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O que é a Epistemologia? A epistemologia ~do grego ἐπιστήμη (episteme – conhecimento) + λόγος (logos – palavra ou estudo) ~ é a área da Filosofia que se ocupa do estudo do que é o conhecimento (literalmente, o que significa a palavra “conhecimento”? o que significa dizer que alguém “tem conhecimento” sobre algo?), de sua estrutura, da sua natureza, dos tipos diferentes (se existirem) de conhecimento, de suas possíveis origens, de sua relação com a realidade externa e de como o mesmo é ou pode ser justificado (o que é necessário e suficiente para que algo conte como justificação de um conhecimento? Que tipo de relação existe entre conhecimento e justificação?). Apesar do termo ter sido cunhado apenas em meados do século XlX (pelo filósofo escocês James https://en.wiktionary.org/wiki/%E1%BC%90%CF%80%CE%B9%CF%83%CF%84%CE%AE%CE%BC%CE%B7 https://en.wiktionary.org/wiki/%CE%BB%CF%8C%CE%B3%CE%BF%CF%82 Frederick Ferrier), o estudo sobre o conhecimento é algo que nasce junto com a filosofia na Grécia Antiga (mesmo que de forma apenas incipiente), já que os pré-socráticos (os jônicos, eleáticos, etc.) começaram suas indagações sobre o princípio ou ordem primeira (arché) da realidade pressupondo que tal ordem era inteligível, ou seja, que a mesma fosse capaz de ser conhecida. No entanto, é apenas com Platão (428-348) e Aristóteles (384-322) que as considerações sobre a natureza e origem do conhecimento se tornam mais sistemáticas e formalizadas. Alguns chegam a dizer que Platão e Aristóteles antecipam, respectivamente, a divisão entre as escolas racionalista e empirista do século XVll e XVlll. Eu pessoalmente acredito que isso simplifica demais as coisas. Mas creio que realmente há um viés mais racionalista em Platão e outro mais empirista em Aristóteles (isso é óbvio). Contudo, é apenas no aflorar da chamada Filosofia Moderna, com René Descartes (1596-1650), que a epistemologia assume um papel central o suficiente para a consolidação das ideias fundamentais que irão delinear precisamente o que chamamos de racionalismo, empirismo e ceticismo clássicos e os embates ferozes dos quais os grandes pensadores da Filosofia Moderna participaram. Tais embates culminam, de acordo com a tradicional história da filosofia, na síntese kantiana das três correntes (os que dizem que Kant sintetizou apenas o racionalismo e o empirismo parecem ignorar o característico ceticismo kantiano herdado via Hume. Isso é tópico para outra postagem). Desde então, para alguns, a epistemologia adquire status de filosofia primeira. É no século XX, e no seio da Filosofia Analítica, que os debates epistemológicos se tornam mais complexos, profundos e reflexivos. Não que os filósofos continentais não lidaram ou não lidem com temas epistemológicos (vide Husserl, Heidegger, Bachelard, Deleuze, etc.), mas são os filósofos analíticos que se concentrarão de forma laboriosa e quase exaustiva com os problemas da epistemologia se utilizando das ferramentas da Lógica e da Filosofia da Linguagem, da Ciência e da Mente. E é por esse motivo que priorizarei, mas não me limitarei, a uma análise da epistemologia do ponto de vista da Filosofia Analítica Contemporânea. Dito isso, e dada essa brevíssima introdução histórica à epistemologia (mas, como amante de História da Filosofia, não deixarei de postar também, de forma mais substancial e em uma outra série, sobre a riquíssima história das correntes epistemológicas supracitadas), vamos aos seus principais temas e problemas. O que é “conhecimento”? Antes de mais nada, precisamos nos concentrar no que significa o termo “conhecimento”. O mesmo, é claro, está intimamente ligado a conceitos como certeza, convicção, informação, verdade e crença. Contudo, é necessário que olhemos para como, do ponto de vista filosófico, o termo “conhecimento” foi mais comumente utilizado e esqueçamos tais conotações presentes no nosso senso comum. [Pausa para algumas considerações importantes de fundo: é muito comum, principalmente em psicologia cognitiva e epistemologia pragmaticista, fazer uma distinção entre conhecimento proposicional (ou descritivo/declarativo) e conhecimento processual (ou tácito/inconsciente), também conhecida como a distinção entre know-how (saber- como) e know-that (saber-que), onde o primeiro é caracteristicamente factual e é expressado através de proposições e o segundo é caracteristicamente prático e dificilmente expressável de forma linguística, como o conhecimento prático que alguém tem de andar de bicicleta, dirigir um carro ou fazer uma determinada tarefa. É claro que o nosso conhecimento total é uma mescla de ambos os tipos de conhecimento. E é claro que existe uma gradação de presença de conhecimento declarativo e tácito nas diferentes coisas que fazemos (por exemplo, para aprender a dirigir um carro, uma quantidade mínima de conhecimento proposicional foi necessário para