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Livro_O_Império_Retórico_Perelman_Trad_Portuguesa

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Título original
L'empire rhétorique
© Librairie Philosophique J. Vrin
Tradutores
Fernando Trindade e Rui Alexandre Grácio
Colecção
Argumentos
Direcção de
Manuel Maria Carrilho
Direcção gráfica
Atelier Henrique Cayatte
colaboração de Patrícia Proença
Composto por
X&P Design de Comunicação
Rua Campo Alegre, 823
4100 Porto
Impresso e acabado por
Edições ASA/Divisão Gráfica
Rua D. Afonso Henriques, 742
4435 Rio Tinto
1.a edição: Outubro de 1992
Depósito legal n.o 55 931/92
ISBN 972-41-1128-8
Reservados todos os direitos
SEDE
Rua Mártires da Liberdade, 77
Apartado 4263 / PORTO CODEX
PORTUGAL
E D I Ç Õ E S 
1. A actual reabilitação e renovação da retórica deve-se, em
grande parte, ao trabalho desenvolvido por Chaïm Pe relman (1912- -
1984), autor de uma vasta e variada obra, na qual se podem destacar
Rhétorique et philosophie. Pour une théorie de l’ar gumen tation en
philosophie (em colaboração com Lucie Olbrechts-Tyteca), de 1952,
o Traité de l’argu mentation. La nouvelle rhétorique (em colaboração
com L. Olbrechts-Tyteca), de 1958, Justice et rai son, de 1963, Lo -
gique et argu mentation, de 1968, Droit, Morale et Philoso phie, de
1968, Élements d’une théorie de l’argumentation, de 1968, Le
Champ de l’argumentation, de 1970, Logique juridique — Nou velle
Rhétorique, de 1976, L’empire rhétori que — Rhétorique et
Argumentation, de 1977 e Le raisonna ble et le déraisonnable en
droit. Au-delà du positivisme ju ridique, de 1984.
Se quisermos assinalar a questão de fundo que subjaz a todo este
trabalho, te re mos de dizer, sem qualquer hesita ção, que ela é a
questão da racionalidade. Como com preen der a actividade racional?
Como conceber a nossa faculdade de raciocinar e de provar? Em que
consiste a competência ra cional e que domínios podem ser abran -
gidos por ela? Como conceber a razão?
Todas estas questões são colocadas a partir de uma pers pectiva
crítica relativa mente ao racionalismo clássico e de um esforço de
superação das limitações que este impôs à ideia (e ao alcance) de
razão. Estas limitações são, segundo Perelman, in devidas e injus -
tifica das, acabando desastrosa mente por con duzir a uma concepção
acanhada da activi da de racional, in capaz de articular a dimensão
5
Introdução à
tradução portuguesa
teórico-for mal dos raciocínios e a dimensão pragmática de que, na
prática, os raciocínios se revestem.
Não é assim de estranhar que, logo no início do Traité de l’argu-
mentation, se anuncie uma «ruptura com uma con cep ção de razão e
de raciocínio proveniente de Descartes»1, e que neste último encon-
tremos o interlocutor po lémico mais directa e insistentemente criti-
cado por Perelman. Isso mes mo não passará certamente desaper ce -
bido ao leitor da obra cuja tradução agora se apresenta e na qual os
dois úl timos capí tu los são contundentemente críticos do cartesia -
nismo.
Crítica a Descartes mas, também, resposta ao cepti cismo de
Hume que, afirmando que a razão é impotente quando se trata da
orientação ou da avaliação das nossas ac ções, afasta a possibilidade
de um uso prático da razão.
A estratégia de Perelman será, por um lado, a de pro por uma
concepção alargada de razão que a elaboração de uma teoria da
argumentação permitirá compreender e sus tentar e, por outro,
insistindo sobretudo no estudo das carac terísticas do raciocínio
prático, a de mostrar a aptidão da ra zão para lidar com valores, para
organizar as nos sas prefe rências e para fundar, com razoabilidade, as
nossas decisões.
Rejeitando a identificação do racional com o necessá rio e do não-
necessário com o irracional, Perelman procura abrir uma “terceira
via”, a via do razoável. Por isso, em vez de ver na evidência e na
necessidade dos raciocínios as marcas distintivas da razão, e re -
jeitando a ideia de que tudo o que não seja necessário é arbitrário, o
autor de O Império Retó rico reivindica que entre esses dois extremos
absolutos há todo um imenso campo — o campo magnético, como
escre veu Robinet, no qual a argumentação capta a limalha não
matemática e não experimental do espírito2 — em que a nossa ac ti -
vidade racional se exerce com, e como, razoabili dade. A reabilitação e
a re novação da retórica, que Perel man identifica com a argumentação
(e atente-se, a este pro pósito, no subtítulo da presente obra), visa pre-
cisamente esclarecer e desenvolver esta tese. Apresentando uma teoria
da argumentação e uma filosofia do razoável, a Nova Retó rica de
6
O IMPÉRIO RETÓRICO
Perelman oferece-nos, assim, uma proposta fe cunda e sólida para que
hoje se possa repensar a racionali dade.
2. Mas, perguntar-se-á, se se trata da questão da racio na lidade,
por que falar de retórica e de argumentação? Não é à lógica que
tradicionalmente compete a definição dos cri té rios que definem a
actividade racional?
Esta mesma questão terá surgido ao próprio Perelman no
momento em que, de pois de inicialmente ter aceite ser a ló gica a
detentora do monopólio da racionalidade, acabou por verificar o
reducionismo desta perspectiva e experi men tou a insatisfação face ao
formalismo de que, sob a in fluên cia da lógica matemática, a lógica se
tinha re vestido. Se a teoria da demonstração, núcleo duro da lógica,
se prestava exemplar mente ao formalismo, esta mesma exigência de
formalismo fazia com que se deixasse de lado todo o tipo de
raciocínio em que a forma não se pode separar do conteúdo, e em que
a compreensão dos raciocínios não se pode disso ciar dos seus efeitos
práticos. Ora, ainda que a lógica formal não contemple a dimensão
pragmática ou os efeitos práticos dos raciocínios, de raciocínios rela-
tivos a situações concre tas, deverá todavia o seu estudo ser negligen-
ciado e consi de rados tais raciocínios como desprovidos de lógica? É
preci samente na recusa da redução do lógico à lógica formal que
encontramos a razão que originou a elaboração de uma teo ria da
argumentação, considerada por Perelman como com plementar da
teoria da demonstração. «Os lógicos, escre veu, devem completar a
teoria da demonstração [...] com uma teo ria da argumentação»3.
Através desta úl tima abri am-se as portas à racionalidade argumenta-
tiva, que a redes co berta da retó rica permitiu tematizar.
3. O alvo visado foi, então, a constituição de uma “lógica do prefer-
ível”. A que processos recorremos quando preten demos mostrar o bem
fundado das nossas opções, ou quan do rejeitamos teses com que não
concordamos? Como pro curamos fazer preva lecer certas opiniões e de
que forma as justificamos? De que maneira procedemos quando tenta -
mos provar a superioridade de uma tese relativamente a ou tras?
7
INTRODUCAO A TRADUCAO PORTUGUESA
A grande originalidade de Perelman na abordagem destas
questões reside numa deslocação essencial. Vimos já que se tratava
de salvaguardar a racionalidade presente em todos aqueles
raciocínios que, por fazerem intervir valores e pela sua aplicação
situada e concreta, eram insusceptíveis de for malização; de, portanto,
conciliar a sua dimensão prag má tica com um estudo teórico que os
permitisse temati zar. Ora, será o encontro com a retórica que
fornecerá os termos adequados para proceder a essa te matização e
para formular os problemas aqui em jogo. A deslocação essencial,
inspi ra da na retórica, arte de persuadir um auditório, foi justa mente a
de trazer a questão da adesão para primeiro plano. O que se joga em
todos esses raciocínios, que não são nem ne ces sá rios nem arbitrários,
é a adesão que eles visam promo ver relativamente ao auditório para o
qual o orador — aque le que fala ou que escreve — se dirige.
Sendo assim, a razão não é apenas uma faculdade que, para ser
racional, deve engendrar provas necessárias que ninguém pode con-
testar. A actividade racional não é apenas cálculo (e a isso se reduz,
em última análise, a lógica for mal), antes se en contra ligada à arte
da persuasão,às técni cas discursivas que visam obter a adesão de
um audi tório.
Vista a esta luz, a razão torna-se uma instância histó rica e dialóg-
ica reguladora das nossas crenças ou convicções e da liberdade que
relativamente a elas possuímos. Liberdade de aderir e liberdade de
rejeitar — a argumentação, confe rindo um sentido à liberdade
humana, torna-se, nesta pers pectiva, condição de exercício da
escolha ra zoável4.
4. O Império Retórico: retórica e argumentação. Sob este título
encontramos, de uma forma abreviada, o imenso inventário das técni-
cas argumentativas, dos procedi mentos argumentativos e dos grandes
princípios argumentativos, feito já no Traité de l’argumentation.
Mas, mais do que isso, a nova retórica revela-se-nos agora com a sua
face “impe rial”: «Identificando esta (nova retórica) com a teoria
geral do discurso per suasivo, que visa ganhar a adesão, tanto intelec-
tual como emotiva, de um auditório, seja ele qual for, afirmamos
8
O IMPÉRIO RETÓRICO
que todo o discurso que não aspira a uma valida de impes soal
depende da retórica. Desde que uma comuni cação tenda a influen-
ciar uma ou vá rias pes soas, a orientar os seus pensamentos, a excitar
ou a apazi guar as emoções, a di rigir uma acção, ela é do domínio da
retórica»5. Que im pério é este? Um império sem imperador, o
império da dis cutibilidade, o império cuja organização ra zoável re -
clama incessantemente a conjunção do diálogo e da razão que,
assumida na sua condi ção his tórica, perpetua, pelo direito à palavra e
à questão, a construção de um plura lismo e a exi gência, sempre em
renovação, de um pensa mento crítico. «O pluralismo apura o sentido
crítico. É gra ças à interven ção sempre renovada, dos outros, que me -
lhor se pode distin guir, até nova ordem, o subjectivo do objec tivo»6.
