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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ CENTRO DE HUMANIDADES PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA MESTRADO ACADÊMICO EM FILOSOFIA HEDY CARLOS SANTOS DE PINA DA SUPERAÇÃO DA MORAL NO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE FORTALEZA - CEARÁ 2018 HEDY CARLOS SANTOS DE PINA DA SUPERAÇÃO DA MORAL DO ZARATUSTRA DE NIETZSCHE Dissertação apresentada do Curso de Mestrado Acadêmico em Filosofia da Universidade Estadual do Ceará, como requisito parcial à obtenção do título de Mestre em Filosofia. Área de concentração: Ética Fundamental. Orientador: Prof. Dr. Gustavo Costa. FORTALEZA - CEARÁ 2018 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação Universidade Estadual do Ceará Sistema de Bibliotecas de Pina, Hedy Carlos. Da superação da moral do Zaratustra de Nietzsche [recurso eletrônico] / Hedy Carlos de Pina. - 2018. 1 CD-ROM: il.; 4 ¾ pol. CD-ROM contendo o arquivo no formato PDF do trabalho acadêmico com 83 folhas, acondicionado em caixa de DVD Slim (19 x 14 cm x 7 mm). Dissertação (mestrado acadêmico) - Universidade Estadual do Ceará, Centro de Humanidades, Mestrado Acadêmico em Filosofia, Fortaleza, 2018. Área de concentração: Ética Fundamental. Orientação: Prof. Ph.D. Gustavo B. do N. Costa . 1. Morte de Deus. 2. Vontade de poder. 3. Eterno retorno. I. Título. Ao Deus desconhecido. A minha mãe Madalena e a minha avó Cristina. AGRADECIMENTOS Ao Prof. Dr. Gustavo B. do Nascimento Costa, pela excelente orientação. Aos professores participantes da banca examinadora Ruy Carvalho Rodrigues Jr. e Gustavo Augusto da Silva Ferreira pelo tempo, pelas valiosas colaborações e sugestões. Aos colegas da turma de mestrado, pelas reflexões, críticas e sugestões recebidas. “Aqui não fala nenhum ‘profeta’, nenhum daqueles horrendos híbridos de doenças e vontade de poder chamados fundadores de religiões.” (NIETZSCHE. Ecce homo) RESUMO A presente dissertação pretende investigar a superação da interpretação moral do mundo na obra Assim falou Zaratustra do filósofo F. W. Nietzsche. Para tanto, serão analisados trechos da obra e de outros escritos do autor. O intuito é apresentar uma possível interpretação do mundo que o autor busca dialogar com as teorias científicas e matemáticas da sua época. Nesse itinerário, a pesquisa se ancora na ideia de que a doutrina da morte de Deus, apresentado pelo autor como a descrença do homem moderno em valores morais, é a base da construção de novos valores que leva a afirmação da vida terrena tal como ela é: um constante devir. Por fim, os conceitos de vontade de poder, que pensa o mundo como uma luta incessante de forças, e a hipótese de eterno retorno que afirma que as combinações dessas forças se repetiriam eternamente num tempo infinito, apresentam-se como interpretações do mundo mais plausível, ou melhor, mais afirmadora da vida do que a ficção religiosa e metafísica que nega este mundo em nome de um mundo ideal e transcendente. Palavras-chave: Morte de Deus. Vontade de poder. Eterno retorno. ABSTRACT The present dissertation intends to investigate the overcoming of the moral interpretation of the world in the work Thus spoke Zarathustra of the philosopher F. W. Nietzsche. For that, will be analyzed portions of the work and other writings of the author. The intention is to present a possible interpretation of the world that the author seeks to dialogue with the scientific and mathematical theories of his time. In this itinerary, the research is anchored in the idea that the doctrine of the death of God, presented by the author as the disbelief of modern man in moral values, is the basis of the construction of new values that leads to the affirmation of earthly life as it is: a constant becoming. Finally, the concepts of the will to power, which thinks the world as an unceasing struggle of forces, and the eternal return hypothesis that the combinations of these forces would be repeated eternally in an infinite time, are presented as interpretations of the most plausible world, or rather more affirming of life than the religious and metaphysical fiction that denies this world in the name of an ideal and transcendent world. Keywords: Death of God. Will to Power. Eternal Recurrence. SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO .................................................................................................. 14 2 O ANUNCIAR DO SUPER-HOMEM À MULTIDÃO..................................... 18 2.1 QUEM É O ZARATUSTRA DE NIETZSCHE? ................................................... 18 2.2 A MORTE DE DEUS-MORAL............................................................................ 25 2.3 O SUPER-HOMEM: UM NOVO HORIZONTE? ................................................ 30 3 O FALAR DA VONTADE DE PODER COM OS AMIGOS ............................ 35 3.1 A VONTADE DE PODER ................................................................................... 35 3.2 A VONTADE DE VERDADE .............................................................................. 41 3.3 O NIILISMO EUROPEU ..................................................................................... 47 3.4 A TRANSVALORAÇÃO DE TODOS OS VALORES ......................................... 52 4 O MURMURAR DO ETERNO RETORNO PARA SI PRÓPRIO ................... 59 4.1 A CONCEPÇÃO BÁSICA DE ZARATUSTRA ................................................... 59 4.2 ETERNO RETORNO COMO EXPERIMENTO ÉTICO...................................... 64 4.3 ETERNO RETORNO COMO HIPÓTESE COSMOLÓGICA .............................. 71 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS .............................................................................. 77 6 REFERÊNCIAS .................................................................................................. 79 APÊNDICE .......................................................................................................... 82 APÊNDICE A – NOTA DE ESCLARECIMENTO ................................................ 83 14 1 INTRODUÇÃO Neste trabalho abordaremos o tema da superação da moral1 que se traduz em Zaratustra como a morte de Deus e a criação de um novo sentido da Terra. A morte de Deus representa a negação do fundamento da doutrina teológico-metafísica que avalia a vida a partir dos princípios antagônicos bem e mal. Sem essa verdade última que sustenta os princípios morais, o homem pode se libertar das correntes milenares de uma cultura gregária e decadente. Assim ao tornar-se senhor de si e de sua moral, supera a si mesmo, criando para si uma nova tábua de valores a partir da própria vida. Em meio à trajetória do Zaratustra, do “inventor do bem e do mal” ao “destruidor das velhas e criador das novas tábuas”, encontramos um constante superar-se. Zaratustra é a grande afirmação, um Sim à vida apesar das dores e tristezas geradas pelas sucessivas catástrofes que o acompanham durante a sua jornada. A tragédia inicia com a sua descida do alto da montanha à planície da cidade. Ao se colocar no meio da multidão, ele anuncia o futuro do homem após a morte de Deus: o super-homem (Übermench)2. No entanto, o cenário se volta contra aquele que havia descido como herói e redentor da humanidade. Triste e frustrado com o fracasso da sua tarefa inicia-se uma revirada na sua caminhada. Por detrás dos escritos, encontramos um autor que escreve a si mesmo. Assim Falou Zaratustra (1883-85)3é uma obra que nasce da tentativa de Nietzsche de converter em 1 O termo “Moral” segundo a nota de Paulo César de Souza “não se limita à ética e aos bons costumes, mas abrange todas as coisas humanas – sentimentos, pensamentos, atos –, em oposição ao puramente físico, extra- humano; no mesmo sentido falava-se, há muito tempo, de ‘ciências morais’”. (Além do bem e do mal, Nota nº 97. Companhia das Letras, 1997). 2 A respeito das traduções da palavra alemã Übermench é relevante apontar o seguinte: o tradutor Rubens Rodrigues Torres Filho justifica o uso do termo “além-do homem” por conservar a ideia nietzschiana de “travessia, passar, atravessar” na sua obra Assim falou Zaratustra (cf. Nietzsche; obras incompletas. Abril cultura, 1978). O tradutor Paulo César de Souza faz o seguinte comentário à tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho: “Ele propõe a palavra ‘além-do-homem’, que pode ser mais fiel à ideia de Nietzsche, mas deixa a desejar formalmente – o que se torna claro quando no texto é aproximada ao adjetivo übermenchlich (sobre-humano). Über = sobre, além de; Mensch = ser humano. As traduções em língua inglesa usam superman e overman, a tradução francesa surhomme, a espanhola superhombre. Em português não soa bem dizer ‘sobre-homem’ ou ‘supra-homem’. Só nos resta satisfazermo-nos – provisoriamente, talvez – com ‘super-homem’”. (cf. Ecce homo. Nota nº 31. Companhia das Letras, 2008). Entre alguns especialistas brasileiros em Nietzsche que serão citados ao longo deste trabalho há também divergência no uso dos dois termos. Scarlett Marton opta pelo termo “além-do-homem” e Roberto Machado pelo “super-homem”. Perante a escolha das obras de Nietzsche traduzidas pelo tradutor Paulo César de Souza, manteremos a sua opção pelo termo “super-homem” e verteremos para esta tradução (de modo a manter uma coesão nos textos desse trabalho) todas as citações nietzschianas onde ocorra a palavra übermensch. 