é o conjunto de símbolos elaborados por um povo em determinado tempo e lugar. Dada a infinita possibilidade de simbolizar, as culturas dos povos são múltiplas e variadas. A cultura é, portanto, um processo de autoliberação progressiva do homem, o que o caracteriza como um ser de mutação, um ser de projeto, que se faz à medida que transcende, que ultrapassa a própria experiência. Quando o filósofo contemporâneo Gusdorf diz que “o homem não é o que é, mas é o que não é”, não está fazendo um jogo de palavras. Ele quer dizer que o homem não se define por um modelo que o antecede, por uma essência que o caracteriza, nem é apenas o que as circunstâncias fizeram dele. Ele se define pelo lançar-se no futuro, antecipando, por meio de um projeto, a sua ação consciente sobre o mundo. Não há caminho feito, mas a fazer, não há modelo de conduta, mas um processo contínuo de estabelecimento de valores. Nada mais se apresenta como absolutamente certo e inquestionável. É evidente que essa condição de certa forma fragiliza o homem, pois ele perde a segurança característica da vida animal, em harmonia com a natureza. Ao mesmo tempo, o que parece ser sua fragilidade é justamente a característica humana mais perfeita e mais nobre: a capacidade do homem de produzir sua própria história. 5. A comunidade dos homens Retomando o que foi dito até agora: o homem é um ser que fala; é um ser que trabalha e, por meio do trabalho, transforma a natureza e a si mesmo. Nada disso, porém, será completo se não enfatizarmos que a ação humana é uma ação coletiva. O trabalho é executado como tarefa social, e a palavra toma sentido pelo diálogo. Nem mesmo o ermitão pode ser considerado verdadeiramente solitário, pois nele a ausência do outro é apenas camuflada, e sua escolha de se afastar faz permanecer a cada momento, em cada ato seu, a negação e, portanto, a consciência e a lembrança da sociedade rejeitada. Seus valores, mesmo colocados contra os da sociedade, se situam também a partir dela. A recusa de se comunicar é ainda um modo de comunicação... O mundo cultural é um sistema de significados já estabelecidos por outros, de modo que, ao nascer, a criança encontra o mundo de valores já dados, onde ela vai se situar. A língua que aprende, a maneira de se alimentar, o jeito de sentar, andar, correr, brincar, o tom da voz nas conversas, as relações familiares, tudo enfim se acha codificado. Até na emoção, que pareceria uma manifestação espontânea, o homem fica à mercê de regras que dirigem de certa forma a sua expressão. Podemos observar como a nossa sociedade, preocupada com a visão estereotipada da masculinidade, vê com complacência o choro feminino e o recrimina no homem. O próprio corpo humano nunca é apresentado como mera anatomia, de tal forma que não existe propriamente o “nu natural”: todo homem já se percebe envolto em panos, e, portanto, em interdições, pelas quais é levado a ocultar sua nudez em nome de valores (sexuais. amorosos, estéticos) que lhe são ensinados. E mesmo quando se desnuda, o faz também a partir de valores, pois transgride os estabelecidos ou propõe outros novos. Todas as diferenças existentes no comportamento modelado em sociedade resultam da maneira pela qual os homens organizam as relações entre si, que possibilitam o estabelecimento das regras de conduta e dos valores que nortearão a construção da vida social, econômica e política. Considerando isso, como fica a individualidade diante da herança social? Há o risco de o indivíduo perder sua liberdade e autenticidade. É o que Heidegger, filósofo alemão contemporâneo, chama de “mundo do man” (man equivale em português ao pronome reflexivo se ou ao impessoal a gente). Veste-se, come-se, pensa-se, não como cada um gostaria de se vestir, comer ou pensar, mas como a maioria o faz. Os sistemas de controle da sociedade aprisionam o indivíduo numa rede aparentemente sem saída. Entretanto, assim como a massificação pode ser decorrente da aceitação sem crítica dos valores impostos pelo grupo social, também é verdade que a vida autêntica só pode ocorrer na sociedade e a partir dela. Aí reside justamente o paradoxo de nossa existência social, pois, como vimos, o processo de humanização se faz pelas relações entre os homens, e é dos impasses e confrontos dessas relações que a consciência de si emerge lentamente. O homem move-se, então, continuamente entre a contradição e sua resolução. Cabe ao homem a preocupação constante de manter viva a dialética, a contradição fecunda de pólos que se opõem mas não se separam, pela qual, ao mesmo tempo em que o homem é um ser social, também é uma pessoa, isto é, tem uma individualidade que o distingue dos demais. Portanto, a sociedade é a condição da alienação e da liberdade, é a condição para o homem se perder, mas também de se encontrar. O sociólogo norte-americano Peter Berger usa a expressão êxtase (ékstasis, em grego significa “estar fora”, “sair de si”) para explicar o ato possível de o homem “se manter do lado de fora ou dar um passo para fora das rotinas normais da sociedade”, o que permite o distanciamento e alheamento em relação ao próprio mundo em que se vive. A função de “estranhamento” é fundamental para o homem desencadear as forças criativas, e se manifesta de múltiplas formas: quando paramos para refletir na vida diária, quando o filósofo se admira com o que parece óbvio, quando o artista lança um olhar novo sobre a sensibilidade já embaçada pelo costume, quando o cientista descobre uma nova hipótese. O “sair de si” é remédio para o preconceito, o dogmatismo, as convicções inabaláveis e, portanto, paralisantes. É a condição para que, ao retornar de sua “viagem”, o homem se torne melhor. Texto complementar: O homem e o animal O mundo do animal é um mundo sem conceito. Nele nenhuma palavra existe para fixar o idêntico no fluxo dos fenômenos, a mesma espécie na variação dos exemplos, a mesma coisa na diversidade das situações. Mesmo que a recognição seja possível, a identificação está limitada ao que foi predeterminado de maneira vital. No fluxo, nada se acha que se possa determinar como permanente e, no entanto, tudo permanece idêntico, porque não há nenhum saber sólido acerca do passado e nenhum olhar claro mirando o futuro. O animal responde ao nome e não tem um eu, está fechado em si mesmo e, no entanto. abandonado; a cada momento surge uma nova compulsão, nenhuma idéia a transcende. (...) A transformação das pessoas em animais como castigo é um tema constante dos contos infantis de todas as nações. Estar encantado no corpo de um animal equivale a uma condenação. Para as crianças e os diferentes povos, a idéia de semelhantes metamorfoses é imediatamente compreensível e familiar. Também a crença na transmigração das almas, nas mais antigas culturas, considera a figura animal como um castigo e um tormento. A muda ferocidade no olhar do tigre dá testemunho do mesmo horror que as pessoas receavam nessa transformação. Todo animal recorda uma desgraça infinita ocorrida em tempos primitivos. O conto infantil exprime o pressentimento das pessoas. (Th. Adorno e M. Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 1985.p. 230-231.) ARRUDA ARANHA, Maria Lúcia de e PIRES MARTINS, Maria Helena. Filosofando: introdução à filosofia. 3ª edição revista. SP: Moderna, 2003.