5. Mas, suspeitar-se-á ainda: não pode a retórica servir para
enganar os outros, conduzindo-os de acordo com as conveniências
de cada um? Não é a re tórica demagó gica, sempre sujeita a ser um
instrumento ao serviço de interes sei ros?
A isto, poder-se-á replicar: por que deveria a retórica es tar ao
abrigo dos seus maus usos? E não será a competência retó rico-
argumentativa aquela que contra eles nos pode, preci samente, prevenir,
premunindo-nos de even tuais abu sos? A questão não parece, pois, ser
uma questão relativa à retó rica, mas à avaliação do humano. Não se
devendo es quecer que aquele que pretenda realçar o lado maligno da
retórica e que o queira expurgar de toda a relação com a na tureza
human, só re toricamente o pode fazer. É que no im pério retó rico —
ter-se-á já perce bido — de verdade só há as opiniões que, por entre
muita discussão, vão sendo admi tidas e aceites (até ver!) como tal.
6. Estas últimas considerações conduzem, finalmente, à questão do
interesse filo sófico da teoria da argumentação. É sabido que as relação
entre retórica e filosofia nunca foram pacíficas. Como podem, pois,
ter a retórica e o estudo da ar gumentação um interesse filosófico? E
quais as condições requeridas para que isso possa aconte cer?
Diga-se, antes de mais, que para que se possa considerar o
estudo da argumentação como filosoficamente relevante, é preciso
9
INTRODUCAO A TRADUCAO PORTUGUESA
não tomar a filosofia nem como um discurso do mestre nem ver o
filósofo como porta-voz da verdade.
No primeiro caso, a autoridade prevaleceria sobre o li vre exame e
o filosofar não poderia deixar de estar preso à ti ra nia do dogmatismo.
No segundo caso, os filóso fos, conside rando que o seu discurso é o
discurso da verdade, trans por tam para a filosofia a necessidade da
revelação e apre sen tam-se eles mesmos como os mediadores dessa
re ve lação.
Quer no primeiro quer no segundo caso deparamo-nos com um
inconveniente dificilmente aceitável: é que, assim considerada, a
filosofia fica destituída de toda a competên cia crítica a qual, todavia,
sempre figurou como uma das suas notas caracte rizadoras.
Ora, se a filosofia está essencialmente ligada a uma ati tude crítica,
facilmente perceberemos que ela não pode, para se desenvolver,
nem fundar-se no recurso à au toridade que põe fim às discussões,
nem na pretensão do filósofo ser um iluminado ou um eleito a
quem a luz da verdade guia as palavras e confere um fundamento
profé tico.
A filosofia torna-se realmente uma actividade crítica quando,
descartadas as ideias de que o filósofo não é nem um tirano nem um
profeta, despertamos para a constatação de que não há verdade
senão admitida7, ou, dito de outra ma neira, de que não há diferença
de natureza, mas apenas de grau, entre verdade e opi nião.
Tal não quer dizer que a filosofia se confunda com toda a argu-
mentação retórica, mas apenas que ela não é compre ensível sem
esta.
A filosofia, mais do que encontrar-se ligada à posse da verdade,
associa-se à crença na verdade e à aspiração de tornar a verdade, em
que o filósofo crê, admitida por outras pessoas, e, eventualmente,
por todas as pessoas (ou, em ter mos perelmanianos, pelo chamado
auditório universal). Ora, esta admissão, esta tentativa de fazer
admitir certas teses, só pode ser realizada através de meios argumen-
tativos. 
E se quiséssemos agora, como durante muito tempo se fez, decal-
car do modelo das ciências uma pergunta que per mita caracterizar a
10
O IMPÉRIO RETÓRICO
filosofia, a saber, qual é o método da fi losofia, estaríamos em
condições para responder que o mé todo próprio da filosofia é a argu-
mentação8.
Desta forma, é possível fazer uma nova abordagem do discurso
filosófico, dizendo que: a) ele se dirige a um audi tó rio que procura
persuadir; b) só pode persuadir par tindo daquilo que esse auditório
já admite, isto é, estabelecendo um laço entre o que se quer fazer
admitir e aquilo em que, à partida, se acredita.
E o que desta caracterização do discurso filosófico se pode con-
cluir é que a filo sofia, encarada numa perspectiva retórica, não pode
negligenciar a sua submissão às regras da arte da persuasão e da
argumentação.
Podemos dizer que o interesse filosófico da teoria da ar gu -
mentação reside no facto desta permitir compreender melhor a
natureza do próprio empreendimento filo sófico, definindo-o em
função de uma racionalidade que ultrapassa a ideia de verdade e que
torna a actividade filosófica com preensível a partir da ideia de que o
discurso filo sófico é um discurso que se dirige a um auditório, que
quer persuadir e convencer — eventualmente o auditório universal9
— e que para isso tem que recorrer a procedi mentos ar gumenta tivos.
A teoria da argumentação é também filosoficamente im portante
porque nos permite uma nova abordagem da pró pria história da
filosofia, a qual consistiria em ver quais são os argumentos valoriza-
dos e desvalorizados pelos filóso fos e em estabele cer uma corre-
lação entre a ontologia de um pen sador e os preceitos metodológicos
por ele utilizados pa ra a sustentar10.
Para concluir: só à luz dos contributos de uma teoria da argu-
mentação a filosofia poderá ser, efectivamente, com pre endida como
atitude crítica e aberta.
Rui Alexandre Grácio
11
INTRODUCAO A TRADUCAO PORTUGUESA
13
O bom homem do século XX, para quem o termo “retó rica”
evoca palavras vazias e floridas, figuras com no mes estranhos e
incompreensíveis, poder-se-ia interrogar, não sem razão, por que é
que um filósofo, sobretudo um lógico, sente a necessidade de asso-
ciar argumentação e re tórica. Há um século, em França, esta era
ensinada na aula com esse nome, mas foi depois eliminada dos pro-
gramas porque des provida de valor educativo.
Pessoalmente, o meu breve contacto com a retórica, há cerca de
cinquenta anos — pois nessa época o seu ensino era ainda obri-
gatório na Bélgica —, consistiu no estudo de um pequeno manual
que juntava o estudo do silogismo com o das figuras de estilo.
Aquando dos meus estudos de filosofia, ninguém me falou de
retórica senãoem termos pejorativos, e eu sabia que, em vários dos
seus diálogos, Platão atacava os sofistas e os mestres de retórica por
estarem mais preocupados em lisonjear os seus auditores do que em
ensinar-lhes a verdade, cara a Sócrates. Além do mais, o termo
“retórica” não consta do Vocabulário filosófi co de Lalande, o que
indica claramente que, a seu ver, ele não apresenta nenhum interesse
para o filósofo.
Se, no entanto, faço hoje questão em insistir no papel da retórica,
é porque as minhas investigações me convenceram da importância
desta disciplina para o pensamento contem porâneo.
Há cerca de trinta anos, um estudo sobre a justiça, em preendido
num espírito positivista, permitiu-me extrair uma regra de justiça
formal segundo a qual «os seres de uma mesma categoria essencial
devem ser tratados da mesma forma»1. Mas como distinguir o que é
Prefácio
essencial do que o não é, o que é importante do que é negligen-
ciável? Aperce bia-me de que esta distinção não se podia fazer sem
recorrer a juízos de valor que, nesta época, me pareciam perfeita -
mente arbitrários e logicamente indeterminados2.
Como se pode raciocinar sobre valores? Existem méto dos
racionalmente aceitáveis que permitam preferir o bem ao mal, a
justiça à injustiça, a democracia à ditadura? Insa tisfeito com a
resposta céptica dos positivistas, pus-me em busca de uma lógica dos
juízos de valor. A obra de Goblot, publicada em 1927 com o título
Logique des jugements de valeur, parecia-me tratar de uma forma
satisfatória apenas os juízos de valor derivados, aqueles que apreciam
os meios ou os obstáculos em relação a um fim, isto é, os juízos tec -
nológicos, mas não apresentava nenhum raciocínio que jus tificasse a
preferência concedida a um determinado fim em preterimento de
outro. Ora, na ausência de técnicas de ra ciocínio aceitáveis concer-
nentes aos fins, a filosofia prática deveria renunciar ao seu objecto
tradicional, a busca da sa bedoria, guiando a acção pela razão, não
podendo a filosofia moral, a filosofia política e a filosofia do di reito
desenvol verem-se como disciplinas sérias. Foi precisamente a esta
conclusão que tinham chegado os positivistas, para os quais os juízos
de valor não ti nham qualquer valor cognitivo, qualquer valor veri-
ficável. Mas, então, ou os seus próprios raciocínios, que culminavam
na condenação da filosofia prática, eram igual mente desprovidos de
valor, ou — se se admitissem — testemunhavam que se podiam justi-
ficar filo soficamente conclusões com importância prática. Não po dia,
pois, resignar-me à sua conclusão, simultaneamente pa radoxal e
desesperante para um filó sofo, tanto mais que pa recia admitido não
se poder fundar um juízo de valor unica mente sobre juízos de facto.
Seriam os juízos de valor pri mitivos, os princípios da mo ral e de toda
a conduta, pura mente irracionais, expressão das nossas tradições, dos
nos sos preconceitos e das nossas paixões? Em caso de desacor do,
apenas a violência seria capaz de resolver os confli tos, e seria a razão
do mais forte a melhor? Ou existe uma lógica dos juízos de valor e,
nesta hipótese, como constituí-la?
Decidi consagrar-me a esta tarefa e, para a levar a bom termo,
tentei imitar o lógico alemão Gottlob Frege, cujos trabalhos havia
14
O IMPÉRIO RETÓRICO
estudado e que, há cerca de um século, a si mesmo tinha colocado
uma questão análoga a propósito da lógica empregue pelos
matemáticos. Para a destacar, anali sou microscopicamente todas as
operações que permitiam aos matemáticos demonstrar os seus teore-
mas: o resultado dessas análises foi a renovação da lógica formal,
concebida como uma lógica operatória, permitindo cálculos, e não
uma lógica da classificação, como a lógica clássica de Aris tóteles.
