Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
FUNDAÇÃO EDSON QUEIROZ UNIVERSIDADE DE FORTALEZA – UNIFOR CENTRO DE CIÊNCIAS JURÍDICAS – CCJ Curso de Direito PROJETO DE PESQUISA JURIDIFICAÇÃO: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DA ATIVIDADE JURÍDICA NO BRASIL O ALUNO DE ENSINO MÉDIO NO PROFISSIONALIZANTE E A PSSIBILIDADE DE ESTÁGIO EM ÓRGÃOS PÚBLICOS OU PRIVADOS Paulo Victor Rodrigues Damasceno Matrícula.: 1111917/4 Ori Machado Novais Matrícula 0021100-1 Fortaleza – CE Dezembro, 2017 2 PAULO VICTOR RODRIGUES DAMASCENO JURIDIFICAÇÃO: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DA ATIVIDADE JURÍDICA NO BRASIL Monografia apresentada como exigência parcial para a obtenção do grau de bacharel em Direito, sob a orientação de conteúdo do professor Flávio José Moreira Gonçalves e orientação metodológica da professora Tereza Monnica Xavier Bacelar de Carvalho. Fortaleza – Ceará 2017 3 4 PAULO VICTOR RODRIGUES DAMASCNEO JURIDIFICAÇÃO: UMA BREVE ANÁLISE SOBRE A EXPANSÃO DA ATIVIDADE JURÍDICA NO BRASIL Monografia apresentada à banca examinadora e à Coordenação do Curso de Direito do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade de Fortaleza, adequada e aprovada para suprir exigência parcial inerente à obtenção do grau de bacharel em Direito, em conformidade com os normativos do MEC, regulamentada pela Res. Nº R028/99 da Universidade de Fortaleza. Fortaleza (CE), 13 de dezembro de 2017. Flávio José Moreira Gonçalves, Dr. Prof. Orientador da Universidade de Fortaleza Martonio Mont'Alverne Barreto Lima, Dr. Prof. Examinador da Universidade de Fortaleza Francisco Moreira Ribeiro, Ms. Prof. Examinador da Universidade de Fortaleza Tereza Monnica Xavier Bacelar de Carvalho, Ms. Profa. Orientadora de Metodologia Núbia Maria Garcia Bastos, Ms. Profa. Supervisora de Monografia Coordenação do Curso de Direito 5 AGRADECIMENTOS Aos professores e orientadores, Flávio José Moreira Gonçalves e Tereza Monnica Xavier Bacelar de Carvalho, pelo apoio, atenção, paciência e encorajamento contínuos na pesquisa, à Banca examinadora e aos demais mestres da casa, pelos conhecimentos transmitidos, ao Centro de Ciências Jurídicas e à Diretoria do curso de graduação da Universidade de Fortaleza, pelo apoio institucional e pelas facilidades oferecidas. A Maria Rodrigues de Oliveira, Francisco Carlos Damasceno e Vicente de Paulo dos Santos Queiroz, pelo apoio que me deram, em meio tantas dificuldades. A Saulo Ferreira Damasceno, Savio Ferreira Damasceno e Gilberto Oliveira da Silva. A Leandro Rodrigues, por sua solidariedade durante esses quase sete anos. Aos companheiros de viajem, Allison Duarte Barbosa e Faber Rodrigues da Silva Junior, que de alguma forma atravessam esse trabalho. “Amigos cujos corações eu vi baterem nus quando lhes rasguei as camisas”. Ao Fundo de Financiamento Estudantil (Fies), programa do Ministério da Educação, sem o qual jamais teria sido possível meu ingresso no Curso de Direito da Universidade de Fortaleza. A Meire, por salvar minha vida. Ao Deus desconhecido. 6 "Nenhum aspecto de nossos sistemas jurídicos modernos é imune à crítica. Cada vez mais pergunta-se como, a que preço e em benefício de quem estes sistemas de fato funcionam" Mauro Cappelletti 7 RESUMO O direito, compreendido em toda sua dimensão de instituições, leis, princípios, regras e operadores, vem expandindo-se de forma acelerada sobre toda sociedade em diversas partes do mundo, inclusive no Brasil, transpassando a existência humana e tudo aquilo que a cerca, regulando cada vez mais objetos e sujeitos que compõem nosso espaço social. Tal fenômeno vem recebendo atenção de estudiosos de diversas áreas do conhecimento desde o início do século XX, quando a Alemanha introduziu o tema em sua pauta de discussões jurídicas e sociológicas. Essa expansão do direito sobre a sociedade tem sido denominada de juridificação, cuja conceituação é de difícil delimitação, podendo ser analisada sob diversas acepções multidisciplinares. Esse estudo propõe-se inicialmente investigar a origem e os vários conceitos elaborados sobre o fenômeno da juridificação, tentando encontrar um núcleo conceitual comum entre eles; em seguida, se buscará investigar através de perspectivas distintas, como os processos de interdependência sociais, o surgimento de novos direitos do homem e o Estado Social (Welfare State) podem contribuir como causa geral para o fenômeno da juridificação. No momento seguinte serão analisadas as causas específicas da juridificação brasileira, demonstrando como a expansão do direito no Brasil teve como causas fundamentais o processo de redemocratização e a promulgação da Constituição Federal de 1988. Por fim, será apontado através de dados quantitativos como o mundo jurídico brasileiro vem expandindo-se em diversas direções, quer seja através de uma inflação legislativa ou hipertrofia da lei, quer seja mediante a ampliação de outros elementos que compõem o mundo do direito, tais como os litígios, juízes, advogados, escritórios de advocacia, estudantes de direito e instituições de ensino jurídico, confirmando que o fenômeno da juridificação está presente na sociedade brasileira. Palavras-chave: Expansão do Direito. Juridificação. Inflação legislativa. Hipertrofia da lei. 8 SUMÁRIO INTRODUÇÃO ........................................................................................................................ 09 1 JURIDIFICAÇÃO: ORIGEM E CONCEITOS .................................................................... 11 1.1 Habermas e os impuslsos de juridificação ....................................................................... 13 1.2 Dimenssões da juridificação em Blichner e Molander .................................................... 15 1.3 Conceitos de juridificação em Gunther Teubner ............................................................. 18 2 JURIDIFICAÇÃO: POSSÍVEIS CAUSAS .......................................................................... 21 2.1 Interdepedência como causa da juridificação ................................................................. 22 2.2 Juridificação: era dos direitos e o Estado Social intervencionista ................................... 24 2.3 Causas da juridificação brasileira .................................................................................... 27 3 OS NÚMEROS DA JURIDIFICAÇÃO BRASILEIRA ....................................................... 30 3.1 Hipertrofia do judiciário brasileiro: a justiça em números...............................................31 3.2 Inflação legislativa: definição e alguns números.............................................................33 3.3 Direito em expansão: ensino jurídico e advocacia .......................................................... 36 CONCLUSÃO .......................................................................................................................... 39 REFERÊNCIAS ....................................................................................................................... 41 9 INTRODUÇÃO O direito, compreendido em toda sua extensão, vem ampliando-se sobre sociedade numa tendência universal, a atividade jurídica cada vez mais ganha espaço dentro das relações sociais através de formas distintas, o número de leis aumenta, surgem inúmeros direitos, novos sujeitos de direito são incorporados aos ordenamentos jurídicos, surgem novos objetosde direito, aparecem novas especialidades como o direito digital, consequência no avanço técnico- cientifico, que faz emergir novas formas de relações que também passam a ser reguladas. Surge, portanto, todo um mundo jurídico cada vez mais ativo e crescente na sociedade. De outro lado surge uma sociedade mais complexa, dentro de um mundo globalizado e interdependente, que por consequência passa a exigir do direito um retorno que vise proteção, proibição ou regulação de atividades antes postas a revelia do sistema jurídico. Tudo passa a ser normatizado, até mesmo relações que antes eram alheias ao direito passam a ser reguladas por ele, como as relações homoafetivas, certas relações familiares entre pais e filhos e a união de pessoas não casadas. Surge toda uma plataforma de atividades jurídicas penetrando cada vez mais nas relações sociais em um nível global. Diante desses acontecimentos emergem inúmeros estudos na área sociológica e jurídica para explicar esse fenômeno de crescimento do direito, que para muitos estudiosos é denominado através do termo “juridificação”. No Brasil não é diferente, a expansão do direito, ou a juridificação, encontra-se consubstanciada na inflação legislativa, no crescimento sem precedentes em diferentes níveis do Poder Judiciário, no aumento da oferta em educação jurídica, no crescimento do número de bacharéis, operadores do direito e escritórios de advocacia. A partir desses fatos, o presente estudo será desenvolvido com a finalidade de propiciar um maior esclarecimento sobre o fenômeno da juridificação na sociedade brasileira, respondendo aos seguintes problemas de pesquisa: qual a origem conceitual da juridificação? Quais são as acepções existentes e se há alguma identificação comum entre elas? Quais são as causas desse fenômeno em uma perspectiva global e nacional? Quais dados podem comprovar a existência da juridificação na sociedade brasileira? 