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Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos ARMINDO BIÃO Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos P&A Gráfica e Editora Salvador - Bahia 2009 Copyright 2009, Armindo Jorge de Carvalho Bião Projeto gráfico Editoração eletrônica Antonio Raimundo Martins Cardoso Capas e foto João Paulo Perez Cappello Revisão Heloisa Prata e Prazeres Normalização bibliográfica Flávia Catarino Conceição Ferreira FICHA CATALOGRÁFICA B473t Bião, Armindo Jorge de Carvalho Teatro de cordel e foramção para a cena: textos reunidos/ Armindo Jorge de Carvalho Bião, Prefácio Jean-Marie Pradier. – Salvador: P&A Gráfica e Editora, 2009. 447 p. ISBN: 978-85-86268-70-0 1. Literatura de cordel. 2. Literatura de cordel – Teatro. 3. Etnocenologia. I. Pradier, Jean-Marie. II. Título. CDD 389.5 P & A Gráfica e Editora Endereço: Av. Iemanjá, 365 – Jardim Armação CEP 41710-755 – Salvador – Bahia Tel.: (71) 3371-1665 pagrafica@uol.com.br Para meus alunos, que colaboraram com a maior parte dos textos aqui reunidos, sempre me motivaram a escrever e, mais recentemente, me sugeriram publicá-los. Para meus professores, Robert Moulton, Elisabeth Nash, Barbara McIntyre, Wesley Balk, Doug Berry, David W. Thompson, Glen Gadberry e Charles Nolte, que me ensinaram teatro na universidade. Para meus mestres de teatro João Augusto, Luciano Diniz Borges e Álvaro Guimarães (in memoriam), Deolindo Checcucci, Manoel Lopes Pontes e Vieira Neto, Harildo Deda e Benvindo Siqueira. . E, finalmente, para meu tio-avô, irmão de minha avó paterna, Armindo Valverde Martins, que, através de meu pai, Romeu Martins Bião, me legou sua caderneta e álbuns de viagem das Olimpíadas de Berlim de 1936, além de outros álbuns e referências sobre poesia, cinema e a criação de estrelas! Agradeço a meus tios pelo lado paterno Mariath Martins Bião, que me levou aos primeiros espetáculos teatrais e à verdadeira cabeça cortada de Lampião morto ainda não enterrada, e Eduardo Martins Bião, que me inspirou com seus folhetos de cordel, a sanfona e seu trio nordestino, e, pelo lado materno, a Tia Iaiá, Maria Nilda de Carvalho Martins, que armava todo ano o maior e mais misterioso presépio que já conheci de bem perto, a Tereza Conceição Araújo dos Santos, que produziu muitos presépios vivos dos quais participei. e a Tio Raul Nobre Martins, que me mostrou os filmes de Carlitos, entre tantos outros. Agradeço também a minha mãe Dulce Aleluia de Carvalho Bião, pelo apoio incondicional, a João Paulo Perez Cappelo, pelas capas, fotos e ajuda com os originais e a Marcos Lopes, pelo apoio. SUMÁRIO Nota do autor sobre a presente edição .......................................................... 11 Prefácio: A vida na obra, A obra na vida ....................................................... 19 Préface: La vie dans l’oeuvre, L’oeuvre la vie .............................................. 27 Do teatro de cordel A Padilla: história, mito e teatro (2008) .............................................................. 37 Itinerário de Maria Padilha (2008) ........................................................................ 43 Faustos e diabos na encruzilhada dos discursos germânicos e brasileiros (2007) ........................................................................................................................ 53 “Mulher é o diabo!” (2007) ................................................................................... 77 O oral, o impresso e a cena: pesquisa artística e científica (2006) ..................... 91 Conférence de Tombouctou (2005) ..................................................................... 99 O cordel da vida e o teatro e a palavra bião (2005) ............................................ 121 Sobre quatro entremezes portugueses e a palavra bião (2005) ........................ 135 Sobre o Isto é bom demais! (2005) ..................................................................... 149 Conclusão do livro Teatro de cordel na Bahia e em Lisboa (2005) ................. 157 Isto é bom! um sarau barroco (2002) ................................................................. 161 Da formação para a cena As artes do espetáculo no Brasil contemporâneo (2008) ................................. 173 ABRACE: avaliação de um percurso e perspectivas (2007) .............................. 207 O teatro do mundo: da importância dos cenários e dos figurinos (2007) .... 221 Fundamentos do discurso sobre as artes cênicas no Brasil (2007) ................. 223 Sobre o teatro e as publicações a seu respeito (2005) ........................................ 239 Indicadores para a avaliação da produção acadêmica da Escola de Teatro da UFBA 1956/ 1997 (1998) ...................................................................................... 243 A especificidade da pesquisa em artes cênicas no ambiente universitário brasileiro (1999) ...................................................................................................... 265 Artes cênicas na universidade brasileira comentários sobre parcerias e a criação de um programa de pós-graduação em artes cênicas na Bahia (1998) 271 A liquidez do mercado e a fúria legislativa: sobre o ensino de artes nos níveis fundamental, médio, superior e pós-graduação e suas relações com a formação profissional em artes (1997) ............................................................. 285 A mesa falante (1997) ............................................................................................. 291 Alguns comentários sobre ingresso em curso superior de teatro e pós- graduação (1993) ..................................................................................................... 303 Dramaturgia Brasileira em Aulas de Interpretação (1984) ............................... 321 Supporting Paper on Spring Romance: a Master of Fine Arts Acting Recital (1983) ........................................................................................................................ 357 O Ator Nu: Notas Sobre Seu Corpo e Treinamento Nos Anos 80 (1982) .. 371 Miscelânea do mesmo Sobre o GIPE-CIT para o CNPq em 30 de novembro de 2008 .................... 387 As logomarcas do GIPE-CIT, do PPGAC e da ABRACE ........................... 389 O cordel ainda está muito vivo no Brasil (2008) ............................................... 393 Tentativa de contribuição sobre áreas de conhecimento da Tabela do CNPq (2007) ........................................................................................................................ 401 Prefácio à edição brasileira de livro francês sobre cordel (2006) ....................... 403 Discurso para os graduados pela Escola de Teatro da UFBA em (2006) ...... 407 Nota histórica sobre a ABRACE (2003) ............................................................. 413 Editorial de Memória ABRACE V: Anais do II Congresso (2002) .............. 415 Editorial de Memória ABRACE IV: Livro de Resumos do II Congresso (2001) ........................................................................................................................ 417 Editorial de Memória ABRACE III: Como pesquisamos? Os Grupos de Trabalhos (2001) ..................................................................................................... 419 Editorial de Memória ABRACE II: Anais da I Reunião Científica (2000) ... 421 Editorial de Memória ABRACE I: Anais do I Congresso (2000) ................. 423 Discurso para os graduados pela Escola de Teatro da UFBA em 1999 (1999) 427 O Teatro Mora na Filosofia (1999) ...................................................................... 429 Depoimento sobre Estudo no Exterior (1994) ................................................ 433 Teatro, como arte de comunhão (1984) .............................................................. 439 11 Armindo Bião Nota do autor sobre a presente edição A “presente edição” à qual se refere este título é a dedois livros, nos quais esta mesma “Nota” aparece: Etnocenologia e a cena baiana e Teatro de cordel e formação para a cena, ambos com a característica idêntica, de reunirem textos de um só autor, quase todos já publicados anteriormente em outros livros e periódicos. Em Etnocenologia e a cena baiana, estão reunidos 40 textos, já publicados entre 1988 e 2008 no Brasil e na França (dois dos quais ainda no prelo no momento da presente edição), nas linhas de pesquisa que passei a desenvolver em função de meu doutoramento. Além do campo de pesquisa privilegiado que tem sido a Bahia (inclusive seu teatro), foco de mais de um quarto dos ensaios, artigos e outros textos aí reunidos, esse livro traz um conjunto de abordagens de caráter epistemológico e metodológico, no horizonte teórico da sociologia relativista e compreensiva do atual e do cotidiano e da etnociência das artes do espetáculo, a etnocenologia. Em Teatro de cordel e formação para a cena, estão reunidos 52 textos, produzidos entre 1982 e 2008 nos Estados Unidos da América do Norte, no Brasil e na França (cinco dos quais ainda inéditos no momento da presente edição), relativos à interpretação teatral, a minha prática de ator, encenador e professor de artes do espetáculo e às pesquisas que venho desenvolvendo no âmbito da oralidade e da teatralidade da literatura de cordel. A palavra bião, que identifica minha família paterna e que aparece em textos do teatro de cordel lisboeta do século XVIII, é aí motivo de reflexão pessoal, profissional, antropológica e etnocenológica. Razões históricas da edição dos dois livros Ao longo de 30 anos de atuação como docente universitário, na área das artes do espetáculo, tenho me deparado com o grande problema do texto didático: sua escassez e dificuldade de acesso. Na Bahia, em 12 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos particular, esse problema só me parece ser menor que o de nossas bibliotecas