completo. Por isso,
chamaremos R/∼ de conjunto dos números reais e o denotaremos por R. Além disso, cada
elemento de R será chamado de número real.
Vimos, portanto, a construção dos números reais por meio de sequências de Cauchy.
34
Definimos o conjunto R de todas as sequências de Cauchy e ainda uma relação∼ que provamos
ser de equivalência. Definimos o conjunto de todas as classes de equivalência como sendo
R/∼. Definimos a adição e multiplicação e provamos que as operações estão bem definidas.
Definimos e provamos a relação de ordem. Provamos que R/∼ é um corpo ordenado e por
fim que é completo, renomeando R/∼ de conjunto dos números reais.
À vista disso, cumprimos com o objetivo de construir os números reais de forma anaĺıtica.
No entanto, sabemos que esta não é a maneira adequada de ensiná-los no Ensino Básico.
Contudo, é essencial entender o método de construção para criar mecanismos que facilitem o
entendimento do estudante sem provocar desvio em sua estrutura.
Caṕıtulo 3
Propriedades de números reais
Diversas propriedades dos números reais são conhecidas por estudantes do Ensino Básico e,
é claro, por seus professores. Como por exemplo, todo número real pode ser representado na
forma decimal, todo número racional possui representação decimal finita ou infinita periódica,
todo número irracional possui representação decimal infinita não periódica e toda raiz n-ésima
inexata é irracional. Neste caṕıtulo fazemos as demonstrações destas propriedades.
Teorema 3.1. Todo número real possui expansão decimal. Mais precisamente, para todo
número real x, existe um número inteiro c e uma sequência (cn)n∈N ⊂ {0, . . . , 9} tal que
x = c+
c1
101
+
c2
102
+ · · · .
Demonstração. Seja x um número real e suponhamos que x é positivo. O caso x negativo é
análogo e, com respeito ao zero, é claro que 0 = 0 +
0
101
+
0
102
+ · · · .
Primeiro, tomamos c := bxc, onde btc := max{m ∈ Z; m ≤ t} para todo t ∈ R.
Notamos que c ≤ x < c + 1 donde 0 ≤ x − c < 1 e, assim, 0 ≤ 10(x − c) < 10.
Agora, tomamos c1 := b10(x − c)c e notamos que c1 ∈ {0, . . . , 9}. Notamos também que
c1 ≤ 10(x − c) < c1 + 1 donde c +
c1
10
≤ x < c + c1
10
+
1
10
. Em seguida, para cada k ∈ N,
dados c1, . . . , ck ∈ {0, . . . , 9} tais que c+
c1
10
+ · · ·+ ck
10k
≤ x < c+ c1
10
+ · · ·+ ck
10k
+
1
10k
,
tomamos ck+1 :=
⌊
10k+1
(
x− c− c1
10
− · · · − ck
10k
)⌋
. Notamos que ck+1 ∈ {0, . . . , 9} e
c+
c1
10
+ · · ·+ ck
10k
+
ck+1
10k+1
≤ x < c+ c1
10
+ · · ·+ ck
10k
+
ck+1
10k+1
+
1
10k+1
.
Desta forma, obtemos um número inteiro c e, pelo Prinćıpio de Indução (LIMA, 2006, Item
35
36
3, p. 1)1, uma sequência (cn)n∈N ⊂ {0, . . . , 9} tais que
0 ≤ x−
(
c+
c1
10
+ · · ·+ cn
10n
)
<
1
10n
para todo n ∈ N. Logo, lim
n→∞
(
c+
c1
10
+ · · ·+ cn
10n
)
= x, isto é, x = c+
c1
101
+
c2
102
+ · · · .
Teorema 3.2. Para todo número real x, segue que x é racional se, e somente se a expansão
decimal de x é finita ou periódica.
Demonstração. Seja x um número racional e vejamos que sua expansão decimal é finita ou
periódica. Suponhamos que x é positivo. O caso x negativo é análogo. Denotemos x =
p
q
onde p, q ∈ N, q 6= 0 e mdc(p, q) = 1 e seja x = bxc+ c1
101
+
c2
102
+ · · · a sua representação
decimal. Agora, definamos x1 := x− bxc e
xn+1 := 10xn − b10xnc para todo n ∈ N. (3.1)
Note que 0 ≤ xn < 1 para todo n ∈ N e que qx1 = p− qbxc. Como p− qbxc é um número
inteiro, qx1 também é inteiro. Além disso, qxn+1 = 10qxn − qb10xnc para todo n ∈ N. Por
indução, segue que qxn é inteiro para todo n ∈ N. Note também que 0 ≤ qxn < q para todo
n ∈ N. Se xn = 0 para algum n ∈ N, então de (3.1), segue que xj = 0 para todo j ≥ n.