que você entendesse o que era e como funcionava o mecanismo de marcha, condução, sinais de trânsito, etc. dentre outras coisas. Conhecimento este que, muito provavelmente, você já tinha, mesmo que não de forma clara e precisa). No entanto, iremos focar muito mais no conhecimento proposicional do que no conhecimento processual, já que o primeiro é o que mais comumente temos como crença verdadeira justificada, que é a definição tradicional de conhecimento que irei introduzir logo abaixo. O segundo é muito mais comum, e foi levado muito mais a sério, na tradição pragmatista e em outras correntes preocupadas com questões pragmáticas (isto é, práticas) e é de extrema importância para a minha concepção específica de conhecimento. Além dessas duas categorias, existem outras como know-why (saber-o-porquê e que está relacionada ao conhecimento de causas e motivos), know-who e know-what (saber- quem e saber-o-que respectivamente e que estão relacionados ao conhecimento de familiaridade ou ao conhecimento sobre a existência de alguém ou algo) e que não iremos tratar logo de cara. Falarei sobre cada uma dessas categorias no futuro. Principalmente sobre o conhecimento prático- tácito que me é tão caro como pragmaticista (e que é muito importante para Hayek, Sellars e Peirce, por exemplo). Por hora, como já disse, restrinjamo-nos ao conhecimento proposicional.] Conhecimento é, na filosofia, tradicionalmente definido como crença verdadeira justificada. Tal definição é encontrada pela primeira vez de forma explícita no diálogo platônico Teeteto (apesar de que, ao contrário do que muitospensam, Platão não era adepto dessa definição. Tópico para outro post) onde Sócrates discorre sobre diferentes possíveis definições de conhecimento tais como percepção, juízo verdadeiro e juízo verdadeiro justificado. É importante frisar que tal definição nunca foi unanimemente aceita. Célebre é o curto ensaio de Edmund Gettier (1927-) chamado “Is justified true belief knowledge?” (A crença verdadeira justificada é conhecimento?) publicado em 1963 e que causou um alvoroço entre os epistemólogos devido aos seus ataques a essa concepção tradicional de conhecimento e sobre o qual iremos falar mais na frente. Por enquanto atenhamo-nos a destrinchar analiticamente os componentes de nossa definição tradicional, ou seja, as diferentes concepções do que são crenças, verdades e justificações. [Pausa para uma outra consideração importante de fundo: você deve estar talvez pensando, mas será que o conhecimento é realmente e necessariamente composto de crenças? É possível saber sem crer? Você consegue dizer: “Eu sei que o céu é azul, mas eu não acredito que o céu é azul” e fazer sentido? Parece que não! Quando você diz que sabe algo, você está, ao mesmo tempo, admitindo que acredita que esse algo seja verdade. No entanto, o seu simples acreditar que algo é verdade não torna necessariamente este algo verdade. Pois perceba que crença é o elemento subjetivo da ideia de conhecimento em questão, já que uma crença sempre pertence a um sujeito e ela nem sempre é verdadeira. Verdade seria, de acordo com a concepção mais tradicional, o elemento objetivo, ou seja, aquilo que se refere a algo na realidade que torna a crença verdadeira ou justifica a crença como sendo verdade (ignorando, por enquanto, aqueles que acreditam que toda verdade é subjetiva). Alguns diriam que verdade é uma correspondência entre a crença ou um objeto do conhecimento e algo concreto ou localizável na realidade. Outros diriam que a verdade é muito mais fruto de uma coerência das crenças que possuímos entre si. Perceba que essas duas posições tratam a verdade como uma relação. Há também quem diga que a verdade não é uma relação, há quem diga que a verdade é apenas uma ferramenta linguística de demonstração de aprovação ou compromisso alético (“alético” é um termo grego que deriva da palavra a-letheia, des-velar, des-cobrir ou des- esquecer e que é traduzido como “verdade”, toda vez que eu mencionar o termo “alético” ele significará: “relacionado a assuntos sobre a verdade”) ou seja, a um compromisso com a verdade de uma determinada proposição ou fato. Essas três posições são as mais populares teorias da verdade da filosofia contemporânea. Conhecidas respectivamente como teoria da verdade como correspondência, teoria coerentista da verdade e teoria deflacionária da verdade. Falaremos sobre cada uma delas eventualmente. Você não precisa, por hora, se preocupar em aprender o nome dessas posições ou os termos usados aqui. O importante é que entenda como tudo se encaixa. E quanto a justificação? Bom, ela é justamente o elemento que conecta a crença à verdade. Ela pode ter como base principalmente evidências (e essa posição é conhecida como evidencialismo) ou ela pode ter como base principalmente a garantia de que os mecanismos cognitivos através dos quais você adquiriu a crença são confiáveis (e essa posição