3 Os três principais tradutores da obra Zaratustra para o nosso idioma, a saber: Mário da Silva, Rubens Rodrigues Torres Filho e Paulo César Lima de Souza, optam pela expressão “Assim falou Zaratustra” em vez da versão “Assim falava Zaratustra”. “A expressão ‘Assim falou Zaratustra’ é provavelmente, ressonância daquela encontrada em muitos dos sermões de Buda: ‘Assim falou o Sublime’; também as palavras ‘meus irmãos’ ou ‘ó irmãos’ aparecem com frequência nas escrituras budistas. ‘A Vaca Malhada’ (die bunte kub, em alemão) é tradução do nome de uma cidade que o Buda teria visitado em suas andanças. Mas há quem a 15 ouro o sofrimento que estava vivenciando. Obra esta que entre as outras ocupa lugar à parte4 como afirma o próprio autor em sua autobiografia. Zaratustra possui um estilo de filosofar mais afirmativo onde “em grau inaudito diz Não, faz Não a tudo a que até então se disse Sim, pode no entanto ser oposto de um espírito de negação”.5 Diferencia dos outros escritos de Nietzsche que são mais ásperos e que possuem polêmicas com a qual o autor não poupa críticas ao cristianismo, à metafísica e a todo idealismo. O homem que se pretende superar ali é o homem moderno que busca adaptar-se aos fatores externos e conservar sua vida dentro da sociedade. Após a morte do deus-dever, ou seja, a destruição dos conceitos como “coisa em si”, “essência”, “substância” a partir da vontade de verdade, o homem científico moderno substitui esses velhos conceitos metafísicos por novos como “sujeito”, “eu”, “razão”. Por meio dessas novas ficções, acredita-se na autonomia de uma racionalidade que estabelece para si, de forma livre e consciente, princípios universais facilitadores da convivência dentro da sociedade. A relação social, para decorrer de modo harmonioso, deve se dar de tal forma que cada um deve buscar suas pequenas satisfações, como o conforto e bem-estar, sem prejudicar o vizinho. A felicidade comum que está ligada à segurança e tranquilidade, ou o dever que se refere ao compromisso de falar a verdade e amar o próximo exige uma retração de instintos mais fortes e potentes. Portanto, a moral da modernidade apequena o homem e o reduz ao animal de rebanho que busca adaptar-se renunciando a si mesmo. Ela é para Nietzsche, uma moral de negação de si, da própria vida enquanto vontade de poder. O que propomos aqui, contudo, não é uma explicação ou interpretação acabada e conclusa das principais doutrinas filosóficas de Nietzsche que aparecem na obra. Não se trata de questionar a veracidade dessas hipóteses a partir de um pensamento racional ou da aplicação de um método científico. Neste trabalho, procuramos ir além das motivações fisiológicas e psicológicas que levaram o filósofo a escrever uma obra como Assim Falou Zaratustra: um livro para todos e para ninguém. Entendemos que este livro carrega as relacione a uma passagem de Platão em que o mesmo adjetivo é usado para descrever pejorativamente a polis democrática (República, 558c). A versão Assim falava Zaratustra, encontrada em algumas edições desta obra em português, baseia-se na suposição equivocada de que o passado simples do verbo alemão (sprach, no caso) corresponderia ao imperfeito do verbo em português, porque tem a denominação de Imperfekt na gramática alemã e pelo fato de o passado composto ser geralmente traduzido pelo nosso perfeito. Mas não existe essa correspondência; a escolha de um ou de outro tempo verbal, na tradução para a língua que dispõe dos dois, depende do contexto em que surge o verbo e do registro da linguagem (o passado simples alemão é mais frequente na linguagem literária do que no coloquial)”. (Assim falou Zaratustra. Nota n.º 22. Companhia das Letras, 2015). 4 Cf. EH/EH-IX §4, 16 e EH/EH-IX §6, 85. 5 Ibid. p. 87. 16 principais noções da filosofia nietzschiana, além de nos oferecer incontáveis perspectivas de interpretações escondidas nas inúmeras parábolas, signos e símbolos expressos em cada linha. O que perseguimos com tenacidade nestas páginas é realizar, tanto quanto estiver ao nosso alcance, a tarefa filosófica de investigar na obra Zaratustra o processo de superação da interpretação moral do mundo. Para atingir a finalidade pretendida, buscaremos relacionar a doutrina da “morte de Deus” – como desmantelamento de um fundamento metafísico sobre qual se sustenta os princípios morais – com o tipo super-homem que representa a tentativa da criação de um novo sentido orientador da ação humana. Também analisaremos as duas principais teses filosóficas de Nietzsche que aparecem na obra. A primeira é a noção de vontade de poder a partir da qual Nietzsche interpreta o mundo como grandeza determinada de força e com número determinado de centro de força. A segunda é a ideia de eterno retorno que pensa o mundo como configurações de forças finitas que se repetem num tempo infinito. Nesse sentido, dividimos o nosso trabalho em três capítulos. No primeiro, buscamos entender quem é Zaratustra ou por que Zaratustra. Neste capítulo refletimos sobre a noção da morte de Deus e suas duas possíveis consequências: a perda de sentido do mundo ou a possibilidade de contemplar novas perspectivas de valoração. Por um lado, temos o homem cansado que na falta de um sentido último prega que tudo que o homem possa fazer é em vão, é vazio. Por outro lado, a partir desse nada, criam-se novos horizontes que desafiam os homens a ir mais além, para além de si mesmos. No primeiro caso temos o último homem e no segundo o super-homem, ambos apresentados por Zaratustra na praça aos homens. No segundo capítulo, analisamos a noção de vontade de poder enquanto multiplicidade de quanta de poder. Uma imensidão de forças imutáveis, sem começo e sem fim, um jogo de forças que lutam entre si. Um combate incessante entre os impulsos que ora um domina e incorpora os outros, ora é dominado e incorporado. O afeto provisoriamente predominante impõe uma nova configuração sobre os vencidos que buscamsempre resistir. Sob seu comando os outros impulsos se estruturam hierarquicamente compondo-se em uma unidade. A partir daí abarcamos o processo de atuação dos impulsos por trás de toda construção moral e de toda vontade de verdade. Também examinamos sobre um outro conceito importante em Nietzsche: o niilismo europeu e a sua superação a partir da transvaloração dos valores. No terceiro e último capítulo, tratamos da concepção básica de Zaratustra, a doutrina do eterno retorno. Abordamos primeiramente sobre a perspectiva do eterno retorno como imperativo ético que fomenta que se viva como se esta vida retornasse infinitas vezes. Em seguida, analisamos o eterno retorno como hipótese cosmológica em que o autor de 17 Zaratustra busca dar um fundamento científico e matemático a sua tese. Com isso, apontamos uma nova perspectiva de valorar que não parte de conceitos religiosos ou metafísicos, mas da própria vida (vontade de poder) que manifesta no e a partir daquele que ama o destino (amor fati) e que se tornou aquilo que se é. 18 2 O ANUNCIAR DO SUPER-HOMEM À MULTIDÃO 2.1 QUEM É O ZARATUSTRA DE NIETZSCHE?6 Neste primeiro capítulo vamos acompanhar os primeiros passos de Zaratustra no processo da superação de si mesmo ao longo do livro um de Assim Falou Zaratustra. O prólogo narra a descida de Zaratustra até a cidade como um anunciador da boa nova: o super- homem. Ele se dirige à multidão e apresenta o protótipo do homem que após a morte de Deus, superou a si mesmo. Assim, Zaratustra se apresenta como um profeta que anuncia o futuro da humanidade, como um pastor que orienta e conduz o povo do deserto para a terra prometida e como um redentor que salvará o homem do cansaço que surgirá após o declínio da interpretação teleológica e moral do mundo. Zaratustra também se apresenta como vidente, que por meio de enigmas e parábolas, exorta a multidão sobre um tempo vindouro em que o homem estará cansado da própria existência e se resignará sob o fado de que nada vale a pena. A princípio a tarefa de Zaratustra de impelir o homem a cruzar a ponte até o super-homem parece fracassar na medida em que a multidão ignora o seu discurso. O inicio da grande jornada de Zaratustra nos remete à própria vida do autor da obra, Friedrich Nietzsche, que na juventude fora influenciado pela filosofia de Schopenhauer e pela música de Richard Wagner. Os primeiros escritos são dedicados ao seu amigo Wagner, onde ele o apresenta como o precursor da nova cultura alemã. Também ao fracassar como um legislador de uma nova cultura, Nietzsche buscará superar a si mesmo, afastando da filosofia de Schopenhauer, do convívio com os Wagner e dos círculos wagnerianos. Passa a trilhar um caminho mais solitário cada vez mais distante a ponto de se sentir não compreendido ou até mesmo ignorado. Ao analisarmos a obra Zaratustra, podemos perceber que há certa semelhança entre a tragédia que vive o personagem Zaratustra e a própria experiência do autor. É necessário evitar confundir o filósofo Nietzsche com seu escrito7, como adverte o próprio autor mais na frente no seu livro autobiográfico. Também nesta autobiografia ele diz: “talvez se possa ver Zaratustra inteiro como música”8, um estilo de escrita que se diferencia das anteriores e das posteriores. Zaratustra ainda gera incompreensão e discussão entre os seus 6 “Quem é o Zoroastro histórico? Oriundo de Bactriana, anunciado por três dias e três noites de uma luz irrefreável, Zoroastro nasce rindo, talvez com a risada que depois exibirá o pastor que arranca de sua garganta a serpente do niilismo”. CRAGNOLINI, Mónica B. De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o acaso: Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra. p. 24. 7 “Uma coisa sou eu, outra são meus escritos”. EH/EH-III §1, 50. 8 EH/EH-IX §1.,79. 