Não seria possível retomar estes mesmos méto dos, aplicando-os,
desta vez, a textos que procuram fazer preva lecer um valor, uma
regra, mostrar que uma determi nada acção ou escolha é preferível a
outra? Não seria possí vel, analisando os escritos de moralistas e de
polí ticos, de orado res que preconizam determinada linha de conduta,
ar tigos de fundo dos jornais, justificações de toda a espécie, desta car
esta lógica dos juízos de valor, cuja au sência se fazia tão cruelmente
sentir?
Este trabalho de grande fôlego, empreendido com Lucie
Olbrechts-Tyteca, levou-nos a conclusões completamente inesper-
adas e que constituíram para nós uma revelação, a saber, de que não
existia uma lógica específica dos juízos de valor, mas que aquilo que
procurávamos tinha sido desen volvido numa disciplina muito antiga,
actualmente esque cida e menosprezada, a saber, a retórica, a antiga
arte de persuadir e de convencer. Esta revelação surgiu-nos por
ocasião da leitura do livro de Jean Paulhan, Les fleurs de Tarbes. O
autor tinha aí publicado, em apêndice, extrac tos da retórica de
Brunetto Latini, o mestre de Dante. Deste texto, foi-nos fácil remon-
tar à retórica de Aristóteles e a to da a tradição greco-latina da
retórica e dos tópicos3. Verifi cá mos que nos domínios em que se
trata de estabelecer aquilo que é preferível, o que é aceitável e
razoável, os ra cio cínios não são nem deduções formalmente correc-
tas nem induções do particular para o geral, mas argumentações de
toda a espécie, visando ganhar a adesão dos espíritos às teses que se
apresentam ao seu assentimento.
Esta técnica do discurso persuasivo, indispensável na discussão
prévia a toda a tomada de decisão reflectida, ti nham-na os antigos
desenvolvido longamente como a téc nica por excelência, a de agir
15
PREFÁCIO
sobre os outros homens atra vés do logos, termo que designa simul-
taneamente, de forma equívoca, a palavra e a razão.
Foi assim que compreendi a rivalidade que opôs durante toda a
antiguidade greco-latina os retóricos aos filósofos, aspirando uns e
outros ao direito de formar a juventude, o filósofo preconizando a
busca da verdade e a vida contem plativa, os retóricos concedendo,
pelo contrário, o primado à técnica de influenciar os homens pela
palavra, essencial na vida activa e especialmente na política4.
O que é que fez com que esta técnica do discurso persua sivo
tivesse desaparecido do nosso horizonte intelectual e que a retórica,
dita clássica, que se opôs à retórica antiga, tenha sido reduzida a
uma retórica das figuras, consa gran do-se à classificação das diversas
maneiras com que se po dia ornamentar o estilo?
Já na antiguidade, certos retóricos se tinham especiali zado na
declamação e nas exibições literárias, sem grande alcance, e os filó-
sofos, tais como Epicteto, não hesitaram em escarnecer deles: «E
esta arte de dizer e de ornamentar a nossa linguagem, se nisso há
uma arte particular, que outra coisa faz, quando os nossos propósitos
encontram al guém, senão enfeitar e arranjar a nossa linguagem
como um cabe leireiro faz a uma cabeleira?»5.
O que é que fez, então, com que grandes autores, como Aristó -
teles, Cícero e Quintiliano, tenham consagrado obras notáveis à
retórica, como arte de persuadir, que a retórica clás sica se tenha limi-
tado ao estudo das figuras de estilo, que as obras de retórica mais con-
hecidas em França nos séculos XVIII e XIX fossem as de Dumarsais
(Des tropes ou des différents Sens dans lesquels on peut prendre un
même mot dans une même langue, 1730) e de P. Fontanier (aparecidas
em 1821 e 1827 e reeditadas em 1969 por G. Genette sob o título Les
figures du discours), que na retó rica apenas viam orna mento e artifí-
cio? Esta perspectiva valeu à retórica clássica a repulsa dos românticos
(«guerra à retóri ca, paz à gramática») e o desprezo dos nossos con -
tempo râneos, aman tes da simplicidade e do natural. E como acre ditar
que a reabilitação da retórica, que uma nova retó rica, se possa li mitar
a pôr em dia a retórica das figuras, a «re no var o empre endimento
essencialmente taxinómico da retó rica clássica»6.
16
O IMPÉRIO RETÓRICO
Roland Barthes, que naretórica antiga não vê mais que um
objecto histórico, isto é, actualmente ultrapassado, afirma todavia
que é um contra-senso limitar a retórica às figuras7. No mesmo
número da revista Communications, Gérard Genette insurge-se con-
tra esta tendência — para a qual, aliás, muito contribuiu com os seus
próprios trabalhos (ele considera a sua exposição como uma forma
de autocrítica8) — num artigo notá vel intitulado “La rhétorique
restreinte” e do qual me permito citar este extracto, bastante longo,
mas significativo:
«O ano de 1969-70 viu aparecer quase simultaneamente três tex-
tos de amplitude desigual, mas cujos títulos conver gem de maneira
bem sintomática: trata-se da Rhétorique gé nérale do grupo de Liège,
cujo título inicial era Rhéto rique généralisée; do artigo de Michel
Deguy “Pour une théorie de la figure généralisée”; e do de Jacques
Sojcher, “La mé tapho re généralisée”: retórica-figura-metáfora: sob a
capa denegativa, ou compensatória, duma generalização pseudo-einstei -
niana, eis traçado nas suas principais etapas o per curso (aproximati-
vamente) histó rico de uma disciplina que, no decurso dos séculos,
não deixou de ver encolher, como pele de chagrém, o campo da sua
competência, ou pelo me nos da sua acção. A Retórica de Aristóteles
não se pretendia “geral” (e ainda menos “generalizada”): ela era-o, e
de tal modo o era na amplitude da sua intenção, que uma teoria
das figuras ainda aí não merecia qualquer menção particu lar; algu-
mas páginas apenas sobre a comparação e a metá fora, num livro (em
três) consagrado ao estilo e à composi ção, território exíguo, cantão
afastado, perdido na imensi dão de um Império. Hoje, intitulamos
retórica geral o que de facto é um tratado das figuras. E se temos
tanto para ge neralizar, é evidente mente por termos restringido dema -
siado: de Corax aos nossos dias, a história da retó rica é a de uma
restrição generalizada».
«Aparentemente, é desde o início da Idade Média que começa a
desfazer-se o equilíbrio próprio da retórica antiga, que as obras de
Aristóteles e, melhor ainda, de Quintiliano, testemunham: o equi-
líbrio entre os géneros (deliberativo, judiciário, epidíctico), em
primeiro lugar, porque a morte das instituições republicanas, na qual já
17
PREFÁCIO
Tácito via uma das causas do declínio da eloquência, conduz ao
desapareci mento do género deliberativo, e também, ao que parece,
do epidíctico, ligado às grandes circuns tâncias da vida cívica:
Martianus Capella, depois Isidoro de Sevilha, tomaram nota destas
defecções, rhetorica est bene dicendi scientia in civi libus quaestion-
ibus; o equilíbrio entre as “partes” (inven tio, dispositio, elocutio),
em segundo lugar, porque a retórica do trivium, esmagada entre
gramática e dialéctica, rapidamente se vê confinada ao estudo da
elocutio, dos or namentos do discurso, colores rhetorici. A época
clássica, particularmen te em França, e mais particularmente ainda
no século XVIII, herda esta situação, acentuando-a ao privile giar
incessante mente nos seus exemplos o corpus literário (e especial-
mente poético) relativamente à oratória: Homero e Virgílio (e em
breve Racine) suplantam Demóstenes e Cí cero; a retórica tende a
tornar-se, no essencial, um estudo da lexis poética»9.
Na sua recente obra consagrada à metáfora, P. Ricœur,
retomando a análise de Genette, lembra que «a retórica de
Aristóteles cobre três campos: uma teoria da argumentação que con-
stitui o seu eixo principal e que fornece ao mesmo tempo o nó da
sua articulação com a lógica demonstrativa e com a filosofia (esta
teoria da argumentação cobre, por si só, dois terços do tratado), uma
teoria da elocução e uma teoria da com posição do discurso. Aquilo
que os últimos tratados de retórica nos oferecem é, na feliz
expressão de G. Genette, uma “retórica restrita”, restringida em
primeiro lu gar à teoria da elocução, depois à teoria dos tropos. A
histó ria da retórica é a história da pele de chagrém. Uma das causas
da morte da retórica reside aí: ao reduzir-se, assim, a uma das suas
partes, a retórica perdia ao mesmo tempo o nexus que a ligava à
filosofia através da dialéctica; perdida esta ligação, a retórica
tornou-se uma disciplina errática e fútil. A retórica morreu quando o
gosto de classificar as fi guras suplantou inteiramente o sentido
filosófico que ani mava o vasto império retórico, mantinha unidas as
suas par tes e ligava o todo ao organon e à filosofia primeira.»10
Ao lado da retórica, fundada na tríade “retórica-prova-per-
suasão”, Ricœur lem bra que Aristóteles elaborou uma poética que não é
18
O IMPÉRIO RETÓRICO
técnica de acção, mas técnica de criação, que corresponde à tríade
poiésis-mimésis-catharsis 11. Ora, Aristóteles trata da metáfora nos
dois tratados, mos trando que a mesma figura pertence aos dois
domínios, logo, exer cendo uma acção retórica e desempenhando,
além disso, um pa pel na criação poética. Foi este duplo aspecto das
figuras que igualmente sublinhámos ao distinguir niti damente as fig-
uras de retórica das figuras de estilo:
«Consideramos uma figura como argumentativa se o seu
emprego, implicando uma mudança de perspectiva, parece normal
em relação à nova situação sugerida. Se, pelo con trário, o discurso
não implica a adesão do auditor a esta for ma argumentativa, a figura
será entendida como orna mento, como figura de estilo. Ela poderá
suscitar a admira ção, mas no plano estético, ou como testemunho da
origina lidade do orador.»12
Examinando as figuras fora do seu contexto, como flores resse-
quidas num ervanário, perde-se de vista o papel dinâ mico das fig-
uras: todas se tornam figuras de estilo.
Se não estão integradas numa retórica concebida como a arte de
persuadir e de convencer, deixam de ser figuras de retórica e tor-
nam-se ornamentos respeitantes apenas à forma do discurso: não é,
pois, digno de consideração encarar uma recuperação moderna,
mesmo duma retórica das figuras, fora do contexto argumentativo.
