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BIOQUÍMICA DOS ALIMENTOS Priscila Souza Silva Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir a classificação e as propriedades funcionais dos lipídeos. Identificar o papel dos lipídeos na gastronomia. Descrever as reações de deterioração dos lipídeos. Introdução Os lipídeos são constituídos por um amplo e diversificado conjunto de substâncias orgânicas, delimitadas com base em suas características de solubilidade. Os lipídeos são geralmente insolúveis em água e solúveis em solventes orgânicos, como éter, benzeno e clorofórmio (PHILIPPI, 2014). Além disso, eles são importantes fonte de energia e veículos de nutrien- tes, como vitaminas lipossolúveis e ácidos graxos essenciais (PINHEIRO; PORTO; MENEZES, 2005). Armazenam energia na forma de triglicerídeos e em alguns alimentos como peixes (sardinha e salmão) e fornecem ácidos graxos essenciais, especialmente o ômega 3. Falando em gastronomia, eles fornecem sabor aos alimentos e podem ser encontrados em carnes, leite, óleo de coco, óleo de palma, manteiga de cacau, amendoim, gema de ovo, nozes, castanhas, entre outros (GALISA; ESPERANÇA; SÁ, 2008). Neste capítulo, você vai estudar o papel dos lipídeos no processa- mento de alimentos, compreendendo a importância das suas proprieda- des funcionais, bem como o seu papel na produção alimentícia. U N I D A D E 2 Propriedades funcionais dos lipídeos Os lipídeos que compõem os alimentos são do grupo dos óleos e das gordu- ras. São constituídos por substâncias orgânicas, determinadas com base na sua solubilidade (PHILIPPI, 2014). São considerados compostos de origem biológica solúveis em solventes orgânicos, como éter, benzeno e clorofórmio e insolúveis em água (GONÇALVES, 2010). São substâncias de origem animal ou vegetal, compostos de produtos de condensação entre glicerol e ácidos graxos, conhecidos como triacilgliceróis. São importantes fontes de energia e veículos de nutrientes, como as vitaminas lipossolúveis e ácidos graxos essenciais (PINHEIRO; PORTO; MENEZES, 2005). O conteúdo total e a composição de lipídeos em alimentos podem variar muito. Os lipídeos têm tido uma ênfase especial na pesquisa e no desenvolvimento de alimentos, uma vez que desempenham um papel importante na qualidade de alimentos. Eles contribuem com atributos como textura, sabor, nutrição e densidade calórica. O estudo dos lipídeos na produção de alimentos está focado na alteração de sua composição, afi m de modifi car a textura, alterar a composição de ácidos graxos e colesterol, diminuir o conteúdo total de gordura, alterar a biodispo- nibilidade e tornar os lipídeos mais estáveis diante da oxidação. Além disso, a estabilidade física deles é importante para a qualidade do alimento, já que muitos lipídeos existem como dispersões/emulsões, sendo termodinamicamente instáveis (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Para que se efetuem mudanças na composição dos lipídeos, com garantia de produção de alimentos de alta qualidade, o conhecimento básico das suas propriedades químicas e físicas é indispensável. Os óleos são provenientes de alimentos de origem vegetal. São extraídos de sementes de várias plantas e depois refinados para uso dietético, agindo como condutores de calor e agregadores de maciez e sabor. A partir dos óleos, têm-se as margarinas e também a gordura vegetal hidrogenada, utilizada na indústria alimentícia. Já as gorduras são provenientes de alimentos de origem animal, podendo ser consumidas como parte integrante do alimento (carnes, leite ou ovos) ou isoladamente. A banha, o toucinho, a manteiga e o creme de leite são exemplos de alimentos obtidos por meio da separação da gordura dos alimentos (PHILIPPI, 2014). Composição química dos óleos e gorduras São constituídos por carbono (C), hidrogênio (H) e oxigênio (O). Diferenciam- -se dos carboidratos pela proporção desses nutrientes, sendo assim, fornecem Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração2 mais energia. A maior relação de H para O comparada aos carboidratos confere alto valor energético (9 kcal/g) (GALISA; ESPERANÇA; SÁ, 2008). Os óleos e as gorduras podem ser defi nidos como misturas complexas de acilgliceróis ou glicerídeos (PHILIPPI, 2014). Quimicamente, podem ser chamados de ésteres de ácidos graxos. O número de ácidos graxos ligados ao glicerol o defi ne, respectivamente, como