Assim
x = bxc+ b10x1c
10
+
b10x2c
102
+ . . .+
b10xn−1c
10n−1
+
0
10n
+
0
10n+1
. . .
e, portanto, x possui representação decimal finita. Se xn 6= 0 para todo n ∈ N, temos que
0 < qxn < q para todo n ∈ N. Assim, para cada n ∈ N, qxn pertence ao conjunto finito
{1, . . . , q − 1}. Dáı, existe um número natural h, com h < q tal que qxq = qxh. Denotando
s = q − h, temos que qxh+s = qxh donde xh+s = xh. Assim, de (3.1), segue que xn+s = xn
para todo n > h e, portanto, cn = cn+s, para todon ≥ h. Assim, a representação decimal de
x é infinita periódica.
Reciprocamente, iremos provar que, se a sequência de d́ıgitos (cn)n∈N é periódica, então
o número x = bxc + c1
10
+
c2
102
+ . . . é racional. Se existem números naturais s e h tai que
1Se um conjunto X ⊂ N é tal que 1 ∈ X e 1 + n ∈ X sempre que n ∈ X, então X = N.
37
cn+s = cn quando n ≥ h, temos
x = bxc+ c1
10
+ . . .+
ch
10h
+
ch+1
10h+1
+ . . .+
ch
10h+s
+
ch+1
10h+s+1
. . . .
Logo, fazendo bxc = d1 . . . dk temos
10s+h−1x− 10h−1x = d1 . . . dkc1c2 . . . ch+s−1 − d1 . . . dkc1c2 . . . ch−1
e, portanto,
x =
d1 . . . dkc1c2 . . . ch+s−1 − d1 . . . dkc1c2 . . . ch−1
10h−1(10s − 1)
donde conclúımos que x é um número racional.
Corolário 3.3. Todo número irracional possui representação decimal infinita não-periódica.
Demonstração. Já está demonstrado no teorema anterior. Uma vez que todo decimal finito
ou periódico é racional, os infinitos não periódicos só podem ser os irracionais.
Duas propriedades simples, porém muito importantes, podem ser facilmente mostradas no
Ensino Básico. Abaixo veremos como é posśıvel demonstrar que a multiplicação e a adição
entre um número irracional e um número racional resulta em um número irracional.
Teorema 3.4. O produto de um número irracional por um racional diferente de zero é um
número irracional.
Demonstração. Sejam α irracional e
a
b
um racional diferente de zero, isto é, a, b ∈ Z \ {0}.
Se x = α
a
b
fosse racional, então teŕıamos x =
c
d
, onde c, d ∈ Z \ {0}. Dáı, c
d
= α
a
b
donde
α =
cb
da
, o que é absurdo, pois α é irracional. Logo x só pode ser irracional.
Teorema 3.5. A soma de um número irracional por um racional é um número irracional.
Demonstração. Sejam α irracional e
a
b
um racional, isto é, a, b ∈ Z com b 6= 0. Se x = α+ a
b
fosse racional, então teŕıamos x =
c
d
, onde c, d ∈ Z com d 6= 0. Dáı c
d
= α +
a
b
, portanto,
38
c
d
− a
b
= α +
a
b
− a
b
donde α =
cb− ad
bd
, o que é absurdo, pois α é irracional. Logo x só
pode ser irracional.
Nossa proposta para ensino dos números reais que será feita no Caṕıtulo 6, usa
√
2 como
exemplo de existência de números irracionais e em boa parte dos livros didáticos usa-se esta
e outras ráızes inexatas, como
√
3 e
√
5. De fato, todas as ráızes inexatas são irracionais.
Abaixo veremos a prova disto.
Lema 3.6. Seja p o polinômio p(x) = a0 + a1x+ a2x
2 + . . . anx
n com a0, a1, a2, . . . , an ∈ Z
e an 6= 0. Se
c
d
, onde c, d ∈ Z e d 6= 0 e mdc(c, d) = 1, é raiz de p, então d divide an.