10 Os aspectos metodológicos utilizados na presente pesquisa são os seguintes: em relação à natureza ou abordagem do problema, o presente estudo é quali-quantitativo, uma vez que utiliza fatos e dados objetivos, bem como analisa fenômenos sociais vinculados ao objeto de estudo. O tipo ou procedimento técnico utilizado é bibliográfico, baseado em um estudo descritivo-analítico através de explicações pautadas em trabalhos publicados sob a forma de livros, artigos, seminários, relatórios, publicações especializadas, legislação e dados oficiais que abordem o tema em questão, direta ou indiretamente. Quanto a utilização dos resultados, a presente pesquisa é pura e/ou teórica, posto que terá como único objetivo a ampliação dos conhecimentos. Em relação aos objetivos, a pesquisa é descritiva, tendo em vista que buscará descrever, classificar e esclarecer o problema apresentado. Exploratória, com a finalidade de aprimorar o assunto através de informações sobre o tema em discussão. No primeiro capítulo é discutido através de várias acepções e perspectivas distintas, a origem e o conceito de juridificação, tentando localizar entre eles um ponto nuclear comum. O segundo capítulo, por sua vez, é dedicado a investigar através do olhar de diferentes autores, quais são as causas da juridificação em uma perspectiva geral ou universal e quais são as causas desse fenômeno dentro da realidade brasileira. O terceiro e último capítulo propõe demonstrar de forma concreta e objetiva, através de uma série de dados e informações, a existência da expansão da atividade jurídica no Brasil, ou, em outras palavras, tenta-se confirmar o fenômeno da juridificação brasileira como acontecimento real e ativo. Em suma, o presente trabalho tem como foco principal conceituar, determinar as causas e demonstrar a existência da juridificação dentro da realidade nacional. 11 1 JURIDIFICAÇÃO: ORIGEM E CONCEITOS Insta esclarecer inicialmente que este primeiro capítulo não pretende discorrer sobre uma teoria social do fenômeno da juridificação1, mas antes, estudar suas bases conceituais, sua formação, seu surgimento e seus sentidos. O termo é de difícil conceituação, seja no âmbito normativo ou descritivo, e a depender do contexto teórico onde esteja inserido, seu significado pode ganhar conotações distintas, não apresentando, portanto, uma linearidade conceitual definitiva. Sánchez (2007, p. 17), afirma que “juridification ou juridificação não são termos que designem um fenômeno claro e uniforme. Pelo contrário, pode-se falar em juridificação em contextos muito distintos e com finalidades, assim mesmo, diversas”. Assim, para uma compreensão adequada da expressão e do fenômeno que ela designa, é necessária uma análise contextualizada de seus âmbitos de aplicação, bem como uma revisão do tema através de autores que se detêm sobre o assunto. Nesse sentido, faz-se necessário retomar a gênese da expressão, que advém originalmente do vocábulo alemão Verrechtlichung, surgido na República de Weimar, Alemanha, por ocasião dos trabalhos de Fränkel e Kirchheimer; este último expressava uma profunda preocupação com a crescente formalização jurídica, advertindo que esse crescimento neutralizava o movimento das decisões estritamente políticas, bem como paralisava os conflitos de algumas dimensões sociais, como é o caso dos conflitos da classe trabalhadora. Caminha-se para a juridificação de todas às áreas, e procura-se evitar toda decisão estritamente política, seja no âmbito do poder ditatorial do Presidente do Reich, seja no da solução de conflitos trabalhistas; tudo está sendo neutralizado por meio da formalização jurídica. (RIZZI, p. 59, online, citando KIRCHHEIMER, 1928). Como se observa, o conceito de juridificação nasce dentro de uma conjuntura alemã específica, não podendo, contudo, ser generalizado ou universalizado como única conceituação possível, mas apenas utilizado como referência inicial que marca a gênese da discussão. Posteriormente alguns autores se deterão sobre o tema, como Habermas (2016, p. 641-642), para quem o conceito de Verrechtlichun, expressado por Kirchheimer (1928) significa “[...] em primeira linha, à institucionalização do conflito de classes em termos de um direito do trabalho e do salário; em segundo lugar, [...] o engessamento jurídico de controvérsias sociais e de lutas políticas.”. Nessa mesma esteira de pensamento, Sánchez (2007, p. 16) aduz que, com a expressão Verrechtlichung, Kirchheimer (1928) queria sinalizar o “fato de que determinadas 1 Em inglês: juridification; em alemão: verrechtlichung; em francês: juridification e em italiano: giuridificazione. 12 questões foram subtraídas à distribuição social de forças e inseridas na esfera do Direito”, o autor acrescenta ainda que o termo alemão denota a ideia de um excesso desnatualizador que se definiria melhor com a expressão hiper-regulação. Já para Teubner (1988), embora reconheça a utilização do termo por Kirchheimer (1928), não admite que este seja o percussor da expressão, pois assevera que Fränkel já se utilizava do termo para criticar a institucionalização jurídica das relações de trabalho, fenômeno que paralisava a dinâmica política do movimento da classe trabalhadora. [...] foi pela primeira vez empregado durante a República de Weimar, com uma acentuação polêmica, no âmbito do Direito do Trabalho: Kirchheimer usou-a para criticar a formalização jurídica das relações de trabalho, neutralizadora dos genuínos conflitos políticos de classe e, já antes disso, Fränkel a utilizara, para imputar à juridificação das relações trabalhistas a ‘petrificação’ da dinâmica política do movimento da classe trabalhadora. (TEUBNER, 1988, p. 29). Embora Kirchheimer e Fränkel entendam, em certa medida, a juridificação como a expansão do Direito sobre os conflitos políticos de classe, ambos os autores estão preocupadosnão com a expansão em si, mas com os efeitos desta, aduzindo que o fenômeno engessa e petrifica a dinâmica de lutas políticas e controvérsias sociais, bem como institucionaliza a luta de classes através de regulações jurídicas sobre o trabalho e salário. Observa-se, portanto, que o conceito de juridificação de ambos os autores possui uma delimitação teórica que se restringe a uma análise crítica dos efeitos da juridificação sobre lutas políticas, controvérsias sociais e regulações jurídicas sobre o trabalho, que são avaliadas dentro do contexto histórico alemão. Na verdade, a Verrechtlichung analisada enquanto fenômeno, transcende o espaço de domínio da ciência jurídica e sua conceituação ultrapassa a delimitação fechada de uma ordem jurídica nacional. Assim, o uso do conceito, bem como a observação do fenômeno, não estão vinculados única e exclusivamente ao sentido germânico inicial, que deu origem, por exemplo, as noções de “hiper-regulação” ou de “elemento paralisante das lutas sociais” desenvolvidas por Kirchheimer e Fränkel, nem tão pouco trata-se de um problema próprio das ciências jurídicas, sociológicas e políticas da Alemanha, embora tenha se desenvolvido a partir delas. Assim, compreendida essa etapa, o fenômeno da juridificação deve ser observado como acontecimento universal, que apresenta semelhanças e particularidades distintas de nação para nação, sendo sua discussão um debate complexo e interdisciplinar que envolve não só juristas, mas economistas, sociólogos, filósofos e até mesmo políticos. 1.1 Habermas e os impulsos de Juridificação 13 Em Habermas (2016), os conceitos de juridificação utilizados por Kirchheimer e Fränkel, mencionados anteriormente, sofrem uma ampliação de seu horizonte teórico, não se restringindo a determinadas lutas sociais e políticas, entendendo o autor que a juridificação relaciona-se com o fenômeno da multiplicação do Direito escrito nas sociedades modernas, definindo-a, de modo geral, como processo no qual o sistema jurídico se hipertrofia, regulando cada vez mais objetos ou fatos já assimilados pelo mundo do Direito, bem como amplia seu horizonte de atuação, seus campos de domínio, conduzindo a uma incorporação cada vez maior de elementos que até então encontravam-se externos ao sistema. Segundo o autor, o fenômeno da juridificação pode assumir duas formas distintas, as quais intitulou de extensão e condensação. [...] podemos fazer uma distinção entre a extensão do direito, ou seja, a normatização jurídica de novos fatos sociais, até então regulados de modo informal, e a condensação do direito, isto é, a especialização de matérias jurídicas globais que se solidificam em matérias particulares. (HABERMAS, 2012, p. 641). Em outras palavras, pode-se dizer que o alcance de um objeto ainda não regulado pelo direito se localiza no âmbito de extensão da juridificação e a regulação ou especialização cada vez maior de um objeto já assimilado pela normatização jurídica, estaria no âmbito de condensação. Habermas utiliza o conceito de juridificação para testar sua tese sobre a “colonização do mundo da vida”, conceito complementar ligado a sua “teoria do agir comunicativo”, que por questões de delimitação teórica não serão tratados aqui. Em termos gerais, Habermas descreve e distingue quatro impulsos globais de juridificação que marcaram época e que são analisados a partir de uma perspectiva histórico-sociológica. O primeiro impulso ou processo de juridificação deve ser compreendido a partir do desenvolvimento do direito europeu, durante o período absolutista, onde ocorre a institucionalização, ou normatização de dois âmbitos que permitirão a economia e o Estado se diferenciarem em subsistemas. Um dos âmbitos que passa a ser normatizado através de um direito privado é o comércio individual. [...] o comércio entre proprietários individuais de mercadorias é normatizado no sentido de uma ordem do direito privado, talhada conforme pessoas de direitos que agem estrategicamente e celebram contratos. [...] tal ordem jurídica apresenta características da positividade, da generalidade e da formalidade, tendo sido construída com o auxílio do moderno conceito de lei e de pessoas de direitos que podem celebrar contratos, adquirir, alienar ou herdar posses. Ela tem por objetivo garantir a liberdade e a propriedade da pessoa privada, a segurança jurídica e a igualdade formal de todas as pessoas de direito perante a lei e, com isso, a calculabilidade de todas as ações reguladas pelo direito. (HABERMAS, 2012, p. 643). 