19 leitores e comentadores. Por um lado há uns que interpretam como uma obra literária filosófica e por outro lado, outros que a entendem como uma obra filosófica literária. Essa obra, tão incompreendida pelos seus contemporâneos e que ainda hoje deixa uma vasta extensão de interpretação, apresenta-se como uma narração poética de grande estilo9. Houve quem classificasse Zaratustra como uma antiobra filosófica que zomba dos métodos e das formas de exposição dos tratados sistemáticos. Uma obra filosófica que dispensa argumentações adotando uma “sistemática” de desordem expositiva que faz chacota a toda dedução ao buscar um imediatismo quase impensável.10 Também houve aqueles que tentaram decifrar o propósito da escrita e se ela pudesse ser considerada uma reflexão filosófica. Por não perseguir o objetivo de enclausurar o pensamento, de encerrá-lo numa totalidade coesa e fechada Zaratustra foi considerada uma obra que não possui o propósito de colocar a investigação a serviço da verdade. Tanto o personagem quanto o autor sabem que a experiência de cada um dá de acordo com o seu feitio.11 Ainda houve quem afirmasse que o próprio autor hesitou quanto ao gênero que pertencia a obra Zaratustra, uma vez concluída.12 Numa obra anterior a Zaratustra, a Gaia Ciência, no aforismo 342 intitulado Incipit tragoedia13 (A tragédia começa), o último do livro IV, Nietzsche descreve o início da tragédia do principal personagem da obra posterior. O início do prólogo de Zaratustra se 9 “– meu Zaratustra, por exemplo, procura ainda agora por eles (aqueles capazes e dignos de um tal pathos) – ah, ele ainda terá muito a procurar! – é preciso ter merecimento para prová-lo... E até lá não haverá quem compreenda a arte que aqui foi esbanjada: jamais alguém pôde esbanjar tantos meios artísticos novos, inauditos, só então e para isso criados”. EH/EH-III §4, 54. (Grifo do autor) 10 “Zaratustra é o jogo de semitrias: existe uma arquitetônica da escrita que tece estruturas quase asceticamente, existe um trabalho do conceito e da palavra que se descobre a cada passo, mas também existe, em contrapartida, a chacota com respeito à dita semitria, o sorriso e o riso frente à obra ordenada que se considera sistemática, ou perfeita, a desvalorização enquanto o excessivo amor pode chegar a converter-se em escrita estéril, morta, atravessada por todos os desígnios da mumificação filosófica que não suporta por demasiado tempo o movimento dos conceitos. E aqui, ao contrário, se fala da dança dos conceitos, de jogos dionisíacos da exuberância e de dispêndio, mas, paradoxalmente, sistêmicos: quer dizer, pautados, combinados, organizados”. CRAGNOLINI, Mónica B. De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o acaso: Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra. 2011. p. 28. 11 “Em suas vivências singulares, o autor e a personagem percebem os impulsos que deles se apossam, os afetos que deles se apoderam; notam as estimativas do valor que com estes impulsos se expressam; e se dão conta das ideias que com estes afetos se manifestam. É sobretudo nisto que consiste o estreito vínculo entre reflexão filosófica e vivências”. MARTON, Scarlett. Nietzsche, reflexão filosófica e vivência. p. 281. 12 “Pouco depois de terminar a primeira parte, resumiu assim sua impressão: ‘É uma espécie original de ‘pregação moral’ (a Peter Gast, 1/02/1883). Alguns dias mais tarde, escreveu a seu editor: ‘É uma poesia ou um quinto ‘Evangelho’ ou algo para o qual ainda não existe nome’ (13/02/1883). A Rohde confessou que sempre combateu em si mesmo o impulso para o poetar e, apesar disso, foi como poeta que elaborou Assim falava Zaratustra... (22/02/ 1884) Pouco tempo depois, observou em contrapartida a Gast: ‘A que rubrica pertence com efeito esse Zaratustra? Creio que é quase à das ‘sinfonias’ (2/04/1883). Gast respondeu com outra sugestão, que generalizou a característica da primeira parte como ‘quinto Evangelho’: A obra pertence aos ‘escritossagrados’ (6/04/1883). Nietzsche acolheu o que lhe chegou pelo correio: Produzira um novo ‘livro sagrado’” (a Malwida von Meysenbug, 20/04/1883). SALAQUARDA, J. A concepção básica de Zaratustra. p. 17-18. 13 FW/GC §342, 205. 20 assemelha em grande medida com o referido aforismo. Conta-se ali também que a tragédia de Zaratustra14 inicia quando este completa os trinta anos de idade e decide abandonar sua terra e o lago de Urmi, retirando-se para as montanhas.15 Queria ele, como camelo carregando suas cinzas, correr para o seu deserto para longe de todos os cameleiros.16 “O que me aconteceu, afinal?”, questiona Zaratustra o seu coração. Aconteceu que havia se cansado da gentalha e enojado da água suja da verdade das suas fontes. O nojo17 pela multidão e suas doutrinas do bem e do mal fizeram Zaratustra subir os cumes da montanha e distanciar-se por dez anos. Ao tentar entender um pouco da biografia do autor, podemos perceber quais os estados fisiopsicológicos que estão subjacentes aos seus escritos. No caso de Nietzsche, é preciso atentar para as circunstâncias e afetos que o filósofo vive, desde sua infância até sua demência. A sua filosofia e suas obras são frutos de uma variedade de experiências no campo da arte, da filologia, das ciências naturais, da psicologia, da física e das filosofias. E também das diversas experimentações no tratamento da enfermidade, tanto na submissão aos cuidados médicos como no cuidado consigo mesmo por meio da dietética e escolhas de lugares, climas e distrações. Assim, ao tomar ciência dos impulsos que conduzem o pensamento do filósofo, como diria o próprio Nietzsche, aparecem menos nebulosa as suas intenções, possibilitando assim uma interpretação mais coerente com seu próprio método. A imagem do homem que foge para o seu deserto sem seus deuses é a mesma do filósofo peregrino que teve de deixar precocemente a cátedra, cerceando seus vínculos institucionais, e que demonstra ter tido uma longa errância em gelo e desertos.18 Após uma vida sobrecarregada de deveres profissionais e da “necessidade de entorpecimento da sensação de vazio e da fome através de uma arte narcótica – por exemplo, através da arte de Wagner”19, cresce em Nietzsche a necessidade de solidão20, quer dizer, recuperação, retorno a si, respiração de ar livre. Diz o autor de Zaratustra: 14 “Zoroastro-Zaratustra: em seu curso de 1877, na Basileia, Nietzsche utilizou a Simbólica de Creuzer, ainda que já tivesse lido anteriormente o Zend-Avesta, traduzido por Spiegel, e a arqueologia iraniana que este autor escreveu posteriormente”. CRAGNOLINI, Mónica B. De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o acaso: Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra. p. 24. 15 FW/GC §342, 205. 16 “E alguns que foram para o deserto e passaram sede com animais de rapina queriam apenas não sentar-se em torno da cisterna com sujos cameleiros”. Za/ZA, “Da canalha”. p. 92. 17 “O grande fastio pelo homem – isso me sufocou, me havia entrado na garganta: e o que o vidente vaticinou:`Tudo é igual, nada vale a pena, o saber sufoca’” Za/ZA, “O convalescente”. p. 210 18 CRAGNOLINI, Mónica B. De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o acaso: Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra. p. 31. 19 EH/EH-VI §3, 71. 20 “A solidão é que o permite escapar à normalização e desenvolver uma nova relação consigo mesmo, que lhe possibilita tornar-se o que se é; simultaneamente, é também o produto desta nova relação”. ANDRADE, Daniel Pereira. Nietzsche: a experiência de si como transgressão (loucura e normalidade). p. 146. 21 Todo o meu Zaratustra é um ditirambo à solidão, ou se fui compreendido, à pureza... Felizmente não à pura tolice. Quem tem olhos para cores chamará de diamante. – O nojo do homem, de “gentalha”, sempre foi o meu maior perigo...21 Uma solidão que se traduz num pathos de distância a toda tábua de valores da burguesia europeia, das diversas convicções políticas e filosóficas. Um sentimento de seletividade que o proíbe de aproximar de todo asceticismo metafísico, científico ou religioso. Bem antes do início de uma vida errante e solitária o jovem filólogo, pertencente a uma família de tradição luterana, havia feito o seus estudos no ginásio de Naumburg onde redigiu seus primeiros ensaios com poesia. Também havia ingressado em um prestigioso internato de educação clássica, onde escreveu sua primeira autobiografia: “Da minha vida” e formou com dois amigos uma sociedade literária musical, a “Germânia”. Nietzsche, em 1869 por recomendação de Ritschl, é chamado para a cadeira de filologia clássica da Universidade da Basiléia, na Suíça. Nesse mesmo ano no mês de maio faz sua primeira das inúmeras visitas a Richard e Cosima Wagner.22 Durante esse período de Basiléia, os trabalhos de Nietzsche vão se intensificando faz com o aumento das cargas horárias de trabalho, das publicações e conferências. Em agosto de 1870, adoece gravemente quando participava da guerra franco- prussiana, como enfermeiro. Voltando para Basiléia ele continua suas atividades fazendo diversas publicações, até que em 1875 tem uma crise de saúde no final do ano. Já em 1876, ele tem uma licença prolongada para o tratamento. Voltando para Basiléia no outono de 1877, retoma as aulas, seus escritos e publicações. Com o agravamento do estado de saúde, Nietzsche teve que abandonar a Universidade em 1879, passando a receber uma pensão anual. Após dez anos como professor, em junho, deixa definitivamente a Basiléia. Durante esse ano esteve incapacitado por 188 dias sub o cuidado da mãe e a irmã em Naumburg. Nietzsche viverá os dez anos seguintes como um filósofo errante e solitário e em 1883, em um inverno frio e de muita dor física, nasce o seu primeiro Zaratustra.23 21 EH/EH-I §8, 31. 