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ELEMENTOS DE UMA TEORIA DA PARAFISCALIDADE JEAN-GUY MERIGOT SUMÁRIO: Parafiscalidade e Finanças do Estado. A parafiscali- dade e as regras orçamentárias clássicas. Contrôle legislati- vo. Parafiscalidade e tradições fiscais. A concorrência entre a parafiscalidade e a economia da Nação. A parafiscalidade é meio de ação possível? A parafiscalidade é meio de ação efi- caz? Conclusão. CAPÍTULO SEGUNDO - Parafiscalidade e Finanças do Estado * Fruto e técnica do intervencionismo econômico e social, a para- fiscalidade se integra com dificuldade no quadro definido pelos prin- cípios fundamentais da Ciência Financeira concebidos e elaborados para um Estado Liberal. Arrecadação que se vem juntar à arrecadação fiscal propriamente dita, cogita-se, agora, da pressão específica que a parafiscalidade pode exercer sôbre a única matéria tributável: a Ren- <ia Nacional. Tais idéias destacam dois problemas que consideraremos aqui: 1.0 - parafiscalidade e princípios tradicionais das Finanças do Estado; 2.° - concorrência entre parafiscalidade e fiscalidade propria- mente dita. SEÇÃO I - Parafiscalidade e Princípios Tradicionais das Finanças do Estado A parafiscalidade suscita, em primeiro lugar, dificuldades quan- to à sua integração na teoria financeira tradicional ainda invocada, com demasiada freqüência, apesar da evolução dos fatos. No plano da técnica fiscal, com efeito ela tira seus caracteres es- senciais de um procedimento de descentralização. O Estado, como já * NOTA DA RED.: Continuação do trabalho publicado nesta Revista, vol. 33. ps. 54-66. Tradução de Guilherme A. dos Anjos. do original divulgado pela Revue de Science et de Legislation Financieres, juil-sept. 1949. - 50- vimos, delega a grupos, ou a órgãos secundários ou anexos, o direito de perceber e utilizar receitas. Parcial quando apenas visa o direito de disposição das receitas parafiscais, essa delegação é integral quando se refere, além disso, ao direito de percepção dêsses recursos. Em diversos graus, conforme a modalidade de que se reveste, tal delegação infringe as regras orçamentárias clássicas relativas à elabo- ração, à execução e ao contrôle do orçamento, assim como as tradições fiscais. A - A Parafiscalidade e as Regras Orçamentárias Clássicas A parafiscalidade transgride, primeiro que tudo, os princípios de elaboração do orçamento: unidade, universalidade, anualidade. O orçamento deve ser unitário; as receitas parafiscais aparecem numa multiplicidade de documentos: contas especiais do Tesouro ou orçamentos distintos daquele do Estado, de repartições, estabelecimen- tos públicos ou entidades semi-públicas ou privadas, incumbidas de ge- rir um serviço público. O orçamento é universal no duplo sentido de que êle agrupa tôdas as receitas e tôdas as despesas, e de que o conjunto das receitas cobre o conjunto das despesas. Ora, os recursos parafiscais são receitas de aplicação epecíficas, extra-orçamentárias. Não são consignados senão nos orçamentos independentes daquele do Estado. Aplicam-se à co- bertura de uma despesa determinada. Por êsses dois caracteres, a parafiscalidade atenta contra o ter- ceiro princípio, segundo o qual o orçamento deve ser ânuo, sendo as receitas fiscais autorizadas para cada exercício. Grande número de rendas parafiscais continua a ser percebido sem que sejam objeto de uma autorização anual. São muitas vêzes, fixadas para períodos não definidos e sujeitas a revisão por motivos não determinados previa- mente. Ignorando as regras de elaboração do orçamento, a parafiscalida- de derroga também os princípios da execução do orçamento. A velha distinção entre administradores e responsáveis por dinheiros públicos que domina a nossa organização financeira, perde o seu sentido e o seu alcance (se bem que ela seja, às vêzes, aplicada internamente nas organizações interessadas). A utilização dos recursos fica, então, in- teiramente entregue aos únicos beneficiários, que se aventuram a fa- zer prevalecer os interêssses particulares sôbre os de uma satisfatória administração das Finanças. Princípios orçamentários de elaboração e de execução são consi- derados, com justeza, como garantias da segurança da gestão dos di- nheiros públicos, e salvaguarda dos direitos das Assembléias no to- cante à atividade do Govêrno. Sua infringência pela parafiscalidade significa, entretanto, a abdicação das Câmaras na matéria? V. Revue de Science et de Législation financieres, 1949, n.o 2 (avril, mai, juin). - 51- o papel exato do Parlamento nesse domínio deve ser definido. Na origem de todo encargo parafiscal há uma lei que determina a sua criação. Se êsse novo encargo se relacionar a um impôsto já existente, sob a forma de cêntimos adicionais, por exemplo, submeter- se-á ao mesmo regime da contribuição principal, e a sua recondução de um ano para o outro dependerá da autorização das Câmaras. O mesmo não acontece quando a receita deixa de revestir essa modali- dade. Pode, então, continuar a ser arrecadada por fôrça da lei que a criou, sem que haja mister de nova autorização dada pelo Parlamento. Por outro lado, as Assembléias podem ter estabelecido apenas o princípio da criação do encargo, negligenciando os detalhes de sua apli- cação. Duas possibilidade então se apresentam, tendo ambas dado lu- gar a realizações, o cuidado de precisar as modalidades de aplicação sendo confiado: 1.0 ora ao Executivo - e isto só se verifica quando nos acha- mos em face de um processo correntemente admitido em matéria de impostos propriamente ditos; 2.