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TCC - Corpo POC (Angelo Vilar)

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Prévia do material em texto

UNIVERSIDADE FEDERAL DE CAMPINA GRANDE 
CENTRO DE HUMANIDADES 
UNIDADE ACADÊMICA DE ARTE E MÍDIA 
CURSO DE BACHARELADO EM ARTE E MÍDIA 
 
 
 
ANGELO MANOEL VILAR DO NASCIMENTO NUNES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAMPINA GRANDE 
2019 
 
ANGELO MANOEL VILAR DO NASCIMENTO NUNES 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Trabalho apresentado ao componente curricular 
Projeto Multimídia, do curso de bacharelado em Arte 
e Mídia, da Universidade Federal de Campina 
Grande, como exigência parcial para obtenção 
do título de Bacharel em Arte e Mídia. 
 
Orientador: Prof. Dr. Duílio Pereira da Cunha Lima 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
CAMPINA GRANDE 
2019 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Se a gente não tem convite para a festa, a gente faz a festa!” 
Floribella 
 
Para o Angelo criança, você cresceu e conseguiu! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
TEMA 
 
CORPO-POC 
 
 
 
 
ÁREA TEMÁTICA 
 
TEATRO PERFORMATIVO 
 
 
 
TÍTULO ACADÊMICO 
 
CRIAÇÃO DE ESPETÁCULO TEATRAL AUTOBIOGRÁFICO CONTAMINADO 
PELA PERFORMANCE A PARTIR DA DESCONTRUÇÃO DO CORPO 
NORMATIVO 
 
 
 
TÍTULO FANTASIA 
 
AUTOESCRITURAS DE UM CORPO-POC 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Abordar discussões sobre gênero e corpo é um dos caminhos utilizados na realização 
deste trabalho. Entender o processo de pesquisa, criação de um espetáculo híbrido 
que contemple as ideias de memória, memória-corpo, memória em adaptação para 
uma obra de viés artístico. A obra artística, um espetáculo solo performativo, que reflita 
as vibrações de um Corpo-Poc, buscando refletir os processos que geraram e geram 
esse corpo. Abordo, também, a criação de personas, elementos vivos que estão 
diretamente ligadas no processo de construção deste Corpo-Poc e de sua busca de 
autoconhecimento. 
 
 
 
 
Palavras-chave: Corpo cênico; Corpo-Poc; Solo autobiográfico; Teatro performativo. 
 
 
As a basis for the creation of a scenic work authored, this paper discusses some 
questions about gender, memory and body, both in the sense of a scenic body, as well 
as in the constitution of Corpo-Poc. The theoretical-practical research that supports 
and feeds the creation of the performative solo show, involving elements of theater and 
performance, also contemplates an approach on monstrous bodies and / or political 
bodies, an introduction to the concept of "people" within a jungian vision, the 
importance of autobiographical material, the contamination between artistic languages 
in the contemporary scene and the personal diary as a personal record tool, document 
and device for creating texts and scenes of the show. 
 
 
Keywords: Scenic body; Body-Poc; Only autobiographical; Performative theater. 
 
 
 
 
 Esse momento é meu, só meu! A princípio, por um protocolo cristão, todos 
agradecem a Deus. De fato, sou muito grato a elx ter me permitido viver, tenho 
algumas ressalvas quanto ao meu nariz e a minha magreza excessiva, poderia ter 
aliviado essa parte da genética, MAS... obrigado Deus, Zambi, Oxalá, minha mãe 
Oxum e claro, Universo. Quero agradecer também, a Floribella, a Disney, a Xuxa e 
Chiquititas, sem vocês eu não seria uma poc sonhadora que acredita num mundo 
melhor. 
Quero agradecer a Angelo, Victor e Luna, sem eles não teria tanta força para 
continuar existindo. Obrigado por cada aventura, por cada sonho que não se realizou, 
mas que tiramos forças para construir outros. Obrigado por todas as tentativas de 
melhorar como pessoa, de pensar no outro e de não se esquecer do Angelo que ficou 
para trás. 
 Eu agradeço cada dia por todos os ensinamentos dados por meus pais, pela 
paciência e cuidado, porque sei que não é fácil cuidar de uma criança viada e ariana. 
Sem eles nada disso estaria sendo possível. Obrigado a meu pai por sempre estar 
lutando todos os dias no seu trabalho, sendo ousado e guerreiro. Obrigado a minha 
mãe por todo o esforço emocional, todo o cuidado e sempre fazendo as pontes de 
conciliação. Obvio, obrigado a meus irmãos, Lucas por sempre ser insuportavelmente 
canceriano, dramático e me irritar, sem isso minha vida seria absurdamente chata, um 
companheiro. Obrigado ao meu Irmão Ivanilson, mesmo longe é um exemplo de 
pessoa que me inspirei academicamente seguir. Minha família no geral, meus tios que 
sempre incentivaram minha carreira artística e pelas fofocas que me motivaram a 
ousar mais; meus avós que sempre me incentivaram e me deram exemplo de força; 
ao meu primo (vou chamar de primo sim, mesmo que seja distante) Ariano Suassuna, 
por ter sido um exemplo na área das artes cênicas e pelo livro Santo e a Porca que 
foi o primeiro que montei. Agradeço aos meus primos, próximos, que cresceram 
comigo e me ajudaram a ser o que sou hoje, em especial, Amanda que me ajudou na 
mudança e sempre foi companheira, Alysson que me confortou indiretamente nos 
tempos que morou comigo em Campina Grande e Messias que foi o primeiro exemplo 
de poc universitária. 
 
Agradeço ao meu namorado, José Henrique, por não ser apenas este título, 
mas ser alguém que confio, compartilho as mais diversas ideias, que eu posso contar 
para tudo. Obrigado por estarmos juntos até aqui nessas loucuras da vida. 
 Quero agradecer a minha professora do ensino fundamental, Andrea Coelho, 
que me apresentou o mundo do teatro e a ela sou eternamente grato. 
 Aos meus amigos no geral por sempre me apoiarem e me darem forças, mas 
em especial ao meu grande amigo Mateus Silva que desde a minha adolescência me 
acompanhou, foi meu companheiro em várias ideias, foi minha primeira referência 
gay. Aos meus amigos Caio e Iury sou completamente grato a me ajudarem no 
processo. 
Aos meus amigos de Campina Grande, Michael, Thalia, obrigado pelos 
momentos que passamos, pelas nossas intimidades, por nossas relações de 
fidelidade e de descoberta. A Sérgio, Alexandre, Wendel e Germana sou grato por 
todas as conversas, todos os rolês loucos que tivemos, por todos os momentos 
vividos. A Jaciara e Carla por ser uma pessoa tão ativa, criativa e que quero ter sempre 
por perto. A todas as pocs que passaram e não ficaram, as pocs que não pude ter a 
oportunidade de conhecer a fundo, aos meus ex-namorados virtuais, namorados 
físicos, meus crushs, sem essas experiências eu jamais teria crescido pessoalmente. 
Por fim, mas não menos importante ao meu orientador, Duílio Cunha, que 
sempre me deu suporte, abraçou a ideia e me alimentou tão bem. As pessoas que 
conheci no Ilê e que me acolheram como da família, como pai Tatá e Gopi. 
Obrigado a todo mundo que acreditou nos meus sonhos e que sempre me 
enviava uma mensagem de carinho para me levantar e não me deixar desistir. 
 
 
 
 
Obrigado UFCG! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
As regras e adequações tornam os indivíduos enquadrados a uma certa 
organização social. É a partir destes elementos delimitadores que compomos nossa 
forma de falar, escrever e se portar nos diferentes espaços sociais. Ao fugirmos destas 
estruturas podemos causar ruídos entre os demais que se acomodaram na “sala 
perfeita” de dois lugares do “possível” e do “evitável”. Eu (na primeira pessoa do 
singular) me apresento como sujeito afetado pela minha escrita e, portanto, também 
leitor deste mesmo texto. 
 
Em primeiro lugar, quem produz uma obra também está a consumindo: o 
discurso, ao se enunciar, primeiro atravessa aquele que o expressa. Já a 
segunda parte da proposição adverte que há pelo menos duas maneiras de 
consumir uma obra: como estímulos e utensílios (HISSA, 2013, p. 15). 
 
 A desconstrução de formatos pré-moldados pelas construções culturais pode 
ser tomada como um forte elemento de resistência política. Corpos desligados de suas 
estruturas normatizadoras tem como atrativo olhares envenenados por julgamentos, 
contudo, também são motores de ressignificação e de afirmação de seus instintos. 
Estes corpos políticos trazem desconstruçõesem suas formas, carregando memórias 
reveladoras de partituras físicas e comportamentais. Meu corpo é um ambiente 
político desde a infância e trago marcas desses desvios do normativo até os dias de 
hoje. As divas e personagens que eu consumia pela TV e por outras mídias me davam 
uma referência da imagem que eu queria tomar como semelhança. Assim como uma 
célula, meu corpo se desconstruiu, morreu e se reconstruiu ao longo desses vinte e 
quatro anos de vida. Essas mudanças marcaram a minha forma de andar, pensar e 
militar. 
Nessas reflexões e mudanças descobri que outras vibrações “habitam” o 
mesmo corpo, outros seres que buscam surgir e competem por protagonismo em 
minha vida. Apesar de certos impulsos e personalidades próprias, os seres que 
“habitam” este corpo não são completos e impossíveis de serem totalmente 
independentes. Eles dependem do detentor do RG para existir. Como parasitas, eles 
se apossam de meu corpo, transferem suas particularidades e contaminam as ações 
do todo. 
 
