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Jerzy Grotowski 
EM BUSCA 
DEUM 
TEATRO POBRE 
J• ediçlo 
Traduçlode 
Al.OOMAR CONRAOO 
civilizaçlo. brasileira 
c.:nP 01229455\ 
~--~--~-
Titulo do original em in&lb: 
T OWAROS A POOR THEATRf! 
Copyright 1968 by Jeny Oro towski and Odin Teatrets Forlag 
Projeto &rlfico de capa: Felipe Ta borda 
ISBN 85 2CXH1003-7 
Direitos para a llna;ua portua;uesa adquiridos, 
com exclusividade para o Brasil, pela 
EDITORA CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA S. A., 
Rua Benjarnln Constant, 141, 
20.141 RIO DE JANEIRO, RJ ., Tel .: 221 . 1132 
que se reserva a propriedade desta tradoçlo. 
1987 
Impresso no Brasil 
Prlnted in Brazll 
Sumário 
Preficio- Prter Brook . , . 
Em busca de um Teatro Po bre . 
O Novo Testamento do Teatro .. 
Teatro é Encontro .............. , 
Akropolis: Tratamento do Texto .. 
Dr. Faustus: Montagem Textual .. 
O Prlncipe Constante . . . ..•.• . 
Ele Nlo era Inteiramente Ele .. . 
Jnvestigaçlo Metódica . . . . .. . . 
O Treinamento do Ator (1959-1962) .. 
O Treinamento do Ator (1966) .. 
9 
ll 
23 
47 
S2 
61· 
89 
92 
101 
107 
14> 
A Ttcnica do Ator .. . 116 
O Discurso de Skara ...... . 
O Encontro AmerK:ano •. 
Declaraçlo de Prindpios , . 
Dados complementares . 
.. . .. . 186 
199 
210 
219 
Prefácio 
PETER BROOK 
G.oTOWSKI ~ (lRiCO. 
Porqu~7 
Porque ningubn mais no mundo, ao que eu saiba, ninau~m 
desde Stanislavsk.i, investigou a natureza da represcntaçlo teatral, 
seu fenômeno, seu significado, a natureza e a ciencia de seus pro-
cessos mental-flsico-cmocionais tio profunda e completamente 
quanto Grotowsld. 
Grotowski coruidera seu teatro um laboratório. E ~. t um 
centro de pesquisa. Talvez seja o único teatro de vanguarda cuja 
pobreza nlo sipifica inconveniente, onde a falta de dinheiro nlo é 
justificativa para meios inadequados que, automaticamente, preju-
dicam as experiencias. No teatro de Orotowski, como em todos os 
verdadeiros laboratbrios, as experiencias s!o cienlificamente vMi· 
das porque slo observadas as condições essenciais. Em seu teatro 
existe concentração absoluta por um pequeno grupo, c tempo ilimi-
tado. Se o leitor estiver realmente interessado na criaçlo de Gro-
towski, deve ir à Po\Onia. 
Ou entllo fazer o que fizemos. Trazer Grotowski. 
Ele trabalhou durante duas semanas com o nosso grupo. Nlo 
vou descrever seu trabalho. Por qu!? Em primeiro lugar, porque 
trabalho dessa natureza só f: livre se baseado na confiança. e a cOn-
fiança, para existir, nlo pode ser tralda. Em segundo, o trabalho é 
essencialmente niO-verbal. Verbalizar seria complicar e até des-
truir exercidos tllo claros c simples quando assinalados pelo gesto e 
executados pelo csplrito c corpo como um todo. 
Qual o resultado desse trabalho? 
Ele proporcionou a cada ator uma série de surpresas. 
A surpresa de ddrontar desafios simples e inescapáveis. 
A surpresa de visualizar seus próprios subterrúaios, truques e 
clichb. 
A surpresa de perceber algo de seus próprios recursos, imensos 
e ineltplorados. 
A surpresa de ser forçado a indagar por que ele afinal de con-
tas é ator. 
A surpresa de ser rorçado a reconhecer que tais problemu 
existem e que - apenr da longa tradiçlo Inglesa de evitar a serie-
dade na arte teatral- chega o momento em que tfm de ser enfren· 
tados. E a de perceber que ele quer enfrentl·los. 
A surpresa de perceber que, em algum lugar do mundo, o 
teatro é uma ane de absoluta dedicaçllo, monástica e total. Que a 
frase, jll conhecida, de ATtaud. "cruel para mim mesmo", é, na 
realidade, um completo sistema de vida -em algum lugar, pira al-
gumas pessoas. pelo menos. 
lO 
Com uma cond;çao. Essa dedicaçlo ao teatro nllo o transfor-
ma num fim em si mesmo. Pelo contràrio. Para Grotowski a 
representaçlo é um veiculo. Como eltprcssar-me? O teatro nllo é 
uma fuga, um refúgio. Um sistema de vida é um caminho para a 
vida. Parecerà isso um slogan religioso? Deveria parecer. Eis tu-
do. Nem mais, nem menos. Resultados? Pouco provàveis. 
Melhoram os nossos atores? Melhoram como homens? N!lo na-
qude senudo, até onde percebo. (E, claro, nem todos ficaram exta-
siados com as eltper~ncias. Nilo tanto quanto se afirma. Alguns se 
chatearam.) Mas, como diz ATden: 
Porque a maçl contbn uma semente 
Crcsctri, viva e extensa alegria 
Gm noresceote àrvore de frutos 
Pela~enlidade e mais um dia. 
O trabalho de Grotowski e o nosso t!m paralelos e pontos de 
contato. Graças a isso, à simpatia e ao respeito, conseguimos no$ 
encontrar. Mas a vida de nosso teatro ê, em todos os sentidos, dife-
rente da do seu. Ele dirige um laboratório. Ocasionalmente, preci-
sa de uma platéia, mas reduzida. Sua tradiçlo é católica ou anti-
católica; neste caso, os extremos se tocam. Ele está criando uma 
forma de culto. Nbs trabalhamos em outro pab, com outra língua, 
outra tradiçllo. Nosso objetivo nllo é uma nova Missa, mas um no-
vo relacionamento isabelino unindo o privado e o pUblico, o Jiuimo 
e a mullidllo, o secreto e o aberto, o vulgar e o mágico. Para isso 
necessitamos de uma multidllo no palco e de ouua que nos observe 
- e dentro da multidlO no palco personagens que oferecem a sua 
verdade mais intima às que compõem a multidllo que nos observa, 
partilhando assim uma experi!ncia coletiva. 
Chegamos perto de desenvolver um padrllo &loba!- a idéia de 
grupo, de conjunto. 
Mas nosso conjunto t sempre muito apressado, sempre muito 
desordenado para o desenvolvimento do conjunto de indivtduos 
que o compõe. 
Sabemos, teoricamente, que todo ator deve diariamente pôr 
sua arte em questao- como os pianistas, os bailarinos. os pintorC"i 
-e que, se nllo o ftzer, quase certamente estagnará. 1.7r1arà clichCs e 
11 
entrarâ em dccadblcia. Reconhecemos isto c, no entanto, razemos 
tio pouco a respeito que estamos sempre buscando sangue novo, 
vitalidade JOVem - exoeçlo feita aos ta~tos excepcionais, que, 
naturalmente, aproveitam sempre as melhores oportunidades, ab-
sorvem ao mbimo o tempo disponlvcl. 
O Stratrord Studio roi um reconhecimento desse problema, 
mas vivia lutando com a questlo do repertório, do cansaço da com-
panhia, da fadiga . 
O trabalho de Grotowslci veio-nos lembrar que o que ele con5e-
que, quase milaarosamente, com um punhado de atores t exigido, 
na mesma extcnslo, de cada ator em nossas duas arande:s com-
panhias, em dois teatros distantes uns cem quilômetros um do 
outro. 
A intensidade, a honestidade e a precisAo do seu trabalho s6 
pode deixar-nos uma coisa: um desafio. Mas nlo por uma quinze-
na, nem apenas uma vez na vida. Diariamente. 
{Este anit;o Oc arti&o de J>t(cr Brook rol publicado Ini-
cialmente na revi'ita Flmlrblt, tqlo oftdal do Ro,1111 Sllll-
k~ 1'1tftltTfCiub nonümnoçorraponcknlc 110 invcr· 
no,t967.) 
12 
Em Busca de um Teatro 
Pobre* 
Ftco um pouco impaciente quando me perguntam: "Qual a 
origem do seu teatro experimental?" . Tenho a impressto de que o 
"experimental" significa um trabalho tangencial (brincando com 
uma "nova" t~nica em cada ensaio) e tributério . Supõe-se que o 
resultado seja uma contribuiçlo para o e:spetéc:ulo moderno: a ce-
nografia usando esculturas atuais ou kttias eletrOnicu, música con-
temporlnea, os atores projetando independentemente estereótipos 
de circo ou decabar~. Conheço bem a coisa: jâ fiz parte disso. Nosso 
Teatro-Laboratório caminha numa outra dlreçlo, Em primeiro lu-
gar, tentamos evitar o ecletismo, resistir ao pensamento de que o 
teatro é uma combinaçlo de matttias. Estamos tentando definir o 
que significa o teatro distintamente, o que separa esta atividade das 
outras catqorias de espeticulo. Em segundo lugar, nossas pro-
• Este "'tiro dt! J~ Grotowski foi pt~blkrldo tm Odm (Wroclaw, 9/ t96J); 
Ku11p Drom11tlsU Tftlltnu Pro1r11111 {Eslocoltno. t96J); Sml11 (No~/ SQd SI I96J); 
Clhln-s RefU1Vd-8ornuJt (Puis, JJ/ 1966); Tui1111t Dr11m11 Rrvitw (Ncw Orlearu, T. 
l$,1967.) . 
13 
duçOes sao investiJ,açOes do relacionamento entre ator e platéia. Is-
to é, cofLSidrromos a tknico clnico r pessoal do ator como a t~n­
cia da arte teatral. 
