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544ISBN 978-85-61702-44-1 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos QUEM TEM MEDO DO GÊNERO? PÂNICO MORAL, DESEJOS DISSIDENTES E PEDAGOGIA QUEER Gelberton Vieira Rodrigues Mestrando em Educação Sexual - UNESP/Araraquara . gelbertonrodrigues@gmail.com Bruno Pereira Mestrando em Psicologia - UNESP/Assis . brunpy@hotmail.com GT 05 - Gêneros e sexualidades nas escolas: políticas, práticas e poderes em disputa Resumo Diante das mudanças em curso no Brasil, no âmbito das relações de gênero e sexualidade, os conservadores têm buscado barrar tais transformações de forma desonesta e virulenta . Uma de suas estratégias, nos últimos anos, é acusar aque- les/as que desejam discutir questões de gênero no espaço escolar, com o intuito de eliminar as desigualdades sociais, de promoverem a “Ideologia de Gênero”, como se desejassem transformar as escolas em “fábricas de homossexuais” . Assim, por meio da pedagogia queer, se é dito que queremos criar “fábricas de homossexuais”, mesmo este não sendo o objetivo quando se propõe a discussão de gênero, perguntamo-nos, qual o problema se tivéssemos mais “homossexu- ais” em nossa sociedade? Como enfrentar os discursos normalizadores quando o diálogo não parece possível? Palavras-chave: Gênero; Sexualidade; Política; Pedagogia Queer; Ideologia de Gênero . ISBN 978-85-61702-44-1 545 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos Introdução Em 2015, o combate ao que passaram a chamar de “ideologia de gênero” tomou novas proporções1 . Sob a pressão de grupos religiosos, cidades por todo o Brasil tiveram seus Planos Municipais de Educação modificados em rela- ção aos temas gênero e diversidade sexual, assim como também foi feito em alguns Planos Estaduais e no plano Nacional de Educação . Os responsáveis por esta pressão justificaram esta medida ao afirmar que os representantes do que chamam de “ideologia de gênero” na verdade querem “destruir” a “família tra- dicional” através de uma “imposição” de ideias que deturpariam as noções - e funções - de “feminino”, “masculino” e de “sexualidade” . Uma das estratégias comumente utilizadas na resistência aos discursos dos conservadores é toma- -los como fanáticos religiosos, como se fossem desprovidos de razão, quase como fossem uma versão contemporânea da loucura numa roupagem de retro- cessos . Contudo, nosso rechaço às suas demandas não elimina o quanto estes são organizados e articulados e tem conseguido levar adiante sua agenda polí- tica, inclusive, com muitas conquistas2 . Numa rápida pesquisa no youtube, facilmente é possível encontrar vídeos intitulados como “URGENTE: Lei Para Depravar as Crianças e Destruir a Família Prestes a Ser Aprovada”3 . Que lei é essa que gera pavor e necessita de urgência e caso aprovada as crianças estarão desprotegidas da depravação e as famílias de sua ruína? No vídeo em questão, um padre afirma que “Não temos nada contra os homossexuais, só não queremos transformar nossas escolas em fábricas de homossexuais” . Mas, por que as escolas tornar-se-iam fábricas de homossexuais caso tal lei fosse aprovada? Qual o problema, tomado como evidente por estes discursos, com a suposta possibilidade de uma maior expressão de identidades 1 Já em 2011, a editora católica Katechesis publica no Brasil o livro “Ideologia de Gêneros: o neototali- tarismo e a morte da família”, tradução do livro de nome homônimo escrito pelo advogado argentino Jorge Scala, ou seja, não se trata de uma discussão recente . 2 Basta lembrarmos que em maio de 2011, a presidenta Dilma Rousseff vetou um conjunto de ma- teriais que fazia parte do programa “Escola Sem Homofobia” . Na época, a presidente, cedendo às pressões da bancada evangélica, afirmou que seu governo não faria “propaganda de orientação sexual” . 3 Disponível em: https://www .youtube .com/watch?v=kkYrvt_jt_g . Acesso em 09/06/2016 . 