22 Cf. EH/EH-Sumário cronológico da vida de Nietzsche. p. 7. 23 “É certo que Nietzsche se referiu ao Zaratustra como “o livro santo” (retomando uma frase de seu amanuense Peter Gast) e como seu melhor livro, mas, também, ao mesmo tempo, como o livro de sua cura. Porque nesses dias, empenhado em realizar a alquimia que o permitisse converter em ouro toda enfermidade e decadência em sua pessoa, o Zaratustra se converteu no “salvador de sua vida”. Porém, com a peculiar ambiguidade daquilo que cura (o pharmakón grego: tanto remédio quanto veneno), o Zaratustra sana, mas, por sua vez, abre abismos, propicia cura, mas também é um perigo, já que é o resultado de um explosão, de uma grande dor, que pode dar à luz tanto o positivo quanto a morte.” CRAGNOLINI, Mónica B. De Bactriana e as margens de Urmi à montanha e o acaso: Como introdução à leitura de Assim falou Zaratustra. 2011. p. 20. 22 Na sua obra intitulada Ecce homo escrita posteriormente aos 44 anos, onde decide fazer um balanço da sua vida, Nietzsche admite que fora sua própria doença que o afastara de suas excessivas e exaustivas atividades, trazendo-o à razão. Nietzsche reconhece sua falta de cuidados para consigo em meio a essas tarefas exteriores e diz: No meu tempo de Basiléia, toda a minha dieta espiritual, a divisão do dia incluída, era um desperdício sem sentido de forças extraordinárias, sem cuidar de uma provisão para cobrir o consumo, sem mesmo refletir sobre consumo e compensação. Faltava um sutil “cuidado de si”, a tutela de um instinto imperioso, era um nivelar-se a qualquer um, uma “ausência de si”, um esquecimento da distância própria – algo que jamais me perdôo.24 Portanto, o que lhe resgata de volta para si é justamente a enfermidade que o obriga a um isolamento e distanciamento, forçando-o a direcionar o olhar para o cuidado de si, para as pequenas coisas que sempre negligenciou como a alimentação, o clima e o lugar adequando. A doença havia arrastado Nietzsche para fora darotina de uma profissão que se tornara penosa, a do professor de filologia, de companhias e amizades que não faziam mais sentido. Apesar de estar doente, Nietzsche nega na sua autobiografia possuir um instinto de decadênce, mas que é contrário de um décadent.25 Para ele, o seu instinto “decidiu-se inflexível pelo fim daquele ceder, seguir, confundir-se com os outros”,26 libertando-o dessas amarras, lentamente sem causar “qualquer ruptura, qualquer passo violento e chocante”.27 A doença possibilitou assim a um “retorno a si”, que é para o filósofo “uma suprema espécie de cura!”.28 Nietzsche se volta para si mesmo e busca uma cura na medida em que abandona as diversas receitas médicas. O filósofo errante passa a se preocupar não mais com projetos audaciosos como a criação de uma nova cultura alemã, mas com pequenas tarefas cotidianas. Nietzsche, ao tomar em mãos o cuidado médico de si29, “inventa meios de cura para injúria, utiliza acasos ruins em seu proveito; o que não o mata o fortalece”.30 Sob sua própria tutela, o filósofo faz experimentos consigo mesmo, testando sempre o melhor clima, lugar, companhias, livros, alimentação e todas as circunstâncias que possam aumentar a sua 24 EH/EH-II §2, 37. 25 EH/EH-I §2, 23. 26 EH/EH-VI §4, 72. 27 Ibid. 28 Ibid. 29 “Como summa summarum [totalidade] eu era sadio, como ângulo, como especialista era décadent. Aquela energia para o isolamento e desprendimento das relações habituais, a imposição de não mais me deixar cuidar, servir, socorrer – isso trai a incondicional certeza do instinto sobre o que, então, era mais que tudo necessário. Tomei a mim mesmo em mãos, curei a mim mesmo: a condição para isso – qualquer fisiólogo admitirá – é ser no fundo sadio”. EH/EH-I §2, 23. 30 Ibid. 23 força vital, afastando de tudo que o desvia de si. Seguindo sempre o seu instinto, a sua filosofia passou a se constituir na base de uma experiência e cuidado de si, pois, “não se tem ouvido para aquilo a que não se tem acesso a partir da experiência”.31 A sua atividade filosófica deixou de ser uma “erudição empoeirada” e passou a ser uma ocupação apenas com a fisiologia, medicina e ciências naturais.32 Assim entende Nietzsche que para compreender o tipo Zaratustra, é preciso primeiramente ganhar clareza sobre o pressuposto fisiológico do seu personagem.33 O pressuposto fisiológico a que Nietzsche se refere é o que ele denomina de a “grande saúde” (grosse Gesundheit). Um estado não estável ou fixo, mas que a todo o momento se adquire e é preciso adquirir, pois sempre de novo se abandona e é preciso abandonar34, para poder estar à altura da experiência daquele que foi forjado nas alturas e gélidas montanhas. Segundo o filósofo, “é preciso ser feito para ele, senão há perigo nada pequeno de se resfriar. O gelo está próximo, a solidão é monstruosa”.35 Os que não compartilham da mesma vivência e não possuem um instinto forte, segundo o filósofo, não poderão compreender o seu Zaratustra. Como já está explicito no subtítulo do próprio livro: é um livro para todos e para ninguém. Um escrito que escolhe para si leitores mais seletos36 cativando aqueles do mesmo espírito do personagem/autor.37 O autor de Zaratustra tenta justifica a tamanha incompreensão dos seus contemporâneos em relação à sua obra e até mesmo tenta explicar o profundo silencio dos amigos e conhecidos que pairava sobre seu novo escrito. No Ecce Homo chega a tomar um fato como exemplo: Quando em certa ocasião o dr. Heinrich von Stein queixou-se honestamente de não entender palavra do meu Zaratustra, disse-lhe que era natural: haver compreendido seis frases dele, ou seja; tê-las vivido, elevaria alguém a um nível bem superior ao 31 EH/EH-III §1, 51. 32 “Tomando em consideração que os instintos constituem simultaneamente o corpo e a psique, não havendo diferença entre eles, a matéria sobre a qual o trabalho de si atua deve ser tanto fisiológica quanto psicológica – ou melhor, fisio-psicológica. O aspecto fisiológico constitui-se da disposição física, buscando um aumento de sua energia e um consequente alívio das crises, das dores de cabeça e estômago, da insônia, etc. Enfim, visa-se uma melhora de metabolismo do corpo de forma geral”. ANDRADE, Daniel P. Nietzsche: a experiência de si como transgressão. p. 125. 33 EH/EH-IX §2, 80. 34 Ibid., 81. 35 EH/EH-Prólogo §3, 16. 36 “Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra”. Ibid. §4, 17. 37 “É no âmbito da relação autor e leitor que o autor e personagem situam as questões estilísticas. Ao escolher um estilo, burilá-lo, aprimorá-lo, Nietzsche/Zaratustra seleciona o seu leitor. Repele quem lhe é estranho; atrai quem é do seu feitio”. MARTON, Scarlett. Nietzsche, reflexão filosófica e vivência. p. 273. 24 que homens “modernos” poderiam atingir. Como poderia eu, com tal sentimento de distância, sequer desejar ser lido pelos “modernos” que conheço!38 Para o autor de Zaratustra, a obra se encontra a uma distância tão elevada e o homem moderno está a uma imensa distância abaixo dela.39 Por não ser compreendido pelos homens da sua época, Nietzsche acredita não fazer parte deste tempo, pois, “alguns nascem póstumos”.40 Segundo a perspectiva do autor de Zaratustra, os homens “modernos”, os homens “bons”, cristãos ou outros niilistas estão em oposição ao tipo super-homem que Zaratustra anuncia. Para Nietzsche, os homens do seu tempo ainda se submetem a valores morais que perderam seu centro de gravidade, ou seja, valores que após o grande progresso científico, não mais se sustentam sobre um pressuposto metafísico ou religioso. Para ele, são valores decadentes que, ao invés de contribuir para o acréscimo de vida, lutam contra os instintos mais forte como a sexualidade e a autoproteção que se expressa no amor de si. Em oposição a essa moral, Nietzsche parece desenvolver em seu Zaratustra uma ética afirmadora da vida que busca resgatar o corpo e seus impulsos. A fim de perceber com mais clareza seus próprios afetos, Zaratustra movido pelo grande nojo se eleva acima dos homens até altos picos. Antes mesmo de escrever seu Zaratustra, Nietzsche havia se retirado para o deserto da sua solidão em busca de climas favoráveis ao seu reumatismo, propícia para sua débil visão e lugares convenientes que possam amenizar suas dores de cabeça. Além do cuidado fisiológico, ele busca para sua psicologia as melhores companhias de livros para sua distração. O mesmo cuidado fisiopsicológico para consigo, encontrado na solidão das altas montanhas, longe da multidão da cidade, faz Zaratustra subir e permanecer uma longa temporada, somente na companhia dos seus animais. Nas alturas, encontra para si uma nova fonte onde jorra o “manancial do prazer”, ou seja, uma nova forma de avaliar que o salva do nojo e rejuvenesce seu olhar41. Assim, foi acumulando a sua sabedoria adquirida na experimentação sem conservar e cristalizar, ou seja, sem torná-la uma doutrina. 38 EH/EH-III §1, 50. 39 EH/EH-Prólogo §4, 16. 40 EH/EH-III §1, 50. 