° ora às Entidades beneficiárias do encargo, as quais, por si próprias, fixam os elementos da imposição. Nesse caso, as prerroga- tivas do Parlamento - até mesmo as do Govêrno - são considerà- velmente reduzidas. Essa conseqüência será tanto mais grave quanto a determinação das despesas às quais se achem ligados tais recursos escapar ao Par- lamento. Quando isto acontece, êsse último não pode proceder à esti- mativa das receitas em função das despesas anteriormente previstas. A intervenção das Assembléias - inexistente durante o Govêrno de Vichy - mostrou-se, logo após a libertação, tão inócua relativa- mente à parafiscalidade quanto o havia sido antes da guerra. Entre- mentes, haviam proliferado Entidades que assim possuíam o poder de perceber e dispor dos dinheiros públicos. A fim de atenuar os lamen- táveis abusos a que haviam dado lugar, ganhou terreno a idéia da imperiosa necessidade de um cont1'ôle. Até a uma data muito recente, o contrôle legislativo não podia em princípio exercer-se, porque os recursos em questão eram conta- bilizados fora do orçamento. As contas especiais do Tesouro, os or- çamentos das Entidades beneficiárias não eram submetidos ao voto do Parlamento. A parafiscalidade escapava ao contrôle parlamentar. Hoje se manifesta uma reação muito nítida visando a submetê-la à fiscalização do legislador. Para tal fim procura-se transformar os orçamentos autônomos das Entidades beneficiárias em orçamentos anexos, ligados por ordem ao orçamento geral, submetendo-os, ipso facto, ao voto do Parlamento. Êstes últimos constituem uma simples infração à regra da unidade, aquêles derrogam gravemente o princí- pio da universalidade. Assim é que o Govêrno, num projeto de 30 de oezembro de 1948, sôbre o qual se pronunciou a Assembléia Nacional em sua sessão de - 52- 11 de fevereiro de 1949, propôs criar um orçamento anexo das presta- ções familiais agrícolas, fixando-lhes o montante para 1949. 2 Da mesma forma, em conseqüência do último relatório do Tribu- nal de Contas, busca-se promover um certo contrôle legislativo sôbre as contas especiais do Tesouro. É o que se conseguiu com a lei n.o 49/310, de 8 de março de 1949 (J. O. de 9 de março) que se aplicará, por exemplo, às operações efetuadas mediante aplicação da lei de 15 de setembro de 1943, que dispôs sôbre a criação de uma taxa de fo- mento da produção têxtil. Tais recursos serão, doravante, atribuídos a uma conta de aplicaçãoespecial (prevista pela discriminação B da lei supracitada) cujas operações de receita e despesa serão "executadas, controladas e reguladas nas mesmas condições que as do Orçamento Geral com exceção de algumas disposições ... " . Assim, enquanto o Estado, renunciando a assumir diretamente certas atividades de ordem econômica e social, vai confiando essa ges- tão a Entidades a que delega o poder de arrecadar contribuições se- melhantes aos impostos e também de dispor das mesmas, o Parlamento procura, estendendo o seu contrôle, atenuar os efeitos da multiplió- dade orçamentária que dali resulta e limitar as conseqüências do des- membramento do orçamento. Embora essa fiscalização do Legislativo se insinue tímida e va- garosamente, não se pode falar de uma liberdade total das organiza- ções que percebem os recursos parafiscais. Os seus orçamentos são sub- metidos, durante a sua execuç'ão, a um contróle administrativo susce- tível de revestir diversas modalidades. Quando as Entidades beneficiárias são repartições e estabeleci- mentos públicos financeiramente autônomos, aplica-se-lhes, sem difi- culdade, em suas formas tradicionais, não só a fiscalização financeira exercida, em virtude dos decretos-leis de 30 de outubro de 1935 e de 20 de março de 1939, por um corpo de controladores financeiros - ditos de Estado, após o decreto de 23 de novembro de 1944, como tam- bém o contrôle das operações contábeis pela Inspetoria Geral das Fi- na nças. Assim ocorre com as Câmaras de Comércio ou a Caixa N a- cionaI de Seguridade Social. Até à Libertação, quando a natureza de estabelecimentos p:ibrcos das Entidades em quedão ainda não havia sido definida pelo legis- lador, a regulamentação precedente não se aplicava, e um contrôle e"pecial era instituído. Assim, a lei de 16 de agôsto de 1940 previra uma fiscalização dos ministérios interessados sôbre o emprêgo dos recursos aplicáveis às despesas administrativas dos Comités de Organização. Tal fisca- lização fôra confiada, por decreto de 29 de março de 1941, a contro- ladores financeiros nomeados pelo Ministro da Economia N aciona] e das Finanças e encarregados principalmente de efetuar verificações contábeis para julgar da regularidade das operações. 2 V. Mazero1!es. loc. cito - 53- Um princIpIo geral foi, todavia, estabelecido pelo citado decreto de 23 de novembro de 1944, que prevê a intervenção dos controladores de Estado não só em Repartições, estabelecimentos públicos e serviços autônomos do Estado, de caráter industrial, comercial ou agrícola, mas também em organizações que se beneficiem de vantagens financeiras do Estado ou em "Entidades de importação e de distribuição, comités e órgãos profissionais autorizados ora a perceber taxas e rendas des- tinadas a cobrir suas despesas de funcionamento, ora a efetuar pere- quaç5es de preços" . Êsse contrôle relativo a "tôdas as operações suscetíveis de ter uma repercussão direta ou indireta" pode ser estendido por decreto aos di- versos órgãos que exerçam por conta do Estado uma função econômi- ca. Não é exclusivo da tutela dos Ministérios técnicos de onde ema- nam tais órgãos ou do contrôle da Inspetoria das Finanças, aos quais estão sujeitos todos os responsáveis por dinheiros públicos em vir- tude da lei de 4 de abril de 1941. Pelo fato de suas receitas provirem de investimentos impostos a seus segurados sem nenhum acôrdo contratual e sem outra base ju- rídica a não ser a obrigação legal de participar de um serviço público, tais órgãos "responsáveis por dinheiros públicos" parecem dever estar sujeitos ao contrôle jurisdicional normal: o do Tribunal de Contas. De jurisdição de competência que êle fôra anteriormente, o Tribunal, pela lei de 4 de abril de 1941, se tornou juiz de direito comum de todos aquêles que sejam responsáveis por dinheiros públicos. Todavia, "vá- rias instituições destinadas ora a dirigir e a regulamentar a atividade econômica em cada profissão, ora a aplicar a legislação social" esca- param a seu contrôle a despeito de suas reclamações explícitas. Comités de Organização, Repartições profissionais mais tarde, C. A. R. C. O., Repartição Central de Distribuição (O. C. R. P. 1.) or- dens corporativas diversas, Corporação Rural, alegaram fazer