 
Assim como nas adequações das ações seguindo as ditadas normas 
comportamentais, vamos matando individualidades, o espírito de criança, de 
adolescente, forçando o estabelecimento de novas máscaras. As personas tentam 
encontrar lugares, neste corpo, para afirmar suas identidades. Nesse percurso de 
autodescobertas, destaco a origem destas minhas revelações a partir das falas de 
Beyoncé que adota uma persona nomeada de Sasha Fierce. É Sasha que faz a diva 
por americana dançar e performar no palco. Com a necessidade de crescer e tomar 
certas decisões que para mim eram difíceis, desenvolvi uma persona, Victor. Ele é 
decidido, inconsequente e proporciona a expansão e a descoberta de alguns dos 
meus limites. Aos poucos também percebi a necessidade de nomear meu corpo 
feminino, porque, mesmo presente nos dois indivíduos, Angelo e Victor, ela já quis 
saltar da contaminação e ter sua própria voz. Concebida como Luna, decididamente 
afirmo que não a conheço bem, mas sinto a sua presença. 
 A feminilidade no masculino tem relação ácida, especialmente, na comunidade 
hétero, muitas vezes influenciada por certos dogmas do cristianismo, que repudia 
qualquer tipo de comportamento fora do estabelecido, ideias instituídas por uma 
sociedade insegura de sua própria sexualidade. Mesmo dentro da comunidade LGBT, 
podemos observar comportamentos intoleráveis quanto a homossexuais afeminados, 
personagens que distanciam do corpo suas linguagens visuais pré-estabelecidas. 
Certos termos são criados e circulam na comunidade como por exemplo: Erê (criança 
efeminada), amapô/mapô (mulher cis). Muitos desses termos foram reunidos num 
“gaycionário”, chamado de Pajubá, sendo alguns deles utilizados para discriminar 
indivíduos monstrificados (COHEN 1996), ou seja, pessoas que são alvos de repúdio 
de uma classe dominadora e adequada a categorias mais próximas ao CIStema. 
Dessas criações pejorativas, surge, em meados dos anos 1980, no Brasil, o termo 
Poc-Poc, atribuído a homossexuais afeminados desprovidos de requinte, muitas 
vezes de recursos financeiros, o som também faz referência ao barulho dos saltos 
destes indivíduos. Com o surgimento da internet e da sua grande capacidade de 
viralização de conteúdo, muitas dessas atribuições foram retomadas e seus sentidos 
reformulados. A Poc-Poc deixa de ser alguém menosprezada, passando a se tornar 
um indivíduo existente e resistente. 
 Ao expressar todas estas questões até aqui, neste trabalho de final de curso 
observo cada vez mais a necessidade de uma pesquisa autobiográfica. A 
compreensão do corpo de pesquisador-artista como indivíduo, aqui entendido como 
 
 
um Corpo-Poc, com suas memórias afetando a escrita do processo de criação da 
obra. Entender como a subjetividade das memórias e do corpo em transformação, 
afetado por personas, pode construir uma pesquisa acadêmica e contribuir para outros 
trabalhos, mas, principalmente, a minha própria vivência. Deste modo, este projeto 
me leva a uma trilha de conhecimento pessoal e inacabado de revelações sobre o 
mundo LGBTQ+, das personas, da performance. Compreender esses espaços e 
produzir uma obra artística que referencie as afetações geradas pela pesquisa no 
corpo do ator-autor. É uma pesquisa que não tem uma intenção narcisista, embora 
esta não seja uma preocupação, afinal experiências embasadas em si podem gerar 
discussões e outras buscas. 
 Inicialmente, a construção da escrita foi desenvolvida a partir de documentação 
em diário. O diário, nesse tipo de construção, é importante para datar o processo, 
além de servir como estudo do processo de criação. Partindo das memórias que o 
projeto é construído, o diário funciona como um suporte importante para pesquisa e 
para a criação da obra artística. Assim como na encenação de um ator no palco, as 
memórias são efêmeras, podendo ser duráveis de acordo com o que nós propomos 
de relevância ao evento, portanto, a narrativa gerada pela documentação em texto 
acaba gerando novas possibilidades de criação. 
Partindo como base de pesquisa inicial, utilizarei do texto de Janaina Fontes Leite, 
Autoescrituras performativas: do diário à cena, como uma referência de execução 
para a proposta deste projeto. A autora apresenta exemplos de espetáculos 
desenvolvidos por ela com uma abordagem autobiográfica, sendo o Conversas com 
meu pai, o espetáculo desenvolvido durante a escrita do texto já mencionado. 
Inicialmente como questões de desconstrução do corpo, o livro Um corpo estranho – 
Ensaios sobre sexualidade e teoria queer, de Guacira Lopes, e o texto A cultura dos 
monstros: Sete teses, de Jeffrey Jerome Cohen, ajudam numa compreensão breve 
das políticas de corpo e suas ocupações na sociedade, fazendo-se necessário uma 
pesquisa de abordagem aprofundada para compreender bandeiras e existências do 
Corpo-Poc atrelados ao corpo do Ator. Neste processo são adotadas ferramentas 
teóricas e práticas. O processo inicial pode se transformar ao longo do processo 
gerando novas ideias, consequentemente uma obra final diferente. Apesar dessas 
mutações, é um equívoco relacionar essas transformações como erros, assim como 
sugere Cecilia Salles em seu livro Redes de Criação – Construção da Obra de Arte. 
 
 
 Diante destas questões, no primeiro capítulo retrato sobre meu corpo e minhas 
vivências como uma criatura em processo de desconstrução e já monstrificada pela 
sociedade. O modo como as memórias são importantes para a criação de uma 
autobiografia, mas também como uma “escada” de desenvolvimento do corpo. É uma 
viagem no passado que se entrelaça com o presente. Dentro do mesmo capítulo, 
adentro sobre a ideia de personas, entendendo como estas “entidades” me ajudaram 
no projeto e na minha vida. 
 No segundo capítulo, procuro identificar os territórios que meu projeto me 
proporciona através das experimentações. Entender, mas não definir, o que seria 
corpo, mas ampliar a ideia do que ele pode propor e mover. Trabalhar as ideias de um 
Corpo-Poc, adentrando um pouco mais na ideia do corpo-cênico e o que isso interfere, 
ou melhor, vibra no corpo do ator. Contemplo também uma breve discussão sobre o 
teatro autobiográfico e performativo e os passos dados para uma adaptação cênica a 
partir de memórias em diário. 
 Na terceira e última parte, relato os passos de como a cena foi desenvolvida. 
Eu me aposso mais efetivamente do diário de criação para relatar os processos de 
experimentação gerados a partir das leituras e da criação do texto. Chamado 
carinhosamente de Passo a Passo do Close, relato os modelos e tentativas que fui 
me utilizando para construir a cena inicial até a versão final da obra, um espetáculo 
solo de caráter performativo. 
 
 
 
 
 
 
 Quando lembro de minha infância recordo de uma pessoa que não habita mais 
esse corpo, de modo que se esta afirmação fosse investigada a fundo, apontaria que, 
na verdade, ela vive, masestá desacordada dentro de mim. Há um processo que nós 
seres humanos e “sociáveis” precisamos executar, com encaixes e adequações, para 
nos sentirmos inclusos em um modelo ou padrão “respeitável” na sociedade. Não 
operamos essa função sozinhos, existe uma pressão para o desenvolvimento e 
controle do corpo que extrapola a nossa própria percepção do real. Biologicamente 
nosso corpo muda quando crescemos, pois, os hormônios se alteram, nossa voz 
muda, entre outros fatores, mas, as mudanças que me interessam focar aqui, são as 
transformações que implicam na adaptação dos nossos corpos pessoais para adotar 
a personalidade de um corpo social, o nosso lado de ocupação dos espaços, a nossa 
personalidade. Durante a adolescência, noto como as obrigações e as pressões para 
tomar decisões mais sérias se tornam ainda mais fortes em alguns momentos, tais 
como: decidir por uma profissão futura, escolher um curso superior (questões de um 
adolescente branco e de classe média). Eu, por exemplo, não podia ser mais uma 
criança peralta que fazia pegadinhas e dançava Floribella1 na calçada, na medida em 
que eu me tornava um adolescente rebelde e que se dizia assexuado, para justificar 
a falta de “ficadas” públicas com garotas, como muitos garotos da minha idade já 
faziam, e para esconder o meu real desejo por meninos. 
 O processo de descoberta do que, nesta pesquisa, eu denomino de um Corpo-
Poc, não leva muito tempo para acontecer, apenas o tempo necessário para o primeiro 
puxão de orelhas pós exposição por qualquer gesto aleatório e involuntário do seu 
morno e confortável armário. É o grito de incômodo de alguém reto (straight, hétero), 
supostamente, dominante na relação com um corpo transversal, “inadequado”. Estes 
corpos que se destacam pela sua performance, que rompem as barreiras dos limites 
impostos pelos corpos sociais dominantes, são os motores para a discriminação. A 
sociedade investe numa imagem de padrões do aceitável e uma ideia fajuta de 
 
1 Floribella, novela brasileira produzida e transmitida pela TV Bandeirantes entre 2005 - 2006. 
 
 
suposta má influência destes indivíduos para as crianças que estão observando esta 
presentificação. 
 Nasci no fim do século XX, um período marcado por grandes revoluções, mas, 
também, de grandes massacres e guerras. Do modo semelhante, nessa época, meu 
corpo passava por intensas revoluções e guerras internas. Sempre fui curioso, pois 
amava ler e assistir coisas que pudessem se tornar objeto de conhecimento para os 
meus pais. Descobri muito cedo que pessoas “diferentes” costumavam ser zoadas por 
uma pessoa que era tida como “maior”, no sentido dos privilégios. Foi durante a oração 
na minha escola, ainda na primeira fase do ensino fundamental, que eu vi crianças 
mais velhas humilharem uma criança negra por sua cor, coleguinhas se recusando a 
dançar quadrilha com uma menina que tinha cabelo crespo e, também, foi nessa fase 
da vida, que eu descobri que eu não era igual aos outros meninos da minha escola. 
Não entendia o quão diferente era, mas nem buscava ser. Havia algo de errado no 
meu corpo que fazia com que pessoas alterassem meu nome para o feminino, meus 
pais tivessem questionamentos pelas minhas preferências afetivas, além de orações 
toda noite com uma frase que terminava com “livra meu filho do homossexualismo”. 
Esse processo, entre a infância e adolescência, me fez perceber, que o sujeito 
que não se adequa, merece correção. A adequação é um valor a ser seguido e, 
portanto, é necessário repudiar toda forma que não seja a socialmente aceita e 
estabelecida. Mas quem estabelece? Quem é que afirma que meu corpo tem que se 
tornar ou obedecer a um comportamento “X” para ser digno de respeito? Tem tantas 
respostas para estas perguntas que eu prefiro evitar acusações e propor a minha 
experiência de decisão: “eu não preciso seguir”. Escrevo este texto e percebo o quanto 
as normatizações regidas pelo sistema universitário, com retóricas de que se faz 
necessário uma estrutura de organização dos pensamentos, torna-se também um 
meio de adequação mecânico, de controle e pouco experimentativo, mas, neste 
trabalho, tento dialogar na melhor forma encontrada por este pesQUEERsador-artista, 
situando-me num lugar entre o exigido e a minha satisfação de escrita. As adequações 
existem, isso é um fato, mas segui-las pode ser uma decisão. 
 Enfrentar os limites do nosso corpo nos faz reencontrar nosso verdadeiro eu, 
mascarado por objetivos e sentidos ensinados por outros. Quando assumimos essa 
desterritorialização dos corpos passamos a entender como funcionamos e até onde 
queremos ir com isso. Guacira Lopes (2018) argumenta que as nossas relações de 
descobertas com nosso corpo é uma viagem. Assim como os filmes de gênero road 
 
 
movie, que se passam na estrada, nossos objetivos vão sendo alcançados ao longo 
da nossa viagem. É um processo que pode ser longo e cheio de impedimentos, mas 
que, aos poucos, vai tomando forma e o nosso verdadeiro eu começa a preencher 
todo o espaço que de fato pertence a ele, como Guacira afirma: 
 