Slo dinceis de Joçalizar as fontesexatas desse enfoque, mas 
posso falar da sua tradiçlo. Criei-me com '? m~~o de Stanislavs-
ki; seu estudo persistente, sua renovaçlo sLStemâuca dos métodos 
de obSCTVaçlo e seu relacionamento dialético com ~u prôp~io tr~­
balho anterior fizeram dele meu ideal pessoal. Stanisl:lvskt mvestt· 
gou os problemas metodológicos fundamentais. Nossas S?I~Oes, 
oontudo, direrem profundamente das suas; por vezes, aUniJmOS 
conclusões opostas. 
E.studei todos os mttodos principais de treinamento do ator da 
Europa e de outras partes. Os mais importantes para os meus obje-
tivos: exercidos de ritmo, de Oullin, investigações das ~ea~ 
extroversivas e introversivas, de Delsarte, trabalho de Stamslavski 
sobre as "açOes (\sicas", treinamento biomecânico de Meyerhold, 
a slntese de Vakhtanghov. Tambt:m especialmente estimulantes pa-
ra mim r oram as técnicas do teatro oriental, especialmente a Ópera 
de Pequim, O Kathakali in~iano e o Nô japonh. Poderia citar 
outros sistemas teatrais, mas o ml:todo que estamos desenvolvendo 
nAo é uma combinaçlo de técnicas extraldas dessas fontes (embora 
alauma.s vezes adaptemos alauns elementos para nosso uso). Nlo 
pretendemos ensinar ao ator uma strie de habilidades ou um re-
pertório de truques. Nosso mttodo n!o é dedutivo, nlo se baseia 
em uma coleçlo de habilidades. Tudo estâ concentrado no ama-
durecimento do ator, que é C)(presso po,. uma tenslo levada ao 
extremo, por um completo despojamento, pelo desnudamento do 
que hâ de mais Intimo - tudo isto sem o menor traço ~ eaolsmo 
ou de auto-satisraçlo. O ator raz uma total doaçlo de st mesmo. 
Esta é uma t&:nk:a de "transe" e de integraçiO de todos ru poderes 
corporais e pslqulcos do ator, os quais emergem do mais Intimo do 
seu ser e do seu instinto, explodindo numa espk:ie de "transilumi-
naçlo''. 
Nlo educamru um ator, em nosso teatro, ensinando-lhe al&u· 
ma coisa: tentamru eliminar a resist@ncia de seu organismo a este 
processo ps\quloo. O resultado! a eliminaçlo do lapso de tempo 
entre impulso Interior e reaçlo exterior, de modo que o i~"? pulso se 
torna já uma reaçlo exterior. Impulso e açao slo concomatantes: o 
14 
corpo se desvanece, queima, e o espectador assiste a uma série de 
impulsos visiveis. Nosso caminho ê uma ~ia negativa, n!o uma~ 
leçl.o de técnicas, e sim erradk açlo de bloqueios. 
Anos de trabalho e de exerclcios especialmente compostos 
(que, por meio de treinamento flsioo, plbtico e vocal, tentam auiar 
o ator l correta conccntraçJo) alaumu vezes permitem a descober-
ta do inicio deste caminho. l:.nt&o torna-se posslvel cultivar cuida-
dosamente o que roi despertado. O próprio processo, embora de· 
pendente até um certo ponto da concentraçlo, da confiança, da 
entreaa e da quase total absorçlo na técnica teatral, nlo é vo-
luntârio. O estado necessàrio da mente é uma disposiçao passiva a 
realizar um trabalho ativo, nlo um estado pelo qual "Qiltremosfa· 
r.eraquUo", mas "deslstimosden6ojar.f.fo". 
A maioria d~ atores do Teatro-Laboratório est.6. apenas co-
meçando a trabalhar para tornar possivel a manirestaçao vislvel de 
tal processo. Em seu trabalho cotidiano, eles nlo se concentram na 
técnica intelectual, mas na oomposiçAo do papel, na construçilo da 
forma, na expressAo dos simbolos- isto é, no artiricio. Nlo existe 
nenhuma contradiçlo entre a técnica interior e o artiflcio (articu-
laçlo de um papel por meio de slmbolos). Acreditamos que um 
processo pessoal que nlo seja apoiado e expresso pela articulaçAo 
rormal e pela estruturaçlo disciplinada do papel nlo ~ uma libe· 
raçlo, e redundar! no informe. 
Verificamos que acomposiçlo artificial nlo só nlo limita a es-
piritual, mude ra~o oonduza ela. (A tenslo troplstica entre o pro-
caso interior e a forma fortale«: amboJ. A rorma! como uma se. 
dutora armadilha á qual o processo intelectual responde esponta-
neamente, contra a qual luta.) As formas do comportamento ' 1na-
tural" e comum obscurecem a verdade; compomos um papel como 
um sistema de slmbolos que demonstra o que está por tràs da más· 
cara da vislo comum: a dialética do comportamento humano. No 
momento de um choque ps\quioo, de terror, de perigo mortal, ou 
de imensa aJearia, o homem n!o se comporta naturolmtnte. O ho-
mem num elevado estado ei:piritual usa slmbolos articulados ritmi· 
camente, começa a dançar, a cantar. O gesto sfgn(ficativo, nlo o 
gesto comum, ! para nós a unidade elementar de expressAo. 
" 
Em termos de tknica formal, nlo trabalhamos por meio da 
proliferaçlo dos slmbolos ou pela soma deles (como nas repetiçOes 
formais do teatro oriental). Pelo contrArio, subtralmos, procuran-
do a quintess!nc:ia dos slmbolos pela eliminaçlo daqueles elemen-
tos do comportamento "natural" que obscurecem o impulso puro. 
Outra U:cnica que ilumina a estrutura recôndita dos slmbolos f: a 
contradiçllo (entre acsto c voz, voz e palavra, palavra e pensamen-
to, vontade c açlo, etc.)- aqui, também,tomamos a \1/o n~aliva. 
~ dincil precisar quais os elementos de nossas produções que 
resultam de um programa formulado conscientemente, e quais de-
rivam da estrutura da nossa imaginaçlo. Freqüentemente me per-
guntam se certos cfcitos"mcdievai~" indkam uma volta intencio-
nal !s raizes rituais. N!o qtlste uma resposta única. No momento 
presente da nOS$8 consciblcia artlstica, o problema das "raizes" 
mlticas, da situaçlo humana elementar, tem signifiCado definido. 
Nlo em virtude, porém, de uma ''filosofia da arte'' c sim da desco-
berta e uso pritlco das regras do teatro~ Isto f:, as montagens nlo 
se originam de postulados estéticos a priori; antes, como disse 
Sartrc: ''Cada tknica conduz à metansica''. 
Durante diversos anos, vacilei entre os impulsos nascidos da 
pritica c a aplicaçlo de principias a prior i, sem ver a contradiçlo. 
Meu amigo e colega Ludvilc Flaszen foi o primeiro a apontar essa 
confusAo no meu trabalho: o material e a têcnica que vinham es-
pontaneamente, no preparo de uma montagem, da ess!ncia mesma 
do trabalho , eram reveladoras c promissoras; mas o que me parecia 
oriundo de conceitos teóricos era de fato mais funçlo da minha 
.,Crsonalldade que do meu intelecio. Percebi que a montagem con-
duzia a uma conscientizaçlo, ao invb de ser produto de uma cons-
cienlizaçlo. Desde 1960, eu dava !nfase A metodologia. Por melo 
de CJ~:pcrimentaçOes prlulcas, procurava responder às perguntas 
com que tinha começado: O que~ o teatro? O que tem ele de úni-
co? Que pode fuer que o filme e a tclevisAo nlo podem? Dois 
conceitos concretos cristalizaram-se: o teatro pobre e a rcprcscn-
taçlo como um ato de transaresslo. 
Pela eliminaçlo gradual de tudo que se ·mostrou supérnuo, 
pcrcc~mos que o teatro pode existir sem maquilaacm, sem figuri-
no especial e sem cenografia, sem um espcço isolado para represen-
taçlo (palco), sem efeitos sonoros e luminosos, etc. S6 nlo pode 
16 
cJusur san o relacionamento ator-espctador, de comunhao pereci>" 
tiva, direta, viva. Trata-se, san dúvida, de uma verdade teórica an· 
liga, mas quando rigorosamente testada na prática destrói a maio-
ria das nossas idf:ias vulgares sobre teatro. Desafia a noçlo de 
teatro como slntese de disciplinas criativas diversas - literatura, 
escultura, pintura, arquitetura, iluminaçlo, representação (sob o 
comando de um diretor). Este "teatro sintético" é o teatro con-
tcmporlneo, que chamamos de ''Teatro Rico''- rico em defeitos. 
O Teatro Rico bueia-se em uma cleptomania artistica, toman· 
do de outras disciplinas, construindo espetáculos hibridos, conglo-
merados sem espinha dorsal ou integridade, embora apresentados 
como trabalho artlstico oralnico. Pela multiplicação dos elemen-
tos assimilados, o Teatro Rico tenta fugir do impasse em que o co-
kxam o cinema e a tdevislo. Como o cinema e a TV sao superiores 
nas funções meclnicas (montagem, mudanças instantAncas de lu-
gar, etc.), o Teatro RM:o ripostou com um apelo- evidentemente 
compensatório- ao "teatro total". A integraçi'lo de mecanismos 
emprestados (projeçOes cinemacogrificas, por exemplo) signiftca 
equipamento t~nicoaperfeiçoado, permitindo grande mobilidade 
c dinamismo. E se o palco ou a platéia, ou ambos, fossem móveis, 
seria posslvel a perspectiva constantemente mutável. Tudo isto é 
uma tolice. 
Nlo ht dúvida de que quanto mais o teatro explora e usa as 
fontes mednicas, mais permanece tecnicamente inferior ao cinema 
e t tclcvislo. Conseqüentemente, proponho a pobreza no teatro. 