546ISBN 978-85-61702-44-1 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos que destoam das hétero-normas de sociabilidade? Esta pressuposição não evi- dencia as pretenções eugenistas destes discursos? De forma geral, percebe-se que os conservadores compreendem que “ideologia de gênero” é uma crença na qual a masculinidade e feminilidade são consideradas construções sociais e culturais e que qualquer pessoa possa “escolher” qual gênero irá seguir . Por que o gênero é tido como perigoso nestes discursos? Porque se a ideia de que o gênero é uma construção social e cultu- ral, as categorias de Homem e Mulher não seriam “criações de Deus” . Se estas categorias, enquanto algo natural, são ameaçadas, a heterossexualidade estaria sob perigo, e assim, o casamento que dá origem a família na perspectiva hete- ronormativa e cristã . Gênero, nesta interpretação deturpada, “destruiria Deus, o casamento, a família, a nação” . Quais os não-ditos deste pânico moral?4 Por que o conceito de gênero tem sido utilizado como um catalisador dos pânicos morais que assombram os conservadores? Estamos diante de uma agenda ultraconservadora, de modo que, pode- ríamos pensar quais diálogos são possíveis diante do fascismo . Não buscamos demonstrar como os argumentos dos conservadores são errôneos, no sentido de responder estas questões como se estivéssemos diante de um debate inte- ressado e honesto . Além da visível e problemática vulgarização das leituras que realizam dos estudos de gênero, se é que estas ocorreram, o que encaramos é uma tentativa violenta de imposição de um regime de saber que opera de forma autoritária por mais de dois mil anos na história do Ocidente, que se atualiza constantemente em novas formas de colonização de nossos corpos, e que nos dias de hoje, assustados com as mudanças sociais, adaptaram-se a linguagem inventada no século XIX e buscam por meio de noções como as de família burguesa pautada na heterossexualidade reprodutiva, definir quais grupos de pessoas serão consideradas respeitáveis socialmente e merecedoras da catego- ria de humanos dignos de serem protegidos pelo Estado, relegando a posições abjetas, de rechaço social, estes outros “indesejáveis” à nação . Que respostas uma pedagogia queer pode oferecer diante deste contexto, no qual, as nego- ciações parecem impossíveis? Ofereceremos uma resposta envergonhada ou 4 Os pânicos morais dizem respeito as resistências e aos medos sociais relacionados às mudanças, principalmente quando estas são vistas com potencial de ameaçar a ordem social vigente (MISKOL- CI, 2007) . ISBN 978-85-61702-44-1 547 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos faremos da vergonha, que insistem em manter como afeto definidor de nossas experiências, uma possibilidade política de transformação? Gênero: breve genealogia de uma palavra que se tornou “perigosa” Mesmo que tenha sido criado pelos fundamentalistas religiosos uma divi- são que implique um nós (cristãos)/eles (defensores da ideologia de gênero), como se esse “eles” fosse uma unidade coesa que compartilhasse das mesmas visões acerca do gênero, este é um conceito em disputa que historicamente obteve diversos usos em relação as suas significações . Tendo surgido em con- textos médicos no início da segunda metade do século XX, o conceito gênero, relacionado à análise das diferenças entre homens e mulheres, passa na década de 805 a ser usado amplamente por teóricas feministas com o objetivo principal de explicitar o caráter fundamentalmente social das diferenças entre homense mulheres . Neste momento, Joan Scott (1995) o apresenta como a forma pri- meira de significar as relações de poder, como “um elemento constitutivo das relações sociais fundadas sobre as diferenças percebidas entre os sexos” (p .21) . Com a emergência de discussões pós-estruturalistas, esta compreensão se complexifica . Para Judith Butler (2003), é com fundamento na diferença sexual que discursos tentam nos fazer acreditar que deve haver uma concordância entre gênero, sexualidade e corpo . Em sua ótica, o sexo é “uma das normas pelas quais ‘alguém’ simplesmente se torna viável, é aquilo que qualifica um corpo para a vida no interior do domínio da inteligibilidade cultural” (p .155) . Estamos, portanto, desde sempre generificados com e para os outros . Em sua teorização, Butler (2003) nos apresenta a matriz heteronormativa6 de ordem compulsória, que pressupõe uma relação direta e causal entre sexo 5 Segundo Haraway (2004, p .221), a explosão do discurso das diferenças entre sexo/gênero na litera- tura pode ser visualizada, por exemplo, “na ocorrência da palavra gênero como palavra-chave nos resumos dos artigos registrados nos Sociological Abstracts [de nenhum registro entre 1966 e 1970, a 724 registros entre 1981 e 1985] e nos Psychological Abstracts [de 50 entradas como palavra chave de resumos entre 1966 e 1970 a 1326 entradas de 1981 a 1985]” . 