É possível pensar que esse sujeito também se lança numa viagem, ao longo 
se sua vida, na qual o que importa é o andar, e não o chegar. Não há um 
lugar de chegar, não há destino pré-fixado, o que interessa é o movimento e 
as mudanças que se dão ao longo do trajeto (LOURO, 2018). 
 
 São as nossas descobertas que vão reinventando os nossos corpos para se 
abrirem a novas performances. As dificuldades da minha criança, sem apoio de 
amigos ou familiares, em seu processo de descoberta, passaram a ser uma grande 
desordem mental em suas inúmeras frustrações com o corpo. Compreender que está 
tudo bem e não se adequar é uma tarefa difícil, principalmente quando os pilares 
formadores de sua personalidade e suporte emocional lhe induzem a pensar que 
certas atitudes são “falhas”. Sempre ouvia que meninos não podiam gostar de outros 
meninos, não podiam rebolar, não podiam andar com a mão “quebrada”, nem podiam 
sequer conviver com meninas por muito tempo, a não ser que isso tivesse uma 
intenção sexual. Tais empasses colocaram o meu corpo de Erê2 em completo colapso. 
 Começava a procurar soluções para continuar sendo eu, para performar e não 
para atuar um outro que eu não era e não queria ser. Uma das ideias foi indagar que 
precisaria me tornar menina para continuar fazendo tudo aquilo que meu corpo 
proibido necessitava. Rezava todas as noites implorando a Deus que me desse uma 
vagina e, na época, acreditava que esse milagre seria mais fácil de ser explicado do 
que ter um corpo de menino comportando-se como o de uma menina. Esse modelo a 
seguir, como um menino deve agir em várias situações, impedia meu real processo 
de entender e construir meu corpo. Judith Butler, em sua fala, consegue explicar sobre 
essa performatividade e a performance que define nosso corpo: 
 
Uma coisa é dizer que gênero é performado e isso é um pouco diferente de 
dizer que gênero é performativo. Quando dizemos que gênero é performado, 
geralmente queremos dizer que assumimos um papel ou estamos agindo de 
alguma forma e que nossa atuação ou nosso papel é crucial para o gênero 
que somos e para o gênero que apresentamos ao mundo. Dizer que o gênero 
é performativo é um pouco diferente, porque para algo ser performativo 
 
2 Erê, termo utilizado no Pajubá para definir uma criação viada. Com referência apenas à criança de 
um modo geral, pode ser encontrado o termo nos dialetos do Candomblé e Umbanda. 
 
 
significa que ele produz uma série de efeitos. Nós agimos e andamos, e 
falamos e conversamos de maneiras que consolidam a impressão de ser 
homem ou ser mulher (BUTTLER, 2011). 
 
 Reafirmo que se trata de um processo de adequação. Estamos sendo 
empurrados para uma produção em larga escala de corpos gerados a partir de uma 
representaçãopadrão, como uma atuação de um falso comportamento do eu. 
Enfrentar essas limitações do corpo não é tarefa fácil e muito menos convidativa para 
aqueles que não tem punhos fortes para enfrentar o seu espelho, como uma briga de 
identidade consigo mesmo e com o mundo formado por indivíduos que julgam e 
violentam um corpo inadequado. Marcas são geradas ao longo dessa viagem no 
descobrimento do corpo com dores, angústias, alegrias, momento, memórias. 
Elementos que reúnem um aprendizado e colocam os nossos estigmas mais fracos 
diante de nossas afirmações. 
Por outro lado, estes corpos transformadores são revoluções que, além de 
desterritorializar as sugestões de performance, desconstroem espaços. Eles são 
motivos de desconforto para aqueles que se adéquam e reforçam as regras de 
comportamento. Os adequados os monstrificam. A monstrificação, segundo Jefrey 
Cohen (1996), está associada ao surgimento de criaturas que não são adequadas as 
normas e costumes de um grupo dominante. 
 
Essa recusa a fazer parte da “ordem classificatória das coisas” vale para os 
monstros em geral: eles são híbridos que perturbam, híbridos cujos corpos 
externamente incoerentes resistem a tentativas para incluí-los em qualquer 
estruturação sistemática. E, assim, o monstro é perigoso, uma forma — 
suspensa entre formas — que ameaça explodir toda e qualquer distinção 
(COHEN, 1996, p. 30) 
 
 Esse pensamento se aplica a qualquer corpo que não se adeque, mas para 
este trabalho estamos ampliando a relação com o Corpo-Poc. A hibridização citada 
por Cohen, seria uma possível definição para as questões relacionadas ao meu 
corpo? 
 
 
 
 
 
 
 
 Descobrir que o meu corpo de menino podia ser feminino e que não precisaria 
me tornar mulher para gostar do sexo masculino me tornava um sujeito híbrido. Uma 
mutação ou contaminação de dois seres que pareciam distantes e impossíveis. Atrelo 
essa imagem a um ser contaminado, um Corpo-Poc. Este corpo efeminado, com 
trejeitos, voz fina e franzino, que nada passa despercebido ao se deslocar no espaço, 
não como uma coisa bela, mas como um monstro. Assim como o meu corpo, a palavra 
Poc tem sido desconstruída ao longo do tempo. Não há uma definição formal para a 
palavra, ela veio das ruas, das boates, das gays e travestis que geram neologismos 
em suas tribos. Buscando na internet, há várias definições informais para a palavra e, 
como exemplo disso, recupero a fala da drag queen paulista, Lorelay Fox, sobre o que 
seria a definição “original” para o termo: “Tá vendo essa gay, toda delicada e 
mulherzinha? Delicada e pobrezinha, completamente sem noção e deslumbrada, nova 
no meio LGBT e pouquíssimo suportada pela maioria da boate”. Teoricamente o termo 
Poc surge como uma forma depreciativa para classificar homens gays efeminados 
que, geralmente, eram pouco providos de recursos financeiros. Originalmente o termo 
usado era “bicha poc-poc” por ser associado ao jeito saltitante desses sujeitos, por 
lembrar o barulho de pipoca estourando ou por conta dos seus sapatos modestos que 
faziam barulho ao andar. Ao longo do tempo, o termo perdeu o sentido depreciativo 
para ser usado, dentro da comunidade LGBT, como uma expressão carinhosa ou 
possibilidade de existência e resistência. Muito disso foi permitido graças à viralidade 
das redes sociais, espaço no qual o termo se tornou popular novamente e ganhou 
uma nova roupagem. 
 Mesmo sendo ressignificado, o termo Poc ainda faz referência a um corpo que 
não se adequa às formas padrões. Ouso afirmar que esta categoria está na vanguarda 
das conquistas de direitos, pois são as Pocs que, com seu lado feminino e, portanto, 
perturbador de ambientes, recebem a maior carga de violência dos “colonizadores” 
sociais. Elas extrapolam os territórios delimitadores de gênero nas vestimentas, nos 
corpos, nos (tre)jeitos, pois são híbridas e quebram a ideia de binarismo sugeridas, 
funcionando como uma subversão, de acordo com a definição do termo apresentada 
por Leal e Denny: 
 
 
 
Subversão vem do latim subversio, do prefixo sub: sob, embaixo, e vertere, 
retornar, e significa literalmente derrubar, disrupção, sobrepujamento, e 
também destruição. A tradução mais usual é: desmando de autoridade. 
Subversão, em outras palavras, é um fenômeno moderno” (LEAL & DENNY, 
2018, p. 345). 
 
 Quando entendi que meu corpo estava, automaticamente, carregando uma 
bandeira e várias marcas, vivenciei um misto de nervosismo e preocupação. Eu 
entendia o que meu corpo era e o que poderia me acontecer. Um passo de cada vez 
era necessário, e estes passos eram/são dolorosos. Esse processo me impediu de 
desenvolver a segurança com o meu corpo e com a minha sexualidade. A todo 
momento me esquivava daquilo que alguns preferem denominar de “condição” Gay 
para me aproximar de uma suposta assexualidade. Eu não gostava da ideia de ter 
que namorar meninas, mas também não queria ser motivo de “vergonha” para a minha 
família. Era difícil lutar contra esses desejos e ter que performar um eu representativo. 
Eu me sentia um monstro e, de fato, era. Muito das questões que eram levantadas 
sobre a homossexualidade eram baseadas em leituras bíblicas feitas pelos padres. 
Eles tinham as interpretações do que liam e eu tinha a experiência do que estava 
vivendo. Mesmo assim, eu não me considerava um pecado, nem muito menos uma 
aberração da natureza. Cohen dá exemplos deste processo de distorção de 
interpretações dos textos bíblicos: 
 
A distorção mais famosa ocorre na Bíblia, onde os habitantes aborígenes de 
Canaã, a fim de justificar a colonização hebraica da Terra Prometida, são 
imaginados como gigantes ameaçadores (Números, 13). Representar uma 
cultura prévia como monstruosa justifica seu deslocamento ou extermínio, 
fazendo com que o ato de extermínio apareça como heroico (COHEN, 2000, 
p.33). 
 