41 Za/ZA, “Da gentalha”. p. 93 25 2.2 A MORTE DO DEUS-MORAL Depois de ter gozado do seu espírito e de sua solidão, Zaratustra certa manhã levantou com um coração transfigurado42 e decidiu iluminar como o sol aqueles que vivem nas sombras. Havia nascido nele o desejo e a necessidade de esvaziar o copo querendo enchê- lo novamente. Iluminado, o solitário, cansado da sua própria solidão, declina em direção aos homens carregando na algibeira da sua transbordante sabedoria acumulada um presente para os homens. Descendo para a cidade, no bosque, encontra um eremita que testemunhara antes a sua subidae agora testemunha sua descida e percebe uma grande mudança em Zaratustra: Não me é estranho esse andarilho: por aqui passou há muitos anos. Chamava Zaratustra; mas está mudado. Naquele tempo levavas tuas cinzas para os montes: queres agora levar teu fogo para os vales? Não temes o castigo dos incendiários? Sim, reconheço Zaratustra. Puro é seu olhar, e sua boca não esconde nenhum nojo. Não caminha ele como um dançarino? Mudado está Zaratustra; tornou-se uma criança Zaratustra, um desperto é Zaratustra: que queres agora entre os que dormem?43 Zaratustra caminhava agora dançante como uma criança, carregando a luz do fogo para o abismo escuro da multidão44. Depois de um pequeno diálogo entre Zaratustra, o “desperto”45 e o “santo” do bosque aparece pela primeira vez no Zaratustra a noção da morte de Deus. O tema “Deus está morto” já se encontra na obra A gaia ciência no parágrafo de título “O homem louco” que diz: Não ouviram falar daquele homem louco que em plena manhã acendeu uma lanterna e correu ao mercado, e pôs-se a gritar incessantemente: “Procuro Deus! Procuro Deus!”? – E como lá se encontrassem muitos daqueles que não criam em Deus, ele despertou com isso uma grande gargalhada. Então ele está perdido? Perguntou um deles. Ele se perdeu como uma criança? Disse um outro. Está se escondendo? Ele tem medo de nós? Embarcou num navio? Emigrou? – gritavam e riam uns para os outros. O homem louco se lançou para o meio deles e trespassou-os com seu olhar. “Para onde foi Deus?”, gritou ele, “já lhes direi! Nós os matamos – vocês e eu. Somos todos seus assassinos! Mas como fizemos isso? Como conseguimos beber inteiramente o mar? Quem nos deu a esponja para apagar o horizonte? Que fizemos nós ao desatar a terra do seu sol? Para onde se move ela agora? Para onde nos movemos nós? Para longe de todos os sóis? Não caímos continuamente? Para trás, para os lados, para frente, em todas as direções? Existem ainda ‘em cima’ e 42 Za/ZA, “Prólogo” §1, p. 11. 43 Ibid. 44 “O declínio de Zaratustra nesse início é sua descida ao ínfero mundo das sombras para iluminá-lo. Por sua sabedoria apolínea, Zaratustra permanece fiel ao tema da oposição e da luta entre o dia e a noite, entre a luz e a sombra”. MACHADO, R. Zaratustra, tragédia nietzschiana. p. 43. 45 Na nota da tradução do livro Assim falou Zaratustra, Paulo César de Souza diz: “‘um despertado’: ein Erwachter – ‘despertado’ ou ‘desperto’ é um epíteto aplicado ao Buda; é o significado da raiz sânscrita de seu nome, buddb-”. 26 ‘embaixo’? Não vagamos como que através de um nada infinito? Não sentimos na pele o sopro do vácuo? Não se tornou ele mais frio? Não anoitece eternamente? Não temos que acender lanternas de manhã? Não ouvimos o barulho dos coveiros a enterrar Deus? Não sentimos o cheiro da putrefação divina? – também os deuses apodrecem! Deus está morto! Deus continua morto! E nós os matamos! Como nos consolar, a nós, assassinos entre os assassinos? O mais forte e sagrado que o mundo até então possuíra sangrou inteiro sob os nossos punhais – quem nos limpará esse sangue? Com que água poderíamos nos lavar? Que ritos expiatórios, que jogos sagrados teremos de inventar? A grandeza desse ato não é demasiado grande para nós? Não deveríamos nós mesmos nos tornar deuses, para ao menos parecer dignos dele? Nunca houve ato maior – e quem vier depois de nós pertencerá, por causa desse ato, a uma história mais elevada que toda a história até então!” Nesse momento silenciou o homem louco, e novamente olhou para seus ouvintes: também eles ficaram em silêncio, olhando espantados para ele. “Eu venho cedo demais”, disse então, “não é ainda meu tempo. Esse acontecimento enorme está a caminho, ainda anda: não chegou ainda aos ouvidos dos homens. O corisco e o trovão precisam de tempo, a luz das estrelas precisa de tempo, os atos, mesmo depois de feitos, precisam de tempo para serem vistos e ouvidos. Esse ato ainda lhes é mais distante que a mais longínqua constelação – e no entanto eles cometeram! – Conta- se também que no mesmo dia o homem louco irrompeu em várias igrejas, e em cada uma entoou o seu Réquiem aeternaum deo. Levado para fora e interrogado, limitava-se a responder: “O que são ainda essas igrejas, se não os mausoléus e túmulos de Deus?. O homem louco que sai a procura de Deus não provoca na multidão nenhum escândalo ou irritação. A sua afirmação “Deus está morto” não abala a fé dos que se encontram no mercado, mas pelo contrário, causa neles um grande riso. Não se trata, portanto, aqui de uma polêmica em relação à existência de Deus, dado que, àqueles para o qual o homem louco se dirige não possuem mais essa crença. Ele os acusa e acusa a si mesmo do assassinato de Deus, um ato de grandeza, que, no entanto, não possui um autor digno dele. A expressão reaparece em Zaratustra logo após o diálogo do personagem com o eremita no bosque. Zaratustra é o sem-deus46 que se dirige aos homens e o santo aquele que se afasta dos homens para estar com Deus. O velho eremita questiona a Zaratustra: “que queres agora entre os que dormem?” e ele responde: “Eu amo os homens”. Acontece que o santo havia se refugiado na floresta justamente fugindo do amor aos homens que poderia matá-lo47. Porém, enquanto que o amor do eremita aos homens se expressa no “amor ao próximo” o de Zaratustra se exprime na superação da compaixão.48 O eremita já não mais amava o homem 46 “E, quando eu grito: ‘Maldizei todos os covardes demônios em vós, que gostam de choramingar, juntar as mãos e rezar’, então eles gritam: ‘Zaratustra é sem-deus’. E especialmente seus mestres da resignação gritam isso –; mas justamente a esses eu amo gritar no ouvido: ‘Sim, sou Zaratustra, o sem-deus!’. Esses mestres da resignação! Onde quer que seja pequeno, doentio e sarnento eles se enfiam, como piolhos; e apenas meu nojo me impede de esmagá-los. Muito bem! Eis a minha prédica para os seus ouvidos: eu sou Zaratustra, o sem- deus, que diz ‘quem é mais sem-deus do que eu, para desfrutar do seu ensinamento?”. Za/ZA, “Da virtude que apequena” §3, p.162-163. 47 “Por que” disse o santo “fui para o ermo e a floresta? Não seria por amar demais os homens? Agora amo a Deus: os homens já não amo. O homem é, para mim, uma coisa demasiado imperfeita. O amor aos homens me mataria.” Za/ZA, “Prólogo” §2, p.12. 48 “Podemos entender que Nietzsche vê na compaixão uma grande objeção à superação do homem, um grande objeção à nobreza. A atitude compassiva seria a estratégia de poder do fraco que não tem outra forma de 27 por uma coisa demasiado imperfeito, mas a Deus, algo para Zaratustra que não mais fazia nenhum sentido. Admirado como a ignorância do santo em relação à morte de Deus, Zaratustra segue sozinho rumo à cidade. A exclamação “Deus está morto” será retomada no livro II no capítulo intitulado “Dos compassivos” onde diz: Ai de todos os que amam e que não atingiram uma altura acima da compaixão! Assim me falou certa vez o Demônio: “Também Deus tem seu inferno: é seu amor aos homens”. E recentemente o ouvi dizendo isto: “Deus está morto; morreu de sua compaixão pelos homens”. Ali a causa apontada da morte é o seu amor ao homens. Os homens ocidentais da casta sacerdotal a partir da moral da compaixão, do amor ao próximo, inverteram a imagem do antigo Deus do oriente. O cristianismo com seu lema “Deus na cruz” transformou o Deus vingativo e duro em um ser compassivo capaz de se sacrificar pela humanidade. No livro IV no capítulo “Do aposentado”, pela boca do personagem velho papa aparece essa inversão: Quem o exalta como o deus do amor não tem o amor em alta conta. Não pretendia também ser juiz esse deus? Mas quem ama, ama acima do prêmio e do castigo. Quando ele era jovem, esse deus de oriente, era duro e vingativo,e construiu um inferno para o gozo de seus favoritos. Afinal, porém, tornou-se velho, brando, mole e compassivo, mais semelhante a um avô do que um pai, e ainda mais semelhante a uma vovó trôpega. Ficava sentado, murcho, em seu canto da estufa, afligindo-se com a fraqueza das pernas, cansado do mundo, de vontade cansada, e um dia asfixiou-se com a compaixão demasiada.49 Os valores morais e religiosos propagados pelo cristianismo representam para Nietzsche uma transvaloração e degeneração dos antigos valores que se baseavam na afirmação da vida. Ao invés de potencializar a vontade ascendente, a moral cristã prega a renúncia de si e a aniquilação de todo impulso vital.50 Ela exalta, segundo o autor de Zaratustra, como virtude tudo que é fraco, doente, covarde e condena os instintos mais fortes que ataca, domina, destrói. Esses afetos passam a ser visto pelo homem moral como inferiores, animalesco e nocivo à convivência. A partir dessa perspectiva se torna vergonhosa a própria natureza e se passa a vê-la como feia e má. Tido como monstro, ela foi relegada às profundezas e encobertada com as maquiagens da moral: a polidez e a etiqueta. Travou-se assim uma luta milenar contra a própria vida, contra a Terra em nome dos valores superiores. exercer sua força senão socorrendo miseráveis”. MACEDO, Iracema. Zaratustra, compaixão e amor fati. p. 87 49 Ibid. p. 247. 50 “(...) a moral de renúncia de si é a moral de declínio par excellance, o fato ‘eu pereço’ traduzido no imperativo: ‘todos devem perecer’ – e não só no imperativo... Essa única moral que até hoje foi ensinada, a moral da renúncia de si, trai uma vontade de fim, nega em seus fundamentos a vida”. EH/EH-XIV §7, 108. 