exce- ção tendo em vista o seu estatuto mal definido (pois que não se lhes reconhecia expressamente a qualidade de repartições públicas), a fim de se subtraírem às verificações do Tribunal. Outrossim, êste órgão assinala, em cada um dos dois relatórios publicado após a Libertação, não somente os abusos a que deu lugar uma tal política, como também as insuficiências da vigilância administrativa e a necessidade de sub- meter ao seu contrôle êsses órgãos rebeldes, embora "verdadeiras fi- liais de Serviços Públicos". O Tribunal acaba de obter ganho de causa no tocante aos órgãos de Seguridade Social, os quais, exclusivamente sujeitos até agora ao contrôle administrativo, ora do Ministério do Trabalho, serão doravante submetidos ao contrôle a posteriori daquele Tribunal. Mas, se o contrôle da maioria das entidades em aprêço es- capa sempre a esta jurisdição, êle tem sido, pelo contrário atribuído à Comissão de Verificação, prevista pela lei de 6 de janeiro de 1948. Cer- tos órgãos, o Instituto Nacional Interprofissional dos Cereais, por exemplo, estão sujeitos ao duplo contrôle da Comissão de Verificação e do Tribunal de Contas. - 54- o fato de que tal contrôle jurisdicional se exerce sôbre as opera- ções financeiras e contábeis, relativas à utilização dos encargos para- fiscais, não pode fazer esquecer que êstes últimos dão lugar a nova in- tervenção das jurisdições para conhecerem das contestações que sur- gem a respeito dos mesmos. O contencioso das receitas parafiscais ligadas ou assemelhadas às contribuições diretas ou indiretas e percebidas pelas repartições fis- cais, é o contencioso correntemente aplicado em matéria de impostos de Estado. Os recursos parafiscais, por não revestirem essa forma, podem ficar sujeitos a um contencioso especial. Assim acontece no tocante à Seguridade Social, por fôrça da lei de 24 de outubro de 1946 e do regulamento de administração pública de 31 de dezembro de 1946. Sendo geralmente um ato administrativo o fator que estabelece as condições de aplicação dêsses encargos, isso permite um contrôle de legalidade confiado à jurisdição administrativa. O Conselho de Es- tado afirmou sua competência mesmo quando a entidade beneficiária não se tenha erigido em repartição pública (aresto Monpeurt) . B - Parafiscalidade e Tradições Fiscais A parafiscalidade não se contenta em infringir os princípios or- çamentários. Na medida em que ela resulta de uma delegação, trans- gride também as tradições fiscais, tanto no plano da mobilização da receita como no da justiça. Os princípios clássicos da mobilização dos recursos são solapados pela parafiscalidade assim que o Estado coloca esta última fora da intervenção das repartições fiscais. Duas modalidades são, com efeito, possíveis: 1.0) As receitas parafiscais percebidas à conta de diversos ór- gãos são estabelecidas pelos serviços de contribuições diretas ou indi- retas. Podem apresentar-se ora como taxas "anexas", arrecadadas sob forma de cêntimos ou de taxas adicionais às imposições correntes, ora como taxas "assemelhadas" a essas contribuições, tendo, porém, uma base própria, autônoma. A tal respeito, uma evolução curiosa pode ser notada, relativa aos encargos fiscais estabelecidos pela distribuição das contribuições di- retas à conta do Fundo Nacional de Solidariedade Agrícola. 3 N um primeiro período (Ocupação e Libertação), foram estabele- cidas concomitantemente taxas anexas e taxas assemelhadas (taxas sôbre os produtos da indústria de laticínios e taxas sôbre as produções hortícolas) . Não subsistem hoje senão taxas anexas que, até o advento do de- creto de 9 de dezembro de 1948, tinham a mesma base que os impostos de Estado, porém que, a partir daquele texto relativo à reforma fiscal3 MazeroIles. Le budget annexe des prestations Familiales agrieoles (Reu. de Se. et de Lég. fin., 1949. n.o 1 e seguintes). - 55- e supressão dos impostos cedulares, possuem uma base idêntica à dos cêntimos adicionais percebidos, conforme o antigo sistema, em proveito dos Departamentos e Comunas. 2.°) O Estado confiou a cobrança dessas receitas aos órgãos be- neficiários. A forma extrema seria habilitar êsses órgãos a perceber, não só as contribuições que lhes estão afetas, mas também os impostos do Estado. Reconhece-se aí o projeto, apresentado por Benini na Itá- lia fascista, tendo por fim completar o poder econômico das Corpora- ções com um poder fiscal. Na própria península, a delegação corpo- rativa do impôs to somente sofreu limitações. Simplesmente chama- das a colaborar com a administração por ocasião do estabelecimento da base dos impostos, as Corporações não foram habilitadas, de modo al- gum, a avaliar o montante dos impostos individuais ou a percebê-los. Em França, quando em matéria de parafiscalidade social e pro- fissional, a cobrança não é assegurada pelas repartições tradicionais, fala-se, às vêzes, em "desmembramento" do poder fiscal por analo- gia com o sistema precedente: Eis, aí, uma expressão equívoca, sendo conveniente precisar que, com exceção de alguns Comités de Organi- zação que por si próprios fixaram a escôlha das bases da contribuição social, 4 com ressalva de uma aprovação ulterior por parte da autori- dade administrativa. os organismos beneficiários fazem apenas a co- brança das imposições, cuja criação, base e tarifa são determinadas pelo Estado. Essa delegação dá lugar a duas modalidades diferentes, confor- me as entidades interessadas percebam diretamente as imposições ou conforme uma organização intermediária (distinta das Repartições do Estado) assegure a cobrança dos tributos, fazendo, em seguida, re- verter o seu produto àquelas entidades. tsses dois regimes coexistem, às vêzes, no tocante a organizações similares: enquanto a cobrança das contribuições era assegurada pela C. A. R. C. O. para a maioria dos Comités de Organização, seis dentre êles arrecadavam diretamente as quantias destinadas a assegurar o seu próprio financiamento. Além disso, o poder de sujeição fiscal nem sempre é total: a C. A. R. C. O., por exemplo, podia proceder à cobrança forçada mas devia utilizar os processos