Renunciamos a uma ãrca determinada para o palco e para a 
platéia: para cada montaacm, um novo espaço~ desenhado para os 
atores e para os espectadores. Dessa forma, torna-se posslvel infi-
nita variedade no relacionamento entre atores c público. Os atores 
podem representar entre os espcctadorec;, estabelecendo contato di-
reto com a platéia e conferindo-lhe um papel passivo no drama (por 
exemplo, as nossas montagens de Cain, de Byron, e de Shokuntola, 
de Kalida.sa). Ou os atores podem construir estruturas entre os es-
pectadores c dessa forma inclui-los na arquitetura da açlo, 
submetendo-os a um stntido de pressA.o, congcstlo c limitaçlo de 
espaço (como a montagem de t lkropofu, de Wyspianski). Ou os 
atores podem representar entre os espectadores, ignorando-os, 
olhando "através" deles. Os espectadores podem estar separados 
dos atores - por exemplo, por um tapume a.Jto que lhes cheque ao 
17 
queixo (como na montagem de O Principe Constante, de CaJ. 
dt::rón); dessa perspectiva radicalmente inclinada, eles olham para 
os atores como se vissem animais numa arena, ou como estudantes 
de Medicina observando uma operação (além disso, o olhar para 
baixo confere à ação um sentido de trans&ressão moral). Ou então 
3 sala inteira é usada como um lugar concreto: a última ceia de 
fausto, no refeitório de um mosteiro, onde ele recebe os espectado--
res que são convidados de uma festa barroca servida em enormes 
rnesas cujos pratos são episódios de sua vida. A eliminação da di-
cotomia palco-platéia não é o mais importante: apenas cria uma si· 
tuaçao de laboratório, numa ârea apropriada para a pesquisa. O 
objetivo essencial é encontrar o relacionamento adequado entre 
ator e espectador, para cada tipo de representaçAo, e incorporar a 
decisão em disposições fisicas. 
Abandonamos os efeitos de luz, o que revelou amplas possibi-
lidades de uso, pelo ator, de focos estacionários, mediante o empre-
go deliberado de contrastes entre sombras e luz forte. ~particular­
mente significativo que, uma vez que o espectador esteja colocado 
numa zona iluminada, tornando--se assim sensivel, passe ele 
também a tomar parte na representação. Ficou também evidente 
que os atores, como as figuras das pinturas de El Greco, podem 
"iluminar" com sua técnica pessoal, transformando--se em fonte de 
••JuzespiriiUal". 
Também desistimos de usar maquilagem, narizes e barrigas 
pestiças, enfim, tudo o que o ator geralmente coloca, antes does· 
petáculo, no camarim. Percebemos que era profundamente teatral 
para o ator transformar-se de tipo para tipo, de caráter para 
carâter, de silhueta para silhueta- à vista do público- de manei-
ra pobre, usando somente seu corpo e seu talento. A composiçlo de 
urna expressão facial fiXa, através do uso dos próprios músculos do 
ator e dos seus impulsos interiores, atinge o efeito de uma transubs-
11tnciaça.o notavelmente teatral, enquanto a mAscara preparada pe-
Jo maquilador é apenas um truque. 
Do mesmo modo , um traje sem valor autônomo, criado so-
mente em funçao de determinado personagem e papel, pode ser 
transformado diante do público, contrastante com as funções do 
ator, etc. A eliminação dos elementos plásticos que possuem vida 
própria (isto t, que represent~m algo independente da açAo do ator) 
18 
conduziu à criaçao pelo ator dos objetos mais elementares e mais 
óbvios. Pelo emprego controlado do gesto, o ator transforma o 
chão em mar, uma mesa em confissionário, um pedaço de ferro em 
ser animado, etc. A eliminação de música (ao vivo-ou gravada) nao 
produzida pelos atores permite que a representação em si se trans--
forme em música através da orquestraçao de vozes e do entr-
echoque de objetos. Sabemos que o texto em si n!l.o é teatro, que só 
se torna teatro quando usado pelo ator, isto é, graças às inflexões, à 
associaçlo de sons, à musicalidade da linguagem. 
A aceitaçao da pobreza no teatro, despojado este de tudo que 
nao lhe é essencial, revelou-nos nl!.o somente a espinha dorsal do 
teatro como instrumento, mas também as riquezas profundas que 
existem na verdadeira natureza da forma de arte. 
Por que nos preocupamos com arte? Para cruzar fronteiras, 
vencer limitações, preencher o nosso vazio - para nos realizar. 
Nl!.o se trata de uma condição, mas de um processo através do qual 
o que é obscuro em nós torna-se paulatinamente claro. Nesta luta 
com a nossa verdade interior, neste esforço em rasgar a mâscara da 
vida, o teatro, com sua extraordiâria perceptibilidade, sempre me 
pareceu um lugar de provocaçao. f! capaz de desafiar o próprio 
teatro e o público, violando estereótipos convencionais de visão, 
sentimento e julgamento- de forma mais dissonante, porque sen-
sibilizada pela respiraçao do organismo humano, pelo corpo e pe-
los impulsos interiores. Este desafio do tabu, esta transgressão, 
provoca a surpresa que arranca a máscara, capacitando-nos a nos 
entregar, indefesos, a algo que é imposslvel de ser definido mas que 
contém Eros e Caritas. 
Em meu trabalho como produtor, tenho sido tentado, por essa 
razAo, a usar as situações arcaicas consagradas pela tradiçl!.o, si-
tuações (no domlnio da religião e da tradiç!o) que constituem ta-
bus. Sentia a necessidadedeconfrontar·me com esses valores. Eles 
me fascinavam, dando-me uma sensação de repouso interior, ao 
mesmo tempo em que eu cedia à tentaçAo de blasfemar: eu queria 
atacà-los, vence-los, ou apenas enfrentA-los com a minha própria 
experiência, que é determinada pela experiência coletiva de nosso 
tempo. Este elemento de nossas produções tem sido chamado dife-
rentemente de "colislo com as raizes", de "dialética do escárnio e 
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apoteose", ou então de "religillo e'tpressa pela blasf!mia, amor 
manifestado pelo ódio". 
Logo que meu conhecimento prático se tornou consciente e a 
experi~ncia conduziu a um método, senti-me compelido a rever a 
história do teatro em relaçllo com outros ramos do conhecimento, 
especialmente a psicologia e a antropologia culturaL Impunha-se 
uma revisao racional do problema do mito. 
Percebi entllo, claramente, que o mito era ao mesmo tempo 
uma situaçAo primitiva e um modelo complexo com existancia inde-
pendente na psicologia dos grupos sociais, que inspira compona-
mentos e tendancias do grupo. 
O teatro, quando ainda fazia parte da religilo, jãera teatro: li-
berava a energia espiritual da congregaçto ou tribo, incorporando 
o. mito e profanando-o, ou melhor, superando-o. O espectador 
tinha entlo uma nova oonscientizaçlo de sua verdade pessoal na 
verdade do mito e, através do terror e da sensaçao do sagrado, atin· 
gia a catarse. NAo foi por acaso que a Idade Média concebeu a 
idéia da ''paródia sacra''. 
Mas a situaçllo atual é muito diferente. Como os agrupamen-
tos sociais cada vez são menos definidos pela religilo, as formas 
mlticas tradicionais estilo em fluxo, desaparecendo e sendo reincar-
nadas. Os espectadores estio cada vez mais individualizados em re-
laçao ao mito como verdade corporificada ou modelo grupal, e a 
crença é muito mais um problema de convicçlo intelectual. Isto 
si&nifica que se torna muito mais dincil trazer à tona o tipo de im· 
pacto necessâriQ para atingir as camadas pslquicas que estio por 
trls da máscara da vida., A identificação do grupo com o mito- a 
equaçlo da verdade pessoal, individual, com a verdade universal 
-é virtualmente impossivel em nossos dias. 
O que é po&slvel? Primeiro, a conjrontOÇ{/o, antes que a iden-
tilicaçlo, com o mito. Em outras palavras, enquanto retemos nos-
sas expcrif:ncias particulares, podemos tentar encarnar o mito, 
vestindo-lhe a pele mal ajustada para perceber a relatividade de 
nossos problemas,sua conexllo com as ''raizes'' e a relatividade de.-
sas "raizes" à luz da experi!ncia de hoje. Se a situação é brutal, se 
20 
nos desnudamos e atingimos uma camada extraordinariamente re-
côndita, expondo-a, a mlscara da vida se rompe e cai. 
Em segundo, mesmo com a perda de um "ctu comum" de 
crença e das fronteiras inexpugnãveis, a perceptibilidade do orga-
nismo humano permanece. Somente o mito- encarnado na reali· 
dade do ator, em seu organismo vivo -pode funcionar conto tabu. 
A violaçlo do organismo vivo, a exposiçlo levada a um excesso 
uluajante, faz-nos retomar a uma situaçlo mltica concreta, expe-
rilnda de uma verdade humana comum. 
Mais uma vez, as fontes racionais de nossa terminologia não 
podem ser citadas precisamente. Freqüentemente, perguntam-me 
sobre Anaud quando falo em "crueldade", embora suas formu-
lações fossem baseadas em premissas diferentes e tivessem objetivo 
diferente. Artaud era um sonhador exuaordinãrio, mas seus escri-
tos têm pouco signilicado metodológico porque não slo frutos de 
longa pesquisa prâtica. Slo uma proftcia espantosa, nlo um 
programa. Quando falo de "raizes" e de' "alma mltica", 
perguntam-me sobre Nietz.sche; se falo de "imaginação de grupo", 
vem logo à tona Durkheim; se de "arquétipos", Jung. Mas as 
minhas formulaç6es nao são derivadas das cibtcias humanas, em-
bora eu as use para anAlise. Quando falo da expressAo simbólica 
do ator, inquirem-me sobre o teatro oriental, particularmente o 
teatro clássico chinh (especialmente quando sabem que estudei ali). 
Mas os sim bolos hierogllficos do teatro oriental slo inflexiveis, ~ 
mo o alfabeto, enquanto os slmbolos que usamos slo formas es· 
queléticas da açlo humana, cristalizaçlo de um papel, articulaçlo 
da psioofisiolo&ia particular do ator. 