28 A incapacidade de alguns homens de manter a besta interior encarcerada51 os obriga a se afastar das relações sociais e evitar qualquer olhar externo que censura ou que se apieda. Dessas testemunhas inconvenientes se faz necessário livrar-se. Assim em Zaratustra aparece no livro IV no capítulo “O mais feio dos homens” a vingança contra o testemunho. Lá confessa o assassino do Deus que tudo vê: Mas ele – tinha que morrer: ele via com olhos que tudo viam – ele via os fundamentos e profundezas do homem, toda a sua escondida ignomínia e feiura. Mas sua compaixão não conhecia pudor: ele se insinuava em meus mais sujos recantos. Esse curioso entre os curiosos, esse superimportuno e supercompassivo tinha que morrer. Ele sempre me via: de uma testemunha assim eu desejava me vingar – ou não mais viver. O Deus que tudo via, também o homem: esse Deus tinha que morrer! O homem não suporta que viva uma testemunha assim.52 Parece que, mesmo após este ato grandioso que garante à posteridade uma história mais elevada, os seus autores permanecem passivos e alheios à riqueza de perspectiva que a morte de Deus traz. Tanto os espectadores abordados pelo homem louco no escrito A gaia ciência, quanto o mais feio dos homens no Zaratustra não se dão conta de que seus atos abrem caminhos para a possibilidade da criação de novos valores. No primeiro aforismo, 343, do livro V: “Nós, os impávidos”, Nietzsche escreve sobre a morte de Deus como: O maior acontecimento recente – o fato de que “Deus está morto”, de que a crença no Deus cristão perdeu o crédito – já começa a lançar suas primeiras sombras sobre a Europa. Ao menos para aqueles poucos cujo olhar, cuja suspeita no olhar é forte e refinada o bastante para esse espetáculo, algum sol parece ter se posto, alguma velha e profunda confiança parece ter se transformado em dúvida: para eles o nosso velho mundo deve parecer cada dia mais crepuscular, mais desconfiado, mais estranho, “mais velho”. Mas pode-se dizer, no essencial, que o evento mesmo é demasiado grande, distante e a margem da compreensão da maioria, para que se possa imaginar que a notícia dele tenha sequer chegado; e menos ainda que muitos soubessem já o que realmente sucedeu – e tudo quanto irá desmoronar, agora que esta crença foi minada, porque estava sobre ela construído, nela apoiado, nela arraigado: toda a nossa moral europeia, por exemplo.53 E pós esse evento as suas consequência são: Talvez soframos demais as primeiras consequências desse evento – e estas, as suas consequências para nós, não são, ao contrário do que talvez se esperasse, de modo algum tristes e sombrias, mas sim algo difícil de descrever, uma nova espécie de luz, de felicidade, alívio, contentamento, encorajamento, aurora... De fato, nós, filósofos e “espíritos livres”, ante a notícia de que “o velho Deus morreu” nos sentimos como 51 “...o animal de rapina, a magnífica besta loura que vagueia ávida de espólios e vitórias; de quando em quando este cerne oculto necessita desafogo, o animal tem que sair fora, tem que voltar a selva”. GM/GM-I §11, 32. 52 Ibid. p. 252-253. 53 FW/GC §343, 207. 29 iluminados por uma nova aurora; nosso coração transborda de gratidão, espanto, pressentimento, expectativa – enfim o horizonte nos aparece novamente livre, embora não esteja limpo, enfim os nossos barcos podem novamente zarpar ao encontro de todo perigo, novamente é permitida toda a ousadia de quem busca o conhecimento, o mar, o nosso mar, está novamente aberto, e provavelmente nunca houve tanto “mar aberto”.54 Após a morte de Deus, fundamento último da interpretação moral do mundo, sobraram apenas princípios morais como sombra desse “velho Deus”. O desaparecimento daquilo que dava o sentido à existência e que garantia a ordenação do mundo, leva à desvalorização dos valores morais que ainda permanecem, segundo Nietzsche, como guias da conduta do homem europeu. Na visão de Nietzsche, cabe agora aos filósofos e “espíritos livres” superar qualquer pressuposto metafísico ou religioso que estabelecem ainda um telos ordenador do mundo. Escreve Nietzsche no aforismo108 intitulado “Novas lutas”, do livro III da A gaia ciência o seguinte: Depois que Buda morreu, sua sombra ainda foi mostrada numa caverna durante séculos – uma sombra imensa e terrível. Deus está morto; mas, tal como são os homens, durante séculos ainda haverá cavernas em que sua sombra será mostrada. – Quanto a nós – nós teremos que vencer também a sua sombra!55 Essa vitória certamente consiste na auto-superação da moral pela veracidade, na auto-superação do moralista em seu contrário, como afirma Nietzsche, posteriormente, na sua autobiografia ao referir o seu personagem Zaratustra.56 Essas “novas lutas” podem ser constatadas na sua obra Assim falou Zaratustra em que o personagem anuncia um novo horizonte, um novo tipo de homem que representa a superação do próprio homem. A noção da morte de Deus, portanto, mais de que uma mera polêmica sobre a existência de Deus, ela é uma constatação da descrença em uma entidade transcendente, um criador que governa o mundo. As investigações científicas modernas e suas descobertas, as ciências naturais, a física e a biologia contribuíram para a desdivinização da natureza e consecutivamente despertaram a desconfiança em relação à todo dogmatismo religioso e metafísico. No entanto, parece a Nietzsche, que a maioria dos homens do seu tempo não percebeu a magnitude desse evento e vivem ainda submetidos aos valores morais. A maioria prefere esses ideais ascéticos que lhe oferecem um sentido pois, qualquer sentido é melhor 54 Ibid., 208. 55 Ibid. §108, 126. 56 “A autossuperação da moral pela veracidade, a autossuperação do moralista em seu contrário – em mim – isto significa em minha boca o nome Zaratustra”. Ibid. §3, 104. 30 que nenhum.57 Na Genealogia da moral Nietzsche dirá que “o homem preferirá ainda querer o nada a nada querer”58, na incapacidade de criar para si novos valores e um novo sentido. 2.3 SUPER-HOMEM: UM NOVO HORIZONTE? Aochegar à cidade mais próxima, Zaratustra se dirige à multidão reunida na praça para assistir o espetáculo de um equilibrista que andaria na corda. Assim falou Zaratustra aos presentes: Eu vos ensino o super-homem. O homem é algo a ser superado. Que fizeste para superá-lo? Todos os seres, até agora, criaram algo acima de si próprios: e vós quereis ser a vazante dessa grande maré, e antes retroceder ao animal do que superar o homem? Que é o macaco para o homem? Uma risada, ou dolorosa vergonha. Exatamente isso deve o homem ser para o super- -homem: uma risada, ou dolorosa vergonha. Fizestes o caminho do verme ao homem, e muito, em vós, ainda é verme. Outrora fostes macacos, e ainda agora o homem é mais macaco do que qualquer macaco. O mais sábio entre vós é apenas discrepância e mistura de planta e fantasma. Mas digo eu que vos deveis tornar fantasmas ou plantas? Vede, eu vos ensino o super-homem! O super-homem é o sentido da terra. Que a vossa vontade diga: o super-homem seja o sentido da terra! Eu vos imploro, irmãos, permanecei fiéis à terra e não acrediteis nos que vos falam de esperanças supraterrenas! São envenenadores, saibam eles ou não. São desprezadores da vida, moribundos que a si mesmos envenenaram, e dos quais a terra está cansada: que partam, então! Uma vez a ofensa a Deus era a maior das ofensas, mas Deus morreu, e com isso morreram também os ofensores. Ofender a terra é agora o que há de mais terrível, e considerar mais altamente as entranhas do inescrutável do que o sentido da terra!(...)59 Ao terminar o discurso, Zaratustra percebeu que não fora compreendido pelo povo que ria dele. Admirado, insistiu Zaratustra dizendo: O homem é uma corda, atada entre o animal e o super-homem — uma corda sobre um abismo. Um perigoso para-lá, um perigoso a-caminho, um perigoso olhar-para-trás, um perigoso estremecer e se deter. Grande, no homem, é ser ele uma ponte e não um objetivo: o que pode ser amado, no homem, é ser ele uma passagem e um declínio. (...) Vede, eu sou um arauto do raio e uma pesada gota da nuvem: mas esse raio se chama super-homem. — Ao terminar sua fala ele percebeu realmente que não estava sendo escutado pela 57 GM/GM-III §28, 149. 58 Ibid. 59 Za/ZA, “Prólogo” §3, p. 13-14. 31 multidão que continuava rindo dele. E assim se justifica a si mesmo “não me compreendem, não sou a boca para esses ouvidos”. No entanto, Zaratustra insistirá mais uma vez, mudando agora de estratégia: “Então falarei ao seu orgulho. Então lhes falarei do que é mais desprezível: ou seja, do último homem”. Desta maneira Zaratustra contrapõe o último homem e o super-homem. A anunciação do super-homem, a princípio, possui um caráter evolucionista60 que leva Nietzsche, mais tarde, a defender-se daqueles que o acusaram de darwinismo. No seu escrito autobiográfico, Ecce homo, ele diz: A palavra “super-homem”, para designação de um tipo que se vingou superiormente, em oposição a homens “modernos”, a homens “bons”, a cristãos e outros niilistas – palavra que na boca de um Zaratustra, o aniquilador da moral, dá o que pensar – foi entendida em quase toda parte, com total inocência, no sentido daqueles valores cuja antítese foi manifesta na figura de Zaratustra: quer dizer, como tipo “idealista” de uma mais alta espécie de homem, meio “santo”, meio “gênio”... Uma outra raça de gado erudito acusou-me por isso de darwinismo.61 O super-homem é referido como um “tipo” superior que se superou e estabeleceu um certo pathos de distância em relação aos outros que se encontram abaixo dele e não como uma espécie biologicamente mais evoluída. Ele se contrapõe ao “tipo” homem que se nivela a todos e tem como a maior medida a igualdade. Antes mesmo das ciências naturais tentarem classificar o homem, a filosofia tradicional já havia fixado uma essência única que pudesse defini-lo. A partir da criação de uma natureza humana, o conceito homem62 é universalizado, eliminando assim todo e qualquer tipo de particularidade ou possibilidade de ser. Ao reduzir o homem a uma ideia abstrata, os “homens de conhecimento” puderam estabelecer critérios de avaliação capazes de nivelar e igualar a multiplicidade homem. Com uma ideia pré-estabelecida são fechadas todas 60 “Em sua tentativa de “ensinar” ao “povo” o além-do-homem, Zaratustra reporta-se, de início, à teoria da evolução: o caminho que levou do “verme” ao “macaco”, e do macaco ao homem, e deve ainda conduzir para além do homem”. STEGMAIER, W. Antidoutrinas. Cena e doutrina em Assim falava Zaratustra, de Nietzsche. p. 31. Segundo Roberto Machado: “A meu ver, há uma perspectiva evolucionista na analogia apresentada pelo item 3: o super-homem está para o homem assim como o homem está para o macaco. A respeito do evolucionismo, Charles Andler dirá que Nietzsche foi a princípio darwiniano, tornando-se depois, por influência de Rütimeyer, cada vez mais simpático ao lamarkismo. Não estou me posicionando em relação a essa ideia. Nem formulando uma tese sobre a filosofia de Nietzsche em geral. Acredito que no final Nietzsche foi claramente anti-Darwin”. MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. p. 50. 