públicas, cuja grandeza só me foi revelada, em toda sua dramática extensão, quando estudei, no início dos anos 1980, nas Universidades de Pittsburgh e Minnesotta, nos Estados Unidos da América do Norte. De fato, ali, a abundância de textos disponíveis – e a eficiente existência de bibliotecas, de grande acervo com acesso fácil e ágil, abertas ao público de modo quase ininterrupto, com pessoal bem qualificado – surpreenderam-me. Talvez, e não por mera coincidência, fosse ali e quando eu começaria a estudar, de fato, metodologia da pesquisa, passaria a valorizar a produção de textos didáticos e a boa manutenção de bibliotecas públicas e, além disso, começaria, também, a produzir textos para uso em salas de aulas de cursos de teatro. Daí, resultaram meus artigos “O ator nu: notas sobre seu corpo e treinamento nos anos 80” e “Dramaturgia brasileira em aulas de interpretação”, publicados, respectivamente, em 1982 e 1984, na Revista Art, da então Escola de Música e Artes Cênicas da Universidade Federal da Bahia, nossa UFBA. A plena compreensão da pesquisa, em suas dimensões de pureza e aplicabilidade, só me seria revelada um pouco mais tarde, no final dos anos 1980, durante a realização de meu doutorado, nas velhas instalações da Sorbonne, que eu escolhera por conta de sua proximidade física (em Paris) de locais onde se praticavam técnicas teatrais de máscara, que eu conhecera nos EUA, durante o mestrado, junto à companhia teatral franco- norteamericana Théâtre de la jeune lune. Pois foi ali, apesar de alguma dificuldade de acesso ao precioso acervo bibliográfico existente, que aprendi o real e elevado valor da reflexão filosófica, da crítica e do livre debate de ideias. Minha atração pelo teatro, bem arcaica, quase infantil – segundo amigos adeptos do espiritismo, de minha família, proveniente de outra reencarnação – como se observa no parágrafo anterior, parece ser o eixo norteador do acaso e da necessidade de minha vida acadêmica e de minha produção bibliográfica, como se poderá confirmar no próximo parágrafo. No entanto, a possibilidade de efetiva articulação de teoria e prática, teatro e filosofia, artes do espetáculo e ciências do homem, só se 13 Armindo Bião tornaria realidade para mim a partir de 1995, quando participei do evento no qual se propôs a etnocenologia, também em Paris. Aí e então, teve início um terceiro momento de minha produção textual, cujo formato mais realizado só começaria a aparecer bem recentemente, em artigos como “Um trajeto, muitos projetos” e “Um léxico para a etnocenologia”, ambos de 2008. Voltando ao momento chave de meu doutoramento, foi também na Sorbonne, no final dos anos 1980, que passei a produzir textos numa perspectiva mais teórica, como os ensaios “Le jouir du jouer” (1988) e “Teatralidade e espetacularidade” (1990), religando-me a minha iniciação universitária no campo da filosofia, curso, aliás, que eu escolhera, em 1967, mais uma vez, graças a minha atração primordial pelo teatro, menos pelo conteúdo programático do curso e mais pela existência de um atuante grupo de teatro na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, conforme relato no texto “O teatro mora na filosofia”, escrito para as celebrações dos 50 anos da mais antiga universidade baiana, em 1996. Na verdade, essa religação filosofia-teatro-pensamento francês estende- se a minha participação adolescente em dois grupos: um de “teatro de orientação espírita” e outro de estudos sobre “a filosofia de bases científicas e consequencias religiosas”, que seria o espiritismo ortodoxo positivista francês, segundo a tradição oral e escrita local. Retornando, de modo mais pontual, à presente edição simultânea de dois livros, reunindo textos (quase todos já publicados), em minha avaliação, mesmo com o grande avanço tecnológico e telemático, dos últimos anos, que amplia as possibilidades de acesso a textos didáticos e a acervos bibliográficos, o que vivemos na área das artes do espetáculo, na Bahia sobretudo, em termos de bibliotecas públicas (universitárias ou não), é, ainda, uma situação dramática. Para mim é muito claro que, atuando, prioritariamente, numa metrópole regional brasileira de médio porte, como Salvador, de um lado, nossas dificuldades locais de publicação de livros e de periódicos são enormes. De outro lado, mesmo havendo, aqui, uma efetiva inserção no avanço tecnológico e telemático ao qual aludi no parágrafo anterior, graças à ampliação do acesso às telemáticas, na verdade, nosso acesso à 14 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos informação, que é o centro de minha atenção na presente “Nota”, permanece problemático. Porque, além de nosso parco hábito de leitura e de escrita, do pequeno conhecimento das metodologias da pesquisa e das múltiplas formas escritas das línguas, em geral, talvez, até como fato correlato, nossa produção bibliográfica pertinente seja muito escassa e, o que é muito mais grave, continue a haver uma pequeníssima circulação dos raros textos didáticos e dos resultados de pesquisa efetivamente publicados, na área das artes do espetáculo. Mesmo tendo publicado textos de minha autoria fora e dentro do Brasil, inclusive fora da Bahia, o número pequeno de exemplares das edições dos periódicos de nossa área de artes e sua precária circulação internacional (e também até nacional) leva-me a um fato já muito conhecido também em outras áreas do conhecimento em nosso país. A questão é que, talvez, esse fato seja ainda mais grave em nossa área: dos fenômenos efêmeros do espetáculo. Trata-se do crescimento do uso de reproduções em fotocópias, nem sempre de boa qualidade e eventualmente com danosas distorções das referências dos originais copiados, de textos didáticos e de resultados de pesquisa. Aliás, o hábito de professores deixarem, no serviço de reprodução de textos de sua unidade acadêmica, cópias dos textos indicados para os alunos, para serem, por sua vez, também, fotocopiadas, tem se tornado prática cada vez mais frequente e, até, motivo de pesquisa acadêmica. Assim, selecionei quase uma centena de textos, publicados desde 1982, entreartigos, ensaios, palestras transcritas, entrevistas, editoriais, prefácios, apresentações de livros e similares, por considerá-los de alguma utilidade para as disciplinas que leciono e para as atividades de pesquisa e extensão que desenvolvo. Como o volume do material ficou muito grande para um só livro, fui levado a organizá-lo em dois livros, e não em dois volumes de um mesmo livro, porque, o esforço teórico, prático e pragmático, de seleção e preparação dos originais assim me sugeriu. É o resultado desse esforço, que só me enriqueceu, e que, graças ao CNPq, à ajuda profissional de, entre outros, Heloísa Prata e Prazeres, e ao apoio técnico de João Paulo Perez Cappello, agora vem a público. 15 Armindo Bião Razões imediatas da edição dos dois livros Esta edição teve origem aproximadamente em março de 2008, quando comecei a desenvolver o projeto de pesquisa Mulheres por um fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro, com o qual recebi nova bolsa de Produtividade em Pesquisa do CNPq, agora de Nível 1A, por três anos. Acompanhada de um grant mensal em recursos financeiros, que podem ser investidos em publicações, a concessão dessa bolsa me possibilitava reunir, com objetivo de promover sua edição, tudo (ou quase tudo) o que já havia publicado. O que me permitiria, além de promover doações a bibliotecas especializadas, vender o produto editado aos interessados praticamente pelo preço dos custos não cobertos pelo grant (serviços de pessoa física, de revisão, normalização e preparação dos originais), já que esse cobriria os custos de impressão. E, para mim, ficava cada vez mais clara a necessidade de um suporte desse tipo para minhas atividades acadêmicas, de pesquisa, ensino e extensão. De modo mais pragmático – confesso – eu também queria facilitar minha vida de professor e a de meus alunos, sobretudo a de meus orientandos, dando-lhes mais fácil acesso a parte da bibliografia que eu já lhes indicara e que poderia usar em futuros cursos. No processo de reunião e seleção dos textos que já publicara, reuni também poemas diversos (publicados e inéditos) de minha autoria, o que resultou num terceiro livro, Bloco mágico e lua e outros poemas, já lançado no final de 2008. Razões metodológicas Os textos foram organizados, de acordo com sua temática central, nos dois livros e, dentro de cada um deles, em blocos temáticos (para os artigos, ensaios e similares) e num bloco final, denominado “Miscelânea”, contendo as entrevistas, editoriais e afins. Com a implantação da nova ortografia da língua portuguesa a partir de 2009, fiz um grande esforço de adaptação dos textos originais, publicados exclusivamente ou também em português, às novas regras hoje em vigor, o que, sem dúvida, se altera o texto de referência já publicado, tirando-lhe algo do sabor de outra 16 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos época, também lhe dá uma atualidade desejável. Do mesmo modo, os títulos foram revistos, para darem conta ao leitor, do modo mais preciso possível, de seu conteúdo e, eventualmente, de seu contexto, como nos casos de “Prefácio a...”, por exemplo. Quanto aos textos escritos e publicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português, optei por republicá-los nas línguas em que estão disponíveis. Quanto aos raros textos escritos e publicados em francês e em inglês, ainda sem tradução para o português, optei por publicá-los nas línguas em que estão disponíveis. Já os prefácios, de Michel Maffesoli, para Etnocenologia e a cena baiana, e de Jean-Marie Pradier, para Teatro de Cordel e formação para a cena, aparecem em suas versões originais em francês e numa tradução para o português, por conta dos principais leitores alvo: sobretudo lusófonos, mas também francófonos. Com facilidade, o leitor poderá perceber que ideias recorrentes