comerciais (o que não deixa de explicar os dissabores por que passou aquela organização) . Acentua-se, destarte, o caráter híbrido e complexo dessas contri- buições, que justifica o qualificativo de parafiscalidade. O princípio da justiça é mais bem respeitado por essa técnica de arrecadação? Não parece que isto aconteça. Fonte possível de injus- tiça, a parafiscalidade parece aumentar, pelo contrário, a injustiça dos impostos existentes. Embora não seja útil considerar aqui a justiça do encargo para- fiscal, debate que poria em jôgo o próprio fundamento dessa técnica, é preciso, pelo contrário, lembrar aqui os dois aspectos essenciais sob 4 Cf. J. G. Mérigot, Essai sur les Comités d'Organization Professionnelle. Librai- rie générale de Droit e de J urisprudence. Paris, 1943. - 56- os quais pode ser encarada a justiça de qualquer contribuição: justiça nessa e justiça por essa contribuição. A parafiscalidade ignora fàcilmente a igualdade perante o im- pôsto, tanto no plano individual quanto no plano coletivo. No nível individual, a igualdade dos sacrifícios é ignorada na maioria dos casos: a progressividade é a exceção; a proporcionalidade é a regra. Os elementos de personalização raramente são considerados. N o plano coletivo (setores profissionais ou categorias sociais), a parafiscalidade não deixa de ser injusta dentro dos limites seguintes: 1.0) as taxas percebidas pelos órgãos profissionais variam con- forme as profissões e diferem profundamente no tocante às profissões vizinhas; 2.°) a parafiscalidade acarreta uma situação desvantajosa para um grupo com relação a outro. Isto se produz evidentemente quando a lei, deslocando o fardo das imposições, coloca, mediante o jôgo das taxas parafiscais, uma parte do financiamento da Seguridade Social em agricultura sob a responsabilidade dos compradores de produtos agrícolas; 3.°) um grupo contribui e um outro se beneficia com as presta- ções assim feitas, graças às contribuições parafiscais (assim aconte- ce com os Seguros Sociais em França: patrões e operários contribuem, mas somente êstes últimos é que recebem auxílios oriundos dessas prestações) . A parafiscalidade não aparece, então, como uma técnica capaz de promover justiça por meio do impôsto? A prática da discriminação, sobretudo entre grupos sociais classificados pelas situações econômi- cas, não permite que se duvide aqui da resposta a ser dada. A para- fiscalidade social se esforça em realizar uma solidariedade compulsó- ria na escala nacional. A justiça fiscal que outrora se apreciava individualmente só pode ser apreciada agora sôbre o plano nacional. Em conseqüência disso, a parafiscalidade, consoante o ponto de vista sob o qual é observada, pode parecer aumentar a justiça pelas ou a injustiça nas contribuições do Estado existente a seu lado. A busca de recursos suficientes, suscetíveis de cobrir as despesas de no- vos organismos, leva a selecionar matérias que já foram objeto de im- pôsto. O encargo fiscal, que está longe de satisfazer no domínio da justiça, vê assim o seu caráter de iniquidade acentuar-se com o pêso suplementar do encargo parafiscal. Do crescimento da pressão e do aumento da injustiça, a amplificação da evasão fiscal só pode ser a re- sultante. Surge, também, daí o problema da concorrência entre a fiscali- dade e parafiscalidade, ou mais exatamente o problema da identidade da matéria tributável e da interferência dessas duas técnicas de impo- sição na pressão que elas exercem sôbre a única fonte possível de ar- recadação: a Renda Nacional. - 57- SEÇÃO 11 - A Concorrência entre a Parafiscalidade e a Fiscalidade propriamente dita As técnicas de cálculo da Renda Nacional se entrechocam quando se trata de fazer a inclusão total ou parcial dos produtos fiscais e parafiscais numa das grandezas características da Renda Nacional. Corrado Gini fala mesmo de circunstâncias que tendem a fazer com que o crescimento da Renda Nacional pareça maior do que o é na realidade. Dois pontos de vista condicionam o exame dessa questão conforme se considere a pressão quantitativa ou a pressão qualitativa. O ponto de vista da pressão quantitativa suscita a questão do li- mite da arrecadação operada sôbre o contribuinte, qualquer que seja a forma - fiscal ou parafiscal. Quanto à existência dêsse duplo limite divergem as opiniões. Para alguns autores, êsse limite está irremediàvelmente fixado numa porcentagem determinada da Renda Nacional: 25% segundo Colin Clark, por exemplo. Mas se dermos crédito aos teoristas da com- pensação fiscal, tal limite poderá ser recuado: todo indivíduo sujeito a um encargo fiscal se esforça, mediante um acréscimo de trabalho, a compensar a redução de rendimento conseqüente à arrecadação; e dêsse esfôrço de todos os contribuintes a tendência para o aumento da Renda Nacional seria a conseqüência inelutável. 5 Aplicando aqui es~a tese de Viti de Marco (contestada, aliás, por Pantaleoni, em seus pri- meiros trabalhos), seríamos levados a ver na parafiscalidade um fa- tor de crescimento real da Renda Nacional. Na realidade, a noção de limite só pode ser concebida em função de uma situação dada. 6 Se se pretende transformar a ordem existente - e nisto parece consistir o objetivo da parafiscalidade ao serviço de um intervencionismo econômico e social ativo - o limite pode ser ampliado. Mas qualquer que seja o seu lugar, êsse limite pode ser re- presentado, empregando-se uma geometria simples, por uma assíntota em relação ao total das duas arrecadações: fiscal e parafiscal. Para um dado volume de arrecadações, as duas técnicas entramem concor- rência, pois que uma não pode tomar a si aquilo que a outra deixou de arrecadar. A parafiscalidade compromete, portanto, a situação atual e o de- senvolvimento futuro da fiscalidade stricto sensu reduzindo a substân- cia fiscal disponível para o Estado e aumentando os encargos dos con- tribuintes. Os redatores do Inventário Schuman haviam compreen- dido bem êsse fenômeno quando observaram: " ... Uma arrecadação tão maciça diminui necessàriamente a capacidade fiscal do País, aca- .bando mesmo, em certos casos extremos, por absorvê-la inteiramente". 