Demonstração. Se o racional
c
d
é ráız do polinômio p, teremos p
( c
d
)
= 0, ou seja, a0 +
a1
( c
d
)
+ a2
( c
d
)2
+ . . .+ an
( c
d
)n
= 0. Multiplicando ambos os membros por dn, temos
a0d
n + a1cd
n−1 + a2c
2dn−2 + . . .+ an−1c
n−1d+ anc
n = 0.
Somando ambos os membros da igualdade por −ancn e pondo d em evidência no primeiro
membro, obtemos
d
(
a0d
n−1 + a1cd
n−2 + . . .+ an−1c
n−1) = −ancn.
Isso mostra que d ou divide an ou c
n. Como d não divide c, pois são primos entre si, d também
não divide cn. Logo d divide an.
Teorema 3.7 (Toda raiz n-ésima inexata é irracional). Se r, n ∈ N, então ou n
√
r é um
número inteiro ou n
√
r é um número irracional.
Demonstração. Observe que n
√
r é ráız do polinômio p(x) = xn − r. Se n
√
r é irracional, não
há o que fazer. Se n
√
r não é irracional, então n
√
r =
c
d
onde c, d ∈ Z e d 6= 0 e mdc(c, d) = 1.
Pelo Lema 3.6, d divide 1, ou seja, d = 1 ou d = −1 donde n
√
r =
c
d
= ±c. Portanto, n
√
r é
um número inteiro.
39
Vimos que todas as ráızes não inteiras são números irracionais, mas não são os únicos.
Existem números que não são representados por ráızes e são irracionais. Dois exemplos são os
números π, que já mencionamos no Caṕıtulo 2, e o número de Euler, e. Estes são os números
irracionais mais conhecidos. Ambos são importantes em diversos segmentos da matemática e
de outras ciências e merecem ser destacados neste trabalho, principalmente por serem números
que são apresentados no Ensino Básico como números irracionais sem uma discussão sobre
isto, o que causa um obstáculo para o estudante no entendimento desses números.
Veremos que não é simples mostrar que estes números são irracionais, e por outro lado
apresentaremos propostas para que sejam aplicados no Ensino Básico.
Caṕıtulo 4
O número π
O número π, amplamente utilizado tanto nas salas de aula como em diversas situações
que envolvem a matemática e as ciências, não teve seu valor e significado bem definidos desde
sua primeira observação. Ao contrário, percorrendo o tempo e o espaço geográfico, recebeu
variadas definições e interpretações, algumas mais próximas que outras da versão utilizada
atualmente. Apresentaremos, a seguir, algumas dessas notáveis concepções sobre este número
tão relevante.
4.1 Breve histórico do número π
4.1.1 Idade Antiga e Antiguidade Clássica
Por volta de 2000 a.C., o homem começou a estabelecer algumas relações importantes no
campo da Matemática. Uma delas é a que viria a se tornar o que conhecemos atualmente
como o π. A preocupação, neste momento, era descobrir e expressar essas relações entre
grandezas de forma qualitativa. Exemplo disso é a afirmação de que, “Quanto maior o ćırculo
é ‘através’ (referência ao diâmetro), maior ele é ‘em volta’ (referindo-se ao comprimento)[...]
Não importa como as duas quantidades variam proporcionalmente. Esta relação permanece
constante.”(BECKMANN, p. 11 - tradução nossa). Tal afirmativa caracteriza-se por não
possuir exceções.
Essa descoberta foi um grande passo para a determinação do π, pois, se o “em volta”
40
41
(circunferência) e o “através (diâmetro) são reconhecidas como proporcionais, como foram,
segue-se imediatamente que a divisão da primeira pela segunda resulta numa constante para
todos os ćırculos. Essa divisão constante não recebeu a notação π até o século XVIII. d.C.
Há evidências de que povos da Antiguidade, como babilônios e eǵıpcios, tinham noção
da existência do π como a divisão de grandezas mostrada acima. Ademais, teriam ambos
chegado a aproximações de seu valor: π = 3
1
8
para os primeiros e π = 4
(
8
9
)2
para os
segundos. Destacam-se, ainda na Idade Antiga, os valores π = 3, π = 3
1
7
e π = 3
1
8
como os
mais encontrados.