Nlo tenho a pretenslo de que tudo o que fazemos seja inteira· 
mente novo. Estamos sujeitos, consciente ou inconsciente, a sofrer 
influ!ncias das tradições, da cilncia e da ane, até das superstições e 
sugestOes peculiares à civilização que nos moldou, da mesma forma 
que respiramos o ar do continente em que nascemos. Tudo isto 
influencia nossa empresa, embora às vezes possamos negà-lo . Mes-
mo quando chegamos a certas fórmulas teóricas e comparamos no-
sas idéias com as de nossos predecessores, já mencionados, somos 
forçados a apelar para ctrtas correçOes retrospectivas que nos habi-
litem a ver mais claramente as possibilidades com que nos depara-
21 
Quando confrontamos a tradiçao geral da Grande Reforma 
do teatro, de Stani.slavski a Dullin e de Meyerhold a Artaud, verifi-
camos que nao partimos da estaca zero e que nos movimentamos 
numa atmosfera especial e definida. Se nossa pesquisa revela e 
confirma o lampejo de intuiçlo de outrem, curvamo-nos com hu-
mildade. Verificamos que o teatro tem certas leis objetivas e que 
sua rcalizaçAo só é posslvel quando respeitadas essas leis, ou- co-
mo disse Thomas Mann - atravb de uma espécie de "obcdiencia 
superior", à qual conferimos "atençllo condigna". Ocupo uma 
posiçllo especial de liderança no Teatro-Laboratório polon&. Nlo 
sou simplesmente o diretor, ou o produtor, ou o "instrutor espiri-
tual''. Em primeiro lugar, minha relaçllo com o trabalho nllo é cer· 
tamente unilateral ou didática. Se minhas sugestões se refletem nas 
oomposiç6cs espaciais do nosso arquiteto Gurawski, é de se 
compreender que minha visAo roi formada ao longo de anos de co-
laboraçllocom ele. 
Existe algo de incomparavelmente Intimo e produtivo no tra-
balho com um ator que confia em mim. Ele deve ser atencioso, se· 
guro e livre, pois nosso trabalho consiste em explorar ao màximo 
suas possibilidades. Seu desenvolvimento é atingido pela obser-
vaçllo, pela perplexidade e pelo desejo de ajudar; o meu desen-
volvimento se reflete nele, ou, melhor, está nele- e nosso desen· 
volvimento comum transforma-se em revelação. Não se trata de 
instruir um aluno, mas de se abrir completamente para outra pes-
soa, na qual é posslvel o fenômeno de "nascimento duplo e par· 
ti lhado". O ator ren~- nlo somente como ator mas como ho-
mem- e, com ele, renasço cu. ~uma maneira estranha de se di-
zer, mas o que se verifica, realmente, é a total aceitação de um ser 
humano por outro. 
22 
O Novo Testamento do 
Teatro* 
O nome ''Teat~LDborDt6rio ''f a.:. pensar em pesquisa ci~ntlficu 
~6 esta uma associaç4o apropriada? · 
A palavra pesquisa nao deveria lembrar sempre pesquisa 
c~entl_fica. Nada pode estar mais longe do que fazemos do que a 
ctlncta sensu stricto,· c nlo só pc~a nossa car@ncia de qualificações, 
como tam~m porque n!o nos mteressamos por esse tipo de tra· 
balho . 
. A palavra pesquisa significa que abordamos nossa profissilo 
mats ou menos como o cntalhador medieval, que procurava recriar 
no seu pedaço de madeira uma forma jà existente. Nl!.o trabalha-
• Euamlo Barba reusu mttevbtl em 1964, inhtuiiJido..• "O Nowo TeMimm· 
to~Teatto'' . Foi publicadl emStuliwroA/It~R~!Udd Ttfi/I'Ohrduto(Marllllo 
Ednorr, Pid111, 1965), como tambtm nn Ttfltrtu Tron 01 Tduukk (Uoi.Hmo 
l / 1966)e711HtrttfU1t~ti(Niri(Y.511966). ' 
23 
mos como o artista e o cientista, mas entes como o sapateiro, que 
procura o lugar exato no sapato para bater o preso. 
O outro sentido da palavra pesqu1~a pode parecer um pouco ir-
racional, uma vez que envolve a idéia de penetraçAo na natureza 
humana. Em nossa época, na qual todas as línguas se confundiram 
como na Torre de Babel, em que todos os generos estéticos se mis-
turaram, a morte ameaça o teatro, à medida que o cinema e a tele-
visao invadem o seu domínio. Isto faz com que examinemos a natu-
reza do teatro, como é que ele se diferencia das outras formas de ar-
te, e o que é que o torna insubstilUivel. 
Sua pesquiso o condutiu a alguma d~finiçiJo? 
Que significa a palavra teatro? Esta é urna pergunta com que 
sempre nos defrontamos, e para a qual hâ muitas respostas 
posslveis . Para o academico, o teatro é o lugar onde um ator decla-
ma um texto, ilustrando-o com uma série de movimentos, a fim de 
tornà-lo mais facilmente cÔmpreendido. Interpretado desta forma, 
o teatro é um acessório util da literatura dramática. O teatro inte-
lectual é apenas uma variame dessa concepçlo, Seus defensores 
consideram-no uma espécie de tribuna polemica. Também aqui, o 
texto é o elemento mais importante, e o teatro funciona unicamente 
para acentuar certos ar&umentos intelectuais, provocando com isso 
o seu confronto reciproco. Trata-se de uma ressurreiçlo da arte 
medieval do duelo oratório. 
Para o espectador comum, o teatro é acima de tudo um luaar 
de divertimento, Se ele espera encontrar uma Musa frlvola, o texto 
nlo lhe interessa nem um pouco. O que o atrai slo as chamadas 
gags, os efeitos cômicos, e talvez os trocadilhos que levam de volta 
ao texto. Sua atençlo se dirige principalmente para o ator como um 
centro de atraçlo. Uma jovem vestida o mais sumariamente 
posslvel é, por si s6, uma atraçlo para certos freqüentadores de 
teatro que atribuem um critério cullural à atuaçlo da moça, embo--
ra esse julgamento seja, na verdade, uma compensaçlo para a 
frustraçlo pessoal. 
O espectador que alimenta veleidades culturais gosta, de vez 
em quando, de assistir a representações do repert6do mais sério, 
até de uma trqédia, contamo que possua aJgum elemento mo-
24 
lodramAtico. N~te caso, suu exigencias podem variar profunda-
mente. Por um lado, pode demonstrar que pertence a uma socieda-
de melhor, onde a "Arte" é uma garantia; e, por outro, deseja ex-
perimentar certat.s emoçOcs que lhe proporcionem um senso de 
auto-satisfaçAo. Mesmo que nlo sinta piedade pela pobre Antigo-
na, nem averslo pelo cruel Crconte, e nlo partilhe do sacrincio c 
do destino da herolna, acredita-se, apesar disso, moralmente igual 
a ela. Para ele, trata-se de uma questAo de ser capaz de sentir-se 
"nobre" . As qualidades didáticas desse tipo de ernoçlo sAo dúbias. 
A platéia - toda constitulda de Creontes - pode ficar do lado de 
Antígona durante a representaçlo, mas isto nlo a impedirA de 
comportar-se comoCreonte, uma vez fora do !'eatro. a digno de 
nota o sucesso das peças que tratam de uma infinda infeliz. O fato 
de assistir aos sofrimentos de uma criança inocente no palco torna 
bem mais fácil para o espectador simpatizar com a infeliz vitima. 
Assim, ele se asseaura do alto nlvel dos seus padrOcs morais. 
A gente do teatro nlo tem, usualmeme, uma concepçlo intei-
ramente clara sobre o teatro. Para o ator comum, teatro é, acima 
de tudo, ele mesmo, e nAo o que ele e capaz de conseguir através 
dos seus meios técnicos. Tal atitudeoriaina a imprudencia e a auto-
satisfaçAo, que o tornam capaz de apresentar açOcs que nAo exigem 
nenhum conhecimento especial, que slo banais e comuns, como 
andar, levantar-se, sentar-se, acender um cigarro, colocar as mAos 
nos bolsos, c assim por diante. Na opiniAo do ator, nada disso se 
destina a revelar alguma coisa, mas basta em si, porque, como jà 
disse, ele, o Sr. X, é o teatro. E se o ator possui um certo encanto 
que prenda a platéia, isso fortalecerA mais ainda a sua convicçlo. 
Para o cenógrafo, o teatro é acima de tudo uma arte plàstica, o 
que pode ter conscqOêlcias positivas. Os projetistas slo freqUente-
mente defensores do teatro literArio. Aleg.am que o ccnârio, assim 
como o ator, servem ao drama. Esta crença nlo revela qualquer de-
sejo de servir A literatura, mas apenas um complexo com rclaçAo ao 
produtor. Preferem ficar do lado do dramaturgo, jt\ que ele estã. 
distante e, conseqüentemente, tem menos possibilidades de limitá-
los. Na prãtica, os projetistas mais originais sugerem um confronto 
entre o texto e a vislo pllstica capaz de superar e revelar a imagi-
naçlo do autor. Nlo é, prOvavelmente, por mera coinCidbx:ia que 
os ccnóarafos poloneses slo, freqoentementc, os pioneiros no 
teatro de nosso pais. Eles exploraram as numerosas possibilidades 
25 
oferecidas pelo desenvolvimento revolucioil.ârio da artes plásticas 
no stculo XX, as quais, em menor escala, inspiraram autores c pro-
dutores. 
NAo implicarà isso num certo perigo? Os cr1ticos que acusam 
os cenógrafos de dominarem o palco apresentam mais de um argu. 
mento válido e objetivo; a questão é que partem de uma premissa 
errada.~ como se acusassem um carro de correr mais depJ"C$$1 que 
um caracol. Isto é o que os aborrece, e nlo que a vislo do cenóara· 
f o tenha dominado a do ator e a do diretor. A visao do cenógrafo é 
criativa, nlo estereotipada; e. mesmo se o for, perde seu carãter 
teutológico através de imenso processo de ampliaçlo. Apesar de tu-
do, o teatro é transformado- q~oeira o cenóarafo ou não- numa 
Kric de quadros vivos. Torna-se uma espécie de comera tscura, 
uma excitante lanterna mágica. Mas não deixa, cntao, de ser 
teatro? 