 Tornava-se necessário a transformação daquele Corpo-Poc em um corpo cis 
heteronormativo. As correções eram comuns e imediatas, como nas falas: “Ajeita essa 
mão”, “Não quero você andando com Tamires3”, “Senta direito”, “fala como homem”. 
Mais e mais interferências acabaram em rompimentos afetivos, brigas e fortes 
“manchas” na personalidade daquela criança Poc. Na adolescência tudo se agrava, 
porque é um período em que jovens saem em busca de parceirxs e a sua sexualidade 
está “a flor da pele”. Eu que já havia me descoberto, mas não me permitia ser revelado 
 
3 Tamires é uma amiga minha de infância. Hoje não temos contato, mas foi de grande importância 
para o meu crescimento como criança viada. 
 
 
por inseguranças, me mantinha no mais recluso lugar, escondido envolto de uma 
casca cômica para evitar críticas e questionamentos de curiosos. O meu Corpo-Poc 
dava lugar à repressão, eu me sentia só e tudo me afetava. Precisava me reinventar, 
criar algo que pudesse sobressair minha personalidade e tornar-me uma casca para 
os atravessamentos derivados de minhas experiências pessoais. Em entrevista para 
o Bet Awards9, a artista americana Beyoncé comenta que tudo que ela faz em palco 
seria relacionado as possibilidades que a sua persona lhe proporciona. Como pode 
ser visto na descrição da entrevista: 
 
Sasha é meu alter ego. E quando as pessoas me veem, as vezes acho que, 
quando eles me conhecem e falam comigo, eles esperam Sasha. Eu sou 
meio tímida. Não tímida, mas mais reservada e nada como a Sasha. Eu acho 
que não seria tão animadora no palco, então Sasha aparece e ela é 
destemida. Ele faz coisas que eu não faço nos ensaios. Quero dizer, eu tento, 
mas não acontece (BEYONCÉ, 2006). 
 
 Foi a partir desta experiência que também pude desenvolver a minha criatura. 
Apesar de sua importância nas minhas descobertas na infância, não utilizarei neste 
trabalho a palavra “Alter Ego”, mas a palavra “persona”, baseado nas pesquisas e 
definições de Carl G. Jung, psicoterapeuta e psiquiatra fundador da psicologiaanalítica. Cito Luís Marcelo para explicar a definição de “persona” segundo as 
pesquisas de Jung: 
 
Persona é um termo emprestado por Jung do teatro grego antigo, que 
designava as “máscaras” (várias personagens) desempenhadas pelos 
artistas. - É um arquétipo de adaptação ao meio social, necessário à vida em 
sociedade. - Não corresponde à personalidade verdadeira do indivíduo (Jung 
denomina a personalidade de alma - não no sentido espiritual). A persona 
está associada às “máscaras” que utilizamos para desempenhar papéis 
sociais que não correspondem realmente à nossa alma (personalidade). - A 
persona pode agir de forma autônoma, ou seja, o indivíduo passa agir como 
uma “máscara”, a desempenhar comportamentos que não condizem 
realmente com sua personalidade. A persona representa o que a sociedade 
espera do indivíduo em termos de desempenho de papéis sociais. - Por ser 
um arquétipo, exercendo geralmente um papel autônomo na consciência 
(ofuscando a visão do eu), é mais frequente que o indivíduo não tenha 
consciência da existência de sua persona (RAMOS, 2002 p. 123). 
 
Seriam as nossas adaptações para conviver em sociedade. Estamos sempre 
usando máscaras para poder nos relacionar, não somos as mesmas pessoas quando 
frequentamos um bar e uma igreja. Cada ambiente, cada situação, necessita que 
nosso “eu” seja adaptado para comportar estes espaços. Segundo Hellen Mourão, a 
persona é algo importante e, não necessariamente, está atrelada à falsidade, porque 
 
 
precisamos nos adaptar aos meios para continuar com nossos empregos, nossos 
amigos. A persona só se torna algo altamente prejudicial quando o ego se identifica 
apenas como um papel, fazendo com que o indivíduo se esqueça de sua essência, 
como podemos observar nas afirmações de Jung: 
 
A persona é um complicado sistema de relação entre a consciência individual 
e a sociedade; é uma espécie de máscara destinada, por um lado, a produzir 
um determinado efeito sobre os outros e por outro lado a ocultar a verdadeira 
natureza do indivíduo. Só quem estiver totalmente identificado com a sua 
persona até o ponto de não se conhecer a si mesmo, poderá considerar 
supérflua essa natureza mais profunda. No entanto, só negará a necessidade 
da persona quem desconhecer a verdadeira natureza de seus semelhantes. 
A sociedade espera e tem que esperar de todo indivíduo o melhor 
desempenho possível da tarefa a ele conferida; assim, um sacerdote não só 
deve executar, objetivamente, as funções do seu cargo, como também 
desempenhá-las, sem vacilar a qualquer hora e em todas as circunstâncias 
(JUNG apud. MOURÃO, 2013). 
 
 Esta experiência negativa retratada por Carl Jung já foi experimentada por mim. 
Tive problemas em reconhecer a minha verdadeira personalidade, gerando conflitos 
com pessoas do meu convívio e comigo mesmo. “Um ego bem estruturado relaciona-
se com o mundo exterior através de uma persona flexível; alavancando o 
desenvolvimento psicológico e o amadurecimento”, mostra Hellen Mourão (2013). Ao 
longo do tempo vamos experimentando novas possibilidades de se relacionar e 
entender quem realmente somos. Estes passos de descobertas nos geram ações 
referenciais que nosso corpo resgata através das nossas marcas guardadas nas 
nossas memórias. Elas nos lembram quem fomos tornando-se um diário do processo 
de criação daquilo que tornamos. 
 
 
 Lembranças, memórias, mente, recordação, anotações, lembrete, 
reminiscência. Segundo o Sinônimos4, existem trinta e três significados para a palavra 
memória e, dentre eles, oito sentidos. Para desenvolver este projeto optei por um 
desses oito, a reminiscência. A memória, como reminiscência, tem a capacidade de 
guardar e reconstruir princípios e experiências que já foram vividas em pequenos 
 
4 Sinônimos é um site que, como o próprio nome diz, sugere palavras de definições parecidas. 
http://www.sinonimos.com.br/ 
 
 
fragmentos de momentos que se reorganizam em imagens e lembranças em meio a 
tantas outras. A partir dos diários podemos “salvar” recortes do presente, algo mais 
contemplativo e significativo para quem escreveu do que para quem lê. São lacunas 
escritas em primeira pessoa de um passado escrito no presente, em outras palavras 
o “diário é necessariamente escrito sob o signo do presente” (LEITE, 2014 p.31). 
Escrevo meus diários como uma forma de manter recordações por um período maior, 
coisas simples e rotineiras que obviamente serão apagadas de minha memória, assim 
como pode ser visto nos estudos de Janaina Leite a partir de leituras de Lejeune: 
 
Mas o que é um diário afinal? Podemos pensa-lo a partir de suas 
características: um diário é necessariamente descontínuo; ele é lacunar, 
alusivo (como não é feito para o outro, ele serve de signo mnemônico para 
aquele que escreveu, onde através de pequenos rastros ele pode chegar a 
conteúdos que não estão expressos ali), é ainda redundante e repetitivo 
(podemos pensar nos temas que nos perseguem como trabalho, 
relacionamentos amorosos e família) e não-narrativo (mesmo se cada 
entrada conta alguma coisa, um diário não é construído em seu todo como 
uma narração) (LEJEUNE apud. LEITE, 2014, p. 31) 
 
Ainda assim, podemos notar que o diário é “marcado pela vivência imediata, 
pelo contingente e, sobretudo, é escrito na ignorância do seu fim” (LEITE, 2014, p. 
31), ou seja, não sabemos o que se sucederá nas próximas páginas, por ser algo que 
está relacionado com a escrita de um presente ou, como aponta Janaina Leite com 
leituras em Selligmann, em estado de acontecer: 
 
O diário também possui uma respiração, um ritmo, que expressa e aponta 
para uma situação anímica e corpórea de seu autor. Os traços materiais 
inscritos no diário – que muitas vezes se desdobram em características bem 
sensíveis, matéricas, como o estado do papel, a caligrafia, os borrões de tinta, 
as rasuras, etc. – reforçam o teor testemunhal do diário (SELLIGMANN-
SILVA apud. LEITE, 2014, p.31). 
 
 Desse modo, corroboro com o pensamento de Janaína Leite quando ela pontua 
que “este conjunto de características reforça o caráter altamente performativo da 
prática do diário” (LEITE, 2014, p. 31). Esta performatividade do diário, nos traz outras 
visões do próprio momento, coisas que nos faz entranhar o escrito, conforme 
apontado por Lejeune:. 
 
O diário é como uma renda ou teia de aranha. Ele é aparentemente feito mais 
de vazios do que de cheios. Mas para mim que escrevo, os pontos de 
referência discretos que inscrevo sobre o papel mantém em suspenso em 
torno deles, invisível, um mundo de outras lembranças. Por associação de 
 
 
ideias, por alusão, sua sombra, sua virtualidade vão pairar um certo tempo. 
Aos poucos, elas se evaporam, como uma flor que perde seu perfume 
(LEJEUNE apud. LEITE, 2014, p.32) 
 
 É recorrente este ato em minhas escrituras. Continuo a me perguntar de 
acontecimentos e de pessoas que ali estão escritas, mas, hoje, não representam 
nada, nem lembranças. Além disso, podemos estranhar a nossa imagem passada a 
partir da observação dos processos de criação da imagem atual como em fotografias, 
por exemplo (Cf. LEITE, 2014, p. 32). 
 O ato que procuro como referencial de criação para este projeto está 
relacionado com minhas memórias, contaminadas por outras artes, como a 
performance. As marcas e os diários são ferramentas documentais que podem ser 
usados num processo criativo, porém não são os únicos instrumentos. Podemos usar 
fotos, vídeos ou qualquer outro suporte que referenciem ou sejam dispositivos de 
memórias. Citando como exemplo a artista Janaina Leite em seus trabalhos para a 
realização de Festa de separação: um documentário cênico, percebo uma produção 
que vai além do uso da escrita como memória, como evidenciado no trecho abaixo: 
 
O potencial do uso do material de arquivo também se verificou na experiência 
de Festa de separação: um documentário cênico onde o registro em vídeode 
uma vida de casal ao longo de alguns anos, somado aos registros do 
processo criativo, que se deu através de festas de separação, geraram os 
principais materiais que estruturam o jogo proposto pela encenação. Em 
cena, os intérpretes manipulam trechos de vídeo, seja para dar conta da 
dramaturgia de sua história pessoal, seja para trazer ao público a experiência 
de ter realizado verdadeiras festas de separação, principal eixo narrativo da 
peça (LEITE, 2014, p. 34-35). 
 