14 No outro âmbito, o direito público outorga ao poder estatal soberano o monopólio do poder legal, conferindo-lhe a exclusividade na produção de jurisdição, e por assim dizer, de dominação. A esses dois acontecimentos que se desenrolam com intervenções de direito público e privado é que Habermas denomina de primeiro impulso de juridificação, cujo acontecimento permite a constituição da sociedade burguesa. Para o autor, a autocompreensão dessa fase pode ser encontrada de forma mais coerente no Leviatã de Thomas Hobbes. O segundo impulso de juridificação pode ser percebido no Estado de direito burguês, que encontrou um modelo protótipo no constitucionalismo alemão do século XIX, sendo caracterizado por uma normatização jurídico-constitucional do poder público, que no período antecedente, ou seja, absolutista, era contido e limitado pelo legalismo formal e pelas vias burocratizadas do exercício do poder. Nesse momento, a sociedade burguesa entendida enquanto pessoas privadas, passa a adquirir direitos subjetivos públicos derivados de normas constitucionais que vinculam diretamente o soberano e toda sociedade burguesa, que nesse estágio ainda não possui uma formação democrática no sentido de uma participação. Tais direitos podem ser reivindicados pelos cidadãos, constituindo um princípio da legalidade num sentido de um “império da lei”. Apartir de agora, a administração já não pode interferir contra, praeter ou ultra legem na esfera da liberdade privada dos burgueses. As garantias da vida, da liberdade e da propriedade de pessoas privadas já não constituem efeitos colaterais funcionais de um intercâmbio econômico institucionalizado juridicamente em termos de um direito privado; mediante a ideia do Estado de direito, elas adquirem o status de normas constitucionais justificadas moralmente, imprimindo sua marca na estrutura do poder com um todo. (HABERMAS, 2012, p. 646). O terceiro impulso de juridificação nasce sob influência da Revolução francesa, que trazia como lema as expressões Liberté, Egalité, Fraternité. Nesse momento, o Estado de direito democrático recebe seus primeiros contornos. Dentro dessa conjuntura, é retomada, no âmbito do direito constitucional, a concepção de liberdade, que o direito natural já tinha inserido no conceito de lei. Assim, o poder do Estado, já constitucionalizado pelo impulso de juridificação anterior, passa a ser democratizado, os sujeitos adquirem status de cidadãos e conquistam direitos à participação política; as leis entram em vigor somente quando legitimadas por um interesse geral democraticamente assegurado que deve passar por um procedimento que vincule a produção de normas ao debate público, bem como a formação parlamentar da vontade. Nesse contexto, pode-se dizer que a universalidade e isonomia do voto, bem como a liberdade de organização, filiação e participação em partidos políticos são direitos que se constituem necessários para a legitimação do processo de produção de normas. Como consequência da 15 dinâmica desses acontecimentos, a problemática da divisão dos poderes institucionais estatais, compreendidos em executivo, legislativo e judiciário, se acentua na discussão de suas diferenciações funcionais. O quarto e último impulso de juridificação tratado por Habermas deve ser compreendido a partir do Estado social, que sedesenvolve no contexto do Estado de direito democrático e objetiva garantir ainda mais liberdades e direitos que o impulso de juridificação anterior. O desenvolvimento que conduz ao Estado Social deve ser interpretado como a constitucionalização de uma relação de poder social que se encontra ligada a estruturas de classe. Nessa fase surgem normas que amenizam os conflitos sociais, como por exemplo, a limitação da jornada de trabalho, a proteção contra demissão, o seguro social e a liberdade sindical. Essas normas acabam por equilibrar relações que antes estavam sujeitas “ao poder de disposição ilimitado e ao poder de organização dos meios de produção dos proprietários privados”, Habermas (2016, p. 649). Ou seja, tal processo de normatização acaba por balancear o poder no interior de uma relação já constituída juridicamente. Em suma, pode-se resumir os quatro processos de juridificação citados por Habermas da seguinte forma: o primeiro impulso teria ocorrido na Europa Ocidental, culminando no Estado Burguês formado em pleno absolutismo; o segundo impulso teria sua expressão no Estado de direito democrático, exemplificado no século XIX com a monarquia alemã; o terceiro impulso teria dado origem ao Estado de direito, difundido na Europa e América do Norte por influência da Revolução Francesa; o quarto e último impulso de juridificação teria culminado no Estado de direito democrático e social, forjado através das conquistas alcançadas durante o século XX pelo movimento dos trabalhadores europeus. 1.2 Dimensões da juridificação em Blichner e Molander Blichner e Molander (2005) entendem a juridificação como um processo no qual algo se multiplica no decorrer do tempo. É a partir desse conceito genérico que os autores analisam, de forma descritiva, cinco dimensões da juridificação: a) juridificação constitutiva; b) juridificação como expansão e diferenciação do direito; c) juridificação como aumento da resolução de conflitos, tendo a lei como referencial; d) juridificação como aumento do poder judicial e; e) juridificação como enquadramento jurídico. [...] Short of a workable generic definition we will proceed by delineating five dimensions of juridification. First, constitutive juridification is a process where norms constitutive for a political order are established or changed to the effect of adding to 16 the competencies of the legal system. Second, juridification is a process through which law comes to regulate an increasing number of different activities. Third, juridification is a process whereby conflicts increasingly are being solved by or with reference to law. Fourth, juridification is a process by which the legal system and the legal profession get more power as contrasted with formal authority. Finally, juridification as legal framing is the process by which people increasingly tend to think of themselves and others as legal subjects. (BLICHNER; MOLANDER, 2005, p.5, online). 2 Para uma melhor compreensão, todas essas dimensões de juridification serão tratadas detalhadamente. O primeiro conceito, ou dimensão, tratado pelos autores, é o de “juridificação constitutiva”, que seria o processo no qual a produção normativa é criada ou alterada para incorporar competências do sistema jurídico a uma ordem política. As normas constitutivas podem ser dividas em três espécies: a) normas procedimentais; b) normas de limitações do poder do Estado e; c) normas de separação dos poderes. O Estado constitucional, por exemplo, é caracterizado por normas processuais que definem como realizar atos políticos; normas de conteúdo que limitam o poder político do Estado e protegem os direitos individuais; e normas institucionais que dão ao sistema político competências exclusivas em relação aos outros poderes. O estabelecimento de uma constituição formal, por assim dizer, pode ser o caso mais evidente do desenvolvimento de uma juridificação constitutiva. Contudo, as normas constitutivas podem surgir dentro e fora de uma constituição formal sob o aspecto de doutrinas jurídicas, jurisprudência ou paradigmas legais. Uma segunda dimensão do conceito é a “juridificação como expansão e diferenciação do direito”, que pode ser definida como o processo pelo qual um fato ou objeto social é submetido a uma normatização legal, podendo ser geral ou detalhada. Esse sentido de juridificação possui dois aspectos distintos, quais sejam: a) a expansão do direito enquanto norma positiva e; b) a diferenciação horizontal e vertical da lei. A expansão do direito enquanto norma positiva é o elemento central dessa modalidade de juridificação, que ocorre quando a lei se multiplica, se expande. Já a diferenciação horizontal da lei, significa que uma lei é dividida em duas ou mais leis de uma mesma dimensão hierárquica. De outro lado, a diferenciação vertical significa dizer que uma lei é cada vez mais detalhada, particularista, diferenciando um número crescente de fatos ou objetos normatizados. 