Finalmente que significa o teatro para o produtor? Os produ-
tores vem para o teatro depois de falharen1 em outros campos. 
Aquele que uma vez sonhou em ser autor termina sendo diretor. 
O ator que é um fracasso ou a atriz que jã foi prima donna e 
começa a envelhecer voltam·se para a produção. 
. O critico de teatro que, há muito, tem um complexo de impor-
tlncia com rdaçlo a uma arte pela qual nada mais pôde fazer, ex-
ceto escrever, volta-se tambtm para a produçlo. 
O hiper-senslvel professor de literatura, que jâ estâ farto do 
trabalho acadtmico, considera-se tambtm capaz de se tornar um 
produtor. Jâsabe o que é o drama- e que mais l-:o teatro para ele 
senAo a realizaçl.o de um teatro? 
Con1o slo auiados por uma tal variedade de motivaç6es psica· 
naliticas, as idéias dos produtos sobre o teatro slo as mais variadas 
poss\veis. Seu trabalho é uma compensaçlo para vários fenôme-
nos. O homem que nlo desenvolveu suas tendf:ncias pollticas, por 
exemplo, muitas vezes se to.rna produtor e goza, assim, de.uma sen-
saçlo de poder, que tal pos1çlo lhe confere. Isto levou malS de uma 
vez a interpretações perversas; e os produtores que possuiam essa 
26 
necessidade de poder montaram peça~ que polemtla\am com as au-
toridades: dai as numerosas montagens ··rebeldes '' . 
Claro que o produtor quer ser criativo. Por consesuinte -
mais ou menos conscientemente- defende um teatro autônomo, 
independente da literatura, que ele considera apenas um pretexto. 
Mas, por outro lado, u pessoas capazes de um tal trabalho criativo 
slo raras. Muitas estio olicialmente contentes com a definição li-
terária e intelectual do teatro, ou sustentam a teoria de Wagner se-
aundo a qual o ti:atro deveria ser uma síntese de todas as artes. 
Uma fórmula mais 6till Permite que se respeite o texto, este ele-
mento básico invK>Iivel, e al~m do mais não provoca nenhum 
conflito com o meio literário e psicológico. Deve-se afirmar, num 
parêntese, que cada autor- mesmo aqueles que s6 podemos quali-
ficar como tais por pura gentileza- sente-es obrigado a defender a 
honra e os direitos de Nickiewicz, Shakespeare, etc., simplesmente 
porque se conSideram seus colegas. Assim, a teoria de Wagner 
sobre "o teatro como arte total" estabelece la paix des bra~·~ no 
campo literãrio. 
Esta teoria justifica a exploraçlo dos elementos plásticos da 
cenografia numa montagem, e atribui os resultados a ela. O mesmo 
pode ser dito em rdaçlo i música, seja um trabalho original ou 
uma montaaem. A isto se acrescenta a escolha acidental de um ou 
mais atores conhecidos, e com esses elementos, apenas casualmente 
coordenados surge uma montagem que satisfaz. as ambições do 
produtor. Ele se coloca no cume de todas as artes embora na reali-
dade se beneficie de todas sem liaar ao trabalho criativo realizado 
para ele pelos outros- se~ que, na verdade, algu~m pode ser cha-
mado de criativo em tais circunstâncias. 
Desta forma, o número de definíç6es de teatro é praticamente 
ilimitado. Para fugir desse circulo vicioso, torna-se necessário, sem 
dúvida, eliminar, e nl.o adicionar. Por isto, temos de perguntar o 
que é indispensàvel no teatro. Vejamos. 
Pode o teatro existir sem figurinos e cenários? Sim, pode. 
Pode o teatro existir sem música para acompanhar o enredo? 
Sim. 
27 
Pode o teatro existir sem efeitos de luz? Oaro. 
E sem texto? Sim; a história do teatro confirma isto. Na evo-
luçlo da arte teatral, o texto foi um dos úJtimos elementos a ser 
acrescentado. Se colocamos aJaumas pessoas num palco com um 
cenlrk> que elas próprias montaram, e as deixamos improvisar seus 
pa'*is como na Commedio d~II'Arte, a representaçAo poderll ser 
iaualmente boa, mesmo que as palavras não sejam articuladas, mas 
apenas murmuradas. 
Mas poderl exitir o teatro sem atores? Nlo conheço nenhum 
exemplo disto. Pode-se mencionar o teatro de fantoches. Mesmo 
aqui, no entanto, o ator pode ser encontrado por trls das cenas, 
embora de uma outra forma. 
Pode o teatro existir sem uma platéia? Pelo menos um especta-
dor ê necessário para que se: faça uma representaçlo. Assim, faca-
mos com o ator e o espectador. Podemos entlo definir o teatro co-
mo "o que ocorre entre o espectador e o ator". Todas as outras 
coisas sAo suplementares - talvez necessárias, mas ainda assim 
suplementares. NAo foi por mera coincidência que nosso Teatro-
Laboratório se desenvolveu a partir de um teatro rico em recursos 
-nos quais as artes plâ.sticas, a iluminação e a música eram cons--
tantemente usadas - para o teatro ascCtico em que nos tornamos 
nos últimos anos: um teatro asc~ico no qual os atores e os especta-
dores Uo tudo o que existe. Todos os outros elementos visuais slo 
construidos atravb do corpo do ator, e os efeitos musicais e acús-
ticos através da sua voz. Isto nAo significa que nAo empreguemos a 
literatura, mas sim que nlo a consideramos a parte criativa do 
teatro, mesmo que os arandes trabalhos literàrios possam, sem 
nenhuma dúvida, ter efeito estimulante na sua gênese. Já que o 
nosso teatro Consiste somente de atores e espectadores, fazemos 
exig!ncias especiais a ambas as partes. Embora n!o possamos edu-
car os espectadores- pelo menos, nao sistematicamente-, pode-
mos educar o ator, 
Como I, ttntiJo, que o ator I tnoinado no seu lealro, f! qual a funçiiO 
delttnuma monlagttm?O ator t um homem que trabalha em pUblico com o seu corpo, 
oferecendo-o publicamente. Se este corpo se limita a demonstrar o 
28 
que é- algo qual qualquer f'IC'I'õO<l comum pode fazer -, nlo cons-
titui um instrumento obediente capaz de criar um ato espiritual. Se 
é uplorado por dinheiro e para ganhar os favores da plattia, a arte 
de representar está à beira da prostituiçAo.l! fato reconhedido que, 
durante mUitos séculos, o teatro esteve associado com a prosti-
tu'<:Ao , num sentido ou noutro da palavra . As palavras "atrit" e 
"cortesl" jà foram sinônimos. Hoje, separaram-se por um limite 
~~:a!s ::~a~:o~;a~~~r:~~n~~j~oe~u~i~~ :~ a~~~e~a: 
entre uma mulher respeitável e uma cortesl. que ficou mcio diflcil 
de se estabelecer. 
O que impressiona quando se observa a atuaçll.o de um ator, 
tal como é praticada hoje em dia, é a mesquinharia de seu trabalho: 
a barganha feita por um corpo explorado JXIOs seus protetores -
diretor, produtor - criando em retribuiçao uma atmosfera de 
intriga e revolta. 
Assim como só um grande pecador pode se tornar um santo, 
sesundo os teólogos (nâo esqueçamos a RevelaçAo: "Asssim por-
que és morno, nem frio nem quente, eu te vomitarei da minha bo-
ca"), da mesma forma a mesquinharia do ator pode ser transfor-
ntada numa espécie de santidade . A história do teatro oferece nu-
merosos exemplos disto. 
NAo me entendam mal. Falo de "santidade" como um 
descrente. Quero diler: uma "santidade secular", Se o ator, esta-
belecendo para si próprio um desafio, desafia publicamente os 
outros, e, através da profanaçao e do sacrill:aio ultrajante, se reve-
la, tirando sua máscara do cotidiano, torna posslvel ao espectador 
empret:nder um processo idêntico de autopenetraçlo. Se nlo exibe 
seu corpo, mas anula-o, queima-o, liberta-o de toda resistência a 
qualquer impulso pslquioo, então, ele nAo vende mais o seu corpo, 
mas o oferece em sacrincio. Repete a redençlo; estA próximo da 
santidade. Se tal representaçlo deve n!O ser fortuita, um fenômeno 
que n!o possa ser previsto no tempo e no espaço, m&J, pelo 
contrário, se quisermos um grupo de teatro cujo alimento seja esse 
tipo de trabalho, entllo temos de seguir um m~odo especial de trei-
namento e pesquisa. 
29 
Como t, na prdtica, o trabofho com o ator "santo"? . 
Hâ um mito que conta como um ator, com uma quantidade 
considerâvel de experiência, pode construir o que nós chamamos de 
seu próprio ''ar~nal''- isto l:, um ac6mulo de ml:todos, artiflcios 
e truques. Deles, pode escolher um certo número de combinações 
para cada papel, e atingir assim a expressividade necesslria para 
prender sua platl:ia. Esse "arsenal" ou estoque pode nlo ser mais 
que uma coleção de clich!s, caso em que tal método l: inseparàvel 
do conceito do ''ator cortcslo''. 
A diferença entre o "ator cortesão" c o "ator santo" l: ames-
ma que hâ entre a perlcia de uma cortesã e a atitude de dar e receber 
que existe num verdadeiro amor: em outras palavras, auto-
sacriflcio. O fato essencial no sesundo caso l: a possibilidade de eli-
minar qualquer elemento perturbador, a fim de poder superar todo 
limite convencional. No primeiro caso, trata-se do problema da 
existência do corpo: no outro, antes, da sua na()-Cxistência . A téc· 
nica do "ator santo" l: uma técnica indutiva (isto~. uma tl:cnica de 
eliminação), enquanto a do "ator corteslo"l: uma tlcnica dedutivo 
(isto l:, um acúmulo de habilidades) . 