 Levando em consideração o exemplo podemos reestruturar e reforçar as 
maneiras de contar ou referenciar histórias reais em peças teatrais. Para categorizar 
os tipos de diários na contemporaneidade, Janaina Leite (2014, p. 36) descreve quatro 
tipos de processos de diários: diário como narrativa textual do vivido (“exercício ou 
prática de dar forma escrita às próprias vivências e reflexões sobre as mesmas”), 
diário como registro-imagem da experiência (“através de suportes como câmeras 
fotográficas ou de vídeo, produzimos imagens da experiência e «imprimimos» um 
olhar sobre elas nestas superfícies, constituindo arquivos pessoais”), diário como 
acúmulo de indícios de experiência (“constituição de acervos, inventários, 
cartografias, que formam todos uma espécie de memorial da experiência”) e diário de 
processo (“Nesses diários podemos acompanhar a evolução do processo”). 
 
 
 Durante o processo criativo serão usadas quase todas as categorizações 
dadas por Janaina. O diário como narrativa textual torna-se importante fonte de 
informações sobre o corpo antigo e suas marcas, inquietações e mutações ao longo 
das páginas. O diário como registro-imagem acaba por reforçar as referencialidades 
proporcionadas pelos documentos de texto do diário anterior. Por fim, o diário de 
processo, torna-se fundamental para observar as evoluções das ideias do processo 
criativo, bem como por servir como uma ponte de transição entre o que já foi e o que 
se torna, revelando uma obra viva ou, em outras palavras, inacabada (Cf. SALLES, 
2008). 
 Meu texto artístico e, em parte, o acadêmico, toma como processo um modo 
de representação autobiográfica íntima e retrospectiva. Este modelo desenvolvido por 
filósofos da escola alemã ficou conhecido como Bildung (formação). Janaina Leite 
(2014) define que o Bildung “trata-se do relato retrospectivo de como alguém se torna 
o que é, dentro de uma perspectiva finalista”, ou seja, de que há um caminho a ser 
percorrido para se alcançar um lugar de sabedoria e harmonia dentro dos valores 
compartilhados pela sociedade, portanto reafirmo a ideia de inacabamento da obra 
em um processo performativo e autobiográfico. 
 
 
 
Desde a pós-modernidade a arte vem se tornado um ambiente extremamente 
instável e de conceitos movediços, quebrando fronteiras de linguagens e definições. 
“Na prática, é impossível delimitar com exatidão o campo abrangido por um meio de 
comunicação ou uma forma de cultura, pois as suas bordas são imprecisas e se 
confundem com outros campos” (MACHADO, 2007 p. 546). Seguindo esta linha de 
pensamento, Machado reforça a ideia de “compartilhamento” a partir do momento em 
“que nos aproximamos das bordas e das zonas de interseção, a diferenciação entre 
os meios já não é tão evidente, os conceitos que os definem podem ser transportados 
de uns para outros, as práticas e as tecnologias podem ser compartilhadas.” 
(MACHADO, 2007 p. 554). 
As ideias de arte em “campo expandido” ou em “campo ampliado” tem sido 
recorrente nas minhas leituras com relação às artes híbridas. Contaminados por estas 
formas miscigenadas passamos a não perceber mais claramente as suas fronteiras, 
sendo esta uma prática muito comum de criação de novas linguagens na cena 
contemporânea. Essas experimentações de hibridismo geram diálogos com a própria 
arte em si, assim como fala Eleonora Fabião: 
 
Esta expansão não diz respeito somente a absorção de qualquer matéria e 
questão do mundo em processos de criação artística – os mais diversos 
materiais, metodologias, dispositivos, suportes, espaços, durações, agentes 
– mas também a experimentação com a própria noção de arte (FABIÃO, 2013 
p. 7) 
 
Estas explorações de uma arte contaminada partem da ideia de uma linguagem 
que se apropria de técnicas, formas, suportes e experimentos de outras artes e mídias 
e nesse “uso” elas mesmas se fundem e geram uma nova experiência, como ressalta 
Quilici: 
 
Mais que isso, trata-se de fazer transbordar as práticas artísticas para fora 
dos circuitos e dos sentidos que lhe são habitualmente atribuídos, inserindo-
as em lugares insuspeitos, articulando-as com outras formas de saber e fazer, 
colocando em cheque categorias que se encarregavam de situar a arte em 
um campo cultural nitidamente definido (QUILICI, 2014 p. 12) 
 
 
 Estes formatos dados pelas artes contemporâneas abrangem novos pontos a 
serem discutidos me levando a observar e refletir a arte em todas as suas potências. 
Tomando conhecimento e realizando experimentações nessas novas linguagens e 
suas zonas de contaminação, procuro realizar e analisar como estas hibridizações 
artísticas podem compor um teatro contaminado pela performance, já conhecido por 
Teatro Performativo que, segundo os estudos de Ferál (2008): 
 
No teatro performativo, o ator é chamado a “fazer” (doing), a “estar presente”, 
a assumir os riscos e a mostrar o fazer (showing the doing), em outras 
palavras, a afirmar a performatividade do processo. A atenção do espectador 
se coloca na execução do gesto, na criação da forma, na dissolução dos 
signos e em sua reconstrução permanente. Uma estética da presença se 
instaura (se met en place) (FERÁL, 2008 p. 209) 
 
Dentro dessas relações entre o teatro e a performance me interessa perceber 
um corpo que está aberto a essas contaminações, o corpo e estado cênico de um 
ator-performer a partir das memórias de um Corpo-Poc. 
 
 
 Numa viagem somos afetados pela passagem dos carros, pela vertigem ao 
olhar para o mato desfocado que passa rapidamente, pelas pessoas que de repente 
surgem em nossa janela indo ao encontro das suas ações cotidianas. Em pouco 
tempo nessa viagem vemos, somos vistos, ocupamos ligeiramente os espaços e nos 
afetamos. É uma maneira simples e, de certo modo, muito superficial de demonstrar 
o quanto o nosso corpo-mente pode ser contaminado pelas relações, ou melhor, por 
uma rápida experiência de observação da vida cotidiana. Como já citado 
anteriormente, de acordo com Guacira Lopes (2018), nosso corpo está em uma 
constante viagem. Vamos andando e nos contaminando pelos caminhos, pelas 
pessoas, pelas coisas e nos tornamos cada vez mais um corpo novo. Não cabe 
discutir neste trabalho “O que é corpo” em sua forma primária, como suporte, mas 
descobrir o que esse corpo quer, do que é feito, o que ele quer propor, o que ele quer 
provocar? Para Fabião o corpo vai muito além que um corpo-matéria ou obra primária, 
 
 
 
Um “corpo” pode ser visível ou invisível, animado ou inanimado, cadeira ou 
gente, luz, ideia, texto ou voz. Um corpo é sempre uma multidão de relações 
e, como tal, está permanentemente deflagrando relações. Corpo em relação 
com corpo forma corpo. O entre-lugar da presença é no nosso corpo o que 
não está em nós. (FABIÃO, 2010, p. 323). 
 
Somos um corpo presente e relacional como uma forma permanentemente a 
ser rascunhada, (re)escrita, printada e, por que não, rasgada. Desde a infância, as 
relações sociais nos forçam a um enquadramento em caixas-fronteiras com 
performances definidas para cada tipo de órgão genital. Mais do que uma definição, 
esta imposição funciona como uma barreira para a descoberta do si. O corpo artístico-
contemporâneo se dispõe a romper estes limites e sobrepõe a dicotomia entre corpo 
(matéria) e alma para amplificar as observações geradas por seus entres. A 
experiência de um corpo cênico interfere em si, no outro, no espaço, no tempo de um 
modo fluído. “Oestado de fluidez é um estado alterado de consciência, ou seja, um 
comportamento fora dos padrões cotidianos de conduta, provocado pela realização 
de uma ação que envolve o agente de forma total” (CSIKSZENTMIHALYI apud. 
FABIÃO, 2010, p. 322). É a partir dessa ideia de fluxo que podemos chegar à uma 
noção mais ampla de corpo cênico, um corpo consciente da sua ação no espaço, 
conectado com as suas ações em cena. 
O ator em estado cênico consegue ampliar suas percepções e se relacionar 
com o tempo e o espaço, mesmo que esteja contido no fluxo de seus atos cênicos. “O 
fluxo abre uma dimensão temporal: o presente do presente” (FABIÃO, 2010, p.322), 
ou seja, uma consciência do presente estado cênico, do tempo presente e/ou da 
presentificação do ator. “A capacidade de conhecer e habitar este presente dobrado 
determina a presença do ator” (FABIÃO, 2010., p.322). O corpo cênico permite o ator 
estar consciente de suas ações e das vibrações geradas pelo espaço, bem como 
possibilita uma alteração das temporalidades do espaço, como explica Fabião: 
 
O corpo cênico experimenta espaço e tempo potencializados e, também, o 
corpo cênico potencializa tempo e espaço. O corpo da cena investiga 
temporalidade e espacialidade, inventa minutagens e métricas, ocupa 
dimensões simultâneas do real. O nexo do corpo cênico é o fluxo. O 
passageiro, o instantâneo, o imediato – rajada, nevoada, jato. [...] O corpo 
fluido e fluidificante é a matriz espaço-temporal da cena. (FABIÃO, 2010, p. 
321). 
 