mono, di ou triacilglicerol. Os triacilgliceróis, que resultam da combinação de uma molécula de glicerol com três ácidos graxos, são os principais constituintes, representando em média 95% de óleo ou de gordura. As propriedades químicas e funcionais dos triglicerídeos são características dos ácidos graxos que o formam (GONÇALVES, 2010). Ácidos graxos Os ácidos graxos são moléculas que representam qualquer ácido monocarboxí- lico alifático oriundo da hidrólise de gorduras naturais, ou seja, compostos que apresentam o grupo funcional carboxila (-COOH) ligado à cadeia carbônica aberta. São constituídos por uma cadeia carbônica não ramifi cada, de com- primento variável, contendo em uma das extremidades um grupo funcional ácido, o grupo carboxílico (-COOH), denominada extremidade delta. A outra extremidade da cadeia carbônica termina com um grupo metila (-CH3) e é denominada extremidade ômega. De modo geral, os ácidos graxos apresentam número par de carbonos e cadeia carbônica longa e são geralmente encontrados na natureza como constituintes estruturais dos acilgliceróis e dos fosfolipídeos. De acordo com o tamanho da cadeia carbônica, os ácidos graxos podem ser classifi cados em ácidos graxos de cadeia curta, média e longa, característica que afeta suas propriedades físicas e o seu destino metabólico. Ácidos graxos que contêm dois a seis carbonos são considerados de cadeia curta, além de voláteis e solúveis em água. A gordura do leite é uma fonte desses ácidos graxos, que são pouco comuns em alimentos. Os ácidos graxos de cadeia média apresentam entre oito e 12 carbonos e também são encontrados em poucos alimentos, principalmente no óleo de coco. Os ácidos graxos de cadeia longa, que apresentam entre 14 e 24 carbonos, são os mais comuns nos alimentos, tanto de origem vegetal como animal (PHILIPPI, 2014). São exemplos de ácidos graxos de cadeia média o leite materno, o óleo de coco e o óleo de palma. Dentre os ácidos graxos de cadeia curta estão o leite e a manteiga. Essas substâncias se encontram na forma saturada ou insaturada. Os ácidos graxos saturados apresentam apenas ligações simples, que correspondem a ligações sigma. Já os ácidos graxos insaturados apresentam duplas ligações, em que uma é do tipo sigma e a outros do tipo pi (GONÇALVES, 2010). Os 3Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração ácidos graxos insaturados podem se apresentar na forma cis e trans. Estas indicam se o grupo alquilo se encontra do mesmo lado ou não da molécula. Na natureza, as duplas ligações dos ácidos graxos insaturados geralmente apresentam configuração cis. Entretanto, ácidos graxos contendo uma ou mais ligações duplas com configuração trans, conhecidos como ácidos graxos trans, podem estar presentes em alimentos como resultado de um processo de isomerização cis-trans, que pode acontecer naturalmente ou em consequência de determinadas condições de processamento, em geral, envolvendo altas temperaturas. Uma das preocupações com a hidrogenação da gordura é em razão da alteração na estrutura química que ocorre quando os óleos monoin- saturados e poliinsaturados são endurecidos por hidrogenação. Alguns dos ácidos insaturados, em vez se se tornarem saturados, acabam mudando sua forma química. Esse processo cria produtos incomuns que não são fabricados pelo organismo e podem prejudicar a saúde (PHILIPPI, 2014). Observe as Figuras 1 e 2 a seguir. Figura 1. Exemplo de ácido graxo saturado — ácido graxo palmítico. Fonte: Adaptada de molekuul_be/Shutterstock.com.Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração4 Os ácidos graxos são responsáveis pelas diferenças no sabor, na textura e no ponto de fusão das gorduras no alimento. São divididos em saturados e insaturados. Ácidos graxos saturados: os ácidos graxos saturados mais comuns em alimentos são de cadeia longa, com pelo menos 16 carbonos. O ácido palmítico, que apresenta 16 carbonos, e o ácido esteárico, com 18, são os ácidos graxos saturados mais encontrados na alimentação. Esse tipo de ácido graxo está presente em carnes gordas, banha, manteiga, palma, cacau, laticínios, coco, etc. Ácidos graxos insaturados: todos apresentam cadeia longa, com pelo menos 16 carbonos, e o número de duplas ligações dividem-se em dois grupos: os monoin- saturados, que contêm apenas uma dupla carbono-carbono e estão presentes no azeite de oliva, na canola, no