O ator que realiza uma açlo de autopenetraçlo, que se revela e 
sacrifica a parte mais intima de si mesmo- a mais dolorosa, e que 
nlo l: atinaida pelos olhos do mundo-, deve ser capaz de manifes-
tar atl: o menor impulso. Deve ser capaz de expressar, atravl:s do 
som e do movimento, aqueles impulsos que estio no limite do 
sonho e da realktadc. Em suma, deve ser capaz de construir sua 
própria linauagcm psicanalhica de soru e ac:stos, da mesma forma 
como um arande poeta cria a sua linauagem própria de palavras. 
Se levarmos em conslderaçlo, por exemplo, o problema do 
som, a plutlcldade do aparelho vocal e respiratório do ator deve 
ser infinitamente mais desenvolvida do que a do homem na rua. 
Mais ainda, esse aparelho deve ser c:apaz de produzir reflexos sono-
ros tio rapidameme, que o pensamento- que remove toda espon-
taneidade- nlo tenha tempo de Intervir. 
O ator deve ser c:apaz de decifrar todos os problemas do seu 
corpo que lhe sejam ac:esslvcis. Deve saber como dirigir o ar e u 
partes do corpo onde o som deve ser criado c ampliado, como nu-
30 
ma espk de amplificador. O ator comum conhece apenas a ca· 
beça co amplificador; isto l:, usa a cabeça como caU..> úc: resso-
nlncia p amplificar a voz, para tornar seus sons mais nobres, 
mais aa.radlveis :\ plat~ia . Pode at~. de tempos em tempos. usar o 
corpo como amplificador. Mas o ator que pesquisa, intimwncnte, 
as possibilidades do seu próprio organismo, descobre que o número 
de amplifiCadores ~ praticamente ilimitado. Ele niO explora apenas 
•. c:a~ e o t_órax, mas tambCf!! a parte de trás da cabeça (o oc-
Ciplclo), o nanz, os dentes:, a lannge, a barriga. a espinha, bem co-
mo aq~le aparelho amplificador que, na verdade, l: todo o corpo 
-e mullOS outros, alguns dos quais ainda nos slo desconhecidos. 
Ele descobre que nao basta emprepr a respiraçlo abdominal no 
paiC?. As várias fases da sua ~Ao física exigem diferentes tipos de 
resJ?Itaçlo. Descobre que a dlCÇ.llo aprendida na escola de teatro 
multO freqüentemente provoca o fechamento da sua laringe. Deve 
adquirir a habilidade de abrir a laringe conscientemente, e saber 
quando ela està aberta ou fechada. Se nAo solucionar esses proble-
mas , sua atençlo serâ distra!da pelas dificuldades que encontrar! e 
o processo da autopenetraçAo falhará necessariamente. Se o ator 
està consciente de seu corpo, n!lo pode penetrar em si mesmo e 
revelar-se, O corpo deve ser libertado de toda resistência. Deve vir-
tualmente, deixar de existir. Como acontece com a voz c a r~pi­
raçlo, nl~ basti: que o ator aprenda a usar os diversos amplilic:ado-
rcs, a abnr a lannse e a escolher um certo tipo de respiraçlo. Deve 
aprender a executar tudo isto inc:onscientemente, nas fases culmi-
nantes de lUa representaçlo; e isto exige uma sl:rie de novos 
exercidos. 
Quando estiver trabalhando no seu papel, deve aprender a nlo 
pensar em tomar clementostf:tcnicos, mas em consequir eliminar os 
obstácul concretos que se apresentem (por exemplo, a resistlncia 
da voz). 
~as coisas nlo slo de modo algum simples filigranas . Trata-
seda d1fct'mça Que decide o erau do b.ito. Significa que o ator nun-
c:a possuirl uma tl:cnica permanentemente " fechada'', pois a cada 
degrau do leU auto-cscrutinio, a cada modificaçlo, a cada acesso, 
a cada dttrubada de barreiras escondidas, encontrar! ele novos 
problem tknicos num nlvel mais alto. Ele deve, assim, aprender 
a sobrepu Lo1 lambem com o auxilio de certos excrclcios bàsicos. 
31 
Isto funciona para todo: para o movimento, a plasticidade do 
corpo, aaesticulaçâo, a construçlo du mbcar.u. o1.11avés da muscu-
latura facial, c, na verdade, para cada detalhe do corpo do ator. 
Mas o fator decisivo neste processo é a técniCil de pcnctraçlo 
pslquica do ator. Ele deve aprender a usar o papel como se fosse 
um bisturi de cirurgiao, para dissecar. Nilo se trata do problema de 
retratar-se em certas circunst!ncias dadas, ou de "viver" um papel; 
nem isto impOc um tipo de reprcsentaçlo comum ao teatro épico c 
baseado num câlculo frio. O fato importante é o uso do papel como 
um trampolim, um instrumento pelo qual se est uda o que está ocul-
to por nossa máscara cotidiana- a parte Intima da nossa persona-
lidade -, a fim de sacrifid-la, de expô-la. 
1': um excesso nlo só para o ator, mas tambtm para a platéia. 
O espectador compreende, consciente ou Inconscientemente, que se 
trata de um convite para que ele faça o mesmo , c isto termina por 
dcspcnar oposlçllo ou indianaçllo, porque nossos esforços diários 
t! m a filfalidadc de esconder a verdade sobre nós, nAo apenas do 
mundo, mas tambtm de nós mesmos.Tentamos fu gir da nossa ver-
dade, enquanto aqui somos convidados a parar e temar um olhar 
mais profundo. Temos medo de virarmos estltuu de sal, de olhar-
mos para trlu, como a mulher de Lot. 
A realizaçlo dcs.sc: ato ao qual nos referimos - a aut~ 
pcnetraçlo, a revclaçlo - exige uma mobilizaçlo de todas as f~ 
rças nsicas e espirituais do ator, que está num estado de ociosa dis-
ponibilidade passiva que torna possivel um lndice ativo de reprc-
semaçAo. 
Temos de recorrer a uma linauaaem metafórica para dizer que 
o fator decisivo neste processo é a humildade, uma prcdisposiçlo 
espiritual: nlo parafm:er algo, mas para impedir-se de fazer algo, 
senlo o excesso se torna uma impudencia, em vez de um sacrincio. 
Isto significa que o ator deve representar num estado de transe. 
O transe, como cu entendo, é a possibilidade de concentrar-se 
numa forma teatral particular, e pode ser obtido com um mlnimo 
de boa vontade. 
32 
Se eu tivesse de expressar tudo isto numa só frase, diria que se 
trata de um problema de dar-se. Devemos nos dar totalmente, em 
nossa n1ais profunda intimidade, com conflança, como nos damos 
no amor. AI cstâ a chave. A autopenctraçll.o, o transe, o acesso, a 
disciplina formal - tudo isto pode ser realizado, desde que nos 
tenhamos entregue totalmente, humildemente, sem dcfessas . Este 
ato culmina num cllmu:. Traz alivio. Nenhum desses txerdcios nos 
vários campos do treinamemo do ator deve ser de supcrflcic. Deve 
desenvolver um sistema de alusões que conduzam a um ílusivo c in-
dcscritivel processo de autodoaçAo. 
Tudo isto pode soar estranho c lembrar uma csp(:cie de charla-
tanismo . Para usarmos fórmulas cientificas podemos dizer que se 
trata de um emprego particuJar da sugcstao, tendo como objetivo 
uma rcalizaçao ideopl6.stico, Pessoalmente, devo admitir que nunca 
recuamos no uso dessas fbrmulas de "charlat4cs". Tudo que tenha 
um halo fora do comum e mágico estimula a imaginaçlo, tanto do 
ator quanto do produtor. 
Acredito que devemos desenvolver uma anatomia especial do 
ator; por exemplo, encontrar os vários centros de con~ntração do 
corpo, para as diferentes formas de representar, procurar as áreas 
do corpo que o ator sente, algumas vezes, como suas fontes de 
mêrgia. A regi lo lombar, o abdome c a área em volta do plu:u.s so-
lar muitas vezes funcio nam como uma fonte. 
Fator essencial neste processo é a claboraçao de um controle 
para a forma, a artifidalidade. O ator que cumpre um ato de auto-
pcnetraçl.o empreende uma viagem que é registrada através de 
vlrios rcnexos sonoros e aestos, formulando uma espécie de convi-
te ao espectador. Mas tais sinais devem ser aniculados. A falta de 
expressividade cstl sempre relacionada com certas contrad)çOes e 
discrepâncias. Uma autopcnctraç!o indisciplinada nlo t uma liber-
taçlo, mas é percebida como uma forma de caos biolbgico. 
Como voei combina ~pontaneidade com disciplina formal? 
· A claboraçlo da artificialidadc é um problema de ideogramas 
-sons e gestos, que evocam associações no psiquismo da platéia. 
JJ 
Lembra o trabalho de um tSCu1tor nwn bloco de pedra: o uso coru-
cieme do martelo e do cinzel. Consiste, por exemplo, na anàlise do 
reflexo da mão durante um proctsso pslqulco, e seu sucessivo de-
senvolvimento atraY~ do ombro, do cotoYelo, do punho, dos de-
dos, a fim de decidtr como cada fase desse processo pode sa 
expressa atravb de um sinal, de um ideoarama, que transmite iru-
tantaneamente as motivações escondidas do ator ou luta contra 
elas. 
Esta elaboraçao da artificial idade- da rb:lea orientadora que 
~ a forma - muitas vezes se baseia numa busca consciente em nos-
so organismo, através de formas cujas linhas exteriores sentimos, 
embora sua realidade ainda nos escape. Presumimos que estas for-
mas jã existem, completas, dentro do nosso organismo. Aqui, toca-
mos num tipo de representaçlo que, como arte, estã mais próxima 
da escultura que da pintura. A pintura envolve a soma das cores, 
enquanto o escultor elimina o que esconde a forma, como se ela jã 
existisse dentro do bloco de pedra, revelando--a dessa forma, em vez 
decrii-la. 