 
 
Esse caminho para entender e buscar as conexões com a fluidez do corpo é 
um processo contínuo, gerado pelas experiências e desconstruções dos estados 
sólidos que passam despercebidos nos atos cotidianos. Estas transformações 
demonstram o inacabamento do processo de construção deste corpo, ou seja: 
 
(...) uma experiência, por definição, determina um antes e um depois, corpo 
pré e corpo pós-experiência. Uma experiência é necessariamente 
transformadora, ou seja, um momento de trânsito da forma, literalmente, uma 
trans-forma (FABIÃO, 2008 p. 237). 
 
 Estas experimentações contaminam o corpo do ator-performer, gerando novas 
sensibilidades para um corpo mais atento e conectado ao espaço-tempo. Atento, o 
corpo cênico permite se contaminar com o espaço, ele vibra e se torna cada vez mais 
permeável. Esse corpo-membrana, conceito dado pela Eleonora Fabião, capaz de 
vibrar com os entornos, molda seu corpo e gera um efeito de entrelaçamento entre o 
ator e o público, numa conexão entre os presentes. As condições geradas pela 
estrutura do espetáculo, a execução cênica, expande o espaço, altera as percepções 
fazendo com que o ator se torne um corpo permeável a partir dos entrelaçamentos 
gerados pelas suas ações, efeitos no espaço e a relação entre o público. 
 O estado de um corpo que atua, representa ou presentifica torna-se uma 
metáfora da vida, porque ele retrata um recorte da vida dentro da própria vida ou, em 
alguns casos, constitui-se na própria vida. É uma desestabilização, um descontrole. 
Eleonora Fabião, em suas leituras, fala que este tipo de “descontrole” é dado por uma 
consciência de um Corpo sem Órgão, em uma quebra de convenções e padrões que 
geram novas experiências, novas relações do corpo e de como ele se invoca nesse 
espaço. “Onde bom senso e senso comum dizem: seja funcional e produtivo, seria 
preciso dizer: vamos mais longe, não encontramos ainda nosso CsO, não desfizemos 
ainda suficientemente nossos hábitos, convenções, padrões” (FABIÃO, 2013 p. 5). 
Uma combinação psicofísica, a geração do controle do externo a partir da consciência 
do interno e vice-versa. Estar atento e consciente do seu corpo como um todo. Corpo-
matéria; corpo-mente; corpo-membrana, corpo-sensível. 
 Mesmo dentro dessa ideia de se deixar permear, o corpo cênico, está no palco, 
portanto, o nada é ação, o não movimento também é ação. No palco é onde algo 
acontece, portanto, 
 
 
 
No palco não há imunidade. O Olhar é palpação, o movimento ação, e ser, 
relação. Ação ecoa, voz preenche; o corpo sempre interage com algo, mesmo 
que seja o vazio. Ou, ainda, no palco, vazio não há, pois que se tira tudo e 
resta latência (FABIÃO, 2010, p. 322). 
 
O corpo do ator se torna palco, um mundo que percebe, que vê e é visto. Um 
constante entrelaçamento que geram discussões e efeitos nos que compactuam com 
o jogo proposto da cena. O corpo passa a se comunicar, se pertencer e ocupar. “[...] 
o sujeito não possui um corpo, mas é corpo; o mundo não é ocupado pelo corpo, é 
uma de suas dimensões” (FABIÃO, 2010, p.233). O corpo não é apenas um suporte 
guiado por pensamentos e órgãos separadamente, somos um todo que se 
complementa e coexiste de maneira conjunta. Nossas faculdades e vivências nos 
tornam corpo-mundo que ocupam o mundo. “Esse é um corpo que reivindica criação, 
recusa cada vez mais a mera execução ou reprodução de coreografias fora de si, ou 
a simples ilustração de um texto prévio” (CURI, 2013, p. 3). 
 Tornar o corpo cada vez mais vibrátil e permeável dentro da cena é uma 
capacidade de compreensão e atenção do corpo, passamos a não mais nos perceber 
como sujeitos cotidianos, mas estar conectados ao estado cênico. É para o processo 
de criação e de presentificação que o corpo necessita estar esvaziado para o exercício 
de escuta e percepção para se perceber e gerar novas provocações, como afirma 
Alice Curi, 
 
Assim, é apenas esvaziado que o corpo pode vir-a-ser/estar prenhe de novas 
criações. O corpo esvaziado, tornado latência pura (ou quase, se isso for 
utopia), se abre a um fluxo “impermanente” entre interno e externo, abre-se, 
assim, à possibilidade de experiência e de criação (CURI, 2013, p. 5). 
 
O estado em vazio é de completa criação permitindo gerar das limitações dos 
esvaziamentos, uma possibilidade de amplificação de outros sentidos, outros 
movimentos, outras sensibilidades, como afirma a autora: 
 
Uma corporeidade em vazio torna-se passagem, abre-se às experiências, é 
atravessada por latências, vivências e sensações. Os cinco sentidos do corpo 
podem reexperimentar o espanto de uma primeira vez. Quão potente e 
revigorante pode ser quando cada novo contato sensorial, ainda que seja o 
mesmo, aquele de sempre, desperte outras percepções, ressonâncias e 
associações poéticas. Os sentidos do corpo cênico abertos a experiências 
que lhes provoquem ressonâncias, que por sua vez escoam em produção 
criativa e expressiva (CURI, 2013, p. 6). 
 
 
 
Nessa compreensão de imaterialidade e de transformações, o corpo está 
sempre em transformação e em processo de inacabamento. São nossas vivências e 
experimentações que nos permitem recriar e desenvolver outras partituras. São 
nessas vivências que novamente toco no outro ponto já amplamente abordado no 
capítulo 1: o Corpo-Poc. Na minha experiência pessoal, a desconstrução e o 
reconhecimento dos processos que marcam a saída do padrão normativo social 
imposto para o corpo masculino e a aceitação da performance-corpo individual. Se 
reconhecer em um Corpo-Poc e se afirmar nessa performance-corpo é uma violência 
para todo o corpo. Corpo-mente, corpo-matéria, corpo. Tudo se torna uma grande 
dúvida. É nas observações do outro-questionador, que podemos, nós, Corpo-Pocs, 
perceber os nossos macros/micros movimentos, comportamentos e, a partir disso, 
conter ou ampliar. São viagens que nosso corpo caminha, descobrimentos que nos 
faz repensar e contaminar, gerando novos seres, tendo novas percepções e movendo 
novos questionamentos. 
 
 
 
 Percebo o quão difícil é ter uma consciência de si e, além disso, tem sido um 
trabalho complexo escrever sobre um passado para justificar, ou melhor dizendo, 
revelar o processo até o “eu” presente. O desenvolvimento de uma obra a partir de 
referenciais pessoais, de fato, pode parecer um pouco narcisista, mas é a partir das 
individualidades dos sujeitos que podemos subtrair exemplos dessas experiênciasaplicando, subjetivamente, as nossas. É uma forma de ressignificação do sentido da 
própria obra, como pode ser visto nas palavras de Márcia Abujamra: 
 
Se as condições para a existência do narrador desapareceram, já que não 
existe mais a possibilidade de que a experiência transmitida seja comum ao 
narrador e ao ouvinte, acredito que no relato da experiência pessoal pode se 
projetar uma nova possibilidade de partilha. Pode-se imaginar que cada 
memória pessoal chame outra história e, por isso, cada texto autobiográfico 
pode ser infinito em sua multiplicação de histórias e sentidos, permitindo que 
narrador e ouvinte participem de um fluxo comum e vivo, de uma história 
aberta a novas propostas e ao fazer junto. Não seria esse um dos principais 
desejos do teatro, que suas obras não apenas sejam vistas, apreciadas, 
entendidas, mas que levem o espectador a pensar em sua própria vida, 
relacionando-a de maneira pessoal à vida do outro? (ABUJAMRA, 2013, p. 
76). 
 
 
 
Ainda segundo os pensamentos desta autora, os elementos usados nesse tipo 
de estrutura autobiográfica, ratifica a relação de experiência subjetiva e individual além 
de permitir que o espectador reviva e se conecte com a obra transformando num 
pensamento próprio. A partir de um experimento solo, o artista é capaz de produzir 
algo muito pessoal e individual, não se limitando à criação de um personagem, mas 
se permitindo construir elementos cênicos a partir de suas memórias. Como afirma 
Janaina Leite: 
 
O que nos interessa neste pequeno preâmbulo é reforçar o que, dentro deste 
panorama, convida o artista a engajar-se em primeira pessoa e transformar a 
cena, a obra, num depoimento próprio, afirmado, que não se confunde mais 
com o discurso de uma personagem ou um autor-dramaturgo que não seja 
ele próprio. Este é um gesto marcante da contemporaneidade, 
frequentemente associado à performance, em que “o trabalho passa a ser 
muito mais individual” (...) (LEITE, 2014 pp. 37-38). 
 
Desde o início do século XVI podemos observar uma produção de escritas 
autobiográficas, assim como fala Janaina Leite (2014, p. 17), “das histórias de santos 
e reis aos primeiros ensaios pessoais, como temos em Montaigne no século XVI, 
temos diferentes experiências do ‘eu’”. As memórias guardadas por estas escrituras 
da Idade Média ainda não referenciavam o “eu” como uma consciência individual, mas 
como um indivíduo que refletia suas vivências de acordo com os costumes religiosos 
e políticos de sua época. Ao longo dos séculos podemos observar as mudanças de 
comportamento das civilizações e como cada indivíduo se projeta no espaço. O 
cinema também tem suas vertentes de escritas biográficas, a exemplo do gênero 
documentário que procura relatar, a partir da visão de um diretor, a “verdade” por trás 
de uma história. Temos uma tendência a nos familiarizar com documentos que relatem 
a experiência de outro. O quão intenso se torna um filme que em seus primeiros 
minutos exibe a frase “baseado em fatos reais” e o quanto isso torna nossa percepção 
da possibilidade daquela eventualidade, mesmo que mínima, possa acontecer em 
nossas vidas. Com essa geração regada pelo digital que estamos experimentando 
neste século, desenvolvemos hábitos cada vez mais narcisistas e, porque não 
dizendo, de ambição pela “grama verde do vizinho”. A espetacularização do cotidiano 
privado de indivíduos públicos e anônimos nos torna fissurados nessas narrativas 
autobiográficas geradas a partir de um dispositivo eletrônico conectado à rede, como 
comenta Diana Klinger: 
 
 
 
O avanço da cultura midiática de fim de século oferece um cenário 
privilegiado para a afirmação desta tendência. Nela se produz uma crescente 
visibilidade do privado, uma espetacularização da intimidade e a exploração 
da lógica da celebridade, que se manifesta numa ênfase tal do autobiográfico, 
que é possível afirmar que a televisão se tornou um substituto secular do 
confessionário eclesiástico e uma versão exibicionista do confessionário 
psicanalítico (KLINGER, 2006, p. 20). 
 
