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Os três tempos do complexo de Édipo Haney Soares Silva (Psicologia - 3º Período) O ser humano, ao nascer, não vem ao mundo completo. Nasce com seus sistemas neurológico e perceptivos ainda em formação. Contudo, também não nasce um ser totalmente passivo. Os bebês humanos têm a capacidade de perceber, reagir e até mesmo de interagir com o mundo ao seu redor, mas não têm a ciência de suas percepções, não têm consciência reflexiva. Os adultos, por sua vez, mudam muitos de seus comportamentos quando interagem com crianças, atribuem a elas capacidades e qualidades que não possuem objetivamente e as reconhecem (e tratam) como sujeitos, mesmo que elas ainda não se reconhecem assim. E isso se dá porque as crianças representam para os adultos aquilo que já foram um dia, o que gostariam de ser e aquilo que de melhor possuem dentro de si. O processo de nascimento do sujeito pode ser dividido em três tempos, que são ressignificados de acordo com a vivência dos tempos seguintes, na tentativa de se lidar com aquilo que se perdeu. São os três tempos do complexo de Édipo. Primeiro Tempo Nesse tempo, existe um certo descompasso entre as atitudes dos adultos e da interpretação das crianças quanto a isso. Para formar o eu a criança precisa de uma radical transformação em sua realidade, baseada numa série de negações quanto ao que se passa no princípio das experiência subjetivas infantis. O adulto, através da fala, introduz a criança ao seu desejo e à sua linguagem. Ao passo que para a criança a tarefa é assumir em e para si mesma essa linguagem. E, para tanto, ela precisa passar por três relações diferentes com a própria fala. Primeiramente, ela simplesmente repete aquilo que os adultos dizem. Depois disso, ela passa por uma espécie de regressão de sintaxe e também de vocabulário, até chegar ao momento onde ela mesma se corrige. Essa capacidade de autocorreção mostra que a criança já pode negar a própria fala e que esta fala se tornou própria. A criança tem de aprender a colocar em palavras aquilo que deseja e sente. As palavras, entretanto, vêm do outro. Assim sendo, o processo de apropriação da linguagem é um processo de alienação no qual a criança precisa reconhecer-se como alienada na linguagem. A partir disso, ela pode se apropriar de um universo simbólico e se identificar ao desejo de um outro, ao passo que ainda não reconhece isso na formação de suas próprias demandas. Todo esse processo gira em torno de descobrir quem é o outro e o que ele deseja. E essa descoberta está diretamente relacionada com os cuidados que a criança recebe dos adultos e do contato corporal decorrente desses cuidados, que gera experiências de prazer e desprazer. A criança possui uma sexualidade que se caracteriza pelo fato de que qualquer parte de seu corpo pode servir como fonte de satisfação. O organismo biológico se apoia numa outra forma de corporeidade, a pulsional. Diferente do organismo, o corpo é sensível à palavra e às relações de troca mediadas pela fantasia. E diferente do instinto, que possui objetos de certa forma fixos para sua satisfação, a pulsão precisa construir seus objetos de satisfação. Esses objetos, que são desejados, são objetos na memória e que sempre serão diferentes da realidade. Ou seja, a satisfação humana se organiza em torno de objetos fantasiados que substituem os objetos ausentes. O ato de cuidar de uma criança erotiza o seu corpo, ajudando-a a constituir um corpo pulsional. Contudo, o cuidado também é perpassado por experiências de desprazer, que ocorrem tanto nos intervalos da pulsão quanto na dor. O eu, portanto, se forma como um sistema e inibição do desprazer e de reação à dor. E aqui se encontra também o papel da negação, mesmo que de outra maneira. Antes de reconhecer-se como si mesma a criança forma um eu capaz de traduzir a separação entre interioridade e exterioridade. Para ela, o eu se associa ao prazer interiorizado e o mundo ao desprazer exteriorizado. Ou seja, é um processo de expulsão e incorporação, de negação e afirmação. Até aqui, podemos