6 Heterornormatividade diz respeito a um conjunto de prescrições que regulam e controlam os corpos de acordo com a matriz heteronormativa apresentada acima . Concordamos com Deborah Britzman (1996) quando esta afirma que precisamos ir além do termo humanista “homofobia” . Este termo, de acordo com ela, além de nos remeter a um “medo individual” dos homossexuais, não contém 548ISBN 978-85-61702-44-1 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos biológico, gênero, desejo e prática sexual . Esta matriz desvela expectativas de uma cultura que, mesmo sendo compulsória e socialmente produzidas, são tidas como “fundamentais”, “espontâneas” e “naturais” . Sendo assim, gênero não é exatamente o que alguém “é” nem é precisamente o que alguém “tem”, outrossim um aparato pelo qual a produção e a normalização do masculino e do feminino se manifestam junto com as formas intersticiais, hormonais, cromossô- micas, físicas e performativas que o gênero assume . Supor que gênero sempre e exclusivamente significa as matrizes “masculino” e “feminino” é perder de vista o ponto crítico de que essa produção coerente e binária é contingente e que as permutações de gênero que não se encaixam nesse binarismo são tanto parte do gênero quanto constitutivos de seus “limites” (BUTLER, 2014) . O conceito de gênero, então, pode ser utilizado na manutenção e produ- ção das masculinidades e feminilidades, mas também em sua desconstrução . Um dos aspectos que diferem nossa produção de saberes sobre o gênero das que aqui chamamos de conservadoras, é que estas querem abordar este aspecto humano sem reconhecer que o fazem, encobrindo-se com um véu de pressuposta neutralidade que toma sua leitura do gênero como transcendental e a-histórica . Em nossa leitura, na contramão desta concepção normativa, “gênero é o mecanismo pelo qual as noções de masculino e feminino são produzidas e naturalizadas, mas gênero pode muito bem ser o aparato através do qual esses termos podem ser desconstruídos e desnaturalizados” (BUTLER, 2014, p .253) . O que pode uma pedagogia queer? A frase de Simone de Beauvoir de que não se nasce uma mulher, mas tor- na-se uma, é uma das noções mais citadas pelo feminismo . Segundo Preciado (2009), poderíamos dizer que também que não se nasce uma criança . [O] sistema educativo é o dispositivo específico que produz a criança, por meio de uma operação política singular: a des-sexu- alização do corpo infantil e a desqualificação de seus afetos . A a crítica política de como a heterossexualdade é produzida socialmente como a “norma”, como a sexualidade “normal” . A autora defende que, enquanto o termo “heteronormatividade” aponta para a íntima relação entre a produção da norma e do desvio constitutivo desta no campo da sexualidade, o termo “homofobia” foca-se em “atitudes individuais” de preconceito, esvaziando assim seu cunho político . ISBN 978-85-61702-44-1 549 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos infância não é um estádio pré-político senão, pelo contrário, um momento em que os aparatos biopolíticos funcionam de maneira mais despótica e silênciosa sobre o corpo (PRECIADO, 2009, p .165) . Assim, a criança é o meio pelo qual se garantirá a normalização do adulto e que os policiais do gênero vigiam “o berço dos seres que estão por nas- cer, para transformá-los em crianças heterossexuais” (PRECIADO, 2013, p .98) . A ideia é que se você não tornar-se heterossexual: a ameaça, a intimidação, o castigo e talvez até morte lhe espera. Frente as afirmações fundamentalis- tas que atacam à democracia e explicitamente consideram sujeitos desviantes das expectativas heteronormativas como inferiores e merecedores de cura e/ ou punição, nos perguntamos: se o desejo heterossexual é assim “tão natural”, como pressupõem estes grupos, por que ele é tão compulsoriamente imposto e condicionado por inúmeras instâncias sociais como as famílias e as religiões? Qual a necessidade do uso da violência física e/ou simbólica com aqueles/as que destoam das expectativas normativas de gênero e da heterossexualidade se estas supostamente desenvolvem-se “naturalmente” no corpo? Qual será o terror que assombra os conservadores ao afirmarem que a educação