Esta procura da artificialidadc requer, por sua vez, uma strie 
de exerclcios extras, formando uma miniatura de tabela para cada 
parte do nosso corpo. De qualquer modo, o princlplo decisivo per-
manece o seauinte: quanto mais nos absorvemos no que está escon-
dido dentro de nós, no excesso, na revelaçlo, na autopenetraçlo, 
mais rigidos devemos ser: nas discipJjnas externas; isto quer dizer a 
forma, a artificlalidade, o ideograma, o atsto. Aqui reside todo o 
principio da expressividade. 
Que espera voei do espectador neste lipo de leiJiro? 
Nossos postulados nao slo novos. Exi&imos daJ pessoas u 
mesmas coisas que todo verdadeiro tn.balho de arte exige, seja a 
pintura, a escultura, a música, a poesia ou a literatura . Nlo satisfa-
zemos o espectador que Yai ao teatro para cumprir uma neccuídadc 
social de contato com a cultura: em outru palavras, para ter aJau-
ma coisa de que falar a seus amigos c poder dlzer que viu esta ou 
aquela peça, que roi muito interessante. Nlo estamos no teatro pa-
ra satisfattr sua ''sede cultural''. I sto~ tn.paça. 
34 
Tampouco satisfaçamos o homem que vai ao teatro _d,~ertir­
. de um dia de trabalho. Todo mundo tem o duc1t0 de 
• dlmt;,.,, d<'PO;, de um dia de trabalho, c há inúmeras formas de 
para esse propósito, como certos tipos de filmes de ca-
e mwic-hall, e muitas outras coisas parecidas. 
Estamos interessados no espectador que sinta umaaenuina ne-
cessidade espiritual, c que realmente deseje, a~ravCs de um confron-
to com a representaçao, analisar-se. Estamos mtcressados no cspcc· 
tador que nao pira num estágio el~~ntar de i?t.cgraçlo pslqu~ca, 
satisfeito com sua mesquinha estabthdadc cspmtual~ aco~étnca, 
sabendo exatamente o que ~ bom c o que t ru1m ~m JamaiS pôr-se 
em dúvida. Nlo foi para ele que EL Grego, Norwld, Thomas Mann 
e Dostoiévski falaram, mas para aquele que empreende um proces-
so interminàvcl de autodesenvolvimentb, e cuja inqu~etaçâo nlo ~ 
1
eral, mas diriaida para uma procura da verdade de SI mesmo e da 
sua miss:lo na Yida. 
Isto significa um teatro para a l!lite? 
Sim, mas para uma elite nlo determinada pelo nlvelsocial nem 
pela situaçlo financeira do espectador, e nem mesmo pela edu-
cação. O trabalhador que nunca teve nenhuma educação . se-
cundária pode desenvolver esse processo criativo de autOpcsqUisa, 
enquanto o professor universitàrio pode estar morto, permanente-
mente formado, amoldado na terrível rigid~z. de um cadáver. Isto 
deve ficar claro desde o inldo. Nao estamos mtercssados em nenhu-
ma determinada plat~ia, mas sim numa plattia especial. 
Não podemos saber se o t_eatro ~inda ê. nccc;ssArio atualmc~tc, 
uma vez que todas as atrações socia1s, os diVCrtlmentos, os dc1tos 
de forma c cor foram tomados pelo cinema e pela tclcYisJ.o. T~o 
mundo repete a mesma pergunta retórica: o. teatro ~ nccesstmo7 
Mas nós só a fazemos para poder responder: Sim, e, porque se trata 
de uma arte sempre jovem c necessária. A venda das.montagcns t 
oraaniz.ada em laraa escala. Entrttanto, nlo se org~mzam as apre-
sentações dos filmes e da tclcvislo da mesma manetra. Se todos os 
teatros fossem fechado• um dia, uma grande porcentagem do poYO 
nlo tomaria conhecimento disto durante aJaumas semanas; mas se 
35 
se eliminassem os cinemas e a tdevislo, toda a populaçlo nomes-
mo dia entraria em grande alvoroço. Muita geme de teatro está 
consciente deste problema, mas tenta resolve..lo de forma errada: já 
que o cinema domina o teatro do ponto de vista têcnko, por que 
n!o fazer o teatro mais técnico? Inventam novos palcos, mudam os 
cenários com enormes velocidade, complicam a iluminaçllo e os 
cenários, etc., mas nunca conseguem atingir a capacidade técnica 
~e ~m filme ou da televislo. O teatro deve reconhecer suas próprias 
hm1taçOes. Se nlo pode ser mais rico que o cinema, entlo assuma 
!~~~~~e~~a:. ~~a:~~;:,b~~aa~~:.: t~~\::s~:;ua:~ 
c1e a qualquer pretensllo técnica.Dessa forma, cheaamos ao ator 
"santo" e ao teatro pobre. 
~iste apenas um elemento que o cinema e a televislo nlo po. 
dem urar do teatro: a proximidade do organismo vivo. Por causa 
disto, toda modifiçlo do ator, cada um dos seus aestos mágicos (in. 
capa~ de serem reproduzidos pela platéia) torna-se qualquer coisa 
de m_mto arande, algo de extraordinário, alao próximo do btase. 
Por 1sto, é ~ec.essá.tio abolir a distAncia entre o ator e a platéia, 
atarvés da ehmmaçlo do palco, da remoçao de qualquer fronteira. 
Deixemos que a cena mais dràstica aconteça face a face com o es-
~tador, ~e modo a que ele esteja de braços com o ator, possa sen-
tu sua respJTaçllo e seu cheiro. Isto condiciona a necessidade de um 
teatro de cArn.ara. 
Como pod~ ~ tmtro apressar a lnqui~1Dçl1o qu~. como temos o 
direito d~ supor, vario de um individuo para outro? 
Para que o espectador seja estimulado a uma auto-análise, 
9uando confrontado com o ator, deve existir algo em comum a 
hgâ-los, algo que possa ser desmanchado com um gesto, ou manti-
do com adoraçlo. Ponanto, o teatro deve atacar o que se chama de 
complexos coletivos da sociedade, o núcleo do subconsciente coleti· 
vo, ou talvez d~ superconsciente (nlo importa como seja chama-
do), aqueles m1tos que nAo constituem invençOcs da mente, mas 
q!'le slo, por assim dizer, herdados atra,·és de um sanaue, uma reli-
SilO, uma cultura e um clima. 
36 
Estou pensando em COWI.:i que slo tio elementares e tio inti· 
mamente associadas, que 5eria dincil para nós submetê-las a uma 
anllise racional. Por exemplo, m mitos religiosos: o mito de Cristo 
e Maria; os mitos biol6gicos: o nascimento e a mone, o simbolismo 
do amor, on, num sentido mais vasto, Eros e Thanatos; os mitos 
nacionais, que slo muito dil1ceis de ser enunciados em rbrmulas, 
embora sua presença se faça .sentir no nosso sangue quando lemos a 
Parte li de Fonfather Eve, de Mickiewicz, o Kordian, de Slowacki, 
ou a Ave-Maria. 
Uma vez mais, nllo existe problema na pesquisa especulativa 
de certos elementos reunidos numa montagem. Se começamos nos-
JO trabalho, numa montagem teatral ou num papel, violando o 
mais Intimo do nosso ser, procurando aquelas coisas que mais pos-
sam nos ferir, mas que ao mesmo tempo nos dlo um sentimento to-
tal de uma verdade purificante, que finalmente nos tra.t. a paz, en-
tl1o inevitavelmente terminaremos chegando às represenloçDes role-
ti~as. Devemos estar familiarizados com este conceito, para nll.o 
perdermos o seu sentido real, jé. que o alcançamos. Mas isto nlo 
pode ser imposto a ninguém de imediato. 
Como funciona isto numa montaaem teatral? Nilo pretendo 
dar exemplos aqui. Penso que existe uma explanação sufK:iente na 
descriçlo de Akropolis, Dr. Fawtus ou outras montagens. Quero 
apenas chamar atenção para uma caracteristk:a especial dessas 
montagens teatrais, que combinam a fascinaçlo com uma negaçlo 
excessiva, uma aceitaçlo e uma rejeiçlo, um ataque lquilo que ~ 
sagrado (representaç(Jes coletivru), profanaçao e adoraçllo. 
Para iluminar ~ processo panicular de provocaçlo na 
platéia, de'llemos nos afastar do trampolim representado pelo texto, 
e que jl estA sobrecarresado de um sem-número de associações ae-
rais. Para isto, precisamos ou de um texto clâssico, ao qual, através 
de uma espécie de profanaçlo, restituimos ao mesmo tempo sua 
verdade, ou de um texto moderno, que pode ser banal e estereotipa-
do no seu conteúdo, mas apesar disso enraizado no psiquismo da 
sociedade. 
l7 
O ator "somo" nllo ser4 um sonho? O caminho da santidade nDo 
est6 aberto a todos. Só os poucos acolhidos podem trilh6-lo. 
Como eu jâ disse, não devemos tomar a palavra "santo" no 
sentido rdiaioso. Tratt·se mais de uma metáfora, definindo uma 
pessoa que, atravts de sua arte, transcende seus limites e realiza um 
ato de auto-sacriflcio. Claro, voca tem razlo; é infinitamente dincll 
tentar reunir uma trou~de atores "santos" . É muito mais fiei! en-
contra r um espectador "santo"- no sentido que eu dou a estt pa-
lavra -, mas ele só vem ao teatro por um breve momento, a fim de 
faur um acerto de con tas consigo próprio, e isto é alao que nlo po.. 
de ser imposto pela dura rotina do trabalho diârio. 
Será a santidade, entllo, um postulado irreal? Creio que é tio 
bem fundado quanto o do movimento à velocidade da luz. Com is-
to, quero dizer que, mesmo tem atingi-lo, podemos nos mover 
consciente e sistematicamente naquela direçllo, oonseguindo assim 
resultados prâticos. 