É essa a razão pela qual me parece vão esperar a renova ção da
retórica, de uma retórica das figuras, mesmo que es tas sejam estu-
dadas na perspectiva da linguística es trutural e da teoria literária,
sem preocupação com a importância, para o estudo das figuras de
retórica, duma concepção dinâmica das mesmas: não basta afirmar
peremptoriamente que um estudo assim concebido «se situa na
margem da maioria das recupe rações modernas da retórica»13 para
dele nos po dermos desinteressar.
Mas há mais. Nos Estados Unidos da América, o ensino da
retórica, que estava integrado nos cursos de inglês, sepa rou-se destes,
há cerca de 60 anos, e organizou-se em depar tamentos especializados
consagrados à retórica, como téc nica da comunicação e do discurso
persuasivo: aí ensinam, actualmente, mais de cinco mil professores.
19
PREFÁCIO
Publicaram mi lhares de obras consagradas a esta matéria. Há nove
anos, apareceu na Pensilvânia uma revista intitulada Philosophy and
Rhetoric, dirigida por filósofos e retóricos, na qual o es tudo das fig-
uras ocupa um lugar muito reduzido.
O renascimento e a reabilitação da retórica no pensa mento con-
temporâneo, a que assistimos actualmente14, só foram possíveis após
um reexame das relações entre a retó rica e a dialéctica, tal como
foram estabelecidas por Aristó teles e profundamente modificadas
por Pedro Ramo num sentido desfavorável à retórica. É a um reexa -
me seme lhante que nos propomos proceder: ele explicará as causas
do declínio da retórica e elucidará sobre as relações da nova retórica
com a teoria da argumentação.
20
O IMPÉRIO RETÓRICO
21
No seu memorando consagrado à retórica antiga, Roland Barthes
observa com razão que «a retórica deve ser sempre lida no jogo
estrutural das suas vizinhas (Gramática, Ló gica, Poética,
Filosofia)»1. Pelo meu lado, acrescentaria que, para bem situar a
retórica e bem a definir, é igual mente neces sá rio precisar as suas
rela çõescom a dialéctica.
Aristóteles distinguiu, no seu Organon, duas espé cies de
raciocínios: os raciocínios analíticos e os raciocínios dialécti cos. O
es tudo que daqueles empreendeu nos Pri mei ros e nos Se gundos
Analíticos valeu-lhe ser consi derado, na história da filosofia, como o
pai da lógica for mal. Mas os lógicos mo dernos esquece ram, porque
não lhes tinham per cebido a im portância, que ele ti nha estu dado os
raciocínios dialécticos nos Tópicos, na Retórica e nas Refutações so -
fís ti cas, o que faz dele, igualmente, o pai da teoria da ar gumentação.
Nos seus Analíticos, Aristóteles estuda formas de in fe rên cia vál-
ida e, especialmente, o silogismo, que permi tem, da das de ter -
minadas hipóteses, delas inferir uma conclu são de forma necessária:
se todos os A são B e se todos os B são C, daí resulta neces sa -
riamente que todos os A são C. A infe rên cia é válida seja qual for a
verdade ou a falsi dade das pre mis sas, mas a conclusão só é ver-
dadeira se as pre missas forem verdadeiras. Esta inferência ca racte -
riza- -se, simulta nea mente, pelo facto de ser puramente formal, pois
é válida se ja qual for o conteúdo dos termos A, B e C (na condição
de que cada letra seja substituída pelo mesmo va lor sem pre que ela
se apresente) e pelo facto de estabelecer uma rela ção entre a ver dade
1.
Lógica, Dialéctica,
Filosofia e Retórica
das premissas e a da conclu são. Sendo a verdade uma pro priedade
das proposições, independente da opinião dos ho mens, os
raciocínios analíti cos são de mons trativos e im pes soais. Esse não é,
contudo, o caso dos racio cínios dialéc ticos. Um raciocínio é dialéc -
tico, diz Aris tóte les, se as suas premissas forem constituí das por
opiniões ge ral mente acei tes2: define desta forma as opiniões aceites
por todos, pela maior parte ou pelos fi lóso fos, isto é, por to dos, pela
maio ria, ou pelos mais no táveis e mais ilus tres entre eles3.
Em certos casos, aquilo que é geralmente aceite é ve ro sí mil, mas
não se deve confundir esta verosimi lhança com uma probabi lidade
calculável: pelo contrário, o sen tido do termo “εϋλογος”, que se
traduziu por “geralmente aceite” ou “aceitável”, tem um as pecto
quali tativo, o que o aproxima mais do termo “razoável” do que do
termo “provável”. No temos, além disso, que a probabi li dade só diz
respeito a fac tos ou acontecimentos, passados ou futu ros, enquanto
as te ses em discussão po dem dizer res peito a qualifi ca ções in -
temporais, tais como «O mundo é finito ou infi ni to?», «A democra-
cia é ou não a melhor forma de go verno?».
Vemos imediatamente que os raciocínios dialécti cos par tem do
que é aceite, sendo o seu fim o de fazer admitir ou tras te ses que são
ou podem ser controversas: têm, pois, o pro pósito de persuadir ou de
convencer. Não consistem em inferências válidas e constringentes,
mas apresentam ar gu mentos mais ou menos fortes, mais ou menos
convin cen tes, e que não são nunca pura mente formais. Um argu -
mento per suasivo é o que persuade aquele a quem se di rige4: con tra -
riamente ao raciocínio analítico, o raciocínio dialéctico não é impes-
soal, pois é apreciado pela sua ac ção sobre um espírito. Daqui
resulta que é preciso distinguir ni ti damente os raciocí nios ana líticos
dos racio cínios dialécti cos, inci dindo uns so bre a verdade e os outros
sobre a opinião. Exi gindo cada domí nio um tipo de discurso difer-
ente, é tão ri dículo contentarmo-nos com argumentações razoáveis
por parte de um matemá tico como exigir provas científicas a um
ora dor5.
Ora, é neste ponto que se situa a novidade, mas tam bém o erro, de
Pedro Ramo, que se tornaria fatal para a re tó rica. Partindo do trivium,
22
O iMPERiO REtÓRiCO
artes do discurso, artes dis se rendi, ele define a gramática como a
arte de bem falar, isto é, de fa lar correcta mente, a dialéctica como a
arte de bem raciocinar e a retórica como a arte de bem di zer, do uso
elo quente e or namentado da lingua gem6.
Considerando a dialéctica como «a arte geral para in ven tar e jul-
gar todas as coisas»7, pretende que «há apenas um método, que foi o
de Platão e de Aristóteles, […] este mé todo encontra-se em Virgílio
e Cícero, em Homero e De móste nes, preside às matemáti cas, à
filosofia, aos juí zos e à con duta dos homens.»8
Rejeita com estrépito a distinção aristotélica entre juí zos analíti-
cos e dialécticos, justificando assim a sua atitude: «pois ainda que as
coisas cognoscíveis sejam umas neces sá rias e cien tíficas, outras con-
tingentes e opináveis, tal como a vista é comum à visão que vê todas
as cores, mutá veis ou imutáveis, também a arte de conhe cer, isto é, a
Dia léctica ou Lógica, é uma e a mesma dou trina para perce ber todas
as coisas […]»9.
A amplitude assim dada à dialéctica, que tanto com porta o
estudo das inferências válidas como a arte de en con trar e julgar os
argumentos, tira à retórica de Aristóteles as suas duas partes es -
senciais, a invenção e a disposição, dei xando-lhe apenas a elocu -
ção, estudo das formas da lin gua gem ornamentada. É neste es pírito,
de pois desta redu ção fi losofi camente justificada, que o amigo de
Pedro Ramo, Omer talon, publica em Colónia, em 1572, a pri meira
retórica sis tematicamente limitada ao estudo das figu ras, sendo a fi -
gura, segundo a definição de talon, «uma ex pressão pela qual o
desen volvi mento do discurso difere do recto e sim ples há bito»10.
Assim foi instaurada a retó rica clássica, essa retórica das figuras
que, pela degeneres cência, conduziu pro gressi va mente à morte da
retórica.
É sabido que a lógica moderna, tal como se desenvolveu desde
meados do século XiX, iden tifi cou, sob a in fluência de Kant e dos
lógicos matemáticos, a ló gica, não com a dia léctica, mas com a
lógica formal, isto é, com os raciocí nios analíticos de Aristóteles,
e negli genciou completamen te os racio cínios dialécticos, consi de ra -
dos co mo estranhos à lógi ca. Nisso parece-me ter co me tido um erro,
23
LÓGiCA, DiALECtiCA, FiLOSOFiA E REtÓRiCA
simétrico do de Ramo. Pois se é inegável que a lógica formal constitui
uma disciplina separada que se presta, co mo as ma temáticas, a oper-
ações e ao cálculo, é tam bém ine gável que raciocina mos, mesmo
quando não calculamos, aquando de uma deli beração íntima ou de
uma discussão pública, apresentando argumentos a favor ou contra
uma tese, criticando ou refu tando uma crítica. Em todos estes ca sos,
não se de mons tra, como em matemá tica, mas argu menta-se. É pois
normal, se se concebe a lógica como es tudo do raciocínio sob todas
as suas formas, com pletar a teoria da demonstração, desenvol vida
pela lógica formal, com uma teoria da argumen tação, estu dando os
ra ciocínios dialécticos de Aristóteles.
Estes consistem em argumentações visando a acei ta ção ou a
rejeição duma tese em debate: o seu estudo, as sim como o das
condições de sua apresentação, é o objecto da nova re tórica que pro-
longa, amplificando mesmo, a de Aristóteles.
Com efeito, este tinha oposto a retórica à dialéctica, tal como
a ti nha examinado nos Tópicos, vendo mesmo nela o re verso
(άντίστροψος) da dialéctica11: esta inte ressa-se pelos argu mentos
utilizados numa controvérsia ou numa discus são com um único
interlocutor, enquanto a retórica diz res peito às técnicas do orador
dirigindo-se a uma turba reu nida na praça pública, a qual não possui
nenhum saber es pe ciali zado e que é inca paz de seguir um ra ciocínio
um pouco mais ela borado12.