açaí, no abacate e nas oleaginosas, e os poliinsaturados, com duas ou mais dessas ligações (PHILIPPI, 2014), presentes nos peixes, nos óleos vegetais e nas oleaginosas. Figura 2. Exemplo de ácido graxo insaturado — ácido linoleico e alfalinolênico. Fonte: Adaptada de Raimundo79/Shutterstock.com. 5Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração Classificação A distinção entre óleos e gorduras se baseia em seu estado físico à temperatura ambiente, defi nida como 25°C. Os óleos são líquidos a essa temperatura en- quanto as gorduras são aparentemente sólidas. Essa diferença está relacionada à sua composição de ácidos graxos, que defi ne seu ponto de fusão, ou seja, a temperatura em que ocorre a passagem do estado sólido para o líquido. Os óleos e as gorduras podem ser classifi cados quanto à origem, vegetal e animal, ou quanto à composição, simples, compostos e derivados (PHILIPPI, 2014). Composição Lipídeos simples: triglicerídeos que originam ácidos graxos e glicerol. Podem ser encontrados na forma sólida, chamados de gordura, ou líquida, chamados de óleos. São exemplos: ácidos graxos, gorduras neutras, ésteres de ácido graxo com glicerol (mono, di e triacilglicerol) e ceras. Lipídeos compostos: combinações de gorduras neutras com outros componentes. Fosfolipídeos: formados por lipídeos ligados ao fósforo. Exemplo: le- citina, encontrada no fígado, gema de ovo e soja. Lipoproteínas: formadas no fígado e no intestino (combinação de tri- glicerídeos, glicerol, colesterol e proteínas). Lipídeos derivados: produzidos na hidrólise ou na decomposição dos lipídeos. Consistem nos ácidos graxos saturados e insaturados, o glicerol e os esteróis (PINHEIRO; PORTO; MENEZES, 2005). Propriedades funcionais dos lipídeos Os lipídeos desempenham diversas funções fundamentais para a manutenção da vida. Eles contribuem essencialmente para as características sensoriais dos alimentos, como textura, aroma e sabor, atribuindo palatabilidade aos produtos. Por sua lenta digestão, os lipídeos conferem a sensação de plenitude gástrica e saciedade. Veja a seguir as principais funções dos lipídeos (PHILIPPI, 2014). São precursores de hormônios. Melhoram a textura e o sabor dos alimentos. Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração6 Auxiliam na absorção e no transporte de vitaminas lipossolúveis (A, D, E e K). Fornecem energia, 9 kcal por grama. Armazenam energia na forma de triglicerídeos. As gorduras de alguns alimentos, como peixes (sardinha e salmão), fornecem ácidos graxos essenciais, especialmente o linolênico (ômega 3). Os óleos vegetais (de milho, por exemplo) fornecem especialmente o ácido graxo linoleico (ômega 6). Apresentam funções de fortalecer as membranas celulares, ajudar a prevenir danos provocados pela ação dos radicais livres e, com outros ácidos graxos, contribuir para o transporte e a diminuição do colesterol no sangue. São precursores de um grupo de compostos ativos fisiológica e farmacologicamente conhecidos como eicosanoides (ácidos graxos de cadeia longa). Conferem sabor à alimentação. Poupam proteína para a síntese tecidual. Protegem órgãos vitais: uma camada de tecido adiposo, em forma de rede, envolve órgãos vitais, como os rins, protegendo-os de choques mecânicos e fornecendo estrutura para suportá-los. A gordura subcutânea auxilia no controle da temperatura corporal dentro de uma média necessária para a vida. Diminuem a secreção gástrica e retardam o tempo de esvaziamento gástrico, resultando em grande poder de saciedade. Transportam o colesterol (PHILIPPI, 2014). Funcionalidade dos lipídeos na gastronomia Os lipídeos são muito importantes na alimentação. Fornecem energia em alta densidade e participam no valor energético total da dieta em percentuais que devem variar de 15 a 30%. Além disso, os lipídeos fornecem ácidos graxos essenciais (linoleico e alfa-linolênico) e são veículos de vitaminas com características lipossolúveis e antioxidantes. Os ácidos graxos linoleico e alfa-linolênico são considerados essenciais uma vez que não são sintetizados pelo ser humano, devendo ser consumidos diariamente pela dieta. Eles são imprescindíveis ao organismo, uma vez que fazem parte dos fosfolipídeos de membranas, especialmente das mitocôndrias. A ausência ou quantidade inadequada desses ácidos graxos está associada a distúrbios neurológicos, visuais e dérmicos (escamações e infl amações da pele) (PHILIPPI, 2014). 7Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração Os lipídeos são também importantes para o sabor, a aparência e a textura de alimentos e preparações (PHILIPPI, 2014). Na área alimentícia, os lipídeos são usados na forma de óleos de cozinha, margarinas, manteigas, maioneses, cremes e outros produtos. Quimicamente, as gorduras são sintetizadas pela união de três ácidos graxos a uma molécula de glicerol, formando um triéster. São chamadas de triglicerídeos, triglicérides ou, mais corretamente, de triacil- gliceróis. Podem ser sólidas ou líquidas em temperatura ambiente, dependendo da sua estrutura e da sua composição. Usualmente, gordura se refere aos triglicerídeos em seu estado sólido, enquanto óleo se refere aos triglicerídeos no estado líquido. As gorduras têm uma função importante na determinação das quatro principais características sensoriais de produtos alimentícios, ou seja, a aparência (brilho, translucidez, coloração, uniformidade da superfície e cristalinidade), a textura (viscosidade, elasticidade e dureza), o sabor (in- tensidade de flavor, liberação de flavor, perfil de sabor e desenvolvimento de flavor) e o derretimento (cremosidade, lubricidade e espessura) (PINHEIRO; PORTO; MENEZES, 2005). A gordura também afeta as propriedades físicas e químicas do produto e, consequentemente, apresenta várias implicações práticas, sendo as mais importantes: o comportamento do produto alimentício durante o processamento (estabilidade ao calor, viscosidade, cristalização e propriedades de aeração), as características de pós-processamento (sensibili- dade à quebra/corte, pegajosidade, migração e dispersão) e a estabilidade de armazenamento, que pode incluir estabilidade física (emulsificação, migração ou separação de gordura), estabilidade química (rancidez ou oxidação) e estabilidade microbiológica (atividade de água e segurança). As funções físicas e químicas da gordura em produtos alimentícios podem ser agrupadas, uma vez que a natureza química das gorduras determina suas propriedades físicas. Assim, o comprimento da cadeia de carbono de ácidos graxos esterificado com o glicerol, o seu grau de instauração, a distribuição dos ácidos graxos e a sua configuração molecular, bem como o estado polimórfico da gordura, afetam as propriedades físicas dos alimentos, como viscosidade, ponto e características de derretimento, cristalinidade e espalhabilidade (PI- NHEIRO; PORTO; MENEZES, 2005). Sabor Os triacilgliceróis são moléculas grandes que apresentam baixa volatilidade e, portanto, pouco sabor inerente. No entanto, óleo e gorduras comestíveis de diferentes fontes naturaistêm perfi s de sabor diferenciados pela presença de compostos voláteis característicos, como produtos de oxidação de lipídeos e Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração8 impurezas naturais. O sabor de muitos alimentos é infl uenciado de maneira indireta pela fase lipídica, pois seus compostos podem sofrer partição entre as frações de óleo, água e as regiões gasosas dentro da matriz, de acordo com sua polaridade e sua volatilidade. Por isso, o aroma e o sabor percebidos costumam ser muito infl uenciados pelo tipo e pela concentração dos lipídeos presentes. Os lipídeos também infl uenciam a sensação dos alimentos na boca. Os óleos líquidos cobrem a língua durante a mastigação, fornecendo uma sensação oleosa. Os cristais de gordura conferem sensações “granulares” ou “arenosas” se forem grandes e de textura suave se forem pequenos. A fusão de cristais na boca gera uma sensação refrescante, o que é um atributo sensorial importante de muitos alimentos gordurosos. Essa característica está presente no chocolate ao leite, por exemplo (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Aparência A aparência dos produtos alimentícios é muito infl uenciada pela presença de lipídeos. A cor de óleos puros, como os de cozinha ou para salada, é determinada principalmente pela presença de pigmentos que absorvem luz, como clorofi las e carotenoides. As gorduras sólidas costumam ser opacas em virtude do espelhamento da luz pelos cristais de gordura presentes, ou seja, depende de concentração, tamanho e forma dos cristais de gordura. Já os óleos costumam ser translúcidos. Em emulsões alimentares a aparência turva, opaca ou nebulosa está diretamente relacionada à imiscibilidade do óleo em