falar de um eu que é capaz de atribuir sentido e valor às experiências vividas, mas que ainda não pode julgar a realidade destas experiências. No período compreendido entre os 6 e os 18 meses de vida, a criança vivencia uma reviravolta subjetiva em sua relação com a imagem de seus semelhantes. Antes, ela se permitia ficar com qualquer um, mas nessa fase ela começa a estranhar os outros, tem pesadelos e inquietação com o próprio corpo. É o que Jacques Lacan chama de estádio do espelho. A primeira relação que a criança estabelece com a própria imagem no espelho é de estranhamento, ela tem curiosidade e fascinação mas não se reconhece nela. Já o complexo do desmame, que é quando a criança elabora sua separação do corpo da mãe, gera uma certa fixação à imagem, principalmente dos semelhantes, um certo completamento de si através da imagem do outro. Ao engatinhar, por exemplo, a criança sempre volta o seu olhar para a mãe a fim de receber, desse olhar, o que lhe falta para completar sua experiência. Esse complemento, no entanto, se evolui para uma confusão entre a imagem e o próprio eu, entre o sentido que ela constrói e o que recebe do outro. É por conta disso, exemplificando, que a criança pode dizer que um amigo lhe bateu, quando na verdade foi ela quem bateu. Ela vivencia subjetivamente somente uma incerteza quanto ao agente da ação. É somente em um terceiro tempo que a criança poderá reconhecer uma imagem como uma representação e um símbolo de si. Nesse momento ela pode assumir uma imagem, produzindo novas identificações de si. Essa imagem, no entanto, não é o eu, é apenas uma projeção de sua superfície corporal. Mas é com esse movimento que ela cria a capacidade de realizar-se como si mesma. A partir de então, ela passa a reconhecer os seus semelhantes como “outros-eus” e o eu como um outro interiorizado. Ela experimenta júbilo sempre que a unidade imagética de si é atualizada, e demonstra agressividade sempre que essa unidade é ameaçada. O eu, então, se mostra até aqui uma formação imaginária, precária e instável, e que sempre estará sujeita ao complexo de intrusão. As imagens, que são capazes de carregar o desejo do outro, fixam esse desejo em uma imagem a qual o eu irá se alienar. O desejo passa a se manifestar como desejo de possuir o desejo do outro e também como negação desse mesmo desejo, fixado na imagem que o representa. A entrada na linguagem, a pulsionalização do corpo e a formação da imagem de si se articulam com um outro movimento também responsável pela formação do eu: as primeiras relações amorosas que a criança estabelece com os que estão a seu redor, mais especificamente com a mãe ou quem exerce seu papel. Nesse momento a criança reconhece que existem diversas formas de querer, de pedir e de recusar, reconhece também existem objetos dotados de um valor que ela desconhecia, o valor simbólico que os torna signo de amor.Por isso, o valor exagerado que as imagens dos objetos possuíam cede espaço ao ato que fazem esses objetos serem trocados. O reconhecimento do valor desse ato e o próprio ato de dar e receber funcionam como matriz da relação de amor. A criança, então, passa a perceber que pode ser amada. Logo, a relação imaginária com os objetos é modificada: é necessário ter algo para ser amado e ser algo para obter o amor de alguém, sendo que esse “algo” é puramente simbólico. A forma como a criança quer ser reconhecida também se transforma de um objeto fixo e estável para o desejo do outro a um alguém que precisa fazer algo conquistá-lo e que, por isso, pode perdê-lo. Nesse ponto, a criança pode realizar negação do objeto, da posição desse objeto, da relação que estabelece com ele e do modo como se dá essa relação. Sendo esse o primeiro grande movimento que deve realizar para formar um eu. Segundo Tempo Esse eu capaz de consciência, unidade, apropriação e reconhecimento reflexivo de si é apenas o primeiro estágio da constituição do sujeito. Esse eu não é sujeito. Até aqui, o processo gira em torno da exploração das potências do outro, principalmente da mãe. E isso é modificado pela descoberta