e, até, trechos inteiros, reproduzem-se de um texto para outro. O que me levou a optar por sua organização, dentro da cada bloco de textos, por ordem cronológica, na esperança de que se possa acompanhar o processo de transformação dessas ideias e formulações do discurso. Por isso a ordem de apresentação dos textos em cada um desses blocos é cronológica, do mais recente para o mais antigo, o que pode ser visualizado nos Sumários, onde após o título de cada um deles informa-se o ano de sua mais recente publicação, entre parênteses. O resultado dos dois livros, assim, acaba por remeter ao universo da arte e da cultura barrocas, que definiram a identidade de nosso país e, mais particularmente, de nossa Bahia, de nossa Salvador e minha própria. O fato de divulgar, para acesso e download gratuito, o conteúdo de ambos os livros, através de www.gipe-cit.blogspot.com e de www.teatro.ufba.br/gipe, pode comprovar minha intenção de superar as dificuldades de acesso a textos didáticos e de resultados de pesquisa, que classifiquei como dramáticas na área das artes do espetáculo e na Bahia, em particular. É claro que a edição de apenas quinhentos exemplares de cada um dos livros (para doação a bibliotecas e venda em raras livrarias, através de um esforço muito pessoal e artesanal ou por meio daqueles sítios virtuais acima indicados), por uma pequena editora local, 17 Armindo Bião soteropolitana, não contribuiria de modo decisivo para o enfrentamento daqueles problemas. Mas, também, fica claro que só a organização do material que eu quis publicar no formato de livro me permitiu chegar até sua divulgação pela rede mundial de computadores. Finalmente, faz-se necessária uma referência à utilização de palavras não dicionarizadas. A palavra “espetacularidade”, por exemplo, é definida em vários dos textos nos quais aparece, em particular em “Um léxico para a etnocenologia”, como a categoria dos fenômenos sociais extraordinários. Outras palavras, provindas do vocabulário proposto por Michel Maffesoli e de franca inspiração da filosofia alemã romântica, contudo, merecem aqui uma, ainda que também breve, definição. Assim, “sensorialidade” é a categoria da percepção sensorial que se distingue de “sensibilidade”, cuja conotação de qualidade, emoção, faculdade perceptiva e reativa e fragilidade é muito forte e distinta do que se pretende compreender com essa nova palavra. Sensorialidade é, mais especificamente, a condição humana de conhecer através dos sentidos. Do mesmo modo, “afetual” é a condição humana, distinta do sensorial, do racional e do emocional, que se refere ao conjunto de empatias, simpatias e antipatias que aproximam e distanciam as pessoas. E “reencantar” e “reencantamento” referem-se a uma nova forma de se ver o mundo na cultura ocidental, fortemente marcada pelo desencantamento da modernidade. Depois de um mundo desencantado, estaríamos vivendo um novo momento, o do “reencantamento”, da aceitação do mistério. Por fim, no âmbito da história do teatro, a palavra “revistógrafo”, que se refere ao especialista em teatro de revista, uma modalidade teatral hoje em desuso, que gerou a palavra dicionarizada “revisteiro”, para designar o autor de peças desse tipo, que aparece em alguns textos sobre esse tipo de comédia musical, muito popular do final do século XIX a meados do século XX, pode ser bem compreendida ao se conhecer o perfil de Xisto Bahia (1841-1894), ator, músico, autor, encenador, produtor. Xisto Bahia também pode ser considerado um revistógrafo, palavra cujo sufixo remete mais à teoria e à grafia. Ora, teoria (e escrita) e teatro (e vida breve, na prática) são faces da mesma moeda, até por sua origem etimológica. A presente edição é um tributo a Xisto Bahia, ao teatro e à teoria! 19 Armindo Bião Herdeiros de uma cultura da verdade revelada, temos tendência a considerar as teorias do mesmo modo que um joalheiro usa para contemplar seus diamantes, sem ter a menor ideia de quem esteve nas minas para extraí-los da terra. A nova perspectiva que nosso grupo de amigos abriu em 1995, denominando-a de “Etnocenologia”, age de modo inverso. Continuando a alusão aos joalheiros, diria que ao contrário dos cristalógrafos que recorrem ao métodomatemático e descritivo para estudar a estrutura dos cristais em detrimento do método de sua formação, o etnocenólogo se dedica a esclarecer a complexidade das encarnações do imaginário, sem reduzi-las pela análise a uma mecânica desvitalizada ou a uma estrutura simbólica sem corpo. Para conseguir isso, é preciso pertencer a algum grupo que compartilhe ideias comuns e ter vivenciado pessoalmente algumas experiências. A obra que Armindo Jorge de Carvalho Bião oferece ao leitor é um opus significativo desse procedimento ao mesmo tempo científico e artístico, racional e sensível. Esta obra me conduz, pelo seu propósito, a me deter num truísmo caro à Antropologia reflexiva contemporânea que é importante lembrar: –”Toda teoria pressupõe um teórico”. Evidência que se torna um axioma epistemológico de primeiríssima importância na área que denominamos “Ciências da Arte”. A palavra teoria, originada do grego, pertence etimologicamente ao campo semântico da visão, thea. Outrora, esta palavra significava contemplação, observação meditada e refletida, conhecimento pelo olhar. Que o substantivo teatro dela se origine, leva à reflexão… A neurobiologia contemporânea e a psicobiologia enfatizam que nós só percebemos o que aprendemos a perceber e o que desejamos perceber. Ator – e que ator!–, poeta, universitário, pedagogo, amante da vida, amigo fiel, poliglota, viajante, Armindo Bião não tem o olhar de quem seria o seu oposto. Sua thea lhe Prefácio: A Vida na Obra A Obra na Vida 20 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos pertence de modo intrínseco e participa da elaboração de sua teoria, entendida não no sentido de doxa imperativa, mas de exposição coerente de um conjunto de conhecimentos, provas e aprendizagens. O biografismo da Escola Naturalista Francesa considerava que uma relação de causa e efeito unia o autor à sua produção, de tal modo que a explicação de texto passava pelo estudo do escritor em seu meio biológico, histórico e social. Marcel Proust – Contra Sainte Beuve – foi um dos primeiros a ter contestado essa visão determinista e intelectualista, convidando o leitor a apreender o autor pela sensibilidade. Diante da curiosidade legítima que leva a se interrogar sobre a origem das ”coisas” – ideias, fenômenos e comportamentos – parece- me necessário acrescentar o desejo de se apoderar das chaves que permitem abrir a obra, de dilatá-la para além do que ela pode ter de elíptico e de claro-escuro. Quanto mais uma obra é rica, elaborada, densa, mais ela corre o risco de ser empobrecida pelo leitor que a interpreta segundo seus próprios limites, condicionamentos, hábitos e experiências. A palavra “monastério” escrita com a pena de um monge não tem os mesmos ecos semânticos que tem ao ser inserida num livro de arquitetura ou na narrativa de um ateu. A diversidade do sensível, isto é, a estesia, continua terra incógnita para quem não reconhece o seu próprio, ou dele é desprovido por atimia. Bergson em As Duas Fontes (1932) evocava “... o misticismo não diz nada, absolutamente nada, àquele que dele não experimentou alguma coisa.” »Neste sentido, qualquer obra lida é na realidade uma obra traduzida, ainda que ela não tenha sido passada para outra língua. A tradução é uma fonte de mal-entendidos, aproximações, distorções, ilusões de compreensão, simplificações, castração. É sem dúvida por esta razão que os discípulos são frequentemente acusados de serem mais dogmáticos que seus mestres. Tradutores da obra, eles esquecem que fomentam uma verdadeira transliteração da intuição primeira do autor: uma transcrição signo a signo de um sistema de escrita e de pensamento para outro sistema, o deles. É dessa forma que nascem os papas e a crença na infalibilidade deles, tal como um criado investido das insígnias do príncipe e que se dedicaria a legiferar. 21 Armindo Bião Armindo Jorge de Carvalho Bião, que em 1995 participa do colóquio de criação da Etnocenologia em Paris, é um indivíduo singular. Com isso quero dizer que essa singularidade anima sua adesão e sua reflexão e dá ânimo e sangue novo à disciplina. Desde o primeiro momento, sabíamos que a Etnocenologia só poderia ser internacional. Isto é, livre de qualquer influência teórica imperial mas, pelo contrário, alimentada pela multiplicidade de visões do mundo propostas pelos pesquisadores. O sabor cresce em função da diferença, escreve Victor Segalen em seu magistral ensaio sobre o Exotismo. O conhecimento também. Propósito duvidoso quando nosso tempo conhece sob o pretexto de “aldeia global” a erradicação de dessemelhanças sutis. Em nome do universal – proclamado pelos dominantes, não pelos dominados – vivemos o tempo das hegemonias culturais servidas pelas potências econômicas e políticas. O internacionalismo reivindicado é o único meio de aceder ao forte sabor do diferente. A faculdade de sentir o diferente, inerente ao artista é o primeiro antídoto contra a intelectualidade produtora de insípidas sínteses. O gosto do diferente, o apetite das sensações e a revolta contra o aprisionamento são as chaves biográficas do Armindo pesquisador que eu levo em consideração. Nasceu na Bahia, numa cidade musical, colorida, compósita, sensual que embriaga o visitante. Nela, uma pluralidade de devoções heterodoxas ocupa os espíritos e os corpos. Recém-nascido, Armindo foi batizado católico. Primeira ruptura. Pouco tempo após seu nascimento, seus pais deixam a Igreja de Roma e sua liturgia encantada e se convertem à doutrina de Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), mais conhecido pelo nome de Allan Kardec. Persuadido de ser a reencarnação de um druida, cujo nome adotou, Kardec, seduzido pelas mesas giratórias e a prática de comunicação com os