61 EH/EH-III §1, 51-52. 62 “O homem” é um conceito de homem, que, como o conceito de velho Deus, deve do mesmo modo valer para todos, e pode ser ensinado a todos. Portanto, se ‘o homem’ ‘deve ser superado’, tais conceitos e teorias do homem devem ser superados também. Entendido como antidoutrina, o pensamento do além-do-homem é a superação do conceito de homem em geral. Todo conceito geral de homem, seja ele ainda visto tão ‘humano’, atua normativamente, torna-se medida para os homens singulares, e é empregado como justificação para julgá-los segundo ele e para submetê-los a ele. O pensamento do super-homem (autor opta pelo termo além- do-homem), em contrapartida, seria o pensamento de homens para além de todas as normatizações”. STEGMAIER, W. Antidoutrinas. Cena e doutrina em Assim falava Zaratustra, de Nietzsche. p. 33. 32 as demais perspectivas de criação e invenção de si, chegando assim ao último homem, pois, não se pode mais pensar um além dele. Com ele desvanece qualquer tentativa de se jogar no perigo do desconhecido, da aventura de zarpar mares nunca dantes navegados. O último homem é o homem da sociedade, do conhecido e convencionalmente estabelecido. Com a mudança de estratégia Zaratustra passa a falar à multidão sobre o último homem dizendo: É tempo de o homem fixar sua meta. É tempo de o homem plantar o germe de sua mais alta esperança. Seu solo ainda é rico o bastante para isso. Mas um dia este solo será pobre e manso, e nenhuma árvore alta poderá nele crescer. Ai de nós! Aproxima-se o tempo em que o homem já não lança a flecha de seu anseio por cima do homem, e em que a corda do seu arco desaprendeu de vibrar! Eu vos digo: é preciso ter ainda caos dentro de si, para poder dar à luz uma estrela dançante. Eu vos digo: tendes ainda um caos dentro de vós. Ai de nós! Aproximam-se o tempo em que o homem já não dará à luz nenhuma estrela. Ai de nós! Aproxima-se o tempo do homem mais desprezível, que já não sabe desprezar a si mesmo. Vede! Eu vos mostro o último homem. “Que é amor? Que é criação? Que é anseio? Que é estrela?” – assim pergunta o último homem, e pisca o olho. A terra se tornou pequena, então, e nela saltita o último homem, que tudo apequena. Sua espécie é inextinguível como o pulgão; o último homem é o que tem vida mais longa. (...) Percebe-se que se trata do homem moderno, o civilizado, que tudo apequena e que busca apenas conservar a sua pequena vida. Ao invés de criar, conserva de forma mesquinha e avarenta seus pequenos prazeres e seus desejos não vão além do conforto e do bem-estar. Preocupa-se emsatisfazer suas pequenas necessidades sem ferir o vizinho, respeitando sempre a distância certa. Essa distância, que garante a segurança e integridade entre os homens dentro da sociedade, é mantida pelos valores morais. Juntos e dependentes uns dos outros facilita a sobrevivência de cada um. Deste modo, a liberdade de um termina onde começa a do outro, e a sua felicidade está em causar e sofrer a menor dor possível. Incapazes de sobreviver a sós nas gélidas montanhas, buscam o conforto e a segurança da sociedade e “(c)ada qual ainda ama o vizinho nele se esfrega: pois necessita de calor”.63 63 “Em um gelado dia de inverno, um grupo de porcos-espinhos aglomerou-se o mais estreitamente que pôde a fim de se resguardar do enregelamento por seu calor recíproco. Mas logo começaram a sentir os mútuos espinhos e voltaram a apartar-se. Quando a necessidade de se aquecerem tornou a aproximá-los, repetiu-se de novo o incômodo, de tal modo que se viram atirados para distância moderada que lhes era suportável. Assim, a necessidade de convívio, nascida do vazio e da monotonia em seu âmbito, impele os homens a estarem juntos; mas as suas numerosas qualidades revoltantes e seus numerosos defeitos insuportáveis voltam a separá-los. A distância média que acabam descobrindo e que torna a coexistência possível são a polidez e os bons costumes. Para quem não mantém essa distância, diz-se na Inglaterra: keep your distance (“mantenha distância”). Na verdade, isso permite apenas uma satisfação imperfeita da necessidade de nos acalentarmos uns aos outros, mas também livra a pessoa de sentir o aguilhão dos espinhos. Porém, aquele que possui muito calor próprio interno, preferirá evitar o convívio social, a fim de não produzir nem sofrer incômodo.” 33 E para a surpresa de Zaratustra, o seu discurso foi interrompido pela multidão em um grito de júbilo: “‘Dá-nos esse último homem, ó Zaratustra’ – clamavam as pessoas –, ‘torna-nos como o último homem! E nós te presenteamos o super-homem!’”64. Com isso Zaratustra se entristeceu perante o fracasso65 do seu discurso. Reconheceu que realmente não é “a boca para esses ouvidos”66 e que viveu demasiado tempo nas montanhas e escutou demasiadamente as árvores e córregos. Triste e frustrado com o fracasso do anúncio do super- homem à multidão, Zaratustra sai da cidade, carregando consigo apenas o cadáver do equilibrista que havia caído da corda quando um palhaço pulou por cima dele. Longe da multidão, depois de um longo sono na floresta, Zaratustra ao acordar, num pulo se levantou, “pois viu uma nova verdade”. Zaratustra fala a si mesmo sobre a “nova verdade” que contemplou quando no silêncio da aurora olhou para dentro de si: Uma luz raiou para mim: de companheiros necessito, de vivos – não de mortos e cadáveres, que levo comigo para onde eu quero ir. Mas de companheiros vivos necessito, que me sigam porque querem seguir a si mesmos – e para onde quero ir. Uma luz raiou para mim: que Zaratustra não fale para o povo, mas para companheiros! Zaratustra não deve se tornar pastor e cão de um rebanho! Para atrair muitos para fora do rebanho – vim para isso. Povo e rebanho se enfurecerão comigo: Zaratustra quer ser chamado de ladrão pelos pastores. Os companheiros que Zaratustra busca não são cadáveres, tampouco rebanhos e crentes, porque “aqui não fala nenhum ‘profeta’, nenhum daqueles horrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados fundadores de religiões”67. Ele busca por criadores e quebradores de suas tábuas de valores, os que escrevem novos valores em novas tábuas. Nietzsche no prólogo do Ecce homo faz menção ao primeiro retorno de Zaratustra à sua solidão quando este despede dos seus discípulos: “Aí não fala um fanático, aí não se “prega”, aí não se exige fé: é de uma infinita plenitude de luz e profundeza de felicidade que vêm gota por gota, palavra por palavra – uma delicada lentidão é a cadência dessas falas. Tais coisas alcançam apenas os mais seletos; ser ouvinte é aqui um privilégio sem igual; não é dado a todos ter ouvidos para Zaratustra... Com tudo isso, não será Zaratustra um sedutor? ... Mas o que diz ele mesmo, ao retornar pela primeira vez à sua solidão? SCHOPENHAUER apud GUINSBURG, J. Notas do tradutor do livro O nascimento da tragédia de Nietzsche. p. 153. 64 Za/ZA, “Prólogo” §5, p.19. 65 “Zaratustra, portanto fracassa ao falar ao povo, na grande cidade, sobre o super-homem e o último homem, indicando que a cultura moderna, marcada pelo niilismo da morte de Deus ou pela desvalorização dos valores supremos, abre dois caminhos, apresenta duas possibilidades de futuro, uma afirmativa, outra negativa. Mas por que fracassa Zaratustra? Por ter falado ao povo, por ter falado para todos”. MACHADO, Roberto. Zaratustra, tragédia nietzschiana. p. 57 e 58. 66 Za/ZA, “Prólogo” §5, p.19. 67 EH/EH-“Prólogo” §4, 17. 