água, isso leva a um sistema em que as gotículas de uma fase estão dispersas na outra fase. As emulsões alimentares costumam ser opacas, pois a luz que passa por meio delas é espalhada pelas gotículas. Com isso, a cor e a opacidade da emulsão são infl uenciadas pela fase lipídica. Um exemplo disso é o leite integral, que tem uma aparência muito mais branca que o desnatado em razão da presença dos glóbulos de gordura do leite integral, os quais espalham a luz de forma intensa, enquanto no leite desnatado as micelas de caseína espalham a luz com menos intensidade (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Textura A infl uência dos lipídeos na textura dos alimentos é bastante infl uenciada pelo estado físico do lipídeo e pela natureza da matriz alimentar. Para óleos puros, como os de cozinha ou para salada, a textura é determinada pela viscosidade do óleo no intervalo de temperatura utilizado. Para gorduras parcialmente cristali- nas, como em chocolates, produtos assados, manteiga e margarina, a textura é 9Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração determinada, por concentração e interações dos cristais de gordura. Quando se fala em textura cremosa das emulsões alimentares sabe-se que é determinada pela presença de gotículas de gordura (por exemplo, cremes, sobremesas, molhos de saladas e maionese). Em relação à viscosidade, a determinação se dá pela concentração de gotículas de óleo. Sendo assim, sabe-se que o leite integral apresenta viscosidade baixa, a nata é altamente viscosa e a maionese é semissólida. Em muitos alimentos, os lipídeos compõem uma parte integral da matriz sólida que também contém outros componentes (como chocolates, biscoitos, bolachas, tortas). O estado físico dos lipídeos desses sistemas infl ui em sua textura pela formação de uma rede de cristais de gordura que intera- gem entre si, dando ao produto fi nal propriedades desejáveis, como fi rmeza e crocância. A importância da cristalização de gorduras sobre a textura dos produtos alimentícios pode ser fornecida pelos shortenings. Estes são gorduras usadas para o fornecimento de propriedades funcionais específi cas a diversos produtos alimentícios, como tortas, pães, massas, produtos fritos e produtos assados. Entre as propriedades funcionais, estão: maciez, textura, sensação na boca, integridade estrutural, umectação, incorporação de ar, transferência de calor e aumento de vida útil. Os shortenings são chamados assim porque ajudam a evitar interações entre moléculas de proteínas ou amidos, servindo para amolecer o produto por meio da redução da coesividade do glúten e do encurtamento da textura (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Deterioração química dos lipídeos: reações hidrolíticas e oxidativas Os lipídeos são de grande importância na indústria alimentícia, já que são a fonte majoritária de energia na dieta e afetam diretamente os valores nutri- cionais, o gosto e a textura dos alimentos. Na área alimentícia, os lipídeos são usados como óleos de cozinha, gordura vegetal hidrogenada, margarinas, manteigas, maioneses, cremes e outros produtos. A oxidação lipídica é um fenômeno espontâneo e inevitável, com uma im- plicação direta no valor comercial dos ácidos graxos e de todos os produtos que a partir deles são formulados (p. ex., alimentos, cosméticos e medicamentos). A peroxidação lipídica constitui a principal causa de deterioração dos ácidos graxos. Afastados do seu contexto de proteção natural, os ácidos graxos sofrem, no decurso de processos de transformação e armazenamento, alterações do tipo oxidativo, as quais têm como principal consequência a modificação do flavor original e o aparecimento de odores e gostos característicos do ranço, Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração10 o qual representa para o consumidor uma importante causa de depreciação ou rejeição (SILVA; BORGES; FERREIRA, 1999). A rancidez, deterioração da gordura, constitui um importante problema técnico nas indústrias de ali- mentos e pode ocorrer por meio de duas formas diferentes: rancidez oxidativa, causada pela auto-oxidação dos triacilgliceróis com ácidos graxos insaturados por oxigênio atmosférico, ou rancidez hidrolítica, causada pela hidrólise da ligação éster por lipase ou agente químico na presença de umidade (SILVA; BORGES; FERREIRA, 1999). Rancidez oxidativa A reação espontânea do