espíritos, fundou um movimento positivista invocando a ciência e não a religião. No Brasil, muitos são seus discípulos reunidos em círculos, cuja atividade principal é organizar sessões de comunicação com os mortos. O menino Armindo é assim brutalmente jogado num estranho universo de adeptos reunidos em torno de um médium preocupado em alcançar as trevas do além. 22 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos Aos domingos, enquanto a praia recebe as anatomias desnudas em busca do sol, ar e olhares, Armindo engonçado num terno se encontra numa sala desprovida de ornamentos e de iluminação, na qual ocorre a reunião dos crentes, silenciosos, atentos à palavra do mestre e dos mortos. O dirigente professa ensinamentos que soam como lições escolares aos ouvidos da criança. Seu tédio é grande. Caminhando ao lado de seus pais, ele cadencia seus passos para afugentar seu tédio, olha sorrateiramente e com inveja a nudez e a indolência dos banhistas. Ele é envolvido nas atividades do círculo espírita: visitas a presídios e hospitais, encontros com a colônia japonesa. Uma tia solteira que mora com a família cuida dele enquanto o pai e a mãe trabalham. Ela o leva ao teatro, a museus. Um dia, foram à Faculdade de Medicina onde, nas salas abertas ao público, é possível contemplar as cabeças cortadas dos famosos bandidos do Sertão, os Cangaceiros. A volta para casa é animada. Os pais ficam furiosos. No entanto, a cabeça cortada de Lampião e a de sua companheira Maria Bonita não impressionou o pequenino Armindo mais do que uma exposição itinerante de embriões, da qual ele guarda uma terrível lembrança. A família possui altas patentes das Forças Armadas, instituição socialmente muito prestigiada, atraída pelos ideais positivistas. O filho faz dez anos. Imediatamente, é tomada a decisão de enviá-lo à Escola Militar, para prosseguir seus estudos. Tempos de violência infligida. É preciso deixar a tepidez de um meio feminino protetor para entrar na gaiola dos predadores. Os pequeninos machos arrogantes apertados em seus uniformes constituem uma sociedade hierarquizada pela arrogância e pela força. No baixo escalão, estão os mais meigos, emotivos e sensíveis, dominados sem piedade pelos selvagens seguros de si mesmo. Alguns romances dão o tom. Ernst von Salomon: Eis, tal e qual foram desde sempre,os cadetes! Podeis vê-los em perfeita ordem, corpo a corpo, em total alinhamento com o homem- base, esses adolescentes com o rosto ainda arredondado, mal lapidados? …Ei-los com suas cabeças raspadas, esses pequenos boçais espremidos em seus uniformes de tecido rústico de cores bárbaras, com botões 23 Armindo Bião dourados abotoados até o rígido colarinho, seus pezinhos nas botas cravejadas e sobre suas frágeis espáduas as enormes e desproporcionais dragonas. (Die Kadetten, postface) Levantar na alvorada. Resultados escolares deploráveis. Armindo, nos seus pesadelos noturnos, vê-se atravessar a cidade completamente nu para ir à escola. Restam os sábados, dias de descanso. Um tio afortunado, proprietário de uma fábrica de velas e círios, amante de cinema, convida a família para almoçar e depois, para sessões de projeção. Chaplin, Laurel e Hardy Comédias Musicais da Metro. Mesa animada, tagarelice, gastronomia, primos, prazer de rirem juntos e de partilhar momentos de viagem no imaginário. Movimentar-se, dançar, cantar. O oposto da Companhia de Cadetes. Próximo à casa da família, além disso, um amplo terreno baldio recebia os ciganos e seu circo. Não há apenas espetáculos, palhaços, músicos, mas também a vida do clã, os casamentos festivos que duram dias, as livres cambalhotas das crianças. Espetáculo vivo, espetáculo na tela. O imaginário desabrocha sob todas as formas e incita a romper com a secura brutal da Escola Militar e a morbidez do diálogo com os mortos. Pretender dançar e estudar balé é pedir muito. A dança é impura! Resta o teatro. Allan Kardec responsabilizara-se pela contabilidade da Baraque Lacaze, pequeno teatro pertencente a um prestidigitador que lhe deu o nome. O movimento espírita não era hostil à arte dramática, na qual ele via um meio de educação prosélito. Consultado, o médium responsável pelo Círculo Espírita frequentado pela família aconselha o jovem a interrogar os mortos por escrito. Estes dão uma resposta positiva. Armindo teria sido artista dramático numa vida passada. Sua missão será difundir a boa nova espírita através do teatro. Os prazeres das praias continuam longínquos. Sábados e domingos são dedicados aos palcos e às práticas cultuais. Ocorrem encontros com os mais diversos cientistas, sempre em nome da busca positivista. Contudo, o responsável pelo Círculo se preocupa: – “Não estou aqui para educar uma serpente que me morde”, diz ele a Armindo, no qual ele depositava grandes esperanças. O jovem, não obstante o teatro, não está bem. Ele acumula distúrbios 24 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos psicossomáticos, taquicardia, úlcera do estômago. Finalmente, ele consegue deixar a Escola Militar, após cinco anos de caserna e acabar seus estudos num estabelecimento público. O Círculo Espírita é abandonado. Armindo descobre a cultura alemã ao folhear um álbum de fotografias pertencente a um parente que assistiu aos Jogos Olímpicos de Berlim. Ele vai para o Instituo Goethe, frequenta-o, aprende o alemão e começa a cursar Filosofia na Universidade, iluminado pela fenomenologia e sua concepção do corpo. Fim dos anos sessenta. Os militares da linha dura vencem. Eles impõem ao Marechal Costa e Silva um golpe contra o Congresso de Brasília. A universidade brasileira, os democratas afrontam a ditadura. Estudantes e professores ocupam as faculdades. Em 1969, Armindo é preso e, em seguida, é solto. Um ano mais tarde, após um happening realizado na rua, nova interpelação. O Chefe da Polícia é um militar espírita. Ele conhece a família e aconselha Armindo a deixar o país. Com alguns amigos, ele decide partir para a Europa, via Rio de Janeiro, após terem vendido tudo o que lhes foi possível para pagar a travessia. Lisboa, Londres. Viagem iniciática. Sem um tostão. Dormir ao ar livre, nos estacionamentos, nos bancos públicos. Alimentar-se de pão, leite e açúcar. Deixar crescer uma longa cabeleira caindo sobre os ombros. Em Londres, encontram-se Gilberto Gil e Caetano Veloso. O encontro é caloroso. Pequenos trabalhos. Escrever poemas e, sobretudo, dançar. Dançar em qualquer lugar, a qualquer momento numa espécie de abandono, de fuga, de permanente embriaguez. Na Bahia, a família se preocupa. As notícias recebidas de Londres são ruins. O filho estaria enlouquecendo? Decidiu- se repatriá-lo e hospitalizá-lo. O retorno apaga as preocupações. Armindo retoma o caminho da universidade. Prossegue suas aprendizagens em artes do espetáculo vivo. Em dança, ele é formado por um artista de origem alemã Rolf Gelewski (1930-1988), discípulo de Mary Wigman, que chegou ao Brasil em 1960 a fim de ensinar na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, na qual ensinou até 1975, dando vida, ao mesmo tempo, a uma comunidade espiritual, a Casa Sri Aurobindo. Com um mestre dessa estirpe, Armindo não demorou a atingir uma 25 Armindo Bião qualidade profissional a ponto de a Universidade lhe confiar, em 1979, um curso de Filosofia da Dança. Nova encruzilhada. As circunstâncias o conduzem aos Estados-Unidos. A Fundação Fulbright propõe 10 bolsas de estudos a brasileiros. Após um concurso nacional, cinco bolsas são concedidas à Bahia, das quais uma a Armindo que parte para um período de dois anos e meio em Minneapolis, Estado de Minnesota, a fim de preparar um Mestrado prático de Teatro. Ou seja, a realização de 7 espetáculos! Lá, no Campus Universitário, ele se une a uma trupe franco- americana: o Théâtre de la jeune lune. A Companhia foi fundada em 1978 por dois franceses – Dominique Serrand e Vincent Gracieux–, e os americanos de Minnesota Barbara Berlovitz e Robert Rosen. Todos se formaram na Escola de Jacques Lecoq, em Paris. Infelizmente, cheio de dívidas, o teatro foi forçado a fechar suas portas em 2008, após trinta anos de brilhante criação. A descoberta da máscara neutra inspira Armindo. Ele decide então ir a Paris a fim de dar continuidade a seus estudos doutorais. A escolha é tão fácil que ele deseja ter como orientador de tese um professor da Sorbonne, sociólogo tão flamejante quanto controverso, extraordinário e familiar ao Brasil, que professa algumas ideias sobre o mito de Dionísio: Michel Maffesoli. Ele acaba de publicar em 1982 uma obra significativa: A Sombra de Dionísio. Armindo faz contato. O professor aceita almoçar. Será: “A Sombra de Dionísio – Contribuição para uma Sociologia da Orgia”. Eis brevemente delineada uma das chaves que permitirá ao leitor descobrir nas tintas desses textos a luxuriante experiência que lhes dá uma vida plena. Jean-Marie Pradier Professor da Universidade de Paris Nord Saint-Denis Villetaneuse (Paris VIII Vincennes Saint-Denis) Laboratório de Etnocenologia da Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord Tradução de Marcia Bértolo Caffé 27 Armindo Bião Préface: La vie dans l’oeuvre L’oeuvre dans la vie Héritiers d’une culture de la vérité révélée, nous avons tendance à considérer les théories à la façon d’un diamantaire tout occupé à contempler ses pierres sans avoir la moindre idée de qui est allé dans les mines les arracher à la terre. La perspective nouvelle que notre groupe d’amis a ouverte en 1995 en l’appelant «ethnoscénologie» procède à l’inverse. Poursuivant l’allusion aux diamantaires, je dirai qu’à la différence des cristallographes qui recourent à la méthode mathématique et descriptive pour l’étude de la structure des cristaux en négligant celle de leur formation, l’ethnoscénologue s’attache à démêler la complexité des incarnations de l’imaginaire, sans les réduire par l’analyse à une mécanique dévitalisée ou à une structure symbolique sans chair. Il