2 [...] Na falta de uma definição genérica viável, procederemos por esboçar cinco dimensões da juridificação. Em primeiro lugar, a juridificação constitutiva é um processo em que as normas constitutivas de uma ordem política são estabelecidas ou alteradas com a finalidade de acrescentar competências do sistema jurídico. Em segundo lugar, a juridificação é um processo pelo qual a lei vem regulamentar um número cada vez maior de atividades diferentes. Em terceiro lugar, a juridificação é um processo pelo qual os conflitos cada vez mais estão sendo resolvidos por, ou com, referência à lei. Em quarto lugar, a juridificação é um processo pelo qual o sistema jurídico e a profissão jurídica obtêm mais poder em contraste com a autoridade formal. Finalmente, a juridificação como enquadramento jurídico é o processo pelo qual as pessoas tendem cada vez mais a pensar em si mesmas e nas outras como sujeitos jurídicos. (tradução nossa) 17 A terceira dimensão de juridificação diz respeito ao “aumento da resolução de conflitos tendo a lei como referência”. Em outras palavras, significa dizer que em uma determinada sociedade os conflitos são resolvidos, cada vez mais, baseados em referencias normativos, ou seja, tendo a lei como referência. Os autores acreditam que esse tipo de juridificação pode se distinguir em: a) resolução de conflitos judicias, que envolveria um procedimento padronizado e especializado de raciocínio jurídico vinculado ao poder judiciário; b) resolução legal de conflitos, que envolveria um raciocínio jurídico fora do judiciário e; c) resolução de conflitos leigos tendo a lei como referência, que poderia envolver, com menos rigor, o raciocínio jurídico. Inclusive com a possibilidade das referencias legais serem interpretadas de forma equivocada, dando margem a erros e mal entendidos. Já a quarta dimensão de juridificação está ligada ao “aumento do poder judicial” e as principais razões para esse aumento, de acordo com essa concepção de juridificação, estão relacionadas à indeterminação do direito ou a sua falta de transparência. A indeterminação pode ser compreendida quando não está claro para jurisprudência quais regras de direito devem ser aplicadas ou como tais regras devem ser interpretadas ao caso concreto. Partindo dessa avaliação chega-se a conclusão de que, quanto maior for a indeterminação, maior será o poder discricionário do judiciário. O aumento desse poder ocorre também através da falta de transparência, que refere-se ao grau de abertura e inteligibilidade da lei a partir da ótica do cidadão. Assim, quando a transparência é diminuída, automaticamente aumenta-se o poder daqueles que “dominam” as normas em relação àqueles que não. Tanto a indeterminação como falta de transparência causam o aumento do poder judicial, contudo, para que tal aumento ocorra, é necessário que o sistema normativo permitauma abertura à discricionariedade do judiciário quando tais regras estejam indetermináveis ou com falta de transparência. A última dimensão da juridificação é tratada através do conceito de “juridificação como enquadramento jurídico”, que é a tendência cada vez maior dos indivíduos compreenderem a si mesmos e aos outros como sujeitos jurídicos, ou em outras palavras, como sujeitos de direito, a partir de um ordenamento jurídico comum. Essa dimensão de juridificação é fortemente observada em sociedades baseadas no Estado de Direito, onde as pessoas atribuem grande valor ou significado as leis como constitutivas de suas práticas sociais. Nesse contexto, os indivíduos tendem a si considerarem cada vez mais pertencentes a uma sociedade de sujeitos legais que possuem direitos e deveres de forma igualitária. Blichner e Molander (2005) distinguem quatro aspectos dessa dimensão de juridificação, o primeiro aspecto ocorre quando a sujeição sob um Estado e a aceitação de deveres jurídicos substituem outras formas de submissão e lealdade. 18 Um segundo aspecto está ligado ao fato de que os indivíduos se vêm cada vez mais autorizados, ou livres, para realizar práticas sociais que não são proibidas sob o ponto de vista jurídico, bem como confiam a proteção dessa liberdade individual ao sistema normativo. O terceiro aspecto ocorre quando o bem estar individual e social é pensado em termos de direitos constituídos legalmente e não como decorrentes de obrigações privadas, moral, caridade ou decisões políticas. Já o último e quarto aspecto dessa dimensão de juridificação, ocorre quando a participação democrática é cada vez mais pensada em termos legais e não meramente como virtude cívica. 1.3 Conceitos de Juridificação em Gunther Teubner Em sua obra denominada “Juridificação: noções, limites, soluções”, Teubner (1988), faz uma revisão interdisciplinar de três conceitos de juridificação distintos, existentes no debate sociológico, jurídico e político. Na discussão jurídica, por exemplo, o autor identifica que o conceito de juridificação surge ligado a uma concepção de expansão do Direito, expressões como “inundação de normas” e “explosão legal” passam a ser invocadas para demonstrar a preocupação da comunidade jurídica com a exorbitante multiplicação do direito positivo da sociedade em geral. Para autor, essa concepção que faz referência a juridificação como expansão do direito, é limitada e ortodoxa, posto que concentra-se na mera observação do crescimento do direito, e, dessa forma, não passa de uma mera ferramenta de inventário que apresenta pouca utilidade, tornando impossível construir um ponto de partida sólido para uma compreensão adequada da juridificação enquanto fenômeno. O autor ainda adverte que o problema da juridificação, entendido como simples expansão da normatização e do crescimento de material legislativo poderia ser resolvido através de um processo de racionalização da produção de normas que possibilitasse uma diminuição do número de leis, contudo, sinaliza, a experiência histórica demonstra que esse tipo de projeto possui grandes limitações, posto que não enfrenta o problema de forma satisfatória, pois o analisa em uma perspectiva numérica de crescimento, sem atentar para os efeitos qualitativos acarretados ao sistema jurídico, político e social. Parece demasiadamente estreita, contudo, uma impostação da problemática em análise que se limite à mera observação do crescimento do material legislativo e da expansão quantitativa do Direito. Por um lado, a análise crítica do fenômeno de juridificação sob a perspectiva geral de <<inundação de leis>> acaba efetivamente por limitar a discussão em vários aspectos, muito dificilmente podendo assim constituir um ponto de partida adequado para a compreensão adequada daquele fenômeno. Ao puro problema quantitativo do crescimento do direito, ao qual a expressão <<inundação de leis>> limita sua ênfase, poderão sempre provavelmente 19 acudir ou remediar certos progressos na técnica legislativa – sem que com isso, todavia, se tenham respondido aos aspectos qualitativos do problema, indubitavelmente aqueles que mais decisivas implicações acarretam e maiores interrogações colocam (máxime, o de determinar quais as alterações que a crise da juridificação trouxe a própria natureza do sistema jurídico). [...]. (TEUBNER, 1988, p. 25). Uma segunda acepção analisada advém da sociologia-jurídica, que interpreta a juridificação como sendo uma “expropriação de conflito”, ou seja, nessa perspectiva os litígios humanos são transportados de sua esfera social própria e natural, para logo em seguida serem inseridos dentro de um formalismo jurídico que submete sua existência a processos de resolução estritamente jurídicos. Esse conceito faz parte da tradição de estudos ligada ao movimento das politics of informal justice desenvolvido nos Estados Unidos, tendo na Europa o congênere das “alternativas de direito”. Os adeptos desse conceito de juridificação questionam a validade de uma das principais funções do Direito, qual seja, “a resolução dos conflitos”, isso porque, segundo adeptos, existem inúmeros fatores burocráticos dentro processamento jurídico impedindo que os conflitos sociais sejam adequadamente solucionados, dentre os quais citam- se: a lentidão processual, o receio de litigação, dificuldade de acesso a justiça e a incerteza de sucesso no litígio. Assim, desse ponto de vista, “[...] a juridificação não resolve conflitos, mas simplesmente aliena-os: ou seja, mutila os conflitos sociais, reduzindo-se a um mero caso judicial, e desse modo exclui qualquer possibilidade de uma resolução socialmente adequada [...]”, Teubner (1998, p. 26). Nessa perspectiva, os militantes dessa concepção sugerem que os conflitos sociais devem ser despidos da dimensão burocrática do formalismo jurídico e devolvidos a dimensão social mediante a criação de métodos informais ou extrajudiciais de resolução de conflitos. Essa concepção também é criticada pelo autor, alegando que: [...] tais propostas revelam-se problemáticas sob vários aspectos: por um lado, um retorno à justiça informal (<<informal justice>>) implica, nas condições actuais, um abandono da sorte dos conflitos às existentes constelações de poder social; por outro lado, as referidas propostas parecem menosprezar certos aspectos cruciais de uma resolução dos conflitos operada num cenário de separação funcional dos papeis sociais, que caracteriza a sociedade moderna; finalmente, tais propostas parecem ainda subestimar uma outra importante função do Direito no contexto de um universo social funcionalmente diferenciado, consistente na utilização prospectiva dos conflitos como veículo de generalização e sedimentação de expectativas sociais congruentes. [...] (TEUBNER, 1988, p. 28). Por fim, o terceiro e último conceito de juridificação analisado pelo autor está ligado ao sentido de “despolitização”, desenvolvido por cultores da ciência política. Nessa acepção, a juridificação seria um processo de neutralização dos conflitos políticos de classe, que acarretaria por consequência uma certa conformação política de determinados grupos sociais. 