Mas a nova retórica, em oposição à antiga, diz res peito aos dis-
cursos dirigidos a todas as espécies de auditórios, trate -se duma
turba reunida na praça pública ou duma reu nião de es pecialistas,
quer nos dirijamos a um único indiví duo ou a toda a humanidade;
ela examinará inclusivamente os ar gu mentos que dirigimos a nós
mes mos, aquando duma de libe ração ín tima. Considerando que o seu
objecto é o es tudo do discurso não-demonstrativo, a análise dos
raciocí ni os que não se li mitam a inferências formal mente correc tas,
a cálcu los mais ou menos mecanizados, a teoria da ar gumen tação
concebida como uma nova retó rica (ou uma nova dialéctica) cobre
todo o campo do dis curso que visa con ven cer ou per suadir, seja qual
for o auditório a que se dirige e a matéria a que se re fere. Poder-se-á
24
O iMPERiO REtÓRiCO
completar, se parecer útil, o es tudo ge ral da argumen ta ção com
meto dolo gias es pecializa das se gundo o tipo de audi tório e o género
de disci plina. Poder-se-ia, assim, elaborar uma lógica jurídi ca13 ou
uma lógica filo sófica, que mais não seriam do que aplica ções parti -
cula res da nova retórica ao di reito e à filosofia.
Subordinando a lógica filosófica à nova retórica, tomo par tido no
debate secular que opôs a filosofia à re tó rica, e isto desde o grande
poema de Parménides.
Este, e a grande tradição da metafísica ocidental, ilustra da pelos
nomes de Platão, Descartes e Kant, opôs sempre a busca da verdade,
objecto proclamado da filosofia, às técni cas dos retóricos e dos
sofistas, que se contentam em fazer admitir opi niões tão variadas
quanto enganadoras. Parméni des prefere o ca minho da verdade ao
da aparência; Platão o põe o saber à opinião comum; Descartes funda
a ciência so bre evi dências irrefragáveis, tomando quase por falso tu -
do o que fosse apenas vero símil; Kant, por fim, ela borando a sua
metafísica, que é essen cialmente uma episte mologia, inven tário de
todos os co nhecimentos que, «tendo um funda mento a priori, de vem
ser tidos à partida como ab solu ta mente ne cessários», propõe-se
banir as opiniões da fi losofia.
Para se assegurar de que as teses preconizadas pelos filó so fos
não constituem opiniões incertas e falaciosas mas verdades indis-
cutíveis, é preciso que elas beneficiem de um fundamento sólido e
indiscutível, de uma intuição evidente, que garanta a ver dade do que
é percebido como evidente. A evidência, assim con cebida, não é um
es tado subjectivo que possa variar dum mo mento para o outro e de
indivíduo para indiví duo: o seu papel, com efeito, é o de estabelecer
uma ponte entre o que é percebido como evidente pelo sujeito
cognoscente e a verdade da proposi ção evidente que deve impor-se
da mesma maneira a todo o ser de ra zão14.
Uma argumentação nunca é capaz de proporcionar a evi dên cia e
não está em questão argumentar contra o que é evi dente. Aquele que
se atém à evidência está certo de que ela se imporá com a mesma
evidência a todos os seus inter locu to res; a argumentação não pode
intervir, a me nos que a evi dência seja contestada. É o que já tinha
25
LÓGiCA, DiALECtiCA, FiLOSOFiA E REtÓRiCA
no tado Aristóteles, o qual reconhece ser indispen sável recorrer aos
raciocí nios dialécticos quando os primeiros princípios duma ciên cia, que
normalmente se impõem por si mesmos, são con tes ta dos15. O mesmo se
passa quando se discute uma defini ção.
Se, normalmente, é graças à intuição que se apre en dem as
noções simples e os primeiros princípios duma ciência teórica,
Aristóteles reconhece que é nas discipli nas práticas, como a ética e a
política, onde as escolhas e as controvér sias são inevitáveis, que o
recurso à argu mentação se impõe, trate-se duma deliberação ín tima
ou duma discus são pú blica. Por isso o seu Organon com porta, ao
lado dos Analí ticos, que dizem respeito ao raciocínio formal, os
Tópicos, que examinam os raciocínios dialécti cos, os quais per-
mitem jus tificar a melhor opinião, a opinião razoável (εϋλογος).
todos os que crêem poder determinar a verdade in de pen -
dentemente da argumentação menosprezam a re tórica, que se re fere
a opiniões: em rigor, ela poderia servir para propa gar verda des
garantidas ao orador pela intuição ou pela evi dência, mas não para
as estabelecer. Mas, se não se admite que se possam fundar teses
filosóficas so bre in tuições evi dentes, será preciso re correr a técnicas
argumen tativas para as fazer prevalecer. A nova retórica torna-se,
então, ins tru mento indispensável à filosofia16.
Aqueles que, como P. Ricœur, admitem, em filoso fia, ver dades
metafóricas que não se podem fazer prevale cer por uma evidência
constringente, porque propõem uma reestru tu ração do real, não
podem normalmente negar a im portân cia das técnicas retóricas que
tendem a fazer prevale cer esta ou aquela metáfora sobre uma outra17:
não poderão negli genciá-las, a menos que admitam a existência
duma intuição que im poria uma única visão do real e excluiria, por
isso mesmo, todas as outras18.
O declínio da retórica, a partir dos finais do século XVi, deveu-se
à ascensão do pensamento burguês, o qual genera lizou o papel da
evidência, trate-se da evidência pes soal do protestan tismo, da evidên-
cia racional do car tesia nismo ou da evi dência sensível do empirismo19.
O menosprezo pela retórica e o esquecimento da teo ria da argu-
mentação levaram à negação da razão prá tica, sendo os pro blemas
26
O iMPERiO REtÓRiCO
da acção ora reduzidos a pro blemas de co nhe cimento, isto é, de ver-
dade ou de proba bilidade, ora con si de rados como em nada rele-
vando da ra zão.
Mas todos os que crêem na existência de escolhas ra zoá veis, pre-
cedidas por uma deliberação ou por discus sões, nas quais as difer-
entes soluções são confrontadas umas com as outras, não poderão
dispensar, se desejam adquirir uma consciência clara dos métodos
intelectuais uti lizados, uma teoria da argumentação tal como a nova
retó rica a apresenta.
Esta não se limitará, aliás, ao domínio prático, mas es tará no
âmago dos problemas teóricos para aquele que tem cons ciência do
papel que a escolha de definições, de modelos e de analogias, e, de
forma mais geral, a ela bora ção duma lin guagem adequada, adaptada
ao campo das nossas investi ga ções, desempenham nas nossas teo-
rias. É neste sentido que se poderia ligar o papel da ar gumenta ção à
razão prática, papel que será fundamental em todos os domínios
onde se vê operar a razão prática, mesmo quando se trate da resolu -
ção de problemas teóricos. insisto em frisar este ponto para evitar
qualquer mal-entendido quanto ao al cance da ar gu mentação, tal
como a con cebo20.
27
LÓGiCA, DiALECtiCA, FiLOSOFiA E REtÓRiCA
O que é que distingue a argumentação de uma demons tração for-
malmente correcta?
Antes de tudo, o facto de, numa demonstração, os signos utiliza-
dos serem, em princípio, desprovidos de qualquer am biguidade, con-
trariamente à argumentação, que se desenrola numa língua natural,
cuja ambiguidade não se encontra pre viamente excluída. Depois,
porque a demonstração correcta é uma demonstração conforme a
regras explicitadas em sis temas formalizados. Mas também, e insis -
tiremos neste pon to, porque o estatuto dos axiomas, dos princípios
de que se parte, é diferente na demonstração e na argumen ta ção.
Numa demonstração matemática, os axiomas não estão em dis-
cussão; sejam eles considerados como evidentes, como verdadeiros
ou como simples hipóteses, não há qual quer preocupação em saber
se eles são, ou não, aceites pelo auditório. Aliás, aquele que quisesse
justificar a escolha dos axiomas deveria, como já Aristóteles notou,
nos seus Tópicos 1, recorrer à argumentação.
Como o fim de uma argumentação não é deduzir conse quências
de certas premissas, mas provocar ou aumentar a adesão de um
auditório às teses que se apresentam ao seu assentimento, ela não se
desenvolve nunca no vazio. Pres supõe, com efeito, um contacto de
espíritos entre o ora dor e o seu auditório: é preciso que um discurso
seja escu tado, que um livro seja lido, pois, sem isso, a sua acção se -
ria nula. Mesmo quando se trata de uma deliberação íntima, quando
aquele que avança razões e aquele a quem elas se destinam são uma
e a mesma pessoa, o contacto de espíritos é indispensável. Daí certos
29
2.
A Argumentação,
o Orador e o seuAuditório
conselhos, como «Não dês ouvi dos ao teu mau génio», «Não ponhas
isso em questão».
Toda a sociedade que reconhece a importância de tais contactos
procura organizá-los e pode, mesmo, torná-los obrigatórios. A missa
dominical permite o encontro semanal do pároco com os seus paro-
quianos; o ensino obrigatório garante ao preceptor a presença de alunos
submetidos à sua influência; a convocação anual de sessões parla-
mentares, prevista pela Constituição, confronta o Governo, numa data
fixa, com os eleitos pela nação; os procedimentos judiciá rios assegu-
ram ao interrogador o desenrolar normal do pro cesso, mesmo se a
parte adversa está recalcitrante.
O ritual, os programas de ensino, as tradições parlamen tares e as
regras de procedimento fixam, com maior ou me nor precisão, as
matérias que serão objecto das comunica ções. O desvio será consid-
erado ilegal ou inconve niente, uma insolência, alvo de riso ou de
escândalo.
Lembro-me ainda, após mais de trinta anos, do incómodo provo-
cado por um orador que, encarregado de pronunciar, diante dos pre-
sentes, o elogio fúnebre de um amigo fale cido, abusara da palavra
para atacar uma parte da assistên cia. Há igualmente abuso na inicia-
tiva do preceptor a quem se confiou a educação das crianças de
acordo com os valores da comunidade e que se aproveita disso para
pro pagar ideias e valores que suscitam o escândalo.