convient pour y parvenir d’appartenir à une certaine famille d’esprit et avoir soi-même vécu un certain nombre d’expériences. L’ouvrage qu’Armindo Jorge de Carvalho Bião offre au lecteur est un opus significatif de cette démarche à la fois scientifique et artistique, rationnelle et sensible. Elle me conduit à m’arrêter, à son propos, sur un truisme cher à l’anthropologie réflexive contemporaine, utile à rappeler: - «Toute théorie présuppose un théoricien».Evidence qui devient un axiome épistémologique de toute première importance dans le domaine de ce que l’on appelle «les sciences de l’art». Le mot théorie qui nous vient du grec appartient étymologiquement au champ sémantique de la vue, thea. Il signifiait jadis contemplation, observation méditée et réfléchie, connaissance par le regard. Que le susbtantif théâtre en soit né, donne à réfléchir… La neurobiologie contemporaine, la psychobiologie soulignent le fait que nous ne percevons que ce que nous avons appris à percevoir et que nous désirons percevoir. Comédien – et quel comédien! -, poète, universitaire, pédagogue, amoureux de la vie, ami fidèle, polyglotte, voyageur, Armindo Bião n’a pas le regard de qui serait son contraire. Sa 28 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos thea lui appartient en propre et participe à l’élaboration de sa théorie, entendue non pas au sens de doxa impérative mais d’exposition cohérente d’un ensemble de connaissances, d’épreuves et d’apprentissages. Le biographisme de l’École Naturaliste Française estimait qu’une relation de cause à effet unissait l’auteur à sa production, de telle sorte que l’explication de texte passait par l’étude de l’écrivain dans son milieu biologique, historique et social. Marcel Proust - Contre Sainte Beuve -, fut l’un des premiers à avoir contesté cette vision déterministe et intellectualiste, en invitant le lecteur à appréhender l’auteur par la sensibilité. A la curiosité causale légitime qui conduit à s’interroger sur l’origine des « choses » - idées, phénomènes et comportements – il me paraît nécessaire d’adjoindre le désir de se saisir des clefs qui permettent d’ouvrir l’œuvre, de la dilater au-delà de ce qu’elle peut avoir d’elliptique et de clair obscur. Plus une œuvre est riche, fournie, dense et plus elle court le risque d’être appauvrie par le lecteur qui l’interprète selon ses propres limites, conditionnements, habitudes et expériences. Le mot « monastère » sous la plume d’un moine n’a pas les mêmes échos sémantiques que lorsqu’il figure dans un livre d’architecture ou le récit d’un athée. La diversité du sensible, c’est-à-dire de l’esthésis, reste terra incognita pour qui ne reconnaît pas le sien propre, ou en est dépourvu par athymie. Bergson dans les Deux Sources (1932) le rappelait: « ... le mysticisme ne dit rien, absolument rien, à celui qui n’en a pas éprouvé quelque chose. » »En ce sens, toute œuvre lue est en réalité une œuvre traduite sans pour cela qu’elle n’ait fait le passage vers une autre langue. La traduction est source de malentendus, d’approximations, de distorsions, d’illusions de compréhension, de simplifications, de castration. C’est sans doute pour cette raison que les disciples sont fréquemment accusés d’être plus dogmatiques que leur maître. Traducteurs de l’œuvre, ils oublient qu’ils fomentent une véritable translittération de l’intuition première de l’auteur : une transcription signe par signe d’un système d’écriture et de pensée en un autre système, le leur. C’est ainsi que naissent les papes et la croyance en leur infaillibilité, tel un valet revêtu des insignes du prince et qui se prendrait à légiférer. 29 Armindo Bião Armindo Jorge de Carvalho Bião qui participe en 1995 au colloque de fondation de l’ethnoscénologie à Paris, est un individu singulier. Je veux dire par là que cette singularité anime son adhésion et sa réflexion et donne du sang et du souffle à la discipline. Dès le premier moment, nous savions que l’ethnoscénologie ne pouvait qu’être qu’internationale. C’est- à-dire, détachée de toute emprise théorique impériale mais, tout au contraire, alimentée par la multiplicité des visions du monde proposées par les chercheurs. La saveur croît en fonction de la différence, écrit Victor Segalen dans son magistral essai sur l’Exotisme. La connaissance également. Propos redoutable quant notre temps connaît sous le couvert du « village global » l’éradication des subtiles dissemblances. Au nom de l’universel – proclamé par les dominants, non par les dominés - nous vivons le temps des hégémonies culturelles servies par les puissances économiques et politiques. L’internationalisme revendiqué est le seul moyen d’accéder à la forte saveur du divers. La faculté de sentir le divers, propre à l’artiste est le premier antidote contre l’intellectualité productrice de fades synthèses. Le goût du divers, l’appétit des sensations et la révolte contre l’enfermement sont les clefs biographiques d’Armindo chercheur que je retiens. Il est né à Bahia, dans une ville musicale, colorée, composite, sensuelle qui donne l’ivresse au voyageur. Une pluralité de dévotions hétérodoxes y occupe les esprits et les corps. Nourrisson, Armindo est baptisé catholique. Première rupture. Peu de temps après sa naissance, ses parents quittent l’Eglise de Rome et sa liturgie enchantée pour se convertir à la doctrine d’Hippolyte Léon Denizard Rivail (1804-1869), plus connu sous le nom d’Allan Kardec. Persuadé d’être la réincarnation d’un druide, dont il a repris le nom, Kardec, séduit par les tables tournantes et la pratique de communication avec les esprits, a fondé un mouvement positiviste qui se réclame de la science, non de la religion. Au Brésil, nombreux sont ses disciples réunis en des cercles dont la principale activité est d’organiser des séances de communication avec les morts. Le petit garçon Armindo est ainsi brutalement jeté dans un étrange univers d’adeptes assemblés autour d’un medium affairé à joindre les ténèbres de l’au-delà. 30 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos Le dimanche, tandis que la plage accueille les anatomies dévêtues en quête de soleil, d’air, et de regards, Armindo engoncé dans un costume rejoint une salle banale dénuée d’ornements et d’illuminations où se tient la réunion des convaincus, silencieux, attentifs à la parole du maître et des morts. Le meneur de jeu professe des exposés qui sonnent comme des leçons scolaires aux oreilles de l’enfant. Son ennui est grand. Tout en marchant aux côtés de ses parents, il rythme ses pas pour chasser son ennui, lorgne avec envie la nudité des baigneurs et leur nonchalance. Il est entraîné dans les activités du cercle spirite: visites aux prisons et aux hôpitaux, rencontre avec la colonie japonaise. Une tante célibataire qui vit avec la famille prend soin de lui tandis que père et mère travaillent. Elle le conduit au théâtre, aux musées. Les voici partis, un jour, à la faculté de médecine où dans les locaux ouverts au public on peut contempler de près la tête coupée des fameux bandits du Sertão, les Cangaceiros. Le retour à la maison est animé. Les parents sont furieux. Pourtant, le chef tranché de Lampião et de sa compagne Maria Bonita n’a guère plus impressionné le petit Armindo qu’une exposition itinérante de fœtus dont il garde le souvenir horrifié. La famille compte de hauts gradés de l’armée, institution socialement très honorable, frappée par l’idéal positiviste. Le fils atteint ses dix ans. Bientôt, est prise la décision de l’envoyer poursuivre ses études au lycée militaire. Temps de violence subie. Il faut quitter la tiédeur d’un milieu féminin protégé pour entrer dans la cage aux prédateurs. Les petits machos arrogants sanglés dans leurs uniformes constituent une société hiérarchisée par la morgue et la force. Au bas de l’échelle se tiennent les plus tendres, émotifs et sensibles, dominés sans peine par les sauvages sûrs d’eux-mêmes. Quelques romans ont donné le ton. Ernst von Salomon : Les voici, tels qu’ils furent depuis toujours, les cadets ! Les voyez- vous dans leur ordre parfait, au coude à coude, bien alignés sur l’homme de tête, ces adolescents au visage encore arrondi, mal dégrossi ? …Les voici, avec leur crâne tondu, ces petits mufles étriqués dans leur uniforme de tissu rêche aux couleurs barbares, avec des boutons dorés boutonnés 31 Armindo Bião jusqu’en haut d’un col rigide, leurs petits pieds dans les bottes cloutées et sur leurs frêles épaules l’épaulette large, disproprotionnée.