20 Em outras palavras, o Direito surgiria como uma espécie de elemento conciliador, apaziguador dos conflitos sociais, mantendo cada lado da relação, antes conflituosa, em um estado de imobilidade ou de limitação de seu potencial político, ocorrendo, assim, uma despolitização. Nessa perspectiva, a juridificação seria algo ambivalente, que se traduziria a um só tempo em privação e garantia de liberdade. Isso porque, ao garantir direitos, o processo de juridificação impõe formalmente limites à atuação política dos grupos em conflito. O exemplo clássico dessa ideia encontra-se nas relações de trabalho, tendo como atores: o Estado, o trabalhador, a empresa e as respectivas associações sindicais destes doisúltimos. [...] por um lado, o Direito do Trabalho protege certos interesses dos trabalhadores e assegura uma margem de manobra às associações sindicais representativas desses interesses; contudo, e por outro lado, o caráter <<repressivo>> da juridificação tende a despolitizar os conflitos laborais e sociais, em virtude de originar uma drástica limitação das possibilidades de uma acção militante daquelas associações. (TEUBNER, 1988, p. 29). Para os defensores dessa acepção de juridificação, os efeitos despontencializadores do caráter político das lutas laborais só poderão ser debelados mediante políticas sindicais que reorientem sua perspectiva em direção a estratégias conflituosas que representem o interesse dos trabalhadores de forma genuína e autônoma. Embora a “juridificação” seja de difícil conceituação, conforme se pôde constatar através dos vários sentidos interdisciplinares expostos neste capítulo, todos eles encontram uma certa similaridade que está vinculada a uma acepção de “crescimento ou expansão do mundo jurídico” através da sociedade, e é nesta acepção, existente de forma direta ou indiretamente nos vários sentidos de juridificação apresentados, que assenta-se o ponto nuclear desse conceito, dai porque a análise da expansão da atividade jurídica no Brasil portar inicialmente uma definição conceitual de “juridificação”. 2 JURIDIFICAÇÃO: POSSÍVEIS CAUSAS 21 O Direito cresce em todas as direções em uma velocidade fascinante, atravessando todas as dimensões da vida social. Dentro dessa conjuntura, talvez seja possível afirmar que não há lugar em que a intervenção direta ou indireta do mundo jurídico esteja a acontecer. Mas quais fatores contribuem para a existência do fenômeno da juridificação? Porque todo corpo social encontra-se sedimentado, cada vez mais, por camadas de interversão do mundo jurídico? Após discorrer no capítulo anterior sobre a origem dos vários conceitos de “juridificação”, identificando entre eles o elo comum de uma base teórica conceitual, que em termos gerais caracterizou-se por uma acepção de “crescimento ou expansão do Direito”, este capítulo será dedicado a investigar as possíveis causas da juridificação. Importa esclarecer que essas causas sofrem mutações no tempo e espaço, sendo possível visualizá-las por diversas perspectivas, inclusive interdisciplinares. Definir as causas da juridificação não é tarefa simples, a complexidade e magnitude do fenômeno possibilitam recortes e delimitações específicas que proporcionam olhares distintos, tornando impossível estabelecer uma causa única para o fenômeno. Em outras palavras, pode- se afirmar que haverá causas diferentes a depender da disciplina que analisa, bem como do contexto temporal e regional onde se desenvolve o estudo. Compreendida essas ressalvas iniciais, esse capítulo dissertará em seu primeiro momento sobre os processos de interdependência, característicos da sociedade contemporânea, que contribuíram para a expansão do mundo jurídico. Em um segundo será demonstrado como a multiplicação do direito dos homens e o surgimento do Estado Social e intervencionista também contribuíram para a ampliação do Direito. Por fim, serão analisadas causas específicas que impulsionaram o fenômeno da juridificação no Brasil a partir reabertura democrática, que trás seu bojo a promulgação da Constituição Federal no final dos anos 80, passando a estabelecer uma série de novos direitos e transformando o Judiciário nacional em uma verdadeira instituição autônoma aos demais poderes. 2.1 Interdependência como causa da juridificação Para Lopes (2005), a expansão do Direito está estritamente ligada à ampliação dos processos de interdependência existentes na sociedade contemporânea, sendo, portanto, o 22 veículo pelo qual o mundo jurídico se propagaria no tempo e espaço. Segundo o autor, a interdependência caracteriza-se “[...] pela reciprocidade das dependências (mesmo quando assimétricas) entre os participantes de uma relação social [...]”, Lopes (2005, p. 17). Essa interdependência, conceito já incorporado às ciências sociais, possui características distintas e variáveis que o autor divide em três modalidades históricas. Numa primeira modalidade, há uma interdependência que se manifesta como base das relações sociais. Essa interdependência nuclear de qualquer convivência adviria da impossibilidade do homo sapiens de sobreviver isoladamente à natureza, o que o impele a estabelecer relações entre si para lidar com ela. Nesse sentido, é uma interdependência que precederia a própria sociedade, apresentando-se como necessidade comum e básica para contrair relações sociais de produção. A sexualidade também integra esta modalidade de interdependência pré-social, como impulso que revela a dependência da proximidade de outros, como a constatação da precariedade biológica do humano, particularmente evidenciada na “longa infância” de cuidados necessários ao nosso desenvolvimento [...]. (LOPES, 2005, p. 18). Essa primeira modalidade, denominada “interdependência biológica”, possui um caráter de sobrevivência, está presente como base nuclear das relações entre os indivíduos, contudo, não é responsável por definir as formas de organização social que são adotadas historicamente, existindo outros fatores que contribuem para essa definição. A segunda modalidade, classificada pelo autor como “interdependência relativa”, pode ser encontrada na modernidade, consequência das relações sociais existentes nesse período. Nesse contexto histórico, os sujeitos gozam de certa liberdade e autonomia, adotam o contrato como paradigma de suas relações, possuem interesses distintos e são necessariamente mediados por coisas, como o dinheiro, por pessoas ou instituições. A mediação, portanto, funcionaria como condição indispensável para o estabelecimento dessas relações e o contrato seria a referência ou paradigma principal dos atores envolvidos. Como consequência desse quadro, surgem as “externalidades negativas”, ou seja, acontecimentos nocivos que ultrapassam a esfera dos participantes envolvidos em dada relação, atingindo terceiros alheios aos agentes que às deflagraram. [...] Afinal, as relações sociais modernas envolvem sujeitos livres para contraí-las, eles tendem a deslocar o ônus produzido no relacionamento para fora do mesmo, atingindo pessoas alheias, ao invés de assumi-lo. Como não há submissão entre interdependentes, não é razoável que algum ou todos os sujeitos da relação arquem com suas consequências negativas, preferindo exteriorizá-las. (LOPES, 2005, p. 19). Diante dessa conjuntura, a modernidade é marcada por uma larga escala de externalidades negativas que podem ser observadas em meio aos processos de industrialização, urbanização e internacionalização, muito visíveis no mundo moderno. Como exemplos de externalidades negativas podem ser citadas a inflação no campo econômico ou a poluição no campo ambiental. 23 Essas externalidades ocorrem porque a sociedade moderna, compreendida com um todo, não é interdependente de fato, mas um conjunto de pequenas interdependências espalhadas pelo corpo social que vinculam somente os participantes específicos de uma dada relação (independente da extensão de seus efeitos), sendo o restante da sociedade descartada, não “existindo” ativamente. Assim, como a interdependência entre sujeitos livres e autônomos não é propicia à absorção – por todos ou alguns deles – dos custos da relação social, também favorece sua externalização para os estranhos a ela, pertencentes a outras relações sociais ou a nenhuma. Descarrega sua nocividade para além deles, porque a relação de interdependência que praticam visa, exatamente, à sua independência (ainda que provisória) da sociedade. Em suma, interdependência entre os envolvidos e independência em face dos demais: o público-alvo de suas externalidadesnegativas. (LOPES, 2005, p. 20). Na contemporaneidade as relações sociais intensificam-se, emergindo através de uma “interdependência mais abrangente e profunda”. Nessa modalidade, as interdependências não estão restritas aos agentes de uma dada relação, mas estendem-se por todo conjunto do tecido social, decorrendo daí sua abrangência. Sua profundidade, por outro lado, decorre das dependências reciprocas emergentes, que nesse momento tornam-se ampliadas e diretas, cujo impacto das ações é imediato, repercutindo não apenas entre os participantes envolvidos em uma dada relação, mas sobre toda a sociedade. Para Lopes (2005), enquanto a modernidade apresenta interesses individuais e coletivos, a contemporaneidade apresenta os interesses difusos. É nesse contexto que nasce a sociedade da interdependência, preocupada com a paz, o equilíbrio ambiental, a qualidade de vida, a higiene social, a moralidade pública, as guerras, a insustentabilidade ecológica, as doenças, o desemprego em larga escala, a violência etc. Trata- se de uma sociedade globalizada e cada vez mais complexa, cuja interdependência envolve tudo, inclusive futuras gerações, exigindo uma ampliação das responsabilidades e das exigências éticas em um plano cada vez mais amplo e geral. E o que tem o direito com isto? Ora, como aduzem as várias teorias do direito, relações jurídicas são relações sociais de interdependência. São vínculos sociais constituídos por uma polaridade que apresenta uma correspondência entre, de um lado, um dever jurídico cujo cumprimento se exige e, de outro lado, um direito subjetivo cujo exercício lhe é pertinente. Implicam um ao outro e vice-versa, caracterizando dependências recíprocas (interdependência). Jurídico é, assim, o comportamento que exige um comportamento correspondente de outrem. (LOPES, 2005, p. 22, grifo original). Ainda segundo Lopes (2005), a interdependência contemporânea é o habitat do direito, sendo a ferramenta jurídica o instrumento mais adequado para atender as inúmeras demandas que emergem das novas relações sociais existentes nesse período. O direito, portanto, expande- 24 se na medida em que passa a regular, cada vez mais, as inúmeras formas de relações contemporâneas, que são interdependentes, instantâneas e causam efeitos imediatos decorrente do auto nível de dependência e conectividade existente nessas relações, exigindo uma conduta deontológica de seus participantes em relação a toda sociedade. Uma vez que as relações sociais multiplicam-se e tornam-se mais complexas e dependentes umas das outras, surge a necessidade de regular não só essas relações, mas os efeitos que advém delas. Nesse contexto, a juridificação, ou a expansão do direito, surge como consequência e solução para manter em harmonia das relações sociais. 