No Antigo Testamento, livro sagrado dos judeus, há referências nos textos de I Reis e de II
Crônicas, este segundo em seu quarto caṕıtulo, no 2o verso, onde se lê: “Fez também o mar
de fundição; era redondo e media dez côvados duma borda à outra, cinco de altura e trinta
de circunferência.”. Por essas medidas relatadas, e considerando a medida de π como a razão
entre o comprimento da circunferência e seu diâmetro, temos que o valor de π áı seria igual
a 3.
Alguns filósofos gregos da Antiguidade Clássica também estão ligados à história do π.
Anaxágoras1, quando preso em Atenas por anunciar que o Sol não era uma divindade, tentou
fazer a quadratura do ćırculo – um problema relacionado ao π, que consiste em construir um
quadrado que possua área igual a de um ćırculo dado.
O sofista2 Antifonte3 enunciou o prinćıpio da exaustão: tomado um quadrado inscrito
num ćırculo, e os poĺıgonos regulares seguintes a ele, cada um com o dobro de lados que seu
antecessor, num dado momento um poĺıgono eventual coincidirá com o ćırculo, por serem seus
lados muito pequenos. Isso levou Antifonte a crer que poderia ser realizada a quadratura do
ćırculo, partindo da ideia de que é posśıvel fazê-lo para qualquer poĺıgono e que o “poĺıgono
eventual”é equivalente ao ćırculo.
A grande importância de Euclides de Alexandria4 se dá em relação ao rigor matemático
utilizado em suas construções. Foram postulados por ele axiomas que não poderiam ser prova-1Anaxágoras. ? Clazômenas, Grécia, ca. 500 a.C., † Lâmpsaco, Grécia, 428 a.C.
2Os sofistas eram de grupos de mestres que viajavam de cidade em cidade realizando aparições públicas
(discursos, etc) para atrair estudantes, de quem cobravam taxas para oferecer-lhes educação. O foco central
de seus ensinamentos concentrava-se no logos (ou, discurso), com foco em estratégias de argumentação.
3Antifonte. ? Atenas, Grécia, ca. 480 a.C., † Atenas, Grécia, ca. 410 a.C.
4Euclides de Alexandria. ? Alexandria, Egito, 330 a.C., † Não conhecida
42
dos com os recursos dos gregos antigos. Os axiomas eram as verdades óbvias, que poderiam
ser aceitas por qualquer um. A partir deles, cada passo seria dado pela sua consequência
imediata, sem que se utilizasse o que se quer provar como elemento da demonstração, pois
isso a caracterizaria como circular e a faria perder seu valor. Um exemplo de demonstração é
fazer a quadratura de um retângulo. Esta não será exposta neste trabalho, mas é importante
salientar que consiste numa redução a um dos axiomas euclidianos, o que a tornaria uma
demonstração válida. O mesmo não acontece com a quadratura do ćırculo de H́ıpias 5, e,
portanto, tal construção é considerada inválida.
A contribuição romana para a matemática foi pequena, limitando-se à figura de Posidónio6,
que calculou a circunferência da Terra com certa precisão. Na arquitetura e engenharia militar
de Roma foram usados valores iguais ao já utilizados pelos babilônios cerca de 2 mil anos
antes.
Pouco se sabe sobre a vida de Arquimedes de Siracusa7, grande matemático, f́ısico e
engenheiro. Ele estudou na Universidade de Alexandria, possivelmente com os sucessores
de Euclides, ou com ele próprio. Utilizou a abordagem de Euclides, partindo de postulados
simples e deduzindo suas proposições com uma lógica impecável. Ele foi o primeiro a utilizar
um método razoável para calcular o valor de π com uma precisão desejável. Seu método,
que lembra o conceito de limite, consiste, grosso modo, em tomar um poĺıgono regular com n
lados inscrito numa circunferência e, portanto, com peŕımetro menor que o dela, e um outro
poĺıgono, circunscrito e de peŕımetro maior que o da circunferência, com o mesmo número
de lados (n) que o anterior. Aumentando suficientemente o número n, os dois peŕımetros se
aproximarão da circunferência, um por cima e um por baixo. Ele chegou ao seguinte resultado:
3
10
71
< π < 3
1
7
.
Já Ptolomeu8, o astrônomo, que trabalhou em Alexandria em 139-161 d.C., usou o seguinte
5H́ıpias. ? Élis, Grécia, ca. 460 a.C., † ca. 400 a.C.