oxigênio atmosférico com os lipídeos, conhecida como auto-oxidação, é o processo mais comum que leva à deterioração oxi- dativa. Deterioração lipídica é o termo geralmente utilizado para descrever uma sequência complexa de alterações químicas resultantes da interação de lipídeos com oxigênio. Durante reações de oxidação de lipídeos, os ácidos graxos esterifi cados em triacilgliceróis e fosfolipídeos decompõem-se, for- mando moléculas pequenas e voláteis que produzem os aromas indesejados conhecidos como rancidez oxidativa. Em geral, esses compostos voláteis são prejudiciais à qualidade dos alimentos, embora existam alguns produtos, como alimentos fritos, cereais desidratados e queijos, nos quais pequenas quantidades de produtos de oxidação lipídica constituem componentes positivos do sabor (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Os ácidos graxos poliinsaturados apresentam potencial de decomposi- ção desse processo, estando presentes como ácidos graxos livres, ou como triglicérides (ou diglicerídeos ou monoglicerídeos) ou como fosfolipídeos. Quando a luz e um agente sensibilizante, como a clorofila, estão presentes, a ativação do O em oxigênio singlete pode desempenhar um papel importante na indução da deterioração oxidativa. Além disso, os metais, incluindo ferro (Fe) ou cobre (Cu), ou a enzima lipoxigenase, podem atuar no processo pelo qual a deterioração oxidativa é iniciada. A lipoxigenase está presente nos tecidos vegetais, como os da soja, da ervilha e do tomate. A enzima pode causar a deterioração oxidativa dos lipídeos durante a separação do óleo das sementes oleaginosas, mas também atua na formação de sabores positivos nos vegetais durante a mastigação. Os componentes formados na fase inicial da auto-oxidação são os hidroperóxidos, sendo estes também os produtos formados na oxidação catalisada pela lipoxigenase. Apesar dos hidroperóxidos serem não voláteise inodoros, são compostos relativamente instáveis e se decompõem espontaneamente ou em reações catalisadas para formar compostos aromáticos 11Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração voláteis que são percebidos como off flavours. A natureza dos off flavours detectados depende principalmente da composição em ácido graxo do substrato e do grau de oxidação, embora as condições de oxidação também possam afetar os compostos voláteis produzidos e as propriedades sensoriais do óleo oxidado. Exemplos de off flavours de oxidação são os sabores de feijão cru, que se desenvolvem geralmente em óleo de soja; os sabores de peixe, que se desenvolvem no óleo de peixe; e os sabores cremosos ou metálicos, que podem se desenvolver na gordura do leite. Os aldeídos geralmente contribuem para os off flavours que se desenvolvem durante a oxidação lipídica (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Além do desenvolvimento de aromas rançosos, a deterioração oxidativa dos lipídeos pode causar o branqueamento de alimentos, em razão da reação dos pigmentos, especialmente os carotenoides, com os intermediários reativos, chamados radicais livres, que são formados durante a oxidação lipídica. Os radicais livres também podem levar a uma redução da qualidade nutricional, por reagir com vitaminas, especialmente a vitamina E. Nos óleos de fritura, o aumento da concentração de radicais livres é muito mais elevado do que em alimentos armazenados ou processados em temperaturas moderadas. Nas temperaturas elevadas usadas em frituras, que normalmente são de 180°C, os radicais livres chegam a concentrações nas quais as combinações formando dímeros tornam-se significativas. Isso provoca aumento na viscosidade do óleo. A formação de ácidos graxos livres, o escurecimento do óleo e o aumento da formação de espuma e fumaça também ocorrerem durante a fritura. Os off flavours que se desenvolvem durante a oxidação lipídica normalmente servem de aviso que o alimento já não é mais comestível, embora isso não se aplique aos suplementos lipídicos poliinsaturados tomados na forma de cápsula. Existe certa preocupação de que a excessiva ingestão de hidroperóxidos lipídicos possa levar a efeitos adversos à saúde. Na teoria, se os hidroperóxidos são absorvidos, eles passam a ser uma potencial fonte de radicais, o que pode causar efeitos danosos in vivo. Os radicais livres produzidos pela decomposição dos hidroperóxidos podem causar danos às proteínas, incluindo