7 A importância da arrecadação efetuada em proveito do Fundo de So- 5 Cf. Krier. La charge des impôts sur l'economie. Paris. L. G. D. J .. 1944 e Dehove, Impôt, Economie et Poli tique : Pression fiscale et équilibre economique. Paris. P. U . F .• 1947. 6 Cf. J. Peyréga. Les limites de la fiscalité, in Openhare, 1947. n.O 4. p. 297. 7 Inventaire de la Situation Financiere. Paris. Imprimerie Nationa1e, 1946, p. 454. - 58- 1idariedade Agrícola tornou, com efeito, impossível uma enumeração exata das espécies de rendimentos por empreitada, por ocasião do es- tabelecimento da lista de itens da cédula agrícola para o ano de 1946. Mais recentemente, em face da situação que se originou com a superposição, sôbre os salários e vencimentos, da fiscalidade direta (impôsto cedular e impôsto geral) e da parafiscalidade (seguridade social), após comparação com os encargos mais leves que incidiam sô- bre certos contribuintes, militou-se - não exclusivamente sem dúvida, porém muito fortemente - em favor de uma transformação do im- pôsto sôbre os vencimentos e salários, que perdeu, a partir de setembro de 1948, pelo menos de fato senão de direito, o seu caráter de impôsto cedular e pessoal sôbre a renda. Nessas condições, qual das duas técnicas se nos afigura preferí- vel? O exame do segundo ponto de vista, o da pressão qualitativa pode indicar uma linha de solução. Do ponto de vista do Estado, parece que é mais fácil fazer supor- tar o ônus da arrecadação, difundindo-a, fracionando-a. Assim, o li- miar de excitação da evasão fiscal, legítima ou não, será mais elevado. Os promotores da parafiscalidade pensam que o contribuinte não fará, de modo algum, uma assimilação, em verdade exata, entre a fôlha de cobrança do recebedor fiscal e o recibo de pagamento da contribuição a uma entidade profissional ou de Seguridade Social. Ora, no plano individual, tal esfôrço parece ilusório. O contri- buinte considera o montante líquido de seus rendimentos, confrontan- do-o com o total dos descontos que suporta, qualquer que seja a justi- ficação ou a técnica. O elemento de sujeição que é comum tanto à téc- nica fiscal como à técnica parafiscal é algo de que êle não pode deixar de ressentir-se. Êle engloba todos os descontos a que está sujeito e os considera como uma coisa alheia capaz de refluir à sua origem. Os en- cargos parafiscais, portanto, tenderão a refluir e pesarão sôbre os pre- ços ou, então, serão, muitas vêzes, objeto de uma evasão fiscal como a de que a C. A. R. C. O. nos ofereceu um excelente exemplo. A gravidade do problema da concorrência entre a parafiscalidade e os impostos do Estado não escapou aos autores da recente reforma fiscal. O artigo 261 do decreto de 9 de dezembro de 1948 prevê, com efeito, que nenhum direito ou taxa pode ser arrecadado em benefício de organismos públicos ou privados e incluídos nos preços sem que a lei haja autorizado a sua instituição e regulamentado as suas moda- lidades de lançamento e cobrança. O texto estipula, além disso, que "as taxas existentes que não te- nham sido objeto de uma autorização legal explícita, serão nulas de pleno direito se, antes de 30 de julho de 1949, os textos que as insti- tuem não foram submetidos a uma homologação que será pronunciada por decreto referendado pelo Ministro das Finanças e Negócios Eco- nômicos e, se necessário, pelo Ministro interessado ... " Examinada à luz dos princípios da ciência tradicional das Finan- ças, a parafiscalidade parece, portanto, revelar-se sob aspectos bastan- te comprometedores. Quando se trata de suas repercussões na técnica - 59- orçamentária, contábil ou fiscal, ela trai uma certa vacilação, muitas vêzes mesmo uma incoerência. É pouco provável que a parafisca- lidade possa integrar-se na concepção jurídica e publicista da Ciência das Finanças. Na medida em que ela decorre do intervencionismo do Estado e em que assinala um rompimento com os quadros tradicionais adequa- dos a funções delimitadas e precisas do poder público, uma Nova 6tica se impõe para o seu exame. É a da economia financeira. Não mais se trata de estudar e de julgar a parafiscalidade do ponto de vista do ór- gão arrecadador, do responsável pelo dinheiro público ou do auditor do Tribunal de Contas; trata-se de considerar o seu papel num hori- zonte mais vasto do que o das contas do Estado, de repô-lo no meca- nismo da Economia Nacional, de examinar as suas interferências com a atividade das diversas entidades econômicas e avaliar-lhe a impor- tância no quadro de uma política econômica quantitativa. CAPíTULO TERCEIRO - Parafiscalidade e Economia da Nação A evolução da parafiscalidade poderia lembrar, em mais de um ponto, a da fiscalidade propriamente dita. No dia em que se compreendeu: 1.0) que o impôs to estava em es- treita ligação com o rendimento do sujeito econômico e as decisões que êle tomava relativamente a êste último e 2.°) que o Estado tendia a considerá-lo mais como instrumento de política econômica do que como meio de alimentar os cofres públicos, o reformismo fiscal, por inter- médio da distribuição dos rendimentos, adquiriu uma amplitude e uma importância que encontra o seu apogeu na Fiscal Policy dos anglo-sa- xões contemporâneos. A parafiscalidade, por sua vez, não teve, à primeira vista, senão um papel econômico ínfimo na medida em que ela se limitou a simples sobretaxas ou a suplementos relativamente mínimos aos impostos do Estado. Sua importância cresceu quando ela passou a ser o fruto da economia dirigida ou da economia corporativa, ao ficar limitada ao setor profissional organizado. Mas quando se observa como são mane- jados hoje em dia os capitais pelos órgãos da seguridade social pode-se medir a distância que separa a parafiscalidade de economia dirigida, ou de organização profissional, da parafiscalidade social. Hoje, com efeito, a parafiscalidade serve essencialmente para abarcar os rendimentos das diferentes classes sociais e garantir, em ligação com o impôsto, uma redistribuição em vista de uma ordem eco- nômica não decorrente de uma ordem social hierarquizada, como nos regimes