6Posidónio. ? Apameia, Śıria, 135 a.C., † Rodes, Grécia, 51 a.C.
7Arquimedes. ? Siracusa, Grécia, ca. 287 a.C., † Siracusa, Grécia, ca. 212 a.C.
8Ptolomeu. ? Alexandria, Egito, 90 d.C., † Alexandria, Egito, 168 d.C.
43
valor:
π = 3
17
120
= 3, 14167,
que provavelmente tomou de Apolônio9, um matemático mais novo que Arquimedes.
4.1.2 Era Medieval
Um dos matemáticos mais importantes na Europa medieval foi Leonardo de Pisa, mas co-
nhecido como Fibonacci10. Ele era um mercador italiano que usava rotas árabes. Publicou um
livro utilizando algarismos indo-arábicos e álgebra. A sequência que leva seu nome (sequência
de Fibonacci) tornou-o famoso e tem larga aplicação em diversas áreas. Também trabalhou
com o π, mas seu progresso não foi tão grande como em seus outros trabalhos. Teoricamente,
não apresentou tanta qualidade quanto Arquimedes. Contudo, os limites que encontrou foram
mais precisos, e o valor médio entre eles é correto em três casas decimais:
π =
864
275
= 3.141818.
O papa Silvestre II11, de origem francesa, cuja grande importância reside em ter estabele-
cido o cânon da missa, foi atuante na poĺıtica e professor, tendo sido tutor e conselheiro de
imperadores alemães. Em seus estudos e ensino, utilizou o valor:
π =
22
7
.
Dominicus Parisiensis12, atuante nas áreas da matemática, medicina e astrologia, destacava-
se sobre seus contemporâneos por saber que o valor
22
7
era uma aproximação.
O alemão Nicolau de Cusa13, que viria a ser cardeal, após ter problemas com seu pai na
infância, iniciou sua vida de estudos. Tornou-se um dos maiores pensadores da Idade Média
a serviço da Igreja. Seu trabalho diretamente com o π não obteve grande sucesso, mas ele
encontrou uma boa aproximação para o comprimento de um arco circular.
9Apolônio. ? Tiana, Turquia, 15 d.C., † Éfeso, Turquia, 100 d.C.
10Fibonacci. ? Pisa, Itália, ca. 1170 d.C., † ca 1250 d.C.
11Silvestre II. ? Saint-Simon, França, 946 d.C., † Roma, Itália, 1003 d.C.
12Dominicus Parisiensis. ? 1378 d.C.
13Nicolau de Cusa. ? Bernkastel-Kues, Alemanha, 1401 d.C., † Todi, Itália, 1462 d.C.
44
François Viète14 foi o primeiro a sistematizar a notação algébrica. Introduziu palavras
como negativo e coeficiente. Também era especialista em códigos, tendo decifrado mensagens
importantes. Começou a trabalhar com o π de maneira semelhante a Arquimedes, porém
utilizando o quadrado, em vez de um hexágono. Seu resultado colocou π como uma sequência
infinita de operações algébricas. Ele reduziu os limites de Arquimedes a:
3, 1415926535 < π < 3.1415926567.
4.1.3 Idade Moderna e Peŕıodo Contemporâneo
Muitos outros tentaram encontrar o verdadeiro valor de π, isto é, supunham que π teria
representação decimal finita ou infinita periódica, mas, em 1976, o matemático Johann Hein-
rich Lambert15 provou sua irracionalidade, entregando a quem viesse a estudar o π a nova
tarefa de identificar o maior número posśıvel de casas decimais.
Atualmente, já foram identificados através de super computadores mais de 2 quatrilhões de
d́ıgitos decimais para o número π, mas, antes disso, muitos cálculos foram feitos por grandes
estudiosos. O que podemos afirmar é que o número π é um elemento importante para a
história da matemática e, em especial, para este trabalho, por ser um número irracional tão
expressivo e estudado no Ensino Básico.
4.2 A irracionalidade do π
As definições do número π, assim como visto em sua história, podem ser dadas por: o
resultado do quociente entre o comprimento da circunferência pelo diâmetro ou o quociente
entre a área do ćırculo e o quadrado do raio. Contudo, estas são definições geométricas. O
que faremos agora, é dar uma definição anaĺıtica da constante π e, em seguida, a prova de
sua irracionalidade.