(Die Kadetten, postface) Lever aux aurores. Résultats scolaires déplorables. Armindo dans ses cauchemars nocturnes se voit traverser la ville tout nu pour aller à l’école. Restent le samedi, jour de détente. Un oncle fortuné, propriétaire d’une fabrique de bougies et de cierges, amateur de cinéma, invite la famille à déjeuner puis à des séances de projection. Chaplin, Laurel et Hardy Comédies Musicales de la Metro. Table joyeuse, bavarde, gastronomie, cousins, plaisirs de rire ensemble et de partager des moments de voyage dans l’imaginaire. Bouger, danser, chanter. L’envers de la compagnie des Cadets. Près de la maison familiale, de plus, un vaste terrain vague accueille les gitans et leur cirque. Il y a non seulement les spectacles, clowns, musiciens, mais aussi la vie clanique, les mariages festifs qui durent des jours, les libres gambades des enfants. Spectacle vivant, spectacle sur l’écran. L’imaginaire s’épanouit sous toutes ses formes et incite à rompre avec la sécheresse brutale de l’école militaire et la morbidité du dialogue avec les morts. Prétendre danser et s’entraîner au ballet est trop demander. La danse est impure ! Reste le théâtre. Allan Kardec avait tenu la comptabilité de la Baraque Lacaze, petit théâtre qui appartenait à un prestidigitateur dont il tenait le nom. Le mouvement spirite n’était pas hostile à l’art dramatique en qui il voyait un moyen d’éducation prosélyte. Consulté, le medium responsable du Cercle Spirite fréquenté par la famille conseille au jeune homme d’interroger les morts par écrit. Leur réponse est positive. Armindo aurait été artiste dramatique dans une vie antérieure. Sa mission sera de diffuser la bonne nouvelle spirite par le théâtre. Les plaisirs de la plage sont toujours éloignés. Samedi et dimanche sont pris par les planches et les pratiques cultuelles. Des rencontres ont lieu avec des scientifiques les plus divers, toujours au nom de la quête positiviste. Le responsable du Cercle s’inquiète toutefois : -« Je ne suis pas là pour élever un serpent qui me mord », déclare-t-il à Armindo en qui il fondait de grands espoirs. Le garçon, en dépit du théâtre, ne va pas bien. Il accumule les troubles psychosomatiques, tachycardie, ulcère de l’estomac. Enfin, il parvient à quitter le lycée militaire après cinq années d’encasernement et à achever ses études secondaires dans un établissement public. Le Cercle spirite est abandonné. Armindo découvre la culture allemande au détour d’un album de photos appartenant à un parent qui avait assisté aux jeux olympiques de Berlin. Il se rend au Goethe-Institut, le fréquente, apprend l’allemand et entre en philosophie à l’université, illuminé par la phénoménologie et sa conception du corps. Fin des années soixante. Les militaires de la linha dura l’emportent. Ils imposent au maréchal Costa e Silva un coup de force contre le Congrès de Brasília. L’université brésilienne, les démocrates affrontent la dictature. Etudiants et enseignants occupent les facultés. 1969, Armindo est arrêté puis relâché. Un an plus tard, après un happening réalisé dans la rue, nouvelle interpellation. Le directeur de la police est un militaire spirite. Il connaît la famille et conseille à Armindo de quitter le pays. Avec quelques amis celui-ci décide de partir pour l’Europe, via Rio, après avoir vendu tout ce qu’ils pouvaient afin de payer la traversée. Lisbonne, Londres. Voyage initiatique. Sans le sou. Dormir à la belle étoile, dans les parkings, sur les bancs publics. Se nourrir de pain, de lait et de sucre. Laisser pousser une longue chevelure tombant sur les épaules. A Londres se trouvent Gilberto Gil et Caetano Veloso. La rencontre est chaleureuse. Petits boulots. Ecrire des poèmes, et surtout danser. Danser partout, à tout moment en une sorte d’abandon, de fuite, d’ivresse permanente. A Bahia, la famille s’inquiète. Les nouvelles reçues de Londres sont mauvaises. Le fils deviendrait-il fou ? Il est décidé de le rapatrier et de l’hospitaliser. Le retour efface les inquiétudes. Armindo reprend le chemin de l’université. Poursuit ses apprentissages en arts du spectacle vivant. En danse, il est formé par un artiste d’origine allemande Rolf Gelewski (1930-1988), disciple de Mary Wigman, arrivé au Brésil en 1960 afin d’enseigner à l’Ecole de Danse de l’Université de Bahia où il a exercé jusqu’en 1975, tout en animant une communauté spirituelle, la Casa Sri Aurobindo. Avec un tel maître, Armindo ne tarde pas à atteindre une qualité professionnelle au point que l’université lui confie en 1979 un cours de philosophie de la danse. Nouveau carrefour. Les circonstances le conduisent vers les Etats- Unis. La Fondation Fulbright propose 10 bourses d’étude aux Brésiliens. Après un concours national, cinq sont attribuées à Bahia, dont une à Armindo qui part pour deux ans et demi à Minneapolis, dans le Minnesota, afin d’y préparer un Master pratique de théâtre. Soit la réalisation de 7 spectacles ! Là, sur le campus, il se lie avec une troupe franco-américaine : le Théâtre de la jeune lune. La Compagnie a été fondée en 1978 par deux Français – Dominique Serrand et Vincent Gracieux -, et les Minnesotains Barbara Berlovitz et Robert Rosen. Tous ont été formés à l’Ecole de Jacques Lecoq, à Paris. Hélas, criblé de dettes, le théâtre a été contraint de fermer ses portes en 2008, après trente ans de brillante création. La découverte du masque neutre par Armindo l’inspire. Il décide alors d’aller à Paris afin de poursuivre ses études en doctorat. Le choix est d’autant plus facile qu’il envisage comme directeur de thèse un Professeur de la Sorbonne, sociologue aussi flamboyant que controversé, original et familier du Brésil qui professe une certaine idée du mythe de Dionysos : Michel Maffesoli. Celui-ci vient de publier en 1982 un ouvrage significatif : L’Ombre de Dionysos. Armindo prend contact. Le Professeur accepte un déjeuner. Ce sera : « L’ombre de Dionysos - contribution pour une sociologie de l’orgie ». Voici brièvement esquissée l’une des clefs qui permettra au lecteur de déceler sous l’encre de ces textes, la luxuriante expérience qui leur donne une vie pleine. Jean-Marie Pradier Professeur à l’Université de Paris Nord Villetaneuse Saint Denis (Paris 8 Vincennes Saint Denis) Laboratoire d’Ethnoscénologie à la Maison des Sciences de l’Homme Paris Nord DO TEATRO DE CORDEL 37 Armindo Bião A pesquisa constrói um corpus histórico, antropológico, poético e dramatúrgico sobre uma personagem histórica espanhola e uma entidade da umbanda brasileira. A personagem histórica2 María Díaz nasceu numa importante família de Castela, provavelmente na região de Palência. Por volta dos 20 anos, em maio de 1352, ficou conhecida como Doña María de Padilla, ao encontrar o jovem Rei Don Pedro (com 18 anos incompletos), de quem foi amante até a morte, por causas naturais, em julho de 1361. Tiveram um filho (falecido criança) e três filhas (duas das quais se casariam com filhos do Rei Eduardo III, da Inglaterra), todos legitimados infantes reais posteriormente (ROS, 2003, p. 163). D. María foi, segundo todos os que se dedicaram à matéria, a favorita do rei, que teve várias mulheres e cinco filhos reconhecidos (nenhum dos quais com a única incontestavelmente tida em vida como Rainha de Castela, Branca de Bourbon). De fato, D. Pedro só fez de D. María Rainha de Castela em abril de 1362 (nove meses após sua morte), ao declarar, com a aquiescência das autoridades eclesiásticas de Sevilha, terem se casado em segredo, mesmo já tendo se casado duas vezes, formal e publicamente: com a nobre francesa Branca de Bourbon, em junho de 1353; e com a portuguesa Joana de Castro (meia-irmã da “linda” Inês, A Padilla: história, mito e teatro1 1 Comunicação In: CONGRESSO DA ABRACE, 5., 2008. Anais... Grupo de Trabalho Etnocenologia, Belo Horizonte, 2008. 2 Um dos focos do projeto de pesquisa “Mulheres por um fio: inferno, purgatório e paraíso no Atlântico Negro”, motivo de bolsa de produtividade de pesquisa do CNPq (março de 2008 a fevereiro de 2011). 38 Teatrode cordel e formação para a cena: textos reunidos que também, como D. María, fora rainha depois de morta), em 1354 (AYALA, 1991, p.100). D. Pedro foi o único filho legítimo dos primos-irmãos (primos carnais pelos lados paterno e materno) o rei Afonso XI, de Castela, e a princesa portuguesa, Maria (“a fermosíssima Maria” citada em “Os Lusíadas” de Luís de Camões), irmã do também rei Pedro I, o Cruel (o português Pedro de Inês de Castro), tio de seu homônimo espanhol. Além de ter ordenado a morte de sua legítima esposa, a rainha desprezada Branca, em 1361, D. Pedro foi responsável por outras mortes, dentre as quais a da amante de seu pai, Leonor de Gusmão. Com dois dos filhos ilegítimos de D. Leonor com seu pai, D. Pedro se digladiaria até a morte (em 1369), tendo matado um, Don Fadrique, em 1358, e sido morto por outro, Don Henrique II, de Trastâmara ([1333?]/ 1379), que lhe sucederia (ROS, 2003, p. 166). Talvez não tão curiosamente assim, dado o encadeamento de todo tipo de peripécia e dos muitos casamentos endógenos nesse contexto, o filho deste, o Rei Henrique III, se casaria com Doña Catalina, neta de D. Pedro e de D. María e filha de Doña Constanza (filha deles) e do Duque de Lancaster (filho do Rei Eduardo III, da Inglaterra), selando, assim, a paz familiar, entre os descendentes dos meio-irmãos Pedro e Henrique, ambos assassinos de meio-irmãos e ambos também tataravôs de Isabel, a Católica (1451/ 1504), neta de seus netos Catalina e Henrique III (AUGRAS, 2001, p. 305). A personagem mítica O romancero viejo (ROIG, 2007) espanhol, do tipo considerado por Pidal (1968, p. 301) “romances noticiosos” ou, por Díaz-Mas, “romances históricos” (2001, p. 97; s. p. 392), contém todo um Ciclo de Don Pedro el Cruel (AUGRAS, 2001, p. 305), que prosperou em paralelo ao desenvolvimento do país a partir do reinado de Henrique II, o inaugurador da dinastia dos Trastâmara. Nesse conjunto de histórias cantadas em redondilha maior, o rei derrotado, Pedro, é sempre descrito como o Cruel e María de Padilla como uma adúltera sedutora, dominadora e intrigante, pactuando com o mal. No romanceiro, o mal é a feitiçaria, que seria 39 Armindo Bião praticada, sobretudo, pelos judeus, relativamente bem tolerados anteriormente e que seriam perseguidos por Henrique II e seus descendentes, até Isabel, a Católica, que os expulsaria da Espanha. Esses romances apareceram já no século XIV, mas cresceram em número e imaginação e divulgaram-se durantes os séculos XV, XVI e XVII, inclusive por Portugal (sob o domínio espanhol de 1580 a 1640). A Inquisição em Portugal e na Espanha deixou registradas invocações de “feiticeiras” a “Maria Padilha com toda sua quadrilha” e, também, à passagem de algumas dessas mulheres “perigosas” pelo Brasil, entres os séculos XVII e XVIII (SOUZA, 1986, p. 168; AUGRAS, 2001, p. 308 et seq.; MEYER, 1993). Talvez aí resida a eventual relação histórica entre as duas personagens – a da tradição histórica e a do imaginário religioso – que prosperaria em nosso país, no âmbito dos cultos afro-brasileiros. A literatura romântica francesa e a ópera popular, que a partir dela se desenvolveu, divulgariam, por todo o mundo, as belas “feiticeiras” ciganas andaluzas, tendo Prosper Mérimée, autor de Carmem, não apenas incluído uma nota em sua novela a propósito de Marie Padilla (1965, p. 163; 1990, p. 92), como também se dedicado a escrever uma biografia de D. Pedro (1961). Aliás, foi a partir daí que Roberto Motta (1990, p. 55; 1995, p. 182; 1998, p.114), pela primeira vez, relacionou a personagem histórica espanhola à entidade religiosa brasileira. O teatro espanhol – desde Lope de Vega – e também o francês, sobretudo o do período romântico, fariam de D. Pedro e D. María protagonista e a antagonista (e vice-versa), enfatizando sempre a crueldade do homem e a doçura da mulher. Esse antagonismo deve ter sido inspirado, principalmente, nas Crónicas de Ayala, de acesso mais restrito, contradizendo o muito popular romanceiro velho e, também, de modo radical, a concepção brasileira – também muito popular - das diabólicas “marias padilhas” – e até mesmo a circunstância em que Carmen a invocava na novela de Mérimée. Bem revelador do caráter bondoso, atribuído por Ayala e pelos dramaturgos românticos a D. María de Padilla, é o título de sua única biografia, escrita pelo especialista na história de Sevilha Carlos Ros: Doña María de Padilla: el ángel bueno de Pedro el Cruel (2003). 