de que a mãe e as outras figuras de apego não são autossuficientes. A mãe distribuir sua atenção e suas demandas para além da criança gera para esta a suspeita de que ela não é a única fonte de amor e nem o objeto exclusivo do desejo da mãe. Isso é o que marca a passagem para o segundo tempo do complexo de Édipo. A mãe desejar algo além da criança demonstra que ela não é autossuficiente. Isso faz com que a criança retome o estado de ilusão e o reconheça assim. Ela constata que as ausências, recusas e limites da mãe já indicavam a existência de um terceiro, que logo se torna alvo de curiosidade e interesse. Surge então um lugar diferenciado, que é ocupado pelo pai, que, por sua vez, não passa de uma função simbólica que representa tudo aquilo que captura o desejo da mãe. Descobrindo a importância do pai, a criança o toma como uma figura ameaçadora, atribuindo-lhe tanto o estado de privação de algo da mãe, quanto os efeitos de dano da imagem narcísica de si. Essa constatação tem efeito direto sobre a organização das fantasias que envolvem o corpo. É nesse momento, por exemplo, que a criança passa a se questionar de onde vêm os bebês, e esse questionamento levam ao questionamento sobre a verdadeira distinção entre os sexos. Para resolver tal problema, ela cria teorias sexuais fantasiosas estruturantes. Ela tende a presumir que todos os seres possuem um pênis (algo que o pai tem e do qual a mãe é privada), sendo que não se trata do órgão biológico mas do sim do valor atribuído a ele, a representação da falta e do desejo do outro. Esse elemento que articula o simbólico e o imaginário é chamado de falo. Nesse momento a criança também passa se interessar pela sua filiação, sendo que a transformação das fantasias nesse processo de investigação tem relação estreita com as suas fontes de prazer e desprazer. O nojo, a vergonha e a curiosidade são afetos que se formam no contexto dessas fantasias. O surgimento do enigma paterno desencadeia uma crise narcísica na criança, proveniente de uma ameaça à integridade corporal de si. O que antes era tido como uma frustração do amor materno passa a ser efeito de uma ação do pai. A presença do pai reforça o complexo de intrusão, mas de uma intrusão dissimétrica porque o pai possui algo com “força de lei”, capaz de criar interditos na sua relação com a mãe. A criança pressupõe que, assim como a mãe, perdeu esse algo que o pai é ou possui. Para o menino, isso gera a angústia de castração, porque a parte de seu corpo que representa o símbolo de sua unidade corporal é ameaçada pelo pai, ao passo que também vê no pai aquilo que um dia poderá vir a ser. Para a menina, a crise narcísica é de outra ordem, ela acredita que existe uma perturbação de origem materna em seu corpo, reativando o que foi vivido no complexo de desmame. É nesse momento que a menina começa a invejar tudo aquilo que se apresenta como sendo determinante do desejo da mãe. Esse tempo do complexo de Édipo põe algumas alternativas para a formação do sujeito. A criança pode tanto aceitar quanto recusar essa privação da mãe, o que implicará diretamente na forma dela relacionar-se com a lei e com o desejo no processo de socialização. Aceitar a privação da mãe levará ao recalcamento do desejo da mãe e a uma relação neurótica com o desejo. Por outro lado, recusar a privação da mãe levará a outro tipo de negação, que a fará capaz de reatualizar a potência materna em “força de lei”, gerando uma relação perversa com o desejo. Em ambos os casos, a solução encontrada representa uma separação entre a corrente amorosa e a corrente sensual que eram dirigidas à mãe e implica também na identificação ao pai. Nesse momento, é comum que a criança apresente oscilação de humor e alternância dos afetos dirigidos aos pais. É também, em síntese, o momento que a relação com os pais vive uma reviravolta e passa a envolver quatro elementos (o pai, a mãe, a criança e o falo), acarretando um novo modo de relação com a satisfação pulsional resultante das fantasias decorrentes dessa transformação. Terceiro Tempo Nesse tempo, o sujeito estabiliza