enzimas, ou ao DNA, podendo também gerar substâncias cancerígenas. No entanto, muitas fontes de radicais livres ocorrem in vivo e a presença de antioxidantes na dieta, ou endógenos, normalmente, garante que os tecidos humanos continuem a ser saudáveis (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). As reações de auto-oxidação apresentam normalmente um período de indução, que é o período durante o qual ocorrem poucas mudanças nos lipídeos. Após o término do período de indução, a deterioração oxidativa dos lipídeos ocorre mais rapidamente. Os off flavours tornam-se mais aparentes após o Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração12 término do período de indução. Uma consequência do aumento acentuado na concentração de componentes de off flavours após o término desse período é que a taxa de deterioração dos alimentos é relativamente insensível com relação ao conteúdo exato de gordura dos alimentos. O período de indução é muito sensível a pequenas concentrações de componentes, que encurtam esse período, como os pró-oxidantes, ou que o prolongam, como os antioxidan- tes. Os íons metálicos são os mais importantes pró-oxidantes em alimentos, enquanto os antioxidantes incluem compostos que sequestram os radicais e estimulam a quelação de metais ou de outros mecanismos. A presença de um período de indução é uma característica das reações químicas que seguem um mecanismo de radicais livres. O nível de radicais livres no óleo é geralmente baixo, mas, em frituras, a rápida formação de radicais livres pode conduzir a uma combinação de radicais livres para formar dímeros de triglicérides. Os hidroperóxidos podem se formar por auto-oxidação, mas uma via alternativa é por meio da ação da enzima lipoxigenase nos ácidos graxos poliinsaturados. A lipoxigenase ocorre em diversos vegetais, como grão de soja, milho, batata, tomate, pepino, grãos de aveia e de cevada. A lipoxigenase é significante no desenvolvimento de aroma em vegetais, mas em sementes oleaginosas a sua ação, antes e durante a extração do óleo, pode levar à hidroperóxidos, que pos- teriormente se decompõem para formar off flavours no óleo. Os hidroperóxidos podem também se formar por foto-oxidação, se houver atuação de luz sobre a gordura na presença de um sensibilizante. No entanto, a decomposição dos hidroperóxidos é uma reação de baixo consumo energético para a iniciação da auto-oxidação e a composição dos off flavours voláteis que se forma é, normalmente, característica dos produtos da auto-oxidação, não importando como os hidroperóxidos iniciais são formados ( DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Rancidez hidrolítica Os ácidos graxos livres causam problemas aos alimentos, pois produzem odores indesejados, reduzem a estabilidade oxidativa, causam formação de espuma e reduzem o ponto de fumaça (temperatura em que o óleo começa a formar fumaça). Quando a liberação de ácidos graxos livres resulta no desenvolvimento de sabor desagradável, por exemplo, ácidos graxos livres voláteis de baixo peso molecular que geram aroma desagradáveis, ou ácidos graxos de cadeia longa que geram sabor de sabão, ocorre o que se chama de rancidez hidrolítica. A rancidez hidrolítica é a reação ocasionada pela ação de enzimas como a lipase/lipoxigenase e/ou por agentes químicos (ácidos/bases) 13Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração que rompem a ligação éster dos lipídeos, liberando ácidos graxos. Na rancidez hidrolítica ou lipolítica, forma-se ácidos graxos livres, saturados e insaturados, ocorrendo à diminuição da qualidade das gorduras destinadas principalmente a frituras, alterando especialmente as características organolépticas, como a cor (escurecimento), o odor e o sabor dos alimentos. A presença de água acelera a rancidez hidrolítica, além disso, quando as gorduras contendo ácidos graxos livres são emulsionadas em água, esses ácidos graxos livres, mesmo em baixas concentrações, proporcionam sabor e odor desagradável. Deve-se evitar o uso prolongado da mesma gordura no processamento de alimentos (frituras), especialmente se estes alimentos forem ricos em água. A rancidez hidrolítica pode ser inibida pela inativação térmica das enzimas e pela elimi- nação da água no lipídeo. Durante o processamento e o armazenamento de tecidos biológicos usa- dos como matéria-prima para alimentos, estruturas celulares