40 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos A personagem teatral O caráter bondoso, de uma vítima do destino e dos desatinos do Rei D. Pedro, de D. María, aparece de modo evidente no repertório do teatro, como, por exemplo, no melodrama em três atos Maria Padilla, impresso em Lisboa em 1845, pela Tipografia de P. A. Borges, numa edição bilíngue italiana (em versos, de Caetano Rossi) e portuguesa (em prosa), “para se representar no R. T. São Carlos”, como libreto da ópera de Caetano Donizetti. Dividido em três atos, esse melodrama apresenta inicialmente Maria e uma sua irmã chamada Inês, na casa de seu pai, celebrando o casamento dessa última e comentando o desejo de Maria de ser rainha, ainda que amando e sendo correspondida nesse amor por um plebeu, na verdade o futuro Rei D. Pedro disfarçado. Ainda no primeiro ato, acontece o rapto de Maria pelo falso plebeu e sua reação indignada, que ameaça matar-se, mas que enfim se entrega e concorda que fique em segredo esse “matrimônio”. O segundo ato se passa no Alcázar de Sevilha durante uma festa oferecida por D. María ao já então proclamado Rei. O pai de Maria declara seu desejo de vingança por ter sido desonrado com o rapto de sua filha. Inês informa a Maria que seu marido matou um amigo do rei e Maria lhe diz que o rei o perdoou e que ela irá, em seguida, pedir perdão a seu pai, enquanto este é preso ao atacar o rei. No clímax da festa e da descoberta do martírio do pai, Maria amaldiçoa-se e ao rei. No último ato, num quarto, ao lado do pai moribundo, que não a reconhece, Maria mostra-lhe a declaração escrita de seu casamento com o rei, mas seu pai a rasga. Fora, louva-se Branca, a jovem rainha, que então se casa publicamente, por motivos de Estado, com D. Pedro. Maria leva seu pai até a cena do casamento e interpela o rei, que declara preferi-la à nova esposa. Maria morre de emoção e o pai enfim a reconhece3. 3 Em outra peça teatral, em versos, de Villaespesa, da qual é também protagonista, Doña María de Padilla vive um final feliz, ao lado de D. Pedro, de quem não consegue, contudo, reverter a crueldade. 41 Armindo Bião Conclusão O perfil de D. María traçado nesse melodrama é exemplar da caracterização da personagem teatral que nos interessa e que contraria o romanceiro velho espanhol. Relativamente fiel às crônicas de Ayala (1991), esse perfil é também antípoda da caracterização da personagem mítica da umbanda brasileira, possivelmente herdeira do imaginário ibérico, enraizado nos romances tradicionais e registrado pelos processos inquisitoriais. O fato é que as artes do espetáculo, do romanceiro, do teatro, dos ritos religiosos e dos autos da fé, têm sido boa cena para a história e o mito de Doña María de Padilla a Maria Padilha. Referências AUGRAS, Monique R. María Padilla, reina de la magia. Revista Española de Antropología Americana, Madrid, n. 31, p. 293-319, 2001. AYALA, Pero López. Crónicas. Barcelona: Planeta, 1991. DÍAZ-MAS, Paloma (Ed.). Romancero. Barcelona: Ed. Crítica, 2001. MÉRIMÉE, Prosper. Carmen et treize autres nouvelles. Paris: Gallimard, 1965. MÉRIMÉE, Prosper. 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Lisboa: Typographia de P. A. Borges, 1845. 79 p. PIDAL. Ramón Menéndez. Romancero hispánico (hispano- portugués, americano y sefardí): teoría y historia. Madrid: Espasa- Calpe, 1968. ROIG, Mercedes Díaz (Ed.). El romancero viejo. 23. ed. Madrid: Cátedra, 2007 ROS, Carlos. Doña María de Padilla: el ángel bueno de Pedro el Cruel. Sevilla: Castillejo, 2003. SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz: Feitiçaria e religiosidade popular no Brasil colonial. São Paulo: Companhia das Letras, 1986. VILLAESPESA, Francisco. Doña Maria de Padilla. Madrid: Renacimiento, 1913. 43 Armindo Bião Em 1988, em Paris, à noite, próximo a várias encruzilhadas e em volta de uma mesa de lugar público de comes e bebes, com Roberto Motta e Monique Augras, tomo conhecimento de uma possível relação entre Maria Padilha, a entidade da umbanda brasileira, e Doña María de Padilla, que viveu na Espanha ([133_?] / 1361). Também então soube da alusão de Prosper Mérimée, em sua novela Carmem, a esta segunda personagem, como sendo um ente mágico invocado pelas ciganas andaluzas. Depois disso, lembrei-me de que, em 1970, ao visitar rapidamente a Catedral de Burgos, na Espanha, com Luciano Diniz e Vera Lessa, eu rira muito ao ver uma lápide da família Padilla, por associá-la à personagem do imaginário brasileiro e por considerar a associação um absoluto nonsense. Só em 2002, portanto bem mais tarde, ao visitar os Alcáceres de Sevilha, em companhia de Luciano Diniz, eu percebi a importância de Doña María de Padilla na história espanhola, ao saber que boa parte daquele conjunto monumental teria sido construído para ela pelo Rei D. Pedro I, de Castela (30.08.1334/ 23.03.1369), conhecido inicialmente como O Cruel e depois reabilitado como O Justiceiro. A partir de então busquei reunir bibliografia sobre as possíveis relações entre as duas figuras, para o que contei com a inestimável ajuda, inicialmente, de Roberto Motta e de Jerusa Pires Ferreira, e, posteriormente, de Marlyse Meyer, Monique Augras e Vivaldo da Costa Lima, no Brasil, e de Jesus Cosano Prieto, Jesus Cañete, Carlos Alba e Carlos Ros, na Espanha. Finalmente, em 2007, elaborei um projeto de Itinerário de María Padilla* * Texto escrito em homenagem a Marlyse Meyer e em agradecimento a Jerusa Pires Ferreira (que me sugeriu o título), por seu convite para participar, em São Paulo, de evento dedicado à pessoa e à obra dessa grande pesquisadora. 44 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos pesquisa para o CNPq1, que comecei a desenvolver em março de 2008 e que me possibilitou viajar por parte do itinerário de Doña María de Padilla, na Espanha, durante todo o mês de abril seguinte. Foi quando, passando pelo Mosteiro de Astudillo, pela Catedral de Burgos, pela Cripta Real da Catedral de Sevilha e pelo Alcázar moçárabe dessa cidade, por livrarias e bibliotecas em Paris, Madri, Sevilha e Lisboa, ampliei meu corpus iconográfico e documental de pesquisa. Nesse corpus destacam-se, principalmente, as crônicas de Jean Froissart (2004) e de Pero López Ayala (1991) e as imagens do retábulo e do panteão de Astudillo, do ataúde e dos Baños de Doña María de Padilla, em Sevilha. O itinerário da vida e descendência de Doña Maria Maria Díaz nasceu numa importante família de Castela, em local incerto, mas, provavelmente, na região de Palência. Talvez, ainda com menos de 20 anos, em maio de 1352, passou a ser conhecida como Doña María de Padilla, ao encontrar o também então jovem Rei Don Pedro (então com 18 anos incompletos), de quem foi amante até sua morte, por causas naturais (mas provavelmente em decorrência da peste), em julho de 1361. Tiveram um filho (falecido ainda criança) e três filhas (duas das quais se casariam com filhos do Rei Eduardo III, da Inglaterra), todos legitimados infantes reais posteriormente. D. María foi, segundo todos os autores que se dedicaram à matéria, a favorita do rei, que teve inúmeras mulheres e cinco filhos reconhecidos (nenhum dos quais com sua única mulher realmente conhecida em vida como Rainha de Castela, Branca de Bourbon). De fato, D. Pedro só fez de D. María a Rainha de Castela em abril de 1362 (já passados nove 1 O projeto, intitulado: “Mulheres por um fio: purgatório, inferno e paraíso no Atlântico Negro”, foi aprovado pelo CNPq, para financiamento de uma Bolsa de Produtividade em Pesquisa, de nível 1A, para o período de março de 2008 a fevereiro de 2011 e prevê, além da constituição e análise de um corpus, a produção de formas de espetáculo relativas a esse corpus. 