seu processo de constituição organizado pelo complexo de castração. No primeiro tempo, o que estava em questão era a identificação formadora do eu, no segundo era o problema da filiação já neste terceiro é quando se encontra uma solução para o problema da sexuação. É quando ocorre uma transmutação do objeto de desejo decorrente da simbolização da relação dos pais, deles com a criança e dessa com o que representa o desejo. A criança descobre que apesar da aparente potência do pai ele não é completo. Ele não corresponde mais à figura de perfeição antes imaginada. Mas ela entende que o pai é capaz de transmitir aquilo que ele possui. Ou seja, o pai deixa de ser e passa a ter aquilo que rege o desejo da mãe. E a mãe, antes tida como destituída, agora representa o destino daquilo que o pai é capaz de doar. A criança, então, passa a simbolizar essa circulação entre os pais, da qual estava inicialmente excluída. O pai, que antes representava a interdição das vontades passa a permitir o desejo, que é agora um desejo limitado. Essa é uma operação conhecida como castração, da qual resta uma matriz simbólica onde a criança pode apoiar seu desejo. Ela não é o pai, mas pode se tornar como ele e ter acesso a uma mulher como a mãe. Sendo que esse “como” representa uma nova negação, possibilitadora da formação dos ideais em relação ao mundo real e que rege nossas aspirações. Inicialmente, a criança se enxergava como parte do todo que era a mãe. No segundo tempo essa metonímia encontrava o pai como obstáculo real. E agora ela constitui seu desejo a partir da metaforização da relação com os pais, ondeo pai perde seu poder de opressão imagética e de força real em prol de uma potência simbólica, tendo sua função impessoalizada. Descobrir que as relações de desejo são relações que envolvem a circulação de elementos simbólicos é um passo decisivo para a socialização da criança. É a partir disso que se pode entender que nos submetemos à lei não porque existe um elemento de força real que nos obriga, mas sim por sua autoridade simbólica que promove a circulação do desejo. Dessa forma, a autoridade dos pais pode transferir-se para outras figuras. Isso implica a renúncia da satisfação tida como complemento imaginário da mãe e também da atribuída ao pai. Esse prazer perdido será objeto de diversas tentativas de recuperação. Parte dele será destinada ao trabalho de sublimação, que permite a produção de arte, ciência e cultura. Outra parte será objeto de uma vigilância permanente, responsável pelo sentimento de culpa e da consciência moral (o superego). E a outra parte restante será destinada à realização das escolhas amorosas e desejantes. É através do reconhecimento da lei da circulação do desejo que a criança pode construir sua identidade sexual primária. Para o menino, trata-se da preservação da sua identificação com o pai, onde seu desejo será orientado pela posse daquilo que representa o desejo para o outro. Para a menina, é um segundo deslocamento, de passar da identificação com o pai para uma contra-identificação através da qual se torna única e apta ao desejo. A formação da identidade sexual passará também por um momento onde será determinado o tipo objeto amoroso e sexual e o tipo de satisfação prevalente, definido pela forma como as fantasias que organizam o desejo incidem sobre o sujeito. Sendo que sua formulação final só será encontrada após o período de latência. Nesse terceiro tempo, o objeto que coordena o desejo se torna propriamente simbólico. E esse movimento implica em uma nova maneira, mediada pela lei, de relacionar o sexual ao desejo, permitindo a existência de um modo prevalente de satisfação transpassado pela fantasia. O complexo de Édipo pode ser entendido como uma encruzilhada estrutural da subjetividade humana. É um conjunto de experiências que molda estruturas psíquicas e modos de relação que permanecem no sujeito. E esse sujeito é definido pela capacidade de ser responsável pelo próprio desejo, mesmo que grande parte dele permaneça inconsciente.
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