 O processo para a elaboração do projeto autobiográfico parte da busca de 
materiais que servem de documentos para a realização da obra, sendo eles: vídeos, 
fotos, textos e ou outros elementos que sirvam de memórias e motores para a 
realização do processo. A elaboração de uma obra, ou texto, que tem o autor como 
referencial busca uma necessidade de convencer o leitor/espectador que aquela obra 
tem seu lado verídico a partir de “pactos” que são feitos durante a recepção do 
observador, como afirma Diana Klinger: 
 
O pacto autobiográfico pressupõe um compromisso duplo do autor com o 
leitor: por um lado ele se refere a referencialidade externa do que o texto 
enuncia, quer dizer que o que se narra se apresenta como algo realmente 
acontecido ou comprovável (“pacto de referencialidade”). Por outro lado, o 
autor deve convencer o leitor de que quem diz “eu” no texto é a mesma 
pessoa que assina na capa e que se responsabiliza pelo que narra, “princípio 
de identidade” que consagra ou estabelece que autor, narrador e protagonista 
são a mesma pessoa. (KLINGER, 2006, p.43). 
 
 Essa relação gera um compromisso com a veracidade entre ambos, porém não 
podemos afirmar com completa confiança uma história devido a fatores naturais de 
“manipulação”. Nossa seleção natural de ações molda nossa capacidade de 
interpretação de um evento, principalmente ao recriá-los a partir de lembranças, 
diários, vídeos e/ou qualquer outro documento capaz de alavancar lapsos de 
memórias. Nosso cérebro tem a capacidade de armazenar lembranças que, de 
alguma forma, julga importante para nós. O restante dessas memórias é apagado do 
nosso consciente durante o sono ou antes disso, como é meu caso. Esse processo 
de “apagão” faz com que tentemos preencher tal vazio com imagens e elementos que 
não, necessariamente, aconteceram de fato. Janaina Leite (2014, p. 32) reafirma que, 
“isso que ‘evapora’, é capaz, por exemplo, de tornar completamente estranho um 
escrito em que os traços que ali permanecem não permitem mais o acesso à história 
e a seus personagens. Seus motivos e suas consequências”. Nosso processo de 
recordar um evento é imagético, nosso corpo busca essas informações já vividas e 
nos apresenta em forma de lembranças. Apesar de compor um pensamento, a 
 
 
imaginação se difere de uma memória, visto que a mesma não dispõe de um espaço 
temporal que marque um “contraste com o presente” como diz Janaina Leite: 
 
A temporalidade é uma operação importante que distingue a memória da 
imaginação. Para que identifiquemos algo como sendo o passado, é preciso 
que este algo contraste com o presente, como diz Bergson (2006). Para 
Aristóteles, que já aproximava a memória da imaginação, é justamente a 
diferença com relação ao presente pela marca temporal que vai distinguir as 
duas instâncias” (LEITE, 2014, p. 22) 
 
A uma questão do que seria o real e o que é fictício, já que podemos 
involuntariamente sermos sabotados por nosso cérebro quando buscamos respostas 
sobre uma lembrança do passado, ou até mesmo quando vamos representar uma 
cena com conteúdo extremamente pessoal, mas que no fundo estamos criando um 
personagem de nós mesmos. “(...) um personagem a partir das vivências de quem 
está em cena, persona de uma construção autoficcional que já não está mais tão 
desnudada no palco com a mesma visceralidade documental (MOCARZEL, 2014 p. 
179). Há uma inevitável criação de uma personagem durante a execução de um 
trabalho que dá vida a memórias vividas, não podemos reproduzir com uma completa 
exatidão fatos passados, mas conseguimos exprimir o máximo da realidade com um 
leve “toque” didático que o ficcional pode agregar. 
 
O conceito de auto-mise-en-scène é bastante útil em tempos tão marcados 
por exercícios de autoficção no cinema, no teatro, na televisão e na arte 
contemporânea, de maneira geral. Trata-se da possibilidade de 
desnudamentodas camadas híbridas, documentais e ficcionais, que matizam 
a nossa psique, nossas lembranças, infância, adolescência, as mais diversas 
vivências (MOCARZEL, 2014 p. 181) 
 
 Adaptar para a cena textos de um diário se torna algo autoficcional, visto que 
as memórias que ali estão escritas não cumprem com a totalidade do acontecido. São 
lacunas deixadas pelo escritor e que são preenchidas com outras imagens pela 
tentativa de recordação dessas memórias. E mesmo que o texto tenha sido escrito no 
passado a narrativa é escrita no presente, como algo que descreve o que está 
acontecendo. Apesar de se tratar de algo que relata este presente, os diários são, 
como diz Janaina Leite, “ato de resistência contra uma memória falível já que tenta 
ser registro do vivido” (LEITE, 2014 p. 31). Nossas memórias referenciam 
imageticamente quem fomos e a nossa construção narrativa é capaz de revelar nosso 
contraponto, o que nos tornamos. São esses recortes que nos relembram de um 
 
 
determinado momento a partir de uma mensagem, uma foto, uma recordação do 
Facebook, podendo ser acompanhado de um comentário do tipo: “gente, como 
mudei!”. É em perguntas como “me fala sobre você” com um desconhecido, por 
exemplo, que resgatamos nosso passado mais recente, que já se tornou uma 
evolução de um passado mais distante. Produzir uma obra sobre si é narrar as 
memórias, corporificá-las, podendo servir de memórias para outros, afetando pessoas 
e espaços, mas, também, se deixando afetar. Janaina Leite (2014, p.22) chama estes 
momentos de “atos de fala” tendo como função “performar uma imagem de nós 
mesmos e daquilo que chamamos de nosso passado”. O autobiográfico passa a 
resgatar estes documentos do passado e corporificá-los como elementos vivos na 
cena, que se transformam com o espaço e o público, tornando-se novas memórias, 
como mostra Abujamra: 
 
Com a presença do ator/artista se faz presente o passado a partir do aqui e 
agora da palavra, como esse ato físico da memória. Nesse caso, a palavra 
dita se faz visível como uma ação a mais. Constrói-se, assim, uma ponte que 
vai desde o presente cênico desenvolvido frente ao público até o passado 
feito presente através das histórias que se contam, experiências, 
recordações, medos e sonhos (ABUJAMRA, 2013, p.78). 
 
 Nesse sentido, relembrar o meu Corpo-Poc e corporificar estas memórias 
alteram minha percepção do passado e tornam possíveis as mudanças e geram novas 
relações a partir dessa corporificação. É uma “possibilidade de ressignificação de uma 
vivência pela própria passagem do tempo, da possibilidade de uma nova visão sobre 
o passado, e mesmo dos novos encontros que a vida pode oferecer” (LEITE, 2014, p. 
76). São possibilidades de recriar, ou seja, ressignificar as memórias. 
 
O material bruto da vida real é transmutado num texto dramático, a 
personalidade é vertida no personagem. A escolha de imagens, de registros, 
de lembranças, de músicas, de textos, é toda ordenada de uma maneira 
criativa, inventiva, é ficcionalizada. O que se revela no palco é o processo de 
construção de subjetividades. Construção, no caso, é a palavra perfeita. A 
subjetividade que vai brotando não é uma essência prévia, que podia ser 
conhecida através de uma narrativa, mas é a narrativa mesma que vai 
construindo esta subjetividade (CÂMARA apud. LEITE, 2014, p. 76-77). 
 
Torna-se também uma reação contaminada pela performance, em que o meu 
corpo apresenta um estado vivido anteriormente presentificando a partir da relação 
gerada com o espaço e público. A performance e as linguagens performativas se 
encontram nessa desconstrução de ideias, de corpos, de espaços. É uma relação de 
 
 
entres e de quebra de fronteiras, uma forma de permitir novos disparos e 
possibilidades de experimentações. Portanto, 
 
É nesse sentido que podemos entender a linguagem da performance: como 
uma linguagem que não constitui apenas uma representação de determinada 
situação ou contexto, mas que, realizando e efetuando-se, modifica o 
presente, influi ativamente nele, propondo transformações nos modelos de 
poder vigente, remodelando as subjetividades e as relações previamente 
estabelecidas (ALICE, 2014 p. 36) 
 
 Apesar de compor uma criação verticalizada, este tipo de processo 
contaminado pela performance não dialoga com uma definição epicêntrica do texto ou 
do ator, por exemplo. Cada elemento dialoga e aparece na cena de forma pensada 
para causar experiências para o expectador, muito mais que uma resposta direta, mas 
uma sensação subjetiva das interpretações. 
 
A encenação performativa, nesse sentido, vai buscar justamente se libertar 
da construção da unidade, do discurso homogêneo e do sentido articulador. 
Ela procurará se deixar atravessar por sentidos, por linhas de força, por 
heterogeneidades materiais, discursivas e de linguagens. Ao invés da 
“produção de sentido”, busca-se, como na performance, a “produção de 
presença”, ao invés da “organização simbólica”, da “homogeneização dos 
materiais” ou da amarração de um sentido, emergem “pedaços de sentido”, 
possibilidades tateantes de significação, postas em movimento e em contato, 
por ação do diretor. Ele, então, funcionaria mais como um operador de fluxos 
erráticos, um “presentificador” de “pedaços de representação”, um produtor 
de uma rede de motivos cênicos diversos (ARAÚJO, 2008 p. 257) 
 
 As propostas do teatro performativo são de apresentar o estado de espirito do 
próprio ator-performer buscando mais sua presentificação do que uma representação. 
O ator-performer não está mais preocupado em anular o seu corpo para dar espaço 
as emoções e vida da personagem, mas está ali presente com suas próprias emoções 
e seu próprio corpo. Como fala Márcia Abujamra: 
 
(...) de posse de diferentes técnicas interpretativas, tentam fazer desaparecer 
seus corpos e personalidades com o objetivo maior de dar vida a esses 
personagens; um espaço real que representa diferentes espaços fictícios; um 
tempo cênico que não corresponde ao tempo da vida cotidiana. Se essa 
ficção esteve em foco em grande parte da história do teatro, a partir dos anos 
de 1960 esse interesse se alterou (ABUJAMRA, 2013 p. 73). 
 