Defininamos as funções sen : R → R e cos : R → R por sen(x) =
∞∑
n=0
(−1)nx2n+1
(2n+ 1)!
e
14François Viète. ? Fontenay-le-Comte, França, 1540 d.C., † Paris, França, 1603 d.C.
15Johann Heinrich Lambert. ? Mulhouse, França, 1728 d.C., † Berlim, Alemanha, 1777 d.C.
45
cos(x) = 1 +
∞∑
n=1
(−1)nx2n
(2n)!
para todo x ∈ R. Note que sen(0) = 0 e cos(0) = 1.
As definições acima são motivadas nas séries de Taylor16 das funções seno e cosseno e é
posśıvel provar que elas são anaĺıticas, isto é, que elas são iguais às suas séries de Taylor. No
Ensino Básico, os estudantes conhecem o seno e o cosseno definidas no ciclo trigonométrico.
Estas são exatamente iguais as vistas aqui, no entanto, apesar de estarem corretas, as definições
do ciclo trigonométrico são geométricas, e seguiremos a tônica deste trabalho apresentando
as definições anaĺıticas.
Proposição 4.1. As funções sen e cos são deriváveis com sen′ = cos e cos′ = − sen.
Demonstração. Dado N ∈ N, definimos SN , CN : R→ R, para cada x ∈ R, por
SN(x) =
N∑
n=0
(−1)nx2n+1
(2n+ 1)!
e CN(x) = 1 +
N∑
n=1
(−1)nx2n
(2n)!
.
Temos que (SN)N∈N e (CN)N∈N convergem simplesmente para sen e cos (LIMA, 1976, pág.
362)17 , respectivamente. Fixado M > 0, mostraremos que a convergência de (CN)N∈N é
uniforme (LIMA, 1976, pág. 366)18 em [−M,M ].
Seja ε > 0. Como
∑
Mn/n! converge (NERI e CABRAL, 2008, Exemplo 4.17), existe
N0 ∈ N tal que
N ≥ N0 =⇒
+∞∑
n=2N+2
Mn
n!
< ε.
Então, para x ∈ [−M,M] e N ≥ N0, temos
|CN(x)− cos(x)| =
∣∣∣∣∣
+∞∑
n=N+1
(−1)nx2n
(2n)!
∣∣∣∣∣ ≤
+∞∑
n=N+1
M2n
(2n)!
≤
+∞∑
n=2N+2
Mn
n!
< ε.
Verifica-se facilmente que S ′N = CN para todo N ∈ N. Logo, (S ′N)N∈N converge uniforme-
mente para cos em [−M,M ].
16Série de Taylor é uma série de funções da seguinte forma : f(x) =
∞∑
n=0
an(x− a)n na qual an =
f (n)(a)
n!
17Diz-se que a sequência e funções fn : X → R converge simplesmente para a função f : X → R quando,
para cada x ∈ X, a sequência de números (f1(x), f2(x), . . . , fn(x), . . .) converge para o número f(x). Ou
seja, para todo x ∈ X fixado, tem-se lim
n→∞
fn(x) = f(x).
18[...] dizer que fn → f uniformemente em X significa afirmar que, para qualquer ε > 0 dado, pode-se
obter n0 ∈ N tal que todas as funções fn com n > n0, têm seus gráficos contidos na faixa de raio ε em torno
do gráfico de f
46
Temos que (S ′N)N∈N converge para uma primitiva da função cos em [−M,M ] (LIMA,
1976, Teorema 7, pág. 380)19, ou seja, sen′(x) = cos(x) para todo x ∈ [−M,M ]. Como M
é arbitrário, segue que sen′(x) = cos(x) para todo x ∈ R.
Analogamente, mostra-se que cos′(x) = − sen(x).
Corolário 4.2. Segue que sen2(x) + cos2(x) = 1 para todo x ∈ R.
Demonstração. Seja F : R → R dada por F (x) = ( sen(x))2 + (cos(x))2, para todo x ∈ R.
Temos F ′(x) = 2 sen(x) sen′(x) + 2 cos(x) cos′(x) = 2 sen(x) cos(x) − 2 cos(x) sen(x) = 0.
Portanto, F é constante. Como F (0) = 1, conclúımos a prova.
Corolário 4.3. Segue que sen(x) ∈ [−1, 1] e cos(x) ∈ [−1, 1] para todo x ∈ R.