corporativos, mas, antes, que se proponha a assegurar o bem-estar econômico da Nação. As cifras já apresentadas na primeira parte dêste estudo assina- lam a importância sempre crescente da parafiscalidade social com re- lação à parafiscalidade de economia dirigida e de organização profis- sional. Os volumes respectivos das arrecadações realizadas estão hoje na proporção de, pelo menos, 1 para 50. O simples exame de tais cifras - 60- nos autoriza, em nosso entender, a aplicar aqui o esfôrço principal de nossa análise sôbre a parafiscalidade social; em suma, os problemas e os efeitos são, muitas vêzes, comuns às outras modalidades de para- fiscalidade. Por que se considera a parafiscalidade como um meio de ação possível? Até que ponto a parafiscal idade se manifesta como sendo um meio de ação eficaz? Tais são os dois pontos que convém examinar aqui. SEÇÃO I - A Pamfiscalidade é Meio de Ação Possível? A utilização da parafiscalidade como meio de ação possível é uma questão que só apresenta um interêsse limitado quando se considera exclusivamente parafiscalidade de economia dirigida ou de organiza- ção profissional. Pelo contrário, ela se reveste de um interêsse maior quando se levam em conta os encargos sociais parafiscais no quadro de uma política econômica de redistribuição das rendasem conexão com uma política de emprêgo. A partir daí, é possível estudar-se o papel econômico da parafis- calidade à luz daquilo que o economista norte-americano Groves'" chama de duas filosofias da Seguridade Social: o método distributivo e o método funcional. A. O Método Distributivo: é aquêle que está em relação com o padrão de vida e a distribuição relativa das rendas numa determinada economia. De acôrdo com êsse ponto de vista, pode ser apreciada, sem dú- vida, a parafiscalidade na medida em que, por exemplo, sôbre o plano da economia dirigida, ela é destinada a facilitar perequações ou com- pensações de preços ou no domínio da organização profissional, ela permitiu pagar indenizações às emprêsas fechadas ou destruídas. Mas é, sobretudo, para os encargos sociais que êsse método distributivo é válido. "A abolição da necessidade - escreveu Sir W. Beveridge - exi- ge uma dupla redistribuição das rendas, pelos Seguros Sociais de um lado e pelos Abonos de Família". Para lutar contra a interrupção, a insuficiência ou o desaparecimento do ganho, é preciso conceder ren- das de compensação (prestações de seguro-doença), de substituição (abonos de desemprêgo, pensões de amparo à velhice), de complemen- to (abono-família ou de alojamento), àqueles que estão na penúria e carecem de meios de existência necessários a uma vida sã. Uma justa redistribuição das rendas implica: 1.0) a generalização, a todo o povo, da concessão de prestações, partindo-se dos encargos parafiscais (quaisquer que sejam as suas mo- dalidades) ; 2.°) a cobertura de todos os riscos e a uniformidade de uma parte entre as prestações concedidas aos segurados, e por outra parte 8 Harold M. Groves, Postwar taxation and Economic Progresso Me Graw, 1946. - 61- entre as contribuições que dêstes últimos são exigidas. Mas se essa uniformização é levada ao máximo no Plano-padrão apresentado por Beveridge, os cidadãos que dispõem de meios superiores se vêem, con- tudo, na contingência de pagar mais na medida em que, como contri- buintes costumam pagar mais impostos. Participam, assim, em pro- porção mais elevada, do financiamento dos Seguros Sociais pelo Estado. Pela transferência das rendas das classes abastadas para as clas- ses deserdadas, esforça-se por garantir a todos um mínimo vital. A idéia da redistribuição das rendas não é a idéia da igualação geral das rendas. Mas o papel distributivo da parafiscalidade não é mais, na hora atual, um fim em si mesmo. O filtro em que consiste a parafiscalidade vem favorecer o funcionamento do sistema econômico. É que, em úl- tima análise, a seguridade social não pode ser garantida senão pela seguridade econômica. O seu papel distributivo reforça hoje o seu papel funcional. B. Êsse Papel Funcional foi definido por Alvin Hansen como de- vendo integrar-se numa política do emprêgo. A parafiscalidade social ajusta os seus efeitos aos de outras modalidades de arrecadações (or- ganização profissional, economia dirigida) e à fiscalidade propriamen- te dita para promover um alto grau de emprêgo e para manter, por outro lado, a estabilidade do nível do emprêgo. Busca-se alcançar a realização de um alto grau de ern]J1"êyo ao mesmo tempo sôbre o plano quantitativo e sôbre o plano qualitativo. 1.0) Sôbre o plano quantitativo: a parafiscalidade assegura, pela redistribuição das rendas, o aumento ou a manutenção da tendência ao consumo, portanto da procura efetiva. O investimento de capitais tenderá igualmente a ampliar-se. A participação dos encargos sociais no circuito sob forma de pres- tações (portanto mediante redistribuição) acarreta uma nova procura de bens e serviços que provoca a criação ou o desenvolvimento de no- vos ramos de atividade nos quais podem ser empregados capitais e mão-de-obra. Por outro lado, os recursos arrecadados pelos órgãos da Seguri- dade Social podem participar diretamente dos investimentos. O plano francês da Seguridade Social, pOl" exemplo, resolve aplicar uma par- te dos recursos a um esfôrço de investimento e de equipamento sani- tário e social: hospitais, laboratórios, por exemplo. Dessa for:na, portanto, as quantias livremente amealhadas que podiam permanecer inaplicadas ou ser irracionalmente empregadas (pelos detentores de rendimentos elevados) são absorvidas pelos en- cargos parafiscais e postas ao serviço de um investimento útil para o conj unto da economia. 2.