34 Precisamente o oposto do que diria em tal caso qualquer “sábio”, “santo”, “salvador do mundo” ou outro decadent... Ele não apenas fala diferente, ele é também diferente... A tarefa de Zaratustra não se iguala a dos pastores, pois ele não busca a obediência cega do rebanho, nem se iguala a sina dos profetas ou qualquer fundador de alguma religião, porque ele não prega a redenção da humanidade. Seus ensinamentos, após o insucesso da tentativa do anúncio do super-homem à multidão, serão agora direcionados aos mais seletos, aqueles que ele chamará de amigos, os que lhe são mais aparentados. Zaratustra faz uma promessa ao seu coração: “Não deverei ser pastor, nem coveiro. Jamais tornarei a me dirigir ao povo; pela última vez falarei com um morto”. Após essa promessa ele sairá ao encontro daqueles que possuem um “espírito livre” semelhante a ele, dos que desconfiam de todas as verdades já prontas e acabadas, ou que aceitam passivamente valores sem questionar. No capítulo intitulado “Da virtude dadivosa” do livro I, Zaratustra se retirando pela primeira vez para sua solidão, falou assim para seus discípulos: Agora prossigo só, meus discípulos! Ide vós também agora, sozinhos! Assim desejo eu. Em verdade, eu vos aconselho: afastai-vos dele e defendei-vos de Zaratustra! Mas ainda: envergonhais-vos dele! Talvez vos tenha enganado. O homem do conhecimento deve não apenas poder amar seus inimigos, mas também odiar seus amigos. Retribuímos mal a um professor, se continuamos apenas alunos. E por que não quereis arrancar louros da minha coroa? Vós me venerais; mas se um dia vossa veneração tombar? Cuidai para que não vos esmague uma estátua! Dizeis que acreditais em Zaratustra? Mas que importa Zaratustra? Sois os meus crentes: mas que importam todos os crentes? Ainda não havíeis de procurado a vós mesmos: então me encontraste. Assim fazem todos os crentes; por isso valem tão pouco todas as crenças. Agora vos digo para me perder e vos achar; e somente quando todos vós me tiverdes negado eu retornarei a vós. Somente aos seus discípulos e amigos Zaratustra confidenciará suas verdades, e a ele será colocada à questão pelo corcunda, o porta-voz e advogado do povo: “Mas por que Zaratustra fala conosco de modo diferente do que fala com seus discípulos?”.68 Zaratustra cochicha com seus alunos sobre a vontade de poder. Essa noção tão cara a filosofia nietzschiana aparece pela primeira vez em Zaratustra. 68 Za/ZA, “ Da redençãoo”, p. 135. 35 3 O FALAR DA VONTADE DE PODER COM OS AMIGOS 3.1 VONTADE DE PODER69 No capítulo anterior referimo-nos a duas importantes noções da filosofia de Nietzsche que se encontram logo no prólogo da obra Assim falou Zaratustra: a morte de Deus e o super-homem. A morte de Deus se relaciona com a constatação da descrença do homem moderno europeu em um Deus transcendente. As inovações científicas e tecnológicas quepermitiram um maior conhecimento e domínio sobre as leis que regem a natureza, o progresso das ciências naturais e o avanço das teorias da física e da biologia e suas comprovações desmistificaram a natureza e o universo. Com as hipóteses e os experimentos científicos, a fé e a crença em uma divindade criadora e reguladora do mundo pareciam aos modernos uma ingênua ficção mitológica ou teológica. Consequentemente, os valores morais religiosos se desvalorizam ao perderem seu fundamento. A noção de super-homem está ligada ao tipo superior de homem capaz de destroçar a antiga tábua de valores, de criar novas tábuas e de afirmar a vida tal como ela é. Mesmo após a morte de Deus, sua sombra permaneceu, na figura dos valores morais, sobre os homens modernos. A maioria não tinha sequer a consciência da grandeza do ato, as múltiplas perspectivas de criação que se apresentariam ao homem com a morte de Deus. O principal 69 Scarlett Marton no texto A terceira margem da interpretação da apresentação do livro A doutrina da vontade de poder de Wolfgang Müller-Lauter, traduzido por Oswaldo Giocoia Junior, justifica o uso da expressão “vontade de potência” em detrimento da “vontade de poder” da seguinte forma: “Optamos por traduzir a expressão Wille zur Macht por vontade de potência. E isto por várias razões. Adotamos a escolha feita por Rubens Rodrigues Torres Filho na sua tradução para o volume Nietzsche – Obras incompletas da coleção ‘Os pensadores’ (São Paulo, Abril Cultural, 2ª Ed., 1978). Permaneceremos fieis a outros escritos nossos, em que desde 1979 fizemos essa opção. Se traduzir Wille zur Macht por vontade de potência pode induzir o leitor a alguns equívocos, como o de conferir ao termo ‘potência’ conotação aristotélica, traduzir a expressão por vontade de poder corre o risco de levá-lo a outros, como o de tomar o vocábulo ‘poder’ estritamente no sentido político (e, neste caso, contribuir – sem que seja essa intenção – para reforçar eventualmente apropriações indevidas do pensamento nietzschiano). Mesmo correndo o risco de fazer má filologia, parece- nos ser possível entender o termo Wille enquanto disposição, tendência, impulso e o vocábulo Macht, associado ao verbo machen, como fazer, produzir, formar, efetuar, criar. (Nota nº 2, São Paulo, Annablume, 1997). Enquanto que o tradutor Oswaldo Giacoia Junior faz a opção pela expressão ‘vontade de poder’. Assim justifica: “Optei por vontade de poder, não pelo corrente termo vontade de potência, para traduzir o conceito nietzschiano Der Wlle zur Macht. A tradução tem o inconveniente de arriscar-se a circunscrever o conceito demasiadamente no registro da filosofia política, mas apresenta também a vantagem de evitar a ressonância e a evocação da distinção metafísica entre ato e potência – o que certamente contraria a intenção de Nietzsche –, assim como de manter presente um dos mais fundamentais aspectos de seu pensamento, qual seja, uma concepção de força e poder se esgotando, sem resíduos, a cada momento de sua efetivação”. (MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder. Nota nº 1). O Paulo César de Souza opta pelo termo “vontade de poder” e o Roberto Machado pelo termo “vontade de potência”. Em meio à divergência entre os tradutores, optamos neste trabalho a tradução vontade de poder, mantendo assim a coerência com as traduções de Paulo César de Souza das obras de Nietzsche usadas aqui como referência e verteremos para esta tradução (de modo a manter uma coesão nos textos desse trabalho) todas as citações nietzschianas onde ocorra a palavra Wille zur Macht. 36 motivo de Zaratustra descer da montanha e dirigir-se ao encontro dos homens na cidade é anunciar à eles, a “chegada do raio”: o super-homem. A sua primeira atitude foi falar a multidão sobre esse novo sentido da Terra, mas o povo não lhe deu ouvidos. A partir daí ele sai à procura de novos companheiros, mais dignos do seu ensinamento, capazes de quebrar as suas velhas tábuas de valores e erguer para si novas tábuas. Neste capítulo versaremos sobre uma das principais doutrinas de Nietzsche: a vontade de poder (Wille zur Macht). O conceito surge do maior acontecimento, o fato de que “Deus está morto” e o efeito disso é o descrédito em qualquer dimensão ontológica. O mundo dos fenômenos, a existência enquanto vir-a-ser, aparece assim como a única realidade efetiva.70 O termo vontade de poder é importado por Nietzsche do campo das ciências, da biologia e da física, para reforçar suas teses filosóficas e refutar as interpretações morais, religiosas ou metafísicas. Em um escrito póstumo o autor de Zaratustra escreve o seguinte: “Este mundo é a vontade de poder – e nada além disso!”. Aparentemente em Zaratustra a vontade de poder se restringe ao mundo orgânico, aos impulsos e afetos nos seres vivos, mas com o tempo o autor o expande para o reino inorgânico a partir do conceito de força. Ao longo da sua experiência Zaratustra constata o seguinte: “Onde encontrei seres vivos, encontrei vontade de poder; e ainda na vontade do servente encontrei a vontade de ser senhor”.71 Em Zaratustra, a vontade de poder enquanto impulso vital se exterioriza tanto naquilo que domina quanto no que é dominado.72 Essa vontade não seria um querer consciente em que o sujeito escolhe livremente sobre a melhor conduta para atingir o fim pretendido: mais poder. Não seria a vontade de poder um único impulso, mas um complexo de afetos hierarquicamente estruturados que se manifestam no reino orgânico73. Também se manifesta essa vontade de poder, segundo Nietzsche, de igual modo nos seres humanos que acreditam possuir livre-arbítrio, capacidade de fugir das determinações da esfera da necessidade. O livre-arbítrio nessa perspectiva não passaria de mais uma ficção metafísica. 70 “O conceito de vontade de poder emerge diretamente do acontecimento da morte de Deus e de suas respectivas consequências ontológicas. Porquanto a morte de Deus suprime a presença de toda e qualquer dimensão em- si no real, o mundo passa a viger inteiramente na superfície fenomênica”. CABRAL, Alexandre Marques. Zaratustra: cristão consumado. p. 153. 71 Za/ZA, “Da superação de si mesmo”, p. 108. 72 “Não apenas naquilo que domina e que estende seu domínio se exterioriza a vontade de poder, mas também no dominado e submisso”. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. A doutrina da vontade de poder em Nietzsche. p. 56. Cf. Fragmento póstomo, GA XIII, 62. Agosto –setembro de 1885, nº 40 [55]; KGW VII 3, 387. 73 “De fato, ‘em cada complexo ser orgânico’, emerge, pois, uma ‘profusão de consciências e vontades’ atrás da consciência e da vontade. Só se pode encontrar a qualidade única de Nietzsche em tal vontade fundamental. Por fim, o filósofo cunhou para ela o nome de vontade de [poder]”. MÜLLER-LAUTER, Wolfgang. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua filosofia. p. 62 37 O maior engano propagado pela tradição filosófica e pelo cristianismo em relação à natureza humana seria a crença na sua liberdade de escolha. A consciência dessa liberdade que faz o homem acreditar ter o domínio e o controle sobre si, sobre seus pensamentos, e ser sujeito de suas decisões e ações é fundamentalmente uma ilusão da “pequena razão”, do “espírito”, do “Eu”. No capítulo “Dos desprezadores do corpo” parte I, fala Zaratustra: O corpo é uma grande razão, uma multiplicidade com um só sentido, uma guerra e uma paz, um rebanho e um pastor. Instrumento de teu corpo é também tua pequena razão que chamas de “espírito”, meu irmão, um pequeno instrumento e brinquedo de tua razão. “Eu”, dizes tu, e tens orgulho dessa palavra. A coisa porém, em que queres crer – é teu corpo e sua grande razão: essa não diz Eu, mas faz Eu. O que o sentido sente, o que o espírito conhece, jamais tem fim em si mesmo.
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