Demonstração. Pelo Corolário 4.2, sen2(x) = 1 − cos2(x). Dáı, 0 ≤ 1 − cos2(x) donde
cos2(x) ≤ 1. Portanto, −1 ≤ cos(x) ≤ 1. Analogamente, −1 ≤ sen(x) ≤ 1.
Teorema 4.4. Existe uma única constante c > 0 tal que sen é estritamente crescente e cos
é estritamente decrescente em [0, c] com sen(c) = 1 e cos(c) = 0. Além disto, para todo
x ∈ R temos, sen(c+ x) = cos(x) e cos(c+ x) = − sen(x).
Demonstração. Como cos é cont́ınua (LIMA, 1976, Corolário do Teorema 10, p. 387)20
e cos(0) = 1, dado ε =
1
2
, existe δ > 0 tal que cos(x) ∈ (cos(0) − ε, cos(0) + ε) =(
1− 1
2
, 1 +
1
2
)
=
(
1
2
,
3
2
)
para todo x ∈ (−δ, δ) (LIMA, 1976, p. 222-223)21. Seja a ∈
(0, δ) arbitrário. Temos que cos(x) ∈
(
1
2
,
3
2
)
para todo x ∈ [0, a]. Em particular, cos(x) >
1
2
> 0 para todo x ∈ [0, a]. Como a derivada da função sen, neste intervalo, é positiva,
temos que sen é estritamente crescente (LIMA, 1976, Corolário 6 do Teorema 7, p. 274)22.
Em particular, sen(x) > sen(0) = 0 para todo x ∈ (0, a].
19Seja (fn) uma sequência de funções deriváveis no intervalo [a, b]. Se, para um certo c ∈ [a, b], a sequência
numérica (fn(c)) converge e se as derivadas f
′
n convergem uniformemente em [a, b] para uma função g, então
(fn) converge uniformemente em [a, b] para uma função derivável f , tal que f
′ = g.
20A função f : (−r, r)→ R, definida por f(x) =
∑
anx
n, é cont́ınua no intervalo de convergência (−r, r).
21Em termos precisos, diremos que f : X → R é cont́ınua no ponto a ∈ X quando, para todo ε > 0 dado
arbitrariamente, pudermos achar δ > 0 tal que x ∈ X e |x− a| < δ impliquem |f(x)− f(a)| < ε.
22Seja f : I → R derivável no intervalo I. Tem-se f ′(x) ≥ 0 para todo x ∈ I se, e somente se, f for
não-decrescente em I. Se f ′(x) > 0 para todo x ∈ I então f é crescente em I. Neste caso, f possui uma
inversa f−1, definida no intervalo f(I) = J , a qual é a derivável em J , com (f−1)′(y) =
1
f ′(x)
para todo
y = f(x) ∈ J .
47
Vejamos que existe y > a tal que cos(y) < 0. Suponhamos o contrário, isto é, que
cos(x) ≥ 0 para todo x > a. Como cos(a) > 0, cos(x) ≥ 0 para todo x ≥ a. Neste caso, sen
é crescente em [a,+∞). Seja x > a arbitrário, pelo Teorema do Valor Médio (LIMA, 1976,
Teorema 7, p. 272)23, existe x̄ ∈ (a, x) tal que cos(x)− cos(a) = − sen(x̄)(x−a). Como sen
é crescente em [a,+∞), sen(a) ≤ sen(x̄) donde − sen(x̄) ≤ − sen(a). Dáı, − sen(x̄)(x −
a) ≤ − sen(a)(x − a) donde cos(x) − cos(a) = − sen(x̄)(x − a) ≤ − sen(a)(x − a). Logo,
cos(x) = cos(a) − sen(a)(x − a). Como lim
x→∞
[cos(a) − sen(a)(x − a)] = −∞, segue que
lim
x→∞
cos(x) = −∞, o que é uma contradição ao Corolário 4.3.
Pelo que foi demonstrado, o conjunto {b ∈ (0,+∞); cos(x) > 0 ∀x ∈ [0, b]} é não vazio,
pois contém a, e limitado superiormente por y. Logo, pela propriedade do supremo (Teorema
2.20), {b ∈ (0,+∞); cos(x) > 0 ∀x ∈ [0, b]} possui supremo. Denote por c este supremo. É
claro que 0 < c.