45 Armindo Bião meses de sua morte), declarando formalmente, com a aquiescência das autoridades eclesiásticas de Sevilha, ter se casado em segredo com ela, mesmo tendo sido formal e publicamente casado duas vezes: com a nobre francesa Branca de Bourbon, com quem contraiu matrimônio em junho de 1353, e com a portuguesa Joana de Castro (meia-irmã da “linda” Inês, que também reinara, como D. María, depois de morta), em 1354. D. Pedro foi o único filho legítimo dos dois primos irmãos (primos carnais, tanto pelo lado paterno quanto materno), o rei Afonso XI, de Castela, e a princesa portuguesa Maria (“a fermosíssima Maria” citada em “Os Lusíadas” de Luís de Camões), irmã do também rei Pedro I, o Cruel (o português Pedro de Inês de Castro), que, assim, era tio do seu homônimo espanhol. Além de ter ordenado a morte de sua legítima esposa, a rainha desprezada Branca de Bourbon, em 1361, D. Pedro foi responsável por outras inúmeras mortes, dentre as quais a da amante de seu pai, Leonor de Gusmão. Com dois dos filhos ilegítimos que D. Leonor teve com seu pai D. Pedro se digladiaria até a morte, tendo matado um, seu meio irmão Don Fadrique, em 1358, e sido morto por outro, Don Henrique II, de Trastâmara ([1333?] / 1379), que lhe sucederia como Rei de Castela. Talvez não tão curiosamente assim, dado ao encadeamento de todo tipo de peripécia e dos muitos casamentos endógenos nessa época e nesse contexto, o filho deste último, o Rei Henrique III, se casaria com Doña Catalina, neta de D. Pedro e de D. María e filha de Doña Constanza (filha deles) e do Duque de Lancaster (filho do Rei Eduardo III, da Inglaterra), selando, assim, a paz familiar, entre os descendentes dos meio- irmãos Pedro e Henrique, ambos assassinos de meio-irmãos. Pois, ambos também seriam tataravôs de Isabel, a Católica (1451 / 1504), neta de seus netos Catalina e Henrique III. O itinerário do mito de la Padilla O romancero viejo (ROIG, 2007) espanhol, do tipo considerado por Pidal (1968, p. 301) “romances noticiosos” ou, por Díaz-Mas, “romances históricos” (2001, p. 97 et seq.; p. 392), contém todo um Ciclo de Don Pedro el Cruel 46 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos (AUGRAS, 2001, p. 305 et seq.), que prosperou em paralelo ao desenvolvimento do país a partir do reinado de Henrique III, o inaugurador da dinastia dos Trastâmara. Nesse conjunto de histórias cantadas, o rei derrotado, Pedro, é sempre descrito como O Cruel e María de Padilla como uma adúltera (“adúltera y concubina”, como a chamou o Papa Inocêncio VI) sedutora, dominadora e intrigante, pactuando com o mal. No romanceiro, o mal é identificado com a feitiçaria, que seria praticada, sobretudo, pelos judeus, relativamente bem tolerados anteriormente (o principal tesoureiro de D. Pedro fora um judeu, Samuel Leví (AYALA, 1991, p. 85), por exemplo) e que seriam perseguidos por Henrique III e seus descendentes, até Isabel, a Católica, que os expulsaria da Espanha. Esses romancescomeçaram a aparecer já no século XIV, mas cresceram em número e imaginação e divulgaram durante os séculos XV, XVI e XVII, inclusive por Portugal (sob o domínio espanhol de 1580 a 1640). A Inquisição em Portugal e na Espanha deixou registradas invocações de “feiticeiras” a “Maria Padilha com toda sua quadrilha” e, também, à passagem de algumas dessas mulheres “perigosas” pelo Brasil, entres os séculos XVII e XVIII (MELLO; SOUZA, 1986, p.168; AUGRAS, 2001, p. 308 e s.; MEYER, 1993). Talvez aí resida a eventual relação histórica entre as duas personagens, a da tradição histórica e a do imaginário religioso, que prosperaria em nosso país, no âmbito dos cultos afro-brasileiros. A literatura romântica francesa e a ópera popular, que a partir dela se desenvolveu, divulgariam, por todo o mundo, as belas “feiticeiras” ciganas andaluzas, tendo Prosper Mérimée, o autor de Carmem, não apenas incluído uma nota em sua novela a propósito de Marie Padilla (1965, p. 163; 1990, p. 92), como também se dedicado a escrever uma biografia de D. Pedro (1961). Aliás, foi a partir daí que Roberto Motta (1990, p. 55; 1995, p. 182; 1998, p. 114), pela primeira vez, relacionou a personagem histórica espanhola à entidade religiosa brasileira. O teatro espanhol – desde Lope de Vega – e também o francês, sobretudo o do período romântico, fariam de D. Pedro e D. María os protagonistas 47 Armindo Bião (ou, talvez melhor, o protagonista e a antagonista, e vice-versa), enfatizando sempre a crueldade do homem e a doçura da mulher. Esse antagonismo deve ter sido inspirado, principalmente, nas Crónicas de Ayala, de acesso mais restrito, contradizendo o muito popular romanceiro velho e, também, de modo radical, a concepção brasileira – igualmente muito popular – das diabólicas “marias padilhas” – e até mesmo a circunstância em que Carmen a invocava na novela de Mérimée. Bem revelador do caráter bondoso, atribuído por Ayala e pelos dramaturgos românticos a D. María de Padilla, é o título de sua única biografia, escrita pelo especialista na história de Sevilha Carlos Ros: Doña María de Padilla: el ángel bueno de Pedro el Cruel. No itinerário da Padilla Com a colaboração do pesquisador espanhol Carlos Alba, programamos uma visita ao Real Convento de Santa Clara de Astudillo2, hoje conhecido como Monasterio de Santa Clara, Museo y Palácio de Pedro I, após ampla restauração realizada ao longo dos últimos 50 anos, e à Catedral de Burgos, igualmente reformada, em período mais recente. Essa visita foi de fato realizada nos dias cinco e seis de abril de 2008. A 30 km da capital provincial de Palência e com cerca de 1200 habitantes, Astudillo encontra-se na comunidade autônoma de Castela e Leão, no Noroeste da Espanha, entre campinas e cerrados, pequenas elevações e o Rio Pisuerga. Declarada Conjunto Histórico-Artístico, Astudillo mantém boa parte de seu traçado urbano, medieval, e é dominada pelo morro 2 O mosteiro, um inusitado conjunto monumental moçárabe para o lugar em que se encontra, foi mandado construir em 1353 por D. María (que obteve para isso a bênção papal já no ano seguinte), na localidade que pertencera a Leonor de Gusmão, por doação de seu amante o rei Afonso XI, pai de D. Pedro, que mandara matá-la, logo após a morte de seu pai. D. Pedro, posteriormente, teria doado Astudillo a sua primeira filha com D. María, Doña Beatriz, que viria a morrer em 1367, com, apenas, 13 a 14 anos (OREJÓN, 1984, p. 60-62; ROS, 2003, p.167), agradando, assim, a sua preferida, do mesmo modo que fizera seu pai. 48 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos com as ruínas do Castelo da Mota e as bodegas encravadas na rocha, três igrejas e alguns solares e, sobretudo, o Convento de Santa Clara e o Palácio de D. Pedro, onde funciona um museu. Aí fomos recebido pela Irmã María Pilar, que nos acompanhou, entusiasmada, numa visita de mais de três horas, após outras três horas de caminhada e conversas pela cidade. Dessa brevíssima visita e neste breve itinerário, vale registrar que, hoje, além do convento e do museu, há uma Calle e uma Glorieta de María de Padilla em Astudillo. Também vale registrar que, para nos levar a visitar o panteão de D. María, hoje vazio, pois seus restos mortais foram tranferidos para Sevilha por D. Pedro pouco após a morte de sua predileta, a Irmã María Pilar nos mostrou, por trás de uma parede e de uma porta envidraçada, suas irmãs de calusura (inclusive as angolanas que ali residem e que ela nos fez questão de indicar), que rezavam e nos viam do outro lado. E, ainda, vale assinalar que o retábulo, que representa D. María e D. Pedro, os caracteriza como mártires da Igreja, portando palmas, e que a irmã María Pilar sempre se referia a D. María de Padilla como A Rainha, e que se dispunha a colaborar comigo numa segunda eventual visita, para consulta aos arquivos do mosteiro, o que demandaria autorização eclesiástica especial. De fato, Simón y Nieto ([1896?]) detalha a existência aí de documentos preciosos sobre o itinerário de D. María, suas relações com as autoridades católicas e com os comerciantes judeus. Quanto à catedral de Burgos, também amplamente reformada desde os anos 1980 e com recentíssimas e radicais intervenções dos anos 2000, o itinerário da visita de cerca de três horas estendeu-se até o Museu de Burgos, numa busca vã da lápide que minha memória teima em registrar como tendo sido vista em 1970 – quando também foi motivo de riso. Buscávamos a referência à família ascendente de D. María e só encontramos, no Museu, como destaque de escultura funerária, o Sepulcro de Juan de Padilla, em estilo gótico isabelino de Gil de Siloé. Esse Padilla foi pagem da tataraneta de D. María, a Rainha Isabel, a Católica e, além de homônimo do pai de nossa protagonista no presente itinerário, talvez seja seu descendente. Assim, nossa decepção poderia se transformar talvez em esperança... 49 Armindo Bião Finalmente, chegamos a Sevilha, após seminários e pesquisas em Leiria e Caldas da Rainha, em Portugal, em Madri, na Espanha e em Paris, na França, antes de voltar a Portugal, para tentar ler, ao menos, um dos processos em que aparece Maria Padilha e toda sua quadrilha. Entre 25 e 30 de abril, com a preciosa colaboração do biógrafo de D. María, Don Carlos Ros, que também nos concedeu uma entrevista, comentando as principais fontes de referência sobre a biografada, tivemos acesso à cripta real que se encontra na Capela Real, normalmente fechada à visitação pública, onde se venera a Virgem dos Reis. Aí, na principal capela da maior de todas as catedrais, sob o valioso ataúde de prata, onde repousam os restos de Fernando III o Santo, insepulto e incorrupto, pudemos, ainda que rapidamente, entre uma missa e a abertura da Catedral aos turistas, fotografar os ataúdes de D. María e D. Pedro, que se encontram junto a quatro outros, dos quais apenas um pudemos identificar, por encontrar-se junto ao deles, formando a primeira das duas filas de três urnas funerárias cada, o do Ynfante Don Fadrique. Os de nosso itinerário são identificados assim: RESTOS DEL REY DON PEDRO 1º. DE CASTILLA e RESTOS DE DA. MARÍA DE PADILLA ESPOSA DE DON PEDRO DE CASTILLA. Novos giros e giras Apesar do início deste itinerário ter sido por acaso, em Burgos, na Espanha, há quase 40 anos, seu percurso nos próximos três anos deverá ser feito, primordialmente, na Bahia, com leituras, reflexões, exercícios e jogos teatrais, possivelmente chegando, como previsto, a dramaturgias e a espetáculos. O que não exclui nova visita a Astudillo, Burgos e Sevilha, por exemplo. O casal, que viveu itinerante e bastardo pelas encruzilhadas castelhanas e andaluzas, há mais de sete séculos, e que hoje repousa como legítimo numa catedral católica, das mais importantes do mundo, deverá ser seguramente fonte de inspiração para nossas artes do espetáculo. Já nos fazem sonhar e imaginar soluções técnicas e cênicas (ou cinematográficas) as referências, por exemplo, aos Baños de Doña María de Padilla, no 50 Teatro de cordel e formação para a cena: textos reunidos
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