e mecanismos de controle bioquímico, podem ser destruídos e as lipases podem se tornar ativas, podendo haver contato com substratos lipídicos. Um exemplo disso pode ser visto na produção do azeite de oliva, em que o óleo da primeira prensagem apresenta concentração baixa de ácidos graxos livres. Os óleos das prensagens seguintes e o extraído do bagaço apresentam conteúdo ele- vado de ácidos graxos livres, pois a matriz celular é rompida e as lipases têm tempo de hidrolisar os triacilgliceróis. A hidrólise dos triacilgliceróis também pode acontecer na fritura de óleos em razão das temperaturas elevadas de processamento e da introdução de água do alimento frito (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). A oxidação pode levar à destruição de vitaminas, ácidos graxos, pigmentos e proteínas, mas a perda das qualidades sensoriais é o efeito mais visível decorrente desse processo. Os compostos voláteis formados podem fazer com que o alimento seja rejeitado mesmo estando em concentrações muito baixas. Para alimentos com alto teor de ácidos graxos insaturados, como amêndoas de castanha de caju, o uso de embalagens com baixa permeabilidadeao oxigênio e com boa barreira à luz e a utilização de vácuo ou inertização minimizam os efeitos da oxidação, retardando seu processo (LIMA, 2002). Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração14 Fatores que influenciam a oxidação de lipídeos nos alimentos Em alimentos, os principais fatores relacionados à ocorrência ou controle dessas reações são os seguintes. 1. Quantidade de O2 presente, uma vez que a rancidez oxidativa não ocorre na ausência de O2. 2. Composição da gordura, ou seja, o tipo de ácido graxo insaturado e o grau de saturação têm influência significativa na oxidação (os ácidos linoleico e linolênico oxidam-se 64 e 100 vezes mais rápido do que o ácido oleico, respectivamente). 3. Exposição à luz, sendo que esta acelera as reações de oxidação e, por isso, na medida do possível, deve-se evitar sua incidência direta nos alimentos suscetíveis à oxidação. 4. Temperatura de armazenamento. Quanto maior a temperatura, maior será a velocidade com que a reação se desenvolve. A cada aumento de 10°C na temperatura, a reação do oxigênio com a gordura insaturada duplica. Esse efeito pode ser minimizado com o armazenamento de alimentos sob refrigeração e congelamento (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). Outros fatores que influenciam a oxidação lipídica são a presença de catalisadores, chamados de pró-oxidantes, os quais aceleram a reação de oxidação e a atividade de água dos alimentos, sendo que a presença de água livre aumenta a atividade catalítica e o risco de oxidação. Na indústria de alimentos, além do controle dos procedimentos físicos (temperatura, luz e O2), pode-se também acrescentar aos alimentos agentes antioxidantes, que bloqueiam as reações de oxidação, retardando a formação de compostos desagradáveis (DAMODARAN; PARKIN; FENNEMA, 2010). 15Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração GALISA, M. S.; ESPERANÇA, L. M. B.; SÁ, N. G. de. Nutrição: conceitos e aplicações. São Paulo: M.Books, 2008. GONÇALVES, E. C. B. A. Análise de alimentos, uma visão química na nutrição. 3. ed. São Paulo: Varela, 2012. GONÇALVES, E. C. B. A. Química dos alimentos: a base da nutrição. São Paulo: Varela, 2010. DAMODARAN, S.; PARKIN, K. L.; FENNEMA, O. R. Química de los alimentos. 3. ed. Zaragoza: Editorial Acribia, 2010. LIMA, J. R. Vida de prateleira de amêndoas de castanha de caju em embalagens comer- ciais. Comunicado Técnico EMBRAPA, n. 76, 2002. Disponível em: <https://www.embrapa. br/busca-de-publicacoes/-/publicacao/425150/vida-de-prateleira-de-amendoas-de- -castanha-de-caju-em-embalagens-comerciais>. Acesso em: 11 out. 2018. PHILIPPI, T. S. Pirâmide dos alimentos: fundamentos básicos da nutrição. 2. ed. Barueri, SP: Manole, 2014. PINHEIRO, D. M.; PORTO, K. R. de A.; MENEZES, M. E. da S. A química dos alimentos: car- boidratos, lipídios, proteínas e minerais. Maceió: EDUFAL, 2005. (Conversando sobre ciências em Alagoas). SILVA, F. A. M.; BORGES, M. F. M.; FERREIRA, M. A. Métodos para avaliação do grau de oxidação lipídica e da capacidade antioxidante. Química Nova, v. 22, n. 1, p. 94-103, 1999. Lipídeos — conceito, propriedades e reações de deterioração16 Conteúdo:
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