2.2 Juridificação: era dos direitos e o Estado Social intervencionista A multiplicação e a universalização dos direitos do homem é parte constitutiva do fenômeno da juridificação, sendo importante uma pequena passagem pelo assunto. Nesse caminho, faz-se necessário dar atenção aos estudos de Bobbio (2004, p. 33), para quem “o desenvolvimento da teoria e da prática (mais da teoria do que da prática) dos direitos do homem ocorreu, a partir do final da guerra, essencialmente em duas direções: na direção de sua universalização e naquela de sua multiplicação.”. Embora o autor cite a universalização e a multiplicação dos direitos do homem, apenas a multiplicação será analisada especificamente em seu estudo. Essa multiplicação dos direitos ocorreu, segundo o autor, de três modos distintos: em primeiro lugar, porque houve um aumento de bens tutelados juridicamente; em segundo lugar, porque foi ampliada a titularidade de direitos típicos do homem a sujeitos diversos; em terceiro e último lugar, porque a figura do homem deixou de ser considerada ente genérico (abstrato) e passou a ser identificada através de suas diversas formas de manifestação em sociedade, com o velho, o doente, a criança etc. Em resumo, a multiplicação dos direitos ocorreu porque há mais bens, mais sujeitos e mais identidades de indivíduos que passam a ser tutelados pelo direito. O autor aduz que o primeiro processo surge com a passagem das liberdades denominadas negativas, para os direitos sociais e políticos, que exigem uma intervenção do Estado. O segundo processo, por sua vez, ocorre através da passagem do indivíduo humano, considerado como único detentor de direitos, para a aquisição de direitos através de sujeitos distintos, como as coletividades de minorias étnicas, os animais e a natureza. Com relação ao segundo, ocorreu a passagem da consideração do indivíduo humano uti singulus, que foi o primeiro sujeito ao qual se atribuíram direitos naturais (ou morais) — em outras palavras, da “pessoa” —, para sujeitos diferentes do indivíduo, 25 como a família, as minorias étnicas e religiosas, toda a humanidade em seu conjunto (como no atual debate, entre filósofos da moral, sobre o direito dos pósteros à sobrevivência); e, além dos indivíduos humanos considerados singularmente ou nas diversas comunidades reais ou ideais que os representam, até mesmo para sujeitos diferentes dos homens, corno os animais. Nos movimentos ecológicos, está emergindo quase que um direito da natureza a ser res peitada ou não explorada, onde as palavras “respeito” e “exploração” são exatamente as mesmas usadas tradicionalmente na definição e justificação dos direitos do homem. (BOBBIO, 2004, p. 33, grifo original). Por seu turno, o terceiro processo advém da passagem do homem genérico para um homem mais específico, compreendido em sua multiplicidade de manifestações sociais que passam a ser visualizadas através de critérios distintos de diferenciação, tais como a idade, as condições físicas e o sexo. Cada um desses critérios revela condições e diferenças específicas que impedem igual proteção e tratamento, isso porque o velho é diferente da criança, o homem da mulher, o sadio do enfermo etc. Em suma pode-se dizer que essa proliferação dos direitos do homem aconteceu por meio de três causas distintas, a dizer: [...] a) porque aumentou a quantidade de bens considerados merecedores de tutela; b) porque foi estendida a titularidade de alguns direitos típicos a sujeitos diversos do homem; c) porque o próprio homem não é mais considerado como ente genérico, ou homem em abstrato, mas é visto na especificidade ou na concreticidade de suas diversas maneiras de ser em sociedade, como criança, velho, doente, etc. Em substância: mais bens, mais sujeitos, mais status do indivíduo.[...] (BOBBIO, 2004, p. 33). Taubner (1988), por sua vez, analisa as causas da juridificação através de um prisma bastante distinto. Segundo autor, para uma compreensão adequada das causas da juridificação é necessário estabelecer uma delimitação histórica que concentre-se no Estado do Bem-estar Social (ou intervencionista) encontrado no quarto impulso de juridificação analisado por Habermas (2016), tema já discutido no primeiro capítulo deste trabalho. Por Welfare State, ou Estado do Bem-estar Social, entende-se a forma de organização política e econômica que estabelece o Estado como agente central na organização econômica e na promoção social, ou seja, nesse modelo, o Estado é o ator que regulamenta toda a vida social, política e econômica de uma nação através de suas leis e políticas de intervenção que visam o máximo de qualidade de vida para todos os cidadãos, proporcionando direito a condições mínimas de educação, saúde, moradia e assistência social. Em suma, passa a estabelecer mais direitos. Em sua análise, Taubner (1988) lança mão aos estudos desenvolvidos por Max Weber. O autor explica que na visão de Weber, há uma crescente particularização do direito, decorrente, dentre outros fatores, dos “imperativos sociais da democracia”, que conduzem a um intervencionismo estatalonde é possível visualizar a manifestação da juridificação. 26 As causas a que Weber atribui esta recente particularização do Direito são várias. Uma delas deriva dos <<imperativos sociais da Democracia>>, conducentes ao típico intervencionismo do Estado Social – exigências de materialização do direito formal são endereçadas ao Direito por certos grupos de interesses tais como as organizações sindicais, o mesmo acontecendo com outros grupos representativos de diversos interesses desenvolvidos no mundo da indústria. Outra causa para a um tal particularização é-nos dada afinal pelos próprios juristas – que Weber apelida de <<ideólogos do direito>> –, em particular, pela insistência reivindicativa no sentido do desenvolvimento de um <<direito social baseado em postulados éticos de forte carga emocional tais como justiça ou dignidade humana>> (TEUBNER, 1988, p. 38, grifo original). Essa particularização do direito se expressa através da materialização do direito formal mediante o intervencionismo estatal que passa a utilizar o Direito para regular áreas que antes eram consideradas autônomas ou autorreguladas, como o direito do trabalho e industrial. Essa necessidade de regulação decorre das emergentes necessidades de proteção social características dos enunciados democráticos, bem como da insurgência de blocos de poder econômicos que passam a exigir mais direitos. Ainda segundo o autor, há uma instrumentalização do Direito pelo sistema político cuja regulação jurídica é implementada pelo Estado intervencionista. Em suma, Teubner (1988) aduz que a juridificação é típica do Estado Social e intervencionista, expressando-se através da crescente materialização do direito formal. Em análise mais ampla e diferente, Habermas (2016) aduz que existem quatro grandes causas da juridificação (já mencionadas aqui em termos históricos), a primeira delas seria o surgimento do Estado Burguês formado em pleno absolutismo; a segunda causa seria o Estado de direito democrático, exemplificado no século XIX com a monarquia alemã; a terceira teria surgido origem ao Estado de direito, difundido na Europa e América do Norte por influência da Revolução Francesa e a quarta causa da juridificação decorreria do Estado de direito democrático e social do século XX. Vianna (1999), por sua vez, dentro de uma perspectiva mais especifica, leciona que a democratização do acesso à Justiça figura como uma das principais causas que impulsionaram o crescimento do mundo jurídico contemporâneo. 2.3 Causas da juridificação brasileira Saindo um pouco das perspectivas e causas gerais (analisadas numa espécie de âmbito global), visitadas até agora através dos olhares de Teubner (1988), Vianna (1999), Lopes (2005), Habermas (2016) e Bobbio (2004), mas sem esquecê-las, pretende-se nessa sessão discutir brevemente algumas das causas da juridificação brasileira. Para tanto, faz-se necessário de início confinar o objeto de estudo em uma determinada conjuntura espacial ou territorial, que é o Brasil, bem como demarcar o limite histórico cujo marco inicial assenta-se a partir da 27 Constituição de 1988. Importa frisar ainda que, embora haja um crescimento de determinadas áreas do mundo jurídico brasileiro antes mesmo da redemocratização, conforme restará demonstrado no capítulo seguinte, é a partir dela que haverá uma aceleração mais densa e explícita do fenômeno nos vários níveis sociais e institucionais do Brasil a partir do final dos anos 80. [...] A constituição de 1988 ampliou o campo dos direitos, por vezes com uma hiper- regulamentação dos mais diversos aspectos da vida econômica e social, aumentando enormemente a quantidade de áreas sobre as quais o Judiciário tem o poder último de decisão. A justiça tornou-se assim o recurso normal dos grupos derrotados na esfera política. [...]