°) O ponto de vista qualitativo do emprêgo não é menos im- portante. Trata-se com efeito: De uma parte: de assegurar uma forte produtividade do trabalha- dor e isto se consegue por meio das prestações de seguros - doença, - 62- seguros de acidentes de trabalho; ou ainda, no plano da parafisca- lidade profissional, mediante as arrecadações destinadas a financiar os órgãos de aprendizagem, de formação profissional ou de promoção do progresso técnico. De outra parte: de assegurar a manutenção, a longo prazo, do capital humano. Os encargos sociais correspondem às despesas da "conservação intacta" do fator humano da produção. Assim sucede muito particularmente com os Seguros Sociais e os Serviços médico- sociais. Uma vez alcançado um alto grau de emprégo convém mantê-lo es- tável. A parafiscalidade oferece um meio aliás preconizado pelo Li- vro Branco inglês de 1944: a variação das contribuições e prestações de seguros sociais. Fazendo variar essas contribuições em tôrno de uma taxa-padrão que tenha por finalidade manter no tempo um fundo sempre igual de Seguridade Social, tentar-se-á conseguir a estabiliza- ção do índice do emprêgo. Se se desejar, por exemplo, que o índice de desemprêgo não ultrapasse jamais de 5%, deverão ser diminuídas as contribuições; se o índice de desemprêgo vier a elevar-se, atingindo, por exemplo, a 15 %, as contribuições serão reduzidas pela metade. O dinheiro deixado assim nas mãos dos trabalhadores ajudará a manter a procura de bens de consumo e a compensar de algum modo o declínio nas despesas daqueles que perderam o seu trabalho. Assim, portanto, a parafiscalidade surge como um elemento de ação possível, mas as críticas que ela tem suscitado, em particular no que concerne à Seguridade Social em França, tendem a fazer que seja considerada como um encargo nefasto para a Economia. SEÇÃO II - A Parafiscalidade é Meio de Ação Eficaz? A parafiscalidade, meio de ação possível, é meio de ação eficaz? Para examinar com objetividade as censuras dirigidas contra ela, é preciso frisar, de início que - pelo menos no que diz respeito à pa- rafiscalidade social - tais críticas não podem, de forma alguma, acar- retar uma condenação definitiva de uma série de medidas e de insti- tuições que se enraizaram e se tornaram uma peça essencial de nossa estrutura social. Assim como acontece com muitos outros instrumen- tos de política econômica, trata-se de determinar o "bom uso" que é possível fazer da mesma em determinadas condições de estrutura e conjuntura. A. No Plano da Redistribuição das Rendas Deve-se, inicialmente, frisar que as rendas de complemento ou de substituição são destinadas a fazer face, em numerosos casos, a des- pesas necessárias, de sorte que o nível de vida não corra o risco de aumentar. A regra não é geral. O regime dos abonos de família, por exemplo, assegura recursos apreciáveis ao paí de família em qualquer época, mas o essencial é que a redistribuição por meio da parafisca- -63- lidade não se veja, de algum modo, aniquilada por uma elevação dO' custo da vida e por um aumento dos encargos do indivíduo. Êsse papel de redistribuição será verdadeiramente importante? Parece ser pouco significativo. Algumas porcentagens podem dar uma idéia da intensidade redistributiva das rendas pela parafiscalidade: em França, segundo a Revue Française du Travail, 6% da Renda Na- cional; na Bélgica 6 a 7 % se dermos crédito ao órgão do Ministério da Previdência Social. 9 B. Chega-se, destarte, a conceber algumas dúvidas sôbre a im- portância do papel funcional da parafiscalidade,ligado, como vimos, a seu papel redistributivo. No que concerne ao aumento da propensão ao consumo, se todos os elementos das prestações cor respondem a uma necessidade inelutá- vel, a massa dos rendimentos destinados ao consumo para o conjunto de uma economia não se acha acrescida com isso. Em numerosos casos, as prestações, como salientaram Dalton ou Pigou, são destinadas uni- camente à aquisição de bens e serviços inelásticos. O pêso da parafiscalidade sôbre os rendimentos das classes pobres, dos salariados em particular, provàvelmente não permitirá um acrés- cimo das despesas de consumo. Na medida em que encargos parafis- cais profissionais vêm juntar-se ao preço corrente de venda dos pro- dutos - como acontece principalmente no que diz respeito às taxas percebidas sôbre as profissões cinematográficas em benefício do fundo de auxílio à indústria do cinema - a possibilidade de um acréscimo das despesas de consumo, talvez mesmo de sua manutenção, se acha consideràvelmente ameaçada. Da mesma forma, todo encargo social sôbre o salário dos traba- lhadores se traduz para os mesmos por uma diminuição de seu rendi- mento líquido. Assim, os investimentos efetuados pelos salariados a título de contribuições operárias aos Seguros Sociais agem diretamente naquele sentido, isto é, abaixando os salários reais muito aquém dos salários teóricos. Na França, os estudos do Instituto de Estatística e da Conjuntura, comparando o poder aquisitivo dos trabalhadores em 1947 e 1938, tendem a mostrar que o montante dos encargos sociais tem sido integralmente arrecadado sôbre os rendimentos dos salaria- dos. Houve transformação no modo de distribuição das rendas, mas essa transformação não afetou, de modo algum, a importância mesma dos rendimentos consagrados à despesa de consumo. Se incidem sôbre os trabalhadores, os encargos sociais pesam tam- bém sôbre os empregadores. É provável que o crescimento quantita- tivo do emprêgo corra o risco de se ver, por seu turno, comprometido por sua repercussão sôbre o custo de produção das emprêsas. N ote- mos, aliás, que a parafiscalidade profissional oferece resultados idên- ticos. Os encargos sociais que pesam sôbre a emprêsa acarretam uma 9 Revue Française du Travail, décember 1947, p. 1057 - Revue du TravaU. organe du Ministére du Travail et de la Prévoyance sociale en Belgique, janvier 1948, p. 5. - 64- alta da parte dos salários no custo de produção, e portanto, uma e~e v<lcão dêste último. • Duas possibilidades se apresentam, então, devendo a tal respeito excluir-se a hipótese assaz improvável segundo a qual os donos de em- prêsas aceitariam arrecadar aquêles encargos sôbre os seus próprios lucros. Ou bem essa majoração se traduzirá pela necessidade de os em- pregadores diminuirem o número de operários ocupados. A procura de mão-de-obra baixará então no mercado de trabalho. O emprêgo não poderá ser mantido. Ou bem, essa majoração repercutirá num au- mento dos preços de venda dos bens produzidos, transferindo-se