sexual e o debate sobre o gênero nas escolas fará com que todos “tornem-se gays e lésbi- cas”? Seria o desejo heterossexual assim tão frágil? Segundo Britzman, [P]ara um número significativo de heterossexuais que imaginam sua identidade sexual como “normal” e “natural”, existe o medo de que a mera menção da homossexualidade vá encorajar práticas homossexuais e vá fazer com que os/as jovens se juntem às comu- nidades gays e lésbicas . [ . . .] Parte desse mito é realmente correta: a identidade sexual é social e depende de comunidades e locais onde haja práticas, representações e discursos comuns, partilha- dos . [ . . .] Mas esse mito sustenta o pressuposto associado de que, sem o conhecimento dessas comunidades, fica garantido que o/a estudante decidirá que é melhor ser heterossexual do que viver o estereótipo solitário do homossexual isolado (BRITZMAN, 1996, p .79-80) . Nesse caso, tanto o conhecimento quanto as pessoas são considerados perigosos, predatórios e contagiosos . Esse medo do contágio só demonstra como as homossexualidades são indesejáveis, patologizadas e que devem ser renegadas a qualquer custo . Mas quem defenderá os direitos das crianças 550ISBN 978-85-61702-44-1 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos queer? Uma pedagogia queer, mais do que uma proposição clara e estática de ação educativa, nos oferece uma aposta na potência de se problematizar e pluralizar as representações e os discursos da identidade e do conhecimento, possibilitando que haja menos discursos normalizadores dos corpos, dos gêne- ros, das relações sociais e do desejo (BRITZMAN, 1996) . Considerações finais Ainda que a discussão realizada neste texto seja de fato um debate polí- tico em curso de acirradas disputas político-idelógicas, concordamos com o que escreveu o deputado Jean Wyllys (2016), ao abordar a “farsa da ideologia de gênero”, que “há situações em que os esforços para invisibilizar ou deturpar um assunto acabampor afirmá-lo e ampliar sua circulação” . Afinal, os emara- nhados do poder e da resistência se tecem e se potencializam sob o mesmo campo social . Deste modo, terminamos com uma citação de Preciado: Eles defendem o poder de educar os filhos dentro da norma sexual e de gênero, como se fossem supostamente heterossexuais . Eles desfilam para conservar o direito de discriminar, castigar e corrigir qualquer forma de dissidência ou desvio, mas também para lem- brar aos pais dos filhos não-heterossexuais que o seu dever é ter vergonha deles, rejeitá-los e corrigi-los . Nós defendemos o direito das crianças a não serem educadas exclusivamente como força de trabalho e de reprodução . Defendemos o direito das crianças e adolescentes a não serem considerados futuros produtores de esperma e futuros úteros . Defendemos o direito das crianças e dos adolescentes a serem subjetividades políticas que não se reduzem à identidade de gênero, sexo ou raça (PRECIADO, 2013, p .98) . ISBN 978-85-61702-44-1 551 VIII Congresso Internacional de Estudos sobre a Diversidade Sexual e de gênero ABEH e a construção de um campo de Pesquisa e Conhecimento: desafios e potencialidades de nos re-inventarmos Referências BRITZMAN, Deborah . O que é essa coisa chamada amor?: identidade homossexual, educação e currículo . Educação & Realidade, Porto Alegre, Faculdade de Educação/ UFRGS, v . 21, n . 1, p .71-96, jan ./jun . 1996 . HARAWAY, Donna . “Gênero” para um dicionário marxista: a política sexual de uma palavra . Cad. Pagu . 2004, n .22, p .201-246 . BUTLER, Judith . Problemas de gênero: Feminismo e subversão de identidade (1990) . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003 . _________ . Regulações de gênero . Cad. Pagu . 2014, n .42, p . 249-274 . MISKOLCI, Richard . Pânicos morais e controle social: reflexões sobre o casamento gay . Cad. Pagu, Campinas , n . 28, p . 101-128, jun . 2007 . PRECIADO, Beatriz. “Terror anal”. In: HOCQUENGHEM, Guy. El deseo homosexual . España: Melusina, 2009 . _________ . Quem defende a criança queer? Jangada: crítica, literatura, artes, [S .l .], n . 1, p . 96-99, ago . 2013 . SCOTT, Joan . Gênero: uma categoria útil para a análise histórica (1989) . Publicação da ONG S .O .S . Recife, 1995 . WYLLYS, Jean . A farsa da ideologia de gênero . In: Folha de S. Paulo, 15/03/16 .
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