A função cos é positiva em [0, c) e, portanto, sen é estritamente crescente em [0, c). Mas
sen(0) = 0 donde a função sen é positiva em (0, c) e, como cos′ = − sen, temos que cos é
estritamente decrescente em (0, c). Da continuidade de sen, temos que sen é estritamente
crescente em [0, c] e, da continuidade de cos, temos que cos é estritamente decrescente em
[0, c].
Da definição de c e da continuidade de cos, obtemos cos(c) = 0. Do Corolário 4.2,
obtemos | sen(c)| = 1. Porém, sen(c) ≥ sen(0) = 0 donde sen(c) = 1.
Considere as funções s, c : R → R dadas por s(x) = − cos(c + x) e c(x) = sen(c + x),
para todo x ∈ R. Vemos facilmente que s′ = c, c′ = −s, s(0) = 0 e c(0) = 1. Dáı, obtemos
que s = sen e c = cos (LIMA, 1976, Exemplo 20, pág. 392), completando a demonstração
da existência de c.
Agora, vejamos a unicidade. Suponha, por absurdo, que exista d tal que d 6= c e d
tem exatamente as mesmas propriedades de c do enunciado do teorema. Sem perda de
generalidade, suponhamos c < d. Como sen é estritamente crescente em [0, d], temos que
23Seja f : [a, b]→ R cont́ınua. Se f é derivável em (a, b), existe c ∈ (a, b), tal que
f ′(c) =
f(b)− f(a)
b− a
.
48
sen(c) < sen(d). Mas, como sen(c) = 1 e sen(d) = 1, temos que 1 < 1, o que é um
absurdo. Isto prova a unicidade de c.
Definição 4.5. Seja c a constante do Teorema 4.4. Chamaremos a constante 2c de π, isto
é, π := 2c.
Observação 4.6. Note que sen(π) = 0 e cos(π) = −1. De fato, sen(π) = sen
(π
2
+
π
2
)
=
cos
(π
2
)
= 0 e cos(π) = cos
(π
2
+
π
2
)
= − sen
(π
2
)
= −1.
Para o estudante do Ensino Básico é dif́ıcil entender que o número π é irracional, tendo
em vista suas definições, que usa o quociente como método de cálculo. Quando dizemos a
palavra “quociente”, nossa cabeça nos remete a ideia de números racionais, e para o estudante
deveria ser isto, afinal, o conteúdo de números racionais que foi lhes apresentado dizia a todo
instante que números racionais são aqueles que podem ser representados em forma de fração.
Precisa ficar claro, que todo núemro racional pode ser escrito como uma fração entre números
inteiros. Provar que o número π é irracional é tão dif́ıcil quanto apresentar sua definição. Na
verdade, vamos utilizar os mesmos pré requisitos que na definição, e, portanto, é inviável sua
apresentação ao Ensino Básico.
Esta demonstração se deve ao trabalho de Charles Hermite24.
Teorema 4.7. O número π2 é irracional e, portanto, π também é.
Demonstração. Suponhamos, por absurdo, que existem p, q ∈ N tais que π2 = p
q
.
Temos que lim
n→+∞
pn
n!
= 0 (NERI e CABRAL, 2008, Exemplo 4.17). Assim, dado ε =
1
π
,
podemos escolher n ∈ N, suficientemente grande, para que p
n
n!
=
∣∣∣∣pnn! − 0
∣∣∣∣ < ε = 1π (LIMA,
1976, p. 107)25.
Seja f : R→ R dada por f(x) = x
n(1− x)n
n!
para todo x ∈ R e vejamos que
f (k)(0), f (k)(1) ∈ Z para todo k ∈ N. (4.1)
24Charles Hermite. ? Dieuze, França, 24 de dezembro de 1822, † Paris, França, 14 de janeiro de 1901
25Diz-se que o número real a é limite da sequência (xn) de números reais, e escreve-se a = limxn, ou
a = lim
n
xn, ou a = lim
n→∞
xn, quando para cada número real ε > 0, dado arbitrariamente, for posśıvel obter
um inteiro n0 ∈ N tal que |xn − a| < ε, sempre que n > n0.
49
Primeiro, note que existem cn, cn+1, . . . , c2n ∈ Z tais que f(x) =
1
n!
(cnx
n + cn+1x
n+1 +
. . . + c2nx
2n) para todo x ∈ R. De fato, xn(1 − x)n

Continue navegando