O estabelecimento, ou ruptura, de relações diplomáticas constitui
um preliminar, significando que se está disposto a discutir com a
parte adversa ou que não se a aceita como in terlocutora. Numa con-
trovérsia, antes mesmo de se pergun tar quem tem razão, é impor-
tante saber se se visa regular um diferendo pela negociação, isto é,
pelo recurso a uma argumentação ou pelo recurso à força.
Como a argumentação se propõe agir sobre um auditório, modi-
ficar as suas convicções ou as suas disposições por meio de um dis-
curso que se lhe dirige e que visa ganhar a adesão dos espíritos, em
vez de impor a sua vontade pelo constrição ou pela domesticação,
ser-se uma pessoa a cuja opinião se atribui algum valor é já uma
qualidade não ne gligenciável. Da mesma forma, é importante poder
30
O IMPERIO RETÓRICO
tomar a palavra em certas circunstâncias, ser o porta-voz de um
grupo, de uma instituição, de um Estado e ser escutado.
Vimos que toda a argumentação pressupõe o contacto dos espíri-
tos, que as instituições sociais e políticas podem favorecer ou
impedir. Basta pensar no monopólio dos meios de comunicação que
caracteriza os estados absolutistas e em todos os meios de garantir
ou de prevenir o contacto dos espíritos. A liberdade de palavra e de
imprensa são conquis tas importantes da democracia, mas, mesmo
numa socie dade liberal, nem todos podem, em qualquer circunstân-
cia, tomar a palavra e fazer-se ouvir. Mesmo o adepto mais de -
clarado do diálogo não está disposto a entabular com qual quer um
uma discussão a propósito de um qualquer assunto.
Aristóteles já o tinha notado: não só não se deve, escreve ele,
discutir com qualquer um, como é preciso evitar o de bate sobre cer-
tas questões:
«Aqueles que, por exemplo, colocam a questão de saber se se
deve ou não louvar os deuses e amar os pais, mais não pedem do que
um bom correctivo, e aqueles que perguntam se a neve é branca, ou
não, só têm que abrir os olhos.»2
Certas questões não merecem discussão; outras não po dem ser
discutidas, pois o próprio facto de as pôr em causa é blasfematório
ou escandaloso.
Foi o caso de um decreto ateniense que interditara, sob pena de
morte, a introdução de um projecto de lei que modi ficava a afec-
tação dos fundos de reserva da cidade3. E Pas cal, antes de nos
fornecer as razões para crer na existên cia de Deus e na imortalidade
da alma, consagrou longos de senvolvimentos para nos persuadir da
importância do pro blema, que seria insensato negligenciar4.
Notemos, a este propósito, que a argumentação não tem unica-
mente como finalidade a adesão puramente intelectual. Ela visa,
muito frequentemente, incitar à acção ou, pelo menos, criar uma dis-
posição para a acção. É essencial que a disposição assim criada seja
suficientemente forte para su perar os eventuais obstáculos. É o que
nota, muito subtil mente, S.to Agostinho, no capítulo 13 do 4.o livro do
seu escrito Da doutrina cristã:
31
A ARGUMENTACAO, O ORADOR E O SEU AUDITÓRIO
«Se as verdades ensinadas são tais que basta crer nelas ou con-
hecê-las, dar-lhes o assentimento nada mais implica que o reconhec-
imento da sua verdade. Mas, contudo, se a ver dade ensinada deve
ser aplicada na prática, e se ela é en si nada com vista a esta prática,
de nada serve ser persuadido da verdade do que foi dito, de nada
serve encontrar prazer na maneira como isso foi dito, se ela não é
aprendida para ser praticada. O padre eloquente, quando apresenta
uma ver dade prática, não deve ensinar somente a fim de instruir e
agradar de forma a manter a atenção, mas deve também con duzir o
espírito de forma a submeter-lhe a vontade.»5
O auditório só será verdadeiramente persuadido, dirá S.to
Agostinho, «se conduzido pelas vossas promessas e ater ro rizado
pelas vossas ameaças, se rejeita o que conde nais e abraça o que
recomendais; se ele se lamenta diante do que apresentais como
lamentável e se rejubila com o que apre sentais como rejubilante; se
se apieda diante daque les que apresentais como dignos de piedade e
se se afasta daqueles que lhe apresentais como homens a temer e a
evi tar.»6
Dirigindo-se aos fiéis para que cessem as suas guerras in testinas,
S.to Agostinho não se contentou com os seus aplau sos: ele falou até
que vertessem lágrimas, testemu nhan do, assim, que estavam
preparados para mudar de ati tude.
Estes exemplos, mesmo que se desaprove a terminologia de S.to
Agostinho ao falar de “verdades práticas”, provam que, quando
apresentadas num discurso argumentativo, as teses tanto visam obter
dos auditórios um efeito puramente intelectual, uma disposição para
admitir a verdade de uma tese, como provocar uma acção imediata
ou eventual. Aquele que argumenta não se dirige ao que consideramos
como faculdades, como a razão, as emoções, a vontade. O orador
dirige-se ao homem todo, mas a argumentação propiciará, con-
forme o caso, efeitos diferentes e utilizará, de cada vez, métodos
apropriados, tanto ao objecto do dis curso, como ao tipo de auditório
sobre o qual se quer agir. Assim, um advogado que pleita num caso
comercial ou criminal, político ou de direito comum, de direito pri-
vado ou de direito internacional público, e de acordo com o géne ro
32
O IMPERIO RETÓRICO
de tribunal que se trata de convencer, não utlizará nem o mesmo
estilo nem o mesmo tipo de argumentos. O único conselho, de
ordem geral, que uma teoria da argumentação pode dar na ocorrên-
cia é recomendar ao orador que se adapte ao seu auditório.
Que auditório é este em torno do qual se centra a argu mentação?
Por vezes a resposta é óbvia. O advogado que pleita pe rante um
tribunal deve convencer os juízes que o consti tuem. Mas que sucede
com um homem de Estado que pro nuncia um discurso no Parla -
mento? É o seu auditório cons tituído por todos aqueles que o escu-
tam, mesmo se o seu discurso é transmitido pela rádio? Aquele que é
entre vistado por um jornalista dirige-se a este último, aos leito res do
jornal, à opinião pública nacional ou internacional, ou a quem pode-
ria conhecer as suas declarações? Vê-se imedia tamente que a
questão não é a de identificar o audi tório de um orador com todos
aqueles que se encontram em con dições de o entender e, a fortiori,
com todos aqueles que nunca terão ocasião de o ler. Além disso, é
concebível que o orador negligencie uma parte do seu auditório,
quer se trate do policial que assiste ao discurso ou de certos mem-
bros da oposição num discurso político que procura consolidar uma
maioria parlamentar.
O auditório nãoé necessariamente constituído por aque les que o
orador interpela expressamente. No Parlamento britânico, o orador
dirige-se por princípio ao Presidente da câmara, mas o seu discurso
pode, realmente, dirigir-se aos membros do seu partido, à opinião
pública nacional ou in ternacional. Vi, num café da cidade, a
inscrição «Grande bobi, não saltes pràs cadeiras», o que não implica
que todos os cães admitidos no café saibam ler e compreendam
portu guês. Se se quer definir o auditório de forma útil para o de -
senvolvimento de uma teoria da argumentação, deve-se concebê-lo
como o conjunto daqueles que o orador quer influenciar pela sua
argumentação.
Que conjunto é este? É muito variável, e pode ir do pró prio
orador, no caso de uma deliberação íntima, quando se trata de tomar
uma decisão numa situação delicada, até à humanidade inteira ou,
pelo menos, aos membros que são competentes e razoáveis e que eu
33
A ARGUMENTACAO, O ORADOR E O SEU AUDITÓRIO
qualifico como auditório universal, passando por uma variedade
infinita de auditórios particulares.
Para alguns, simultaneamente os mais individualistas e os mais
racionalistas, a deliberação consigo mesmo fornece ria o modelo de
um raciocínio sincero e honesto, no qual nada se procuraria esconder,
ninguém enganar, triunfar ape nas sobre as suas próprias incertezas.
Assim, para Pascal, «o consentimento de si para consigo mesmo e a
voz constante da própria razão»7 são o melhor critério de verdade. Da
mesma forma, Descartes, no prefácio às suas Meditações, anuncia ao
leitor: «exporei em primeiro lugar nestas Medi tações os mesmos pen-
samentos pelos quais me per suadi ter chegado a um conhecimento
certo e evidente da verdade, a fim de ver se, pelas mesmas razões que
me per suadiram, poderia também persuadir os outros»8. Para al guns
autores, como Schopenhauer e J. St. Mill, enquanto a dialéctica seria
a técnica da controvérsia e a retórica a téc nica do discurso público, a
lógica identificar-se-ia com as regras aplicadas para conduzir o seu
próprio pensamento9. Para Chaignet, na sua obra La rhétorique et son
histoire, a distinção entre per suadir e convencer consistiria essencial -
mente em a persua são ser obra de outrem enquanto que é sempre a
nós mes mos que convencemos10.
Mas isso foi antes do contributo da psicanálise nos ter conven-
cido de que nos podemos enganar a nós mesmos e que as razões que
apresentamos podem não ser mais do que racionalizações. A ideia
encontra-se já, em germe, em Schopenhauer, para quem “o int-
electo” não faz mais do que camuflar os verdadeiros motivos dos
nossos actos, que se riam completamente irracionais11.
O auditório constituído pelo único interlocutor do diá logo pare-
cia apresentar inegável vantagem sobre o auditório constituído por
um agregado, reunido numa praça pública, já que a ideia que dele se
formasse, quanto às suas convic ções e às suas atitudes, podia ser tes-
tada graças à técnica das questões e das respostas. À medida que o
diálogo ou a controvérsia se desenvolve, o orador conhece cada vez
me lhor o seu interlocutor, pois tem o direito de supor que este não
procura induzi-lo em erro. Sendo a finalidade da troca de ideias
fornecer aos participantes na discussão um melhor conhecimento uns
34
O IMPERIO RETÓRICO
dos outros, o acordo manifestado nesta ocasião garantiria um desen-
rolar mais cerrado da argumen tação: é a razão pela qual Zenão com-
parava a dialéctica, técnica do diálogo, a um punho fechado,
enquanto a retórica lhe parecia semelhante a uma mão aberta12.