. (SORJ, 2006, p. 117-118). Nessa mesma esteira de pensamento, o agora Ministro do Supremo Tribunal Federal, Barroso (2008), leciona que a redemocratização do país, que teve como fator histórico preponderante a Carta Magna de 1988, recuperando garantias à magistratura, transformando o Judiciário em um verdadeiro poder político, reavivando a cidadania, além possibilitar uma larga plataforma democrática de direitos que passaram a ser requeridos pelos mais diferentes grupos sociais. Dentro desse contexto, não restam dúvidas que a redemocratização fundada na Constituição de 88 possibilitou a ampliação do sistema jurídico, propiciando um terreno favorável aos processos de juridificação na sociedade brasileira. Nas últimas décadas, com a recuperação das garantias da magistratura, o Judiciário deixou de ser um departamento técnico-especializado e se transformou em um verdadeiro poder político, capaz de fazer valer a Constituição e as leis, inclusive em confronto com os outros Poderes. No Supremo Tribunal Federal, uma geração de novos ministros já não deve seu título de investidura ao regime militar. Por outro lado, o ambiente democrático reavivou a cidadania, dando maior nível de informação e de consciência de direitos a amplos segmentos da população, que passaram a buscar a proteção de seus interesses perante juízes e tribunais. Nesse mesmo contexto, deu-se a expansão institucional do Ministério Público, com aumento da relevância de sua atuação fora da área estritamente penal, bem como a presença crescente da Defensoria Pública em diferentes partes do Brasil. Em suma: a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário, bem como aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira. (BARROSO, 2008, online). A reabertura democrática de agenda igualitária acoplada ao modelo constitucional adotado no Brasil reacendeu o espírito cívico e pôs fim aos longos anos de restrição a certos direitos e garantias fundamentais, que por um bom tempo sofreram certa limitação ou falta de previsão no ordenamento jurídico, consequência dos anos negros da ditadura militar, que restringiu em certa medida a participação popular, bem como intimidou o exercício cívico. Vianna (1999, p.150) entende que a “presença expansiva do direito e de suas instituições [...] é a expressão do avanço da agenda igualitária em um contexto que, tradicionalmente, não conheceu as instituições da liberdade.”. O autor refere-se às décadas de autoritarismo que 28 desorganizaram a vida social e desestimularam a participação do povo. Com a redemocratização do país, surge agora um Poder Judiciário robusto e independente, que passa a ser provocado cada vez mais pelos anseios de uma sociedade ancorada em uma série de novos direitos consubstanciados e garantidos na Constituição emergente. Nessa perspectiva de busca de direitos, decorrente da nova paisagem de garantias legais, o Judiciário passa a ser encarado como aquele que irá promover a efetivação dessas garantias caso elas não sejam cumpridas. Sorj (2006) explica que a juridificação da sociedade brasileira, em sua forma mais radical, expressasse numa espécie de substituicionismo que espera do Judiciário, e não de outros setores, a efetivação dos direitos e de certas lutas contra as desigualdades sociais. A juridificação da sociedade, no caso brasileiro, apresenta-se fundamentalmente como um caso de substituicionismo, isto é, na sua versão mais radical, espera-se que o Judiciário seja o ponto de partida da regeneração do sistema social, de luta contra a desigualdade social [...] (SORJ, 2016, p. 115, grifo original) Consoante observa-se, a sociedade passa a enxergar o Judiciário como força redentora que irá dissipar suas mazelas sociais e confirmar seus direitos. A consequência disso é que passam a surgir inúmeras demandas judiciais, decorrente do novo quadro social de direitos estabelecidos através de uma agenda programática social com vertente igualitária. A nova Constituição, além de estabelecer uma série de direitos, possibilitou o fortalecimento e a expansãodas varias instituições que compõem o Poder Judiciário, como a Defensoria Pública, o Ministério Público, as justiças especializadas (Trabalho, Eleitoral e Militar), os Juizados especiais etc. Na verdade, com o advento da Constituição houve uma verdadeira reforma no Poder Judiciário brasileiro, impelindo-o a tornar-se mais ativo na vida nacional. Inúmeras leis ordinárias passaram a ser editadas para acompanhar a Norma Maior, causando uma verdadeira inflação legislativa; cresceu o número de magistrados, de operadores do direito, de fóruns, varas, litígio, tudo decorrente da nova condição histórica imposta pela democracia emergente. Em suma, o processo de redemocratização do país com alicerces fincados na Constituição Cidadã de 1988, que passou a estabelecer uma nova plataforma de direitos e garantias, constituem, dentre outras causas, os fundamentos principais da juridificação brasileira. 29 3 OS NÚMEROS DA JURIDIFICAÇÃO BRASILEIRA Após discorrer no capítulo anterior sobre as possíveis causas da “juridificação”, esse capítulo será dedicado especificamente aos números da juridificação brasileira, ou seja, a expansão da atividade jurídica no Brasil. Para tanto, será analisado o crescimento do mundo 30 jurídico brasileiro através de dados concretos e objetivos, como o aumento da litigiosidade, de magistrados, leis, advogados, instituições de ensino jurídico, além de outros atores. Nesse momento da pesquisa foram selecionados dados públicos consubstanciados nos Relatórios do Conselho Nacional de Justiça – CNJ, referentes aos anos de 2003, 2009, 2015 e 2016, pesquisa do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação – IBPT (2016), pesquisa realizada pela Fundação Getúlio Vargas – FVG (2016) além de outras fontes que serão mencionadas no decorrer desta sessão. Considera-se que a analise em termos de crescimento quantitativo seja de fundamental importância para que em um momento futuro possibilite uma avaliação dos efeitos qualitativos da juridificação brasileira. Embora o crescimento do mundo jurídico seja naturalmente constante desde o Império, a contemporaneidade brasileira apresenta um aumento expressivo do direito, isso se deve, além de outros fatores, a redemocratização, como visto no capítulo anterior, que impulsionou o desenvolvimento do judiciário como instituição de poder independente, ampliando sua estrutura em vários aspectos, como o número de juízes, funcionários, estrutura, gastos, litígios etc. Os dados levantados pelo CNJ demonstram que o Direito transformou-se em uma máquina em constante expansão. O diagnóstico deixa claro que a expansão de todos esses agentes, elementos e mecanismos que efetuam a operação do Direito, acabam por produzir uma sociedade cada vez mais juridificada, cada vez mais invadida pelo mundo do Direito. Contudo, importa ressaltar que não é possível desenhar um quadro perfeito e acabado do processo de expansão do mundo jurídico brasileiro. Ademais, esta pesquisa possui natureza transitória, posto que os dados relacionados ao crescimento do mundo do jurídico sofrem constantes e intermináveis alterações, assim, pode-se dizer que o presente capítulo é apenas um diagnóstico determinado por certa delimitação temporal e espacial dos dados relacionados ao seu objeto de análise, qual seja: a expansão da atividade jurídica no Brasil. Seu aperfeiçoamento, portanto, depende de uma atualização constante e interminável de seu objeto. Ademais, seria impossível no quadro de apenas um ano, tempo de uma monografia, inventariar as inúmeras zonas de expansão da atividade jurídica, isso demandaria um enorme tempo e esforço de pesquisa, o que não é possível em tão exíguo tempo. 3.1 Hipertrofia do judiciário brasileiro: a justiça em números No Brasil, os dados relacionados ao crescimento do Poder Judiciário passaram a ser sistematicamente inventariados a partir do ano de 2005, após a criação, em 31 de dezembro de 31 2004, do Conselho Nacional de Justiça - CNJ, órgão que passou a compor o poder judiciário brasileiro por força da emenda constitucional nº 45, de 30 de dezembro de 2004, tendo papel precípuo de gestor administrativo e financeiro do Poder Judiciário. Os números levantados pelo CNJ, consignados no relatório “Justiça em Números3” (online), demostram que durante um período de treze anos, 2003 a 2015, houve um crescimento significativo do Judiciário brasileiro sob vários aspectos. Os cargos de magistratura na Justiça Estadual, por exemplo, passaram de 9.745 em 2003, para 15.891 em 2015, representando um aumento de 6.146 novos cargos; na Justiça do Trabalho o número saltou de 2.456 em 2003 para 3.928 em 2015, significando um aumento de 1.472 cargos; já na Justiça Federal, o número evoluiu de 1.162 em 2003 para 2.442 em 2015, expressando um aumento de 1.280 cargos. Em termos percentuais, a Justiça Federal obteve um aumento de 110,15%, Justiça Estadual 63,07% e Justiça do Trabalho 59,93%. Em síntese, o número de cargos criados por lei na Justiça Estadual, Federal e do Trabalho, passou de 13.363 em 2003 para 22.261 em 2015, representando um acréscimo de 66,59%, ou seja, em relação aos dados iniciais houve um aumento de 8.898 cargos, significando dizer que entre o período de 2003 a 2015, esses três ramos do Poder Judiciário, juntos, criaram em média um cargo para magistratura a cada 45h (1 dia e 21 horas). Em confronto com as estimativas populacionais, em 2003 tínhamos um juiz4 para cada 13.516,36 brasileiros, enquanto que, em 2015, esse número diminuiu para 9.184,25, isso ocorre porque a tendência do crescimento populacional, em termos percentuais, é menor que o crescimento da magistratura. Enquanto a magistratura cresceu 66,59%, a estimativa populacional ascendeu 13,19% entre os anos de 2003 a 2015, demonstrando que o crescimento da magistratura brasileira não está subordinado ao aumento populacional, existindo outros fatores que contribuem para justificar esse crescimento. A força de trabalho também cresceu de forma significativa na Justiça Estadual, Federal e do Trabalho entre os anos de 2003 a 2015. A Justiça Estadual contava em 2003 com cerca de 178.750 pessoas em seu quadro funcional, já em 2015 esse número saltou para 299.786, um acréscimo de 121.036 pessoas. A Justiça do Trabalho, por seu turno, contava com 34.411 pessoas em 2003, passando em 2015 a comportar um total de 60.293, o que representa um 3 Justiça em Números é um relatório regido pela Resolução nº 76/2009 do CNJ, faz parte do Sistema de Estatísticas do Poder Judiciário (SIESPJ), sua publicação é realizada anualmente desde 2003, de forma online. 