Essa possibilidade de presentificar o corpo-memória do ator-performer permite 
novas propostas de percepção e de experiência para o ator-performer e para o público 
para este tipo de experiência cênica, como afirma a mesma pesquisadora: 
 
 
 
O que se pode observar, nos exemplos mencionados, é que a presença de 
“pessoas reais” parece surgir como um tipo de garantia para a 
realidade/veracidade da história apresentada, seja por meio da presença 
física de não-atores, seja através de fotos, documentos, gravações em áudio 
ou imagens. Dessa forma, diferentes gerações, diferentes propostas, 
diferentes estéticas e diferentes técnicas de interpretação trabalham, a partir 
de um material pessoal, para tentar espelhar as vidas e o mundo. Os 
criadores se inventarem a cada espetáculo, em cada espetáculo 
(ABUJAMRA, 2013 p. 75) 
 
Nessa ideia de um corpo para a linguagem performativa, um corpo que se 
atinge e se faz presente, que experimenta dentro de seu experimento, é visto pela 
pesquisadora Eleonora Fabião como um elaboração complexa de partículas, 
velocidades, uma construção de elementos que a partir de ações e movimentos se 
combinam e geram um todo. “O corpo não está sendo compreendido em termos de 
forma, mas de forças interativas, como uma complexa relação entre diversas 
velocidades, como uma elaborada interação entre partículas infinitas” (FABIÃO, 2008 
p. 238). A ideia que temos de corpo apenas relacionada ao corpo-matéria é apenas 
um modo de definição de uma vasta compreensão dos significados e sentidos que a 
palavra pode ser atribuída, inclusive, utilizo Corpo-Poc como uma construção dentro 
dessas diferentes formas de sentidos. 
 
 
 
 
 
O processo de concepção deste projeto me revelou vários caminhos diferentesdurante as leituras e as experimentações. Inicialmente eu tendia a criar uma obra 
carregada de linguagens artísticas tendo como eixo principal o cinema, mas acabei 
escolhendo as artes cênicas e a performance. Li e assisti o espetáculo Br Trans, de 
Silvero Pereira, e fiquei muito tocado com a ideia do ator executar os elementos de 
cena, incluindo os aparatos de luz e som. Decidi que meu projeto seria pensado para 
ser executado apenas por mim, na medida em que eu propunha a realizar um projeto 
extremamente pessoal e experimental. Por fim, eu tive a ajuda de algumas pessoas 
para montar e executar alguns efeitos e músicas durante o espetáculo. Decidi que as 
pessoas entrassem primeiro no espaço cênico enquanto me descarregava de todas 
as energias, emoções e contatos que me contaminaram momentos antes da cena. 
Com o público devidamente posto em seus lugares, ando em direção a sala 
arrastando a mala, entro, fecho a porta e tem início o experimento cênico. 
 O meu corpo foi moldado durante as minhas contaminações com outros corpos. 
Nesse tempo pude me reconhecer e trazer comigo bagagens culturais, experimentais, 
emocionais que me tornaram o que sou hoje. O espetáculo tem como eixos principais 
a ideia de bagagem como algo que levamos para construir nossos corpos-mente, 
corpos-sociais; e as noções de um corpo dominado pelos gêneros e a quebra do 
padrão normativo; bem como a presença das personas (Angelo, Vitor e Luna) como 
uma necessidade violenta de não querer se domar; os trânsitos. 
 Para a escrita, inicialmente uso o suporte do diário para registrar os 
acontecimentos do meu dia a dia, as ideias que pudessem ser aproveitadas no 
espetáculo, as lembranças que não estavam escritas, mas que me vinham à cabeça. 
O diário foi uma ferramenta importante no desenvolvimento do texto dramatúrgico, 
porque me utilizo da retomada das memórias para produzir as cenas, ou melhor, eu 
me nessas memórias para criar as ações, as cenas. Nas discussões com o meu 
orientador, surgiu a ideia de uma valorização do número três na construção da obra. 
Afinal são três personas e este número está presente em vários momentos da minha 
vida, de modo que seria interessante usá-lo como um eixo para a criação do texto 
 
 
cênico. Descobri que este número está associado a transformações, a criatividade e 
ligado a várias religiões como o cristianismo, como por exemplo da definição da 
Santíssima Trindade (Pai, Filho e Espírito Santo). As três personas aparecem na obra 
de maneiras diferentes. Angelo está presente o tempo todo, de forma direta e indireta, 
ele é o corpo; Victor é revolucionário/violento e a sua entrada acontece para fazer uma 
oposição ou contestação as falas de Angelo; Luna ainda não está preparada para sua 
forma personificada, mas está presente no corpo de Angelo e Victor, contaminando 
os dois. De todo modo, Luna aparece de forma sutil, montando-se ao som da música 
Super Homem – A canção, composição de Gilberto Gil, na voz de Caetano Veloso, 
para retratar o lado feminino no homem. 
Os temas para o espetáculo vieram primeiro, anotei cada um deles no diário e 
organizei a estrutura dramatúrgica num esquema de cenas que fosse encabeçada 
pelas minhas personas seguindo a sequência: Angelo-Victor-Luna. Já com o nome 
das cenas e o seu respectivo “protagonista”, eu escrevo o texto a partir das 
experimentações que faço através de vídeos com improvisação de falas e gestos, 
tomando como eixo de improvisação a persona envolvida e o próprio nome da cena. 
Os vídeos também me ajudam a visualizar o corpo, as ações e o que pode ser 
ajustado, já que eu estou me autodirigindo. 
Nesse sentido, o texto do espetáculo é autoral e autobiográfico com algumas 
inserções de falas e cartas de pessoas que sofreram algum tipo de abuso por serem 
homossexuais. A forma geral que procurei para encenar o texto foi a de uma conversa 
com a plateia, a quarta parede do teatro tradicional não existe neste projeto. 
Inicialmente procurei ir escrevendo o texto baseado em minhas leituras e nos meus 
escritos do diário, mas, depois, optei por pegar a câmera do celular para desabafar. 
Esta tentativa adiantou o processo de criação do texto gerando uma série de 
desabafos pessoais. Procurei colocar as personas principais em confronto, Angelo e 
Victor, sendo clara a troca de personalidade nos discursos e no comportamento. 
 
 
A performance é uma linguagem que me influencia muito como pessoa e como 
um curioso que sou. Opto por pagar uma disciplina sobre performance e a partir das 
experimentações e reperformances, pude me reencontrar. Na disciplina desenvolvi 
 
 
um programa de performance que, inclusive, foi aproveitado como parte deste projeto. 
Inicialmente a proposta era que eu me banhasse em uma banheira com um líquido 
avermelhado enquanto uma voz gravada leria casos de mortes de pessoas LGBTQ+. 
Na outra, projeções com nomes e fotos de jovens que sofreram agressões 
homofóbicas são exibidas, enquanto escrevo o nome dessas pessoas no meu corpo, 
em seguida sento e deixo uma vela acesa pingar sob minha coxa, num ato simbólico 
de resistência à dor e ao sofrimento que passamos a cada dia. A segunda foi a 
escolhida para o projeto, mas com algumas diferenças, pois abri mão das projeções 
e ficou apenas o áudio narrando os eventos de agressões, estupros e mortes a 
LGBT’s, e a outra mudança no programa é que não sento no chão, mas caminho pelo 
espaço, encarando o público e deixando a parafina derretida escorrer pelo meu corpo. 
 No outro ato performativo presente no espetáculo, as pessoas inicialmente vão 
receber um papel em branco e, quando solicitado, nele depositar, física ou 
energeticamente, bagagens que pesam na sua “mala” pessoal. Isso vai acontecer no 
momento que Luna já apareceu, organizou as coisas do corpo e estamos preparados 
para partir, deixando as bagagens que pesam na nossa vida para trás. O ato é 
estabelecido entre o ator-performer e o público. Inicialmente eu coloco uma vasilha 
com álcool e fogo no chão e solicito que as pessoas depositem seus papéis nele, 
jogando todo o excesso de “bagagem”. O ato termina quando o fogo se apaga. 
 
 
Questões de iluminação e cenografia já vieram com uma necessidade de que 
fossem fáceis de transportar, tivessem um caráter intimista e que eu, o próprio ator-
performer, pudesse executar tudo durante a cena. O espaço é montado em formato 
de triângulo, sendo o centro o ponto principal da execução das ações e as bordas o 
lugar de experiência do público. Uma mala, o fogo, o uso de luz comum, de luz de 
LED e de luz de velas são alguns elementos importantes utilizados durante a cena. A 
mala envolve toda uma referência a viagens e as coisas mais importantes que 
levamos dentro delas, portanto, ela está em cena como um reforço a esses trânsitos, 
viagens, bagagens ou cargas que levamos, mas, também, como um suporte para 
jogar criativamente, dando outras funções além do habitual, a exemplo do uso como 
assento ou cadeira. As luzes são de composição simples para criar uma atmosfera e 
 
 
tornar o ambiente mais íntimo. Nos três pontos do espaço há luzes de velas e, no 
centro do triângulo, uma luz amarela. Nas bordas do triângulo há uma composição de 
luz de LED, como pode ser visto na imagem dos detalhes do palco a seguir: 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Durante alguns momentos o espetáculo é iluminado pela própria plateia com 
as lanternas dadas pelo ator-performer. 
 
 Para o figurino, visto cores neutras na minha roupa de cena ou figurino - 
podendo ser visto nas imagens dispostas a seguir - pois a minha própria presença e 
a minha bagagem compõem os principais elementos de visualidade da cena, por isso, 
opto pelo uso de cores como o branco, para sugerir uma limpeza visual da cena. 
Figura 1 - Estrutura de Luz e Palco 
 
 
 
Figura 2 - Figurino 01 Figura 3 - Figurino 02
 
 
 
Figura 4 - Figurino 03
 
 
O figurino,

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