Esta distinção, que não é desprovida de pertinência, está indu-
bitavelmente ligada ao melhor conhecimento do inter locutor no diál-
ogo, pelo menos em relação ao objecto do debate. Pois seria ridículo,
para o orador, desenvolver a sua argumentação sem se preocupar
com as reacções do seu único interlocutor, que é levado, necessaria-
mente, a passar do papel de auditório passivo a uma participação
activa no debate. Aquele que vaticina sem se preocupar com as reac -
ções daquele que escuta, mais depressa é considerado como um ilu-
minado, exposto a demónios interiores, do que como um homem
razoável que procura fazer partilhar as suas con vicções. Não é, pois,
sem razão, que a técnica socrática das questões e das respostas se
apresentará, neste caso, como adaptada à argumentação perante um
só ou um pe queno nú mero, ao passo que a dos longos discursos se
im põe perante um auditório numeroso. Não se deve, contudo, trans-
formar numa diferença de natureza a diferença de técnica argu -
mentativa imposta essencialmente pelas cir cunstâncias e que só con-
cerne a adesão, mais ou menos as segurada e ex plícita, aos
argumentos desenvolvidos.
Por outro lado, quando se trata de um discurso sobre um tema
especializado, dirigido a um auditório de especialistas, trate-se de
físicos, historiadores ou juristas, a técnica das questões e das
respostas não é nada apropriada, pois em cada disciplina há um con-
junto de teses e de métodos que se supõem admitidos por cada espe-
cialista e que só excepcio nalmente são postos em questão; não se
pode contestá-los arbitrariamente sem manifestar a sua incompetên-
cia, pois isso iria contra a estabilidade das crenças científicas13.
Quanto mais centrais estas são numa determinada disci plina, mais o
seu abandono é grave e conduz a uma revolu ção científica14, mais
recalcitrantes ficarão os defensores da disciplina. Não se renderão às
razões do pensador revolu cionário a não ser depois de um debate
que, por vezes, se prolongará durante toda uma geração.
35
A ARGUMENTACAO, O ORADOR E O SEU AUDITÓRIO
Deste modo, perante um auditório especializado, certas teses e
certos métodos são, até nova ordem, supostamente reconhecidos por
todos e é supérfluo querer assegurar ex plicitamente o acordo do
auditório. Pelo contrário, é na au sência de um corpo de verdades, ou
de teses reconhecidas, que o recurso à dialéctica das questões e das
respostas se pode afigurar indispensável.
Enquanto o especialista, dirigindo-se a uma sociedade de cientis-
tas, e o padre, pregando na sua igreja, sabem sobre que teses podem
fundar a sua exposição, o filósofo encon tra-se numa situação infini-
tamente mais difícil. Pois, diri gindo-se o seu discurso, em princípio,
a toda a gente, ao auditório universal composto por todos aqueles
que estão dispostos a ouvi-lo e que são capazes de seguir a sua argu -
mentação, ele não dispõe, como o cientista ou o padre, de um con-
junto de teses filosóficas admitidas por todos os membros do seu
auditório. É por essa razão que, mesmo se as teses invocadas não
foram objecto da adesão explícita de todos os membros do auditório
universal — coisa impossí vel de obter— ele procurará, todavia, fac-
tos, verdades e va lores universais que, em princípio, se impõem a
todo o ser de razão suficientemente esclarecido. É a este propósito
que o filósofo apelará para o senso comum ou para a opinião
comum, para a intuição ou para a evidência, presumindo que cada
membro do auditório universal faz parte desta co munidade à qual o
orador faz alusão, que tem as mesmas intuições e partilha as mesmas
evidências. Não bastará, com uma simples recusa, manifestar o seu
desacordo, pois se o discurso filosófico parece aceitável e convin-
cente para a ge neralidade, caberia ao recalcitrante provar que não é
“insen sato” quem se opõe à opinião comum, mas que há boas razões
para sustentar a sua oposição, ou pelo menos o seu cepticismo.
Aparece assim, mesmo que não se trate de um discurso dirigido a
um só ou a um pequeno número, mas de um apelo à razão, isto é, ao
auditório universal, a neces si dade do diálogo que versará sobre
todos os pontos con troversos. Razão pela qual a dialéctica, ou a téc-
nica da con trovérsia, é tão central na argumentação filosófica, como
o testemunham os diálogos socráticos e os dos filósofos que neles se
inspiraram.
36
O IMPERIO RETÓRICO
A distinçãoentre os discursos que se dirigem a alguns e os que
seriam válidos para todos permite fazer compreen der melhor o que
opõe o discurso persuasivo ao que se pre tende convincente. Em vez
de considerar que a persuasão se dirige à imaginação, ao sentimento,
numa palavra, ao autó mato, e que o discurso convincente faz apelo à
razão15, em vez de as opor uma à outra, como o subjectivo ao objec -
tivo16, pode-se caracterizá-las, de uma forma mais técnica, e também
mais exacta, dizendo que o discurso dirigido a um auditório particu-
lar visa persuadir, enquanto que o que se dirige ao auditório univer-
sal visa convencer.
Como a distinção assim estabelecida não depende do número de
pessoas que escutam um orador, mas das inten ções deste último
(pretende ele obter a adesão de alguns ou de todo o ser de razão?), é
possível que o orador não encare aqueles a quem se dirige —
mesmo que se trate de uma de liberação íntima — senão como uma
encarnação do auditó rio universal17. Um discurso convincente é
aquele cujas premissas e cujos argumentos são universalizáveis, isto
é, aceitáveis, em princípio, por todos os membros do auditório uni-
versal. Vê-se imediatamente como, nesta perspectiva, a própria orig-
inalidade da filosofia, tradicionalmente asso ciada às noções de ver-
dade e de razão, será melhor compre endida pela sua relação com o
auditório universal e pela maneira como este é concebido pelo filó-
sofo.
Aristóteles, que centra a sua Retórica, mas não os Tópi cos, em
torno da ideia de auditório — pois é segundo as ca racterísticas do
auditório que ele examina as paixões e as emoções que o orador
pode suscitar com o seu dis curso18 — distinguiu três géneros
oratórios, segundo as funções que, em cada um deles, cabem aos
auditores. Inspirando-se na prática ateniense, distinguirá estes
géneros segundo o papel reservado ao auditor: «Ora, é preciso ne -
ces sariamente que o auditor seja espectador ou juiz, e que o juiz se
pro nuncie sobre o passado ou sobre o futuro; aquele que se pronun-
cia sobre o futuro é, por exemplo, o membro da as sembleia; aquele
que se pronuncia sobre o passado, o juiz; aquele que se pronuncia
sobre o talento do orador, o espec tador; há, pois, necessariamente, três
37
A ARGUMENTACAO, O ORADOR E O SEU AUDITÓRIO
géneros de dis curso em retórica: o deliberativo, o judiciário, o
epidíc tico»19.
No género deliberativo, o orador aconselha ou desacon selha, e o
seu parecer conclui pelo que parece mais útil. No género judiciário,
ele acusa ou defende para decidir o que é justo. No género epidíc-
tico, ele louva ou censura, e o seu discurso refere-se ao belo e ao
feio20.
Se, para descrever o género deliberativo, Aristóteles se inspirou
nas assembleias políticas e, para caracterizar o gé nero judiciário, nos
tribunais, foram os concursos oratórios que ocorriam durante os
jogos olímpicos que lhe sugeriram as particularidades do género
epidíctico. Com efeito, aquan do de tais jogos, os auditores compor-
tam-se como es pecta dores, e, se têm, eventualmente, alguma missão
a cum prir, é unicamente a de designar o vencedor, aquele cujo dis-
curso merece receber os loiros da vitória. «Tratavam-se os discur sos
à maneira de espectáculos de teatro ou disputas atléti cas, cuja finali-
dade parecia ser a avaliação dos partici pantes. O seu carácter partic-
ular tinha feito com que o seu estudo fosse deixado aos gramáticos
pelos retóricos roma nos, que exercitavam os seus alunos nos outros
dois géne ros, con si derados como relevando da eloquência prática.
Ele repre sentava, para os teóricos, uma forma degenerada de elo -
quência que não procurava senão agradar, enaltecer, or na mentando-os,
factos seguros ou, pelo menos, incontesta dos... Por isso, o género
epidíctico parecia relevar mais da literatura do que da argumen-
tação.»21
Ora, para nós, o género epidíctico é central, pois o seu papel é o
de intensificar a adesão a valores sem os quais os discursos que
visam a acção não poderiam encontrar a ala vanca para comover e
mover os seus auditores. Pode acon tecer, aliás, que uma certa cer-
imónia fúnebre, convocada para chorar a vítima de um assassínio
político, degenere em motim, exigindo o castigo dos culpados. A
análise do céle bre discurso de António, no Júlio César de Shakes -
peare (Acto II, cena II), mostra claramente o quanto esta distinção
dos géneros é artificial, pois o orador que procura com o discurso
epidíctico, por exemplo com o elogio fúnebre, criar uma comunhão
38
O IMPERIO RETÓRICO
em torno de certos valores, pode aproveitar a emoção suscitada para
provocar a acção e a revolta dos que, antes do discurso, só tinham
pensado em comungar em torno dos restos mortais do defunto.
O discurso epidíctico releva normalmente do género educativo,
pois visa menos suscitar uma acção imediata do que criar uma dis-
posição para a acção, esperando o mo mento apropriado. Não se
compreende, nem a sua natureza, nem a sua importância, se se lhe
atribui, como finalidade, a glória do orador. Esta pode, efectiva-
mente, resultar de um tal discurso, mas é preciso não confundir a
consequência de um discurso com a sua finalidade: esta visa reforçar
uma comunhão em torno de certos valores que se procura fazer
prevalecer e que deverão orientar a acção no futuro. Desta forma,
toda a filosofia prática releva do género epidíctico.
39
A ARGUMENTACAO, O ORADOR E O SEU AUDITÓRIO
O orador que queira agir eficazmente pelo seu discurso deve
adaptar-se ao seu auditório.
Em que consiste esta adaptação que é uma exigência es pecífica
da argumentação? Essencialmente, em o orador só poder escolher,
como ponto de partida do seu raciocínio te ses, admitidas por aqueles
a quem se dirige.