4 Para essa análise específica, levou-se em consideração apenas a Justiça Estadual, Federal e do Trabalho. Contudo, ao final desta sessão, se demonstrar um panorama de todo o judiciário. 32 aumento de 25.882 funcionários em sua estrutura. Já a Justiça Federal, passou de 32.038 pessoas em 2003 para um contingente de 48.309 em 2015, significando um crescimento de 16.271 funcionários. Em termos percentuais a Justiça do Trabalho foi o ramo que mais ampliou seu quadro de pessoal entre os anos de 2003 a 2015, com um aumento de 75,21%, seguido de Justiça Estadual com 67,71% e Justiça Federal com 50,79%. No total, estes três ramos obtiveram um crescimento 66,55%, que em termos numéricos representa um aumento de 163.189 pessoas que passaram a compor o judiciário brasileiro, implicando um crescimento médio de 12.553 pessoas ao ano. O número de defensores públicos também tem crescido no Brasil. De acordo com o Ministério da Justiça (2016), as Defensorias Públicas Estaduais possuíam em média 190 defensores por Estado em 2008, número inferior ao ano de 2014, quando os dados apontaram uma média de 227 defensores ativos em cada UnidadeFederativa. Em 2008 o Brasil possuía 5.986 defensores públicos estaduais ativos, passando em 2014 a comportar o número de 7.526, ou seja, em relação a 2008 houve um aumento de 1.540 defensores. A Defensoria Pública da União - DPU, por sua vez, detinha o número de 112 cargos efetivos em 2005, passando para 481 em 2008 e 577 em 2014, dos quais 550 estavam ativos e 27 afastados ou inativos. Ao analisar esses dados é possível verificar que a DPU obteve um aumento de 465 cargos entre os anos de 2008 e 2014. Os gastos financeiros também ampliaram-se, em 2003 a Justiça Estadual comportou gastos na ordem de R$ 10,7 bilhões, enquanto em 2015 os gastos elevaram-se para a cifra de 44,7 bilhões, portanto, um aumento de R$ 34 bilhões. O mesmo ocorreu com a Justiça Federal, que em 2003 gastou R$ 3,1 bilhões, passando em 2015 para o montante de R$ 10 bilhões, representando uma elevação de gastos na ordem de R$ 6,9 bilhões. Na Justiça do Trabalho as despesas financeiras também foram ampliadas, em 2003 foram gastos R$ 5,2 bilhões e em 2015 R$ 16,5 bilhões, revelando um aumento de R$ 11,3 bilhões. Somados, os três ramos do judiciário ampliaram seus gastos financeiros em aproximadamente R$ 52,3 bilhões entre os anos de 2003 e 2015. Considerando todos os ramos da máquina judiciária brasileira, o custo aos cofres públicos verteu ao valor de R$ 84,8 bilhões, que corresponde a 1,4% do Produto interno Bruto (PIB). No ano de 2016, as despesas totais do Poder Judiciário somaram R$ 84,8 bilhões, o que representou crescimento de 0,4% em relação ao último ano e uma média de 3,9% ao ano desde 2011. O ano de 2016 foi o de menor variação em toda a série histórica. As despesas totais do Poder Judiciário correspondem a 1,4% do Produto Interno Bruto 33 (PIB) nacional, ou a 2,5% dos gastos totais da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios. [...]. (CNJ, 2016, online). Dentro desse panorama, possivelmente o Brasil é detentor de um dos judiciários mais dispendiosos do mundo, como apontou Ros (2015), em pesquisa denominada “O custo da Justiça no Brasil: uma análise comparativa exploratória”. A litigiosidade é outro componente do Poder Judiciário que merece atenção, em 2009 a Justiça Estadual contava com aproximadamente 49,4 milhões de processos em tramitação, passando em 2015 a comportar 59 milhões de ações, o que representa um aumento de 9,6 milhões de demandas judiciais. Em 2009 a Justiça do Trabalho detinha um acervo de 3,3 milhões de processos, ampliando-se, ao final de 2015, para 5 milhões de ações trabalhistas, significando um crescimento de 1,7 milhões ações. A Justiça Federal, por sua vez, detinha 7,8 milhões de ações em 2009 e 9,1 milhões ao final de 2015, expressando um aumento de 1,3 milhões de processos em andamento. Esse crescimento constante na quantidade de demandas judiciais acarreta um acumulo de processos que contribuem para a morosidade do nosso sistema judiciário. De acordo com o relatório do CNJ (2015, p.97), ainda que o ingresso de novas demandas fosse paralisado nesses três ramos do judiciário, seria necessário cerca de 3 anos para Justiça Estadual zerar seu estoque de ações, 14 meses para Justiça do trabalho e 2 anos e meio para Justiça Federal. 3.2 Inflação legislativa: definição e alguns números A ampliação desenfreada do número de leis tem recebido atenção por parte de alguns estudiosos em várias partes do mundo, Galanter (1993) ao analisar o crescimento do Direito nos Estados Unidos, Canadá e Reino Unido, utilizou as expressões “explosão legal” e “império da lei” para designar o fenômeno. Taubner (1988) utilizou a expressão “inundação de normas”, palavra empregada por Vogel (1979) na discussão alemã sobre o aumento da quantidade de leis. Na literatura jurídica nacional destacam-se os termos “Inflação legislativa”, “hipertrofia da lei” e “elefantíase legislativa”, expressões importadas da literatura estrangeria e que vêm sendo empregadas para designar o fenômeno que caracteriza o crescimento rápido, desordenado e massivo do número de leis. Silva (1968) sinaliza que Carnelutti foi o primeiro a empregar as expressões “inflação legislativa” e “hipertrofia da lei” e que Biondi, por seu turno, empregou a expressão “elefantíase legislativa”, todos eles referindo-se à produção crescente do número de normas. 34 No Brasil, esse fenômeno tem sido objeto de análise por parte de alguns pesquisadores há algum tempo, havendo inclusive registros de estudos datados de meados do século passado. A multiplicação das leis é fenômeno universal e inegável. Com segurança pode-se dizer que nunca se fizeram tantas leis em tão pouco tempo. No Brasil, por exemplo, durante o império, foram promulgadas cerca de 3.400 leis. Durante a primeira República, de 1981 a 1930, cerca de 2500 leis. E de 18 de setembro de 1946 a 9 de abril de 1964, nada menos que 4.300 [...]. (NOGUEIRA, 1971, p. 149, citando FERREIRA FILHO, 1963, p. 11). Souza (2012), em um estudo denominado “A inflação legislativa no Contexto Brasileiro”, afirma que em 1960, Victor Nunes Leal, um dos Ministros do Supremo Tribunal Federal àquela época, já mencionava que o Brasil ocupava um lugar de destaque entre as nações que mais produziam leis no mundo. No mesmo estudo, o autor menciona uma análise estatística realizada em 1961 por Alcino Salazar, então membro do Conselho Federal da OAB, onde se fez um levantamento do número de normas existentes no Brasil até o final do ano de 1960, cujo resultado demonstrou, na época, a existência aproximada de 100.00 (cem mil) leis, decretos e decretos-leis, que foram catalogados da seguinte forma: a) decretos de 1931 a 1934 - 5.000; b) leis de 1935 a 1937 - 583; c) decretos-leis de 1937 a 1946 - 10.000; d) leis de 1946 a 1960 - 3.865; e) decretos de 1935 a 1960 - 50.000; f) leis anteriores a 1930 - 6.000 e g) decretos anteriores a 1930 - 2.000. O estudo não levou em consideração os decretos legislativos e a legislação do império, mas já revelava a tendência brasileira ao exagerado processo legiferante. Um pouco mais de meio século depois, a crise legislativa permanece ampliando-se sem que a técnica dos atuais legisladores tenha avançado no sentido de um controle ou eficácia maior no processo legislativo de produção de normas. Em pesquisa recente, realizada pelo Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação – IBPT (2016), verificou-se que desde o advento da Constituição Cidadã, em 05 de outubro de 1988, até o dia 30 de setembro de 2016, a União, os Estados e os Municípios editaram cerca de 5,4 milhões de normas em todo Brasil, o que representa, em média, 535 normas editadas diariamente ou 769 normas por dia útil. Foram editadas mais de 5,4 milhões de normas, em média são editadas 769 normas por dia útil, em matéria tributária, foram editadas 363.779 normas. São mais de 1,88 normas tributárias por hora (dia útil). Em 28 anos, houve 16 emendas constitucionais, foram criados inúmeros tributos, como CPMF, COFINS, CIDES, CIP, CSLL, PIS IMPORTAÇÃO, COFINS IMPORTAÇÃO, ISS IMPORTAÇÃO, foram majorados praticamente todos os tributos, em média cada norma tem 3 mil palavras, o termo “direito” aparece em 22% das normas editadas Saúde, Educação, Segurança, Trabalho, Salário e Tributação são temas que aparecem em 45% de toda a legislação. Somente 4,13% das normas editadas no período não sofreram nenhuma alteração. (AMARAL et al, 2016, online). 35 Confrontando o número total de normas existentes no Brasil (5.471.980) com a população (206.081.432), considerando o ano de 2016, chega-se a conclusão que o país possui 1(uma) norma para cada grupo de 38 habitantes. A quantidade de normas editadas a nível Federal, durante o período de 1988 a 2016, chegou ao número de 163.129, o que representa em média 15,96 normas editadas diariamente. No mesmo período, o âmbito Estadual editou 1.460.985 leis, significando dizer que, em média,
Compartilhar