é conhecida como confiabilismo). Teremos tempo para ver tudo isso de forma detalhada mais para a frente. O que importa é entender o seguinte: crença (elemento subjetivo), verdadeira (elemento, normalmente, objetivo) justificada (elemento que conecta o subjetivo ao objetivo) = conhecimento]. Passemos agora para a análise dos três componentes do conhecimento em seu sentido tradicional: crença, verdade e justificação sucessiv amente. O que é “crença”? Uma crença é comumente concebida como um estado ou representação mental (como wittgensteiniano, rejeito tal concepção. Mas de novo: Tema. Para. Outro. Post). Em epistemologia, psicologia cognitiva e filosofia da mente, chamamos uma crença de atitude proposicional pois ela faz parte de um dos tipos de atitudes cognitivas que podemos tomar em relação a uma proposição. Por exemplo, em relação à proposição: “Amanhã vai chover”, eu posso adotar a atitude cognitiva de acreditar que “amanhã vai chover” ou a de querer que “amanhã vai chover” seja verdade ou a de imaginar que “amanhã vai chover”. Assim, acreditar, querer e imaginar são atitudes proposicionais. Outros exemplos são: afirmar, negar, duvidar, etc. [Importante é notar que uma proposição é, normalmente, tida como um objeto abstrato ou ideal que expressa um pensamento e pode ter diferentes formas. Por exemplo, a proposição: “O almoço está pronto” pode tomar formas como: “O almoço vai estar pronto”, “O almoço esteve pronto”, “que o almoço fique pronto”, etc. O que permanece é o pensamento central. É claro que eu discordo dessa concepção de proposição. Mas como meu propósito é apenas que você entenda o que é uma proposição e como ela pode variar no contexto de nossas considerações sobre crença e, além disso, visto também que tal concepção ~fregeana~ é normalmente a mais aceita, fiquemos com ela.] Dito isso, vamos estabelecer mais uma distinção importantíssima para a área da epistemologia e fenomenologia que data de Frege e Husserl. A distinção entre um ato cognitivo (noesis) e um conteúdo de um ato cognitivo (noema). Crer, duvidar e imaginar são atos cognitivos. O conteúdo da crença, da dúvida e da imaginação é o objeto ao qual tal ato se refere. Assim, é necessário diferenciar o meu ato de crer que o céu é azul do conteúdo desse ato que é a proposição “o céu é azul”. Essa distinção é essencial porque muitas vezes o uso dos termos “crença”, “dúvida”, “desejo” é ambíguo. Às vezes o mesmo pode se referir ao ato cognitivo e outras vezes ao conteúdo de tal ato. E isso pode confundir bastante. Por exemplo, quando digo para alguém que: “A sua crença de que tem um ladrão invadindo a sua casa é absurda”, estou me referindo ao ato de crer da pessoa, caso não haja ladrão algum invadindo a casa, e não ao conteúdo do ato pois tal conteúdo (o de que tem um ladrão invadindo a casa em questão) não é em si absurdo (pois é possível que um ladrão realmente invada a casa), é apenas o ato de crer nisso naquele momento que é absurdo. Por outro lado, quando digo para alguém que: “Eu acho bastantebonitas as crenças dos tupis-guaranis sobre a origem da Vitória-régia”, estou me referindo ao conteúdo de tais crenças (aqui, atos de crer) e esse conteúdo é sempre proposicional. Para facilitar as coisas e para evitar tal ambiguidade, passarei a utilizar “a-crença” quando quiser me referir ao ato de crer e “c-crença” quando quiser me referir ao conteúdo do ato de crer e quando eu quiser me referir a ambos em conjunto, direi apenas “crenças”. Agora, podemos ver como tudo se encaixa. Quando digo que uma crença é uma atitude proposicional ou um estado mental, estou me referindo ao ato cognitivo de crer, ou seja, ao que chamarei de a- crença. Mas então, o que realmente é ou qual é a natureza do conteúdo de uma a-crença? Ora, a resposta já foi dada e está bem debaixo do nosso nariz. O conteúdo de uma a-crença é da natureza de e não pode ser nada além de: uma proposição. Uma c-crença é sempre uma proposição. Para finalizar esse post, é necessário fazer uma última distinção. A distinção entre crenças ocorrentes e crenças disposicionais. Uma crença ocorrente é apenas uma crença que você já tem guardada na memória e adquiriu através de um processo de aprendizado e interação social e que você utiliza para lidar com o ambiente ao seu redor no dia-a-dia. Por exemplo, a crença de que se você pular de um prédio, você vai cair. Já uma crença disposicional é uma crença em relação a qual você tem, com base no conjunto de coisas que você já sabe, uma pré-disposição a formar. Por exemplo, quando alguém te pergunta: “Você acredita que zebras usam fones de ouvido?” e você diz: “Não!”. Tal crença não é algo que ocorre a você com frequência ou talvez você nunca tenha pensado sobre isso. Ela é fruto de um processo de avaliação da adequação de tal proposição com o conjunto de crenças que você já tem e sabe que são verdadeiras.
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