Com efeito, a finalidade da argumentação não é, como a da
demonstração, provar a verdade da conclusão a partir da ver dade das
premissas, mas transferir para as conclusões a adesão concedida às
premissas. Arriscando-se a fracassar na sua missão, o orador só dev-
erá partir de premissas que beneficiem de uma adesão suficiente: se
esta o não for, a pri meira preocupação daquele que quer persuadir
deve ser a de a reforçar por todos os meios de que dispõe, pois a
trans ferência da adesão só se realiza pelo estabelecimento de uma
solidariedade entre as premissas e as teses que se es for ça por fazer
admitir. Mas pode acontecer que, não sendo a conclusão demasiado
oposta às convicções do auditor, este prefira renunciar a uma das
premissas, e todo o esforço do orador fica sem efeito. Esta conse-
quência pode ser com pa rada ao raciocínio pelo absurdo que, culmi-
nando numa con clusão falsa, nos obriga a rejeitar como falsa uma
das pre missas; na argumentação, trata-se igualmente de rejei ção,
mas da rejeição de uma das premissas, não por a con clusão delas
tirada ser falsa mas porque é inaceitável.
Aquele que, na sua argumentação, não se preocupa com a adesão
do auditório às premissas do seu discurso comete a mais grave das
41
3.
As Premissas
da Argumentação
faltas: a petição de princípio. Esta, conside rada tradicionalmente
como uma falta de lógica, não é uma falta de demonstração, pois ela
em nada concerne à verdade ou à falsidade das proposições que con-
stituem o raciocínio. A afirmação se p, então p, dizendo que uma
proposição está implicada nela própria, não só é verdadeira, como é
uma lei lógica fundamental: é o princípio de identidade. Mas desde
que se passe para o ponto de vista argumentativo tudo mu da, pois
trata-se de obter, pela sua argumentação, a adesão à tese p: não se
pode, então, apresentá-la, à partida, como uma tese já aceite pelos
auditores.
Eis um exemplo característico da petição de princípio, ti rada do
discurso de Antífonte sobre a morte de Herodes: «Sabei que mereço
a vossa piedade muito mais do que um castigo. O castigo aplica-se,
com efeito, aos culpados, a piedade àqueles que são alvo de uma
acusação injusta.»1
A conclusão, dada no início,impor-se-ia se a menor “eu estou
inocente”, subentendida, fosse admitida: neste caso o processo seria
julgado e o acusado absolvido. O próprio fac to do processo se
desenrolar e da sentença não ter sido ainda dada prova-nos, com
toda a evidência, que se trata de uma petição de princípio.
Vê-se, por este exemplo, que se pode distinguir a ver dade de uma
tese e a adesão a esta. Mesmo que a tese fosse verdadeira, supô-la
admitida, quando é controversa, consti tui uma petição de princípio
característica.
Notemos, a este propósito, que Bentham, seguido por
Schopenhauer, qualifica como «petição de princípio escon dido num
só termo» o recurso, para descrever o fenómeno, a qualificativos que
o valorizam ou desvalorizam. Assim, o que um observador neutro
considerará como um “fenómeno de culto” será qualificado como
“expressão de piedade” por aquele que está a seu favor e como
“superstição” por aquele que o combate2.
A dificuldade de Bentham e de Schopenhauer está em ver na
apreciação favorável ou desfavorável um sofisma, uma petição de
princípio, como se toda a tomada de posição fosse, em si, criticável:
de facto, só há petição de princípio na medida em que esta tomada
42
O iMPEriO rEtÓriCO
de posição, em princípio partilhada pelo auditório, é contestada por
este. Este escla recimento permite pôr em evidência a relatividade da
peti ção de princípio, a qual, como toda a argumentação, diz respeito
à adesão do auditório.
Adaptar-se ao auditório é, sobretudo, escolher como pre missas
da argumentação as teses admitidas por este úl timo.
Entre os objectos de acordo, dos quais o orador tirará o ponto de
partida do seu discurso, há que distinguir os que incidem sobre o
real — a saber, os factos, as verdades e as presunções — e aqueles
que incidem sobre o preferível — a saber, os valores, as hierarquias
e os lugares do preferível.
Enquanto a linguagem e o senso comum designam por “os factos”
e “as verdades” elementos objectivos que se im põem a todos, a
análise empreendida de um ponto de vista argumentativo não nos
permite negligenciar, sob pena de petição de princípio, a atitude do
auditório a seu respeito.
Se concedemos o estatuto de “facto” ou de “verdade” a um ele-
mento objectivo que, segundo as palavras de H. Poincaré, «é comum
a vários seres pensantes e poderia ser comum a todos»3, ou seja, em
princípio admitido pelo audi tório universal, poderemos basear-nos
sobre os factos e as verdades como dados estáveis, sem que se tenha
de reforçar a adesão do auditório a seu respeito. «A adesão ao facto
será, para o indivíduo, apenas uma reacção subjectiva a algo que se
impõe a todos»4.
Mas, desde que um facto ou uma verdade sejam contes tados pelo
auditório, o orador já não pode valer-se deles, a menos que mostre
que o oponente se engana ou que não há lugar para ter em consider-
ação o seu parecer, isto é, des qualificando-o, tirando-lhe a qualidade
de interlocutor com petente e razoável.
Vemos, assim, que este estatuto de facto ou de verdade não se
encontra indefinidamente assegurado, a menos que se admita a
existência de uma autoridade infalível, de uma divindade, cujas
afirmações e revelações são incontestáveis, a qual garantiria os fac-
tos e as verdades. Mas, à falta de uma tal garantia absoluta, de uma
evidência, de uma necessidade que se imporia a todo o ser de razão,
43
AS PrEMiSSAS dA ArguMENtACAO
os factos e as verda des, que são admitidos como tais pela opinião
comum ou pela opinião dos especialistas, poderão ser postos em
ques tão. Notemos, contudo, que se o acordo a seu respeito for sufi-
cientemente geral, ninguém os pode ignorar sem se tor nar ridículo,
a menos que forneça razões capazes de justifi car o cepticismo a seu
propósito. uma dúvida generalizada, como a preconizada por
descartes, de nada serviria para desqualificar um facto particular,
pois ela já não seria con siderada, na ocorrência, como uma dúvida
razoável. L.Witt genstein forneceu, a este propósito, reflexões
pertinen tes5.
Como desqualificar um facto ou uma verdade? A forma mais efi-
caz de os contestar é mostrar a sua incompatibili dade com outros
factos ou outras verdades que se afiguram mais seguras, e mesmo,
de preferência, com um feixe de factos ou de verdades que não se
está preparado para aban donar. Este pôr à prova pode limitar-se, por
vezes, ao pôr em questão o resultado de uma experiência montada
com excessiva falta de cuidado. Mas, por vezes, pode desembo car
numa revolução intelectual de natureza científica, filo sófica ou reli-
giosa. Acontece, aliás, que uma tal confron tação não produz um
resultado decisivo, permanecendo cada qual nas suas posições: o
caso é muito raro nas ciên cias, mas produz-se frequentemente nos
debates de natureza filo sófica ou religiosa6.
Ao lado de factos e de verdades, baseamo-nos frequen temente
em presunções que, embora não se apresentem com a mesma garan-
tia que estes, fornecem, contudo, bases sufi cientes para fundar uma
convicção razoável. As presunções encontram-se, habitualmente,
associadas ao que normal mente se produz e sobre o qual é razoável
basearmo-nos.
Se estas presunções, ligadas à experiência comum, ao senso
comum, nos permitem orientar na vida, podem, toda via, ser contra-
ditas pelos factos: o inesperado não é de ex cluir.
Eis algumas presunções de ordem geral: «a presunção de que a
qualidade de um acto manifesta a qualidade da pessoa que o prati-
cou; a presunção de credulidade natural, que faz com que o nosso
primeiro movimento seja o de aco lher como verdadeiro o que se nos
44
O iMPEriO rEtÓriCO
diz; a presunção de inte resse, segundo a qual concluímos que todo o
enunciado trazido ao nosso conhecimento é suposto ser do nosso
inte resse; a pre sunção concernente ao carácter sensato de toda a
acção hu mana»7.
As presunções fundam-se na ideia de que o que se pro duz é o
normal. Mas, sendo a noção de normal susceptível de interpretações
variadas, uma vez dados os factos e a cau sa, uma discussão pode
embrenhar-se em saber se a pre sun ção é aplicável na ocorrência.
tratar-se-ia já, neste caso, de uma tentativa para inverter uma pre-
sunção que favorece a tese do adversário. Aqui reside o efeito mais
imediato de uma presunção: ela impõe a tarefa de dar provas àquele
que se quer opor à sua aplicação.
A tarefa de provar, noção essencial no processo judicial, remete-
-nos para o direito, onde se distinguem várias espé cies de presunções.
As presunções do homem tanto podem ser o ponto de partida
como a conclusão de um raciocínio. Ao invés, as presunções legais,
estabelecidas pela lei ou pela jurispru dência, quer admitam a prova
contrária (presunções juris tantum) ou sejam irrefragáveis (pre-
sunções juris et de jure), fornecem excelentes exemplos de teses
sobre as quais se pode fundar um raciocínio jurídico, pois, em qual-
quer dos casos, elas dispensam aqueles que delas beneficiam de
fornecer provas8.
Aos juízos que se supõe exprimirem o real conhecido ou presum-
ido podem opor-se os que exprimem uma preferên cia (os valores e as
hierarquias) ou indicam o que é preferí vel (os lugares do preferível).
Para retomar uma definição de Louis Lavelle, pode di zer-se que
o termo valor se aplica sempre que tenhamos de proceder a «uma
ruptura da indiferença ou da igualdade en tre as coisas, sempre que
uma delas deva ser posta antes ou acima de outra, sempre que ela é
julgada superior e lhe mereça ser preferida»9.
Esta definição de valor vale sobretudo para as hierar quias em
que os elementos hierarquizados estão expressa mente indicados.
Frequentemente, os valores, positivos ou negativos, marcam uma
atitude favorável ou desfavorável a respeito do que apreciam ou
depreciam, sem o compararem com outro objecto: o que se qualificará
45
AS PrEMiSSAS dA ArguMENtACAO
pelos termos bom, justo, belo, verdadeiro ou real é valorizado; o que
é qualifi cado como mau, injusto, feio, falso ou aparente

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