assim dos produtores para os consumidores. Mas entre êstes últimos figura um grande número de trabalhadores. Já adstritos a uma arrecadação parafiscal operada em seu salário, êles verão o seu nível de vida afe- tado, além disso pela repercussão da alta dos preços, principalmente dos bens de consumo. Com o abaixamento de sua renda real, a sua pro- cura global tenderá a diminuir e, com ela, o emprêgo. A situação se agrava em caso de eclosão inflacionista: o ciclo infernal dos salários e dos preços vem destruir de algum modo as vantagens que teriam po- dido nascer da redistribuição das rendas. Qualquer que seja a forma pela qual se manifestem, a elevação do custo de produção, o licenciamento dos trabalhadores, o abaixamento da renda real acarretam uma redução do consumo, um amortecimento da atividade econômica, portanto, uma diminuição do índice de em- prêgo. Tal fenômeno pode acentuar-se com a paralisação das exporta- ções então menos favorecidas em relação à concorrência estrangeira. Assim acontece na França, onde os encargos sociais representam, às vê- zes, mais de 40 % sôbre o preço de custo de produção, ao passo que nos Estados Unidos da América do Norte a cifra correspondente é de 50/0, na Grã-Bretanha 16%, nos Países-Baixos 20% e na Bélgica 24%. Do ponto de vista qualitativo, é preciso assinalar que o seguro contra a doença e a invalidez permite a eliminação, do mercado de trabalho, de elementos fisicamente deficientes e provoca, sem nenhu- ma dúvida, um crescimento na produtividade média dos trabalhado- res. Pelo contrário, êle favorece - principalmente no início da insti- b~ção do regime de Seguridade Social - o absenteísmo, cujo desen- vulvimento pode ocasionar uma diminuição da produtividade total da mão-de-obra. Embora seja possível admitir-se, a longo prazo, como provável a compensação do encargo que pesa sôbre os custos mediante o acréscimo da produtividade devido à melhoria do estado de saúde dos trabalha- dores, por outro lado não se pode esquecer que a parafiscalidade é tanto mais onerosa quanto recai essencialmente sôbre a população ativa, a qual, num país como o nosso tende a decrescer em relação aos elemen- tos não produtivos da população. Pretende-se, enfim, obter a estabilidade do emprêgo? Beveridge levantou objeções contra uma política de variação das contribuições sociais, colocando-se num terreno prático e psicológico. Êle pensa que - 65- a vantagem dessa política consiste, quando muito, em poder mitigar os efeitos secundários da flutuação do emprêgo. Se fôsse adotada, só poderia aplicar-se com êxito no tocante à contribuição dos emprega- dos, uma vez que os patrões podem gastar menos no caso de serem re- duzidas as contribuições. Tais são, ao nosso ver, os limites, segundo os quais a parafiscali- da de aparece como sendo um meio de ação eficaz. Se pensarmos que ela se faz acompanhar de um aparelho administrativo emperrado e complexo, chegaremos a indagar, juntamente com Meade em sua obra mais recente: "Planning and the Price mechanism", 10 se não seria pos- sível simplificar, consideràvelmente, uma reforma fiscal que tivesse de solucionar satisfatoriamente o problema da concorrência entre a fis- calidade e a parafiscalidade. Poderia tal reforma seguir "a idéia a ser aprofundada" sugerida por Lady Rhys Williams, que preconiza o pa- gamento mensal pelo Estado a cada um dos seus cidadãos de um divi- dendo social por empreitada? 11 A fórmula pode ser sedutora. Não é, todavia, demasiado simplista? Trata-se, com efeito, como o demonstrou Hansen, de combinar um impôsto sôbre a renda, progressivo, com um vasto plano de parafis- calidade social. Mas tal entrosamento não será muito fácil para o Estado inter- vencionista ou dirigista, cujas opções serão mais complexas e delicadas do que, pelo menos, as do Estado planificado, enquanto permanecer um Estado impotente perante as tarefas econômicas que incessante- mente se avolumam. CONCLUSÃO A parafiscalidade é, no plano financeiro, o reflexo ou, mesmo, a própria imagem de um intervencionismo crescente, feito de empiris- mo, de oportunismo e de ajustamentos parciais. Ela trai a hesitação dos Poderes Públicos em promover a elabo- ração de um sistema fiscal coerente e de acôrdo com as novas tarefas que lhe incumbem doravante. Manifesta, ao mesmo tempo, a inadequação técnica e política às ambições e responsabilidades atuais de um Estado, que pretende con- servar a estrutura válida para um regime econômico que êle repudiou: o capitalismo liberal. Revela a inadaptação fundamental entre o que é e o que pretende o Estado intervencionista; porque, para citar a expressão sugestiva do Professor Jean Lhomme, - êle quer demais em relação àquilo que êle é". 12 10 Cf. E. Meade. Planning and the Price Mechanism. AlIen and Unwin. Londres, 1948. 11 Lady Rbys Williams. Something to look Forward. Vide Macdona1d and Co .• Londres. citado por M. Gaél Fain, Pour simplifier le redistributioTl des revenus. Revue Politiqueet Parlementaire, octobre 1948. p. 134. 12 Cf. J. Lbomme. L'Etat moderne: ses tâches et moyens, in Banque, n.o 26. aout 1948. p. 485. - 66- Aí está por que, se considerarmos a parafiscalidade no quadro clás- sico das finanças públicas, não chegaremos a realizar a sua integração completa. Eis, também, a razão pela qual a parafiscalidade, até o li- mite em que é um instrumento de política econômica, corre o risco de revelar-se inadequada aos fins que lhe são atribuídos. Não pode ser explicada segundo os pontos de vista da Ciência tra- dicional das Finanças. Ela traz em demasia o caráter de uma técnica fortuita - ou talvez mesmo de um mero expediente - para que pos- sa exercer uma ação verdadeiramente eficaz sôbre o conjunto da ati- vidade econômica. A parafiscalidade é um conceito híbrido e de expectativa, conce- bível enquanto os pensamentos político, econômico e financeiro mo- dernos não tiverem realizado suas síntese e unidade. Assinala a pas- sagem da éra da tradição para a das "apostas sôbre estruturas novas". 13 13 A expressão é do Professor François Perrou.
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