A repre$tntaçlo é uma arte particularmente inarata. Morre 
com o ator. Nada lhe sobrevive, a n!o ser as revistas, que usuaJ-
mente nAo lhe fazem muita justiça seja ele bom ou ruim . Por isto 
sua única fonte de satisfaçao estli na reaçlo da platéia . No teatr~ 
:~!:::~~:~~~~~~h~%:t~ag~af=~i~.e:~nt~~~:::~:;,~: 
co de md•gnaçA.o, e até de repugnlncia, que o espectador dirige nlo 
exatamente para ele, mas para o teatro. É dincil atingir um nlvel 
pslquico que nos habilite a suportar uma tal pressao. 
muit~e~~e~~Z:a d:C,~~~:~:t~~::~~n::":u~i~~ 1~u~~~~ 
aritado, 5eT coberto de floreJ ou ver-se alvo de outros sim bolos cos-
tumeiros no teatro comercial. O trabalho do ator é também ingrato 
por causa da incessante supervisllo a que estli sujeito. Nilo é como 
ser criativo num escritório, sentado diante de uma mesa, mas de-
baixo do olhar do diretor, que, mesmo no teatro baseado na arte do 
ator, nige dele numa escala muito maior do que no teatro normal, 
impelindo-o a um sempre cresecente aumen1o de esforços que lhe 
slo muito dolorosos. 
38 
Isto pode ser inSUTponável , se o diretor nlo possuir arande au-
toridade moral, se seus postulados n!o foram evK!emes e se nJo 
existir um elemento de confiança mútua inclusive além dos limites 
do consciente. Mas at! neste caso, ele é ainda um tirano e o ator de· 
n dirigir contra ele certas reações meclnicas inconscientes, como 
faz o aluno contra o professor, o paciente contra o méctico, ou o 
soldado contra os superiores. 
O teatro pobre n! o oferece ao ator a possibilidade do suc~so 
de um dia para uma noite. Desafia o con~ito burauês de ter um 
padrão de vida. Propõe a substituiçJo da riqueza material pela ri-
queza moral como o principal objetivo da vida. No entanto, quem 
nll.o alimenta um desejo secreto de atingir um sucesso estrondoso? 
Isto também pode ocasionar oposiç!o e reaçOes negativas, mesmo 
se isto n!o estiver claramente formulado. Trabalhar desse modo 
nunca é estive!. Quem nlo procura estabilidade e segurança, de 
uma forma ou de outra? Quem nlo espera viver, no mínimo, t!o 
bem amanha quanto hoje? Mesmo que se aceite conscientemente 
um tal status, inconscientemente se procura em volta algo que re-
concilie o fogo com a água, a "santidade" com a vida de " corte-
do" . 
No entanto, a atraçao dessa situaçlo paradoxal é suficiente-
mente forte para eliminar todas as intrigas, invejas e brigas sobre 
papéis, que fazem parte do dia-a-dia da vida dos outros teatros. 
Mas gente é aente, e perlodos de depress!o e de raivas reprimidas 
nllo podem ser evitados. 
1:: digno de mençllo, porém, a satisfaçao que esse trabalho po-
de trazer. O ator que, neste processo especial de disciplina e de 
auto-sacrincio, autopenetraç!o e amoldamento, nllo tem medo de 
ir além de todos os limites normalmente aceitáveis, atinge uma 
espécie de harmonia interior e de paz de esplrito. Torna-se, literal-
mente, muito mais vibrante de mente e de corpo, e sua maneira de 
viver! muito mais normaJ do que a do ator do teatro rico. 
Est~ pnx:esso de an6/ise ~ uma espkíe de d~intqroçilo da estn~tu­
f"tl ps{quica. Ndo cormll o a1or o ~dgo, do ponto de '<lista d~ hig~ 
ne mental, de ullf"tlfJGSSOT os limites? 
Nilo, desde que se entregue cem por cento a seu trabalho. Ê o 
trabalho feito pela metade, superficlallllCnte, que é psiquicamente 
39 
dolocow e desfaz o equillbrio. Se só nos entreaarmO"' "uperficiaJ. 
mente nest~ proc:ess? de análise e abandono- e isto pode produzir 
ampl~ efe1tos estéucos -,quer dizer, se retivermos nossa máscara 
colld1ana de mentiras, ent4otestemunhamos um connito entre a 
máscara e nós mesmos. Mas se este proc:esw é levado ao seu limite 
extremo, poderemos, conscientemente, tirar a mAscara cotidiana 
sabendo agora a que objetivos ela serve e o que ocultava Esta ~ 
uma conflrmaçlo nilo do negativo que existe em nós, mas d~ positi-
vo, n~o do que é pobre, mas do que é mais rico. Também conduz a 
~~c~~~~o de complexos, da mesma maneira que numa terapia 
O r_nesmo se ~plica ao espectador. O integrante de uma platéia 
que a~1tao convnedoator, e de um certo modo segue o seu exem-
plo.' at1vando-~ .da n:'esma forma, deixa o teatro num estado de 
maJor harmoma mtenor. Mas. aq~elc que luta, a todo custo, para 
ma~ter a sua mãscara de ment!tas mtacta , deixa o espetáculo ainda 
ma1s confuso. Estou convencido de que, no todo, mesmo no último 
caso, o espetáculo apresenta uma forma de psicoterapia social cm-
:::nat::r5~~ ::~:r~ja uma terapia apenas se ele se entregou int'eira-
. ~á ~ertos perigos. ~muito menos arriscado ser Zé da Silva a 
v1da 1nte1ra do q~~ ser Van .Gogh. Mas, plenamente conscientes de 
nossa respo11$8bd1dade soc~al, devemos desejar que existam mais 
':'an Goghs do q~e ~da S1 lva , mesmo que a vida seja muito mais 
sunples para. os ulllmos. Van Gogh é exemplo de um processo in-
completo de mtegraç4o. Sua queda é a expressAo de um desenvolvi· 
~ento que nunca foi completado. Se o lharmos as grandes persona-
lidades, como, por exemplo, Thomas Mapn, encontraremos even-
tualmente uma certa forma de harmonia. 
Parece-me que o diretor tem uma grande responsabilidade neste 
P~o auto-analltico do ator. Como é que esta lnterdependéncio 
S:a ~=~~es:;~t~1uals pod~m ser as conuqaénâas de uma aç4o erra-
. ~te é um ponto vitalmente importante. A luz do qur acabei de 
d1zer ISto pode soar mais ou menos ntrantlo. 
40 
O espetAculo aia uma esp«1e de conflito pslquico com o es-
pectador. Trata-se de uma modificação e de uma viol!ncia, mas s6 
pode ter algum efeito quando baseado num interesse humano e, 
mais do que isto, num sentimento de simpatia, num sentimento de 
aceitação. Da mesma fonna, o diretor só pode ajudar o ator neste 
processo completo e aaOnico se for tio emocional r ardorosamente 
aberto para o ator quanto o ator o é em relaçao a ele. N!o acredito 
na possiblidade de atincir efeitos através de cálculos frios. Uma 
espécie de claro para com nossos companheiros é essencial -uma 
compreenslo das contradiçOes do homem, e do fato de que ele é 
uma criatura sofredora, e nllo alguém a ser condenado. 
Esse ekrnento de abertura é tecnicamente ta.nalvel. Tio-
somente se for reciproco pode esse elemento capacitar o ator a 
empreender os esforços mais extremos, sem qualquer medo de ser 
ridicularizado ou humilhado . ó tipo de trabalho qlk aia tal con. 
fiança torna as palavru desnecc:ssárias durante os ensaios. Durante 
o trabalho, o murmúrio de um som, e algumas vezes até o sillncio, 
podem ser bastante para nos fazer compreendidos. O que nasce no 
ator é enaendrado junto, mas no final o resultado é muito mais 
uma parte dele do que aqueles resultados obtidos nos ensaios do 
teatro "normal". 
Acredito que lidamos aqui com uma "arte" de trabalhar que é 
impossivel de ser reduz:ida a uma fórmula, e nlo pode ser simples-
mente aprendida. Assim como nem todo mtdico é necessariamente 
um bom psquiatra, também nem todo diretor é bem sucedido nesta 
forma de teatro. O principio a ser aplicado como um tipo de con-
selho, e também de avlJO, é o seguinte: "Primum non noc:ere" 
("Primeiro, nlo faça mal"). Traduzindo isto numa linguagem 
técnica: é melhor sugerir, através de sons e gestos, do que "repre-
sentar" diante do ator ou ajudA-lo com explanações intelectuais; 
melhor expressar-se através de um sillncio ou de um piscar de olho 
do que através de instruçôes, observando os estéaios no enfraqueci-
mento e colapso psicológico do ator para correr em seu auxilio. O 
5CgUndo principio é comum a todas as profLSSOes: se exiaes de teus 
colegas, deves exigir duas vezes mais de ti mrsmo. 
Isto significa que, poralrabolhar com o ator ' 'santo '', o diretor de-
ve ur duas veus "santo", que através do seu conhecimento e de 
41 
sua intuiçtlo. qu~bro os li"!i~es da história do teatro, ~ q~ dtw ~lar 
otual4adlsstmo com os ulumos ruulrados d~ ci~nciGS como psico-
logia, antropolog/11, inr~~IQÇ{ks do mito~ histtJrill dM rdigiiJes. 
. Tudo o que eu disse sobre o lado mesquinho do ator deve ser 
aphcado tamb&n ao diretor. Para desenvolver a mettrora do "ator 
corteslo", o equivalente para o diretor deve ser "diretor-coronel" 
E como ~ impos.slvel erradicat completamente o lado corteslo d~ 
ator, o mesmo acontece com o lado coronel do diretor. 
O trabalho do diretor exiae um certo Sllvoir-fai~ tático, princi-
palmente na art~ da lidert.~a. Falando de modo aeral, esse tipo de 
pod.er desmorallU. CondJctona a necessidade de saber como con-
dUZJr as pessoas. Exiae uma vocaç.lo para a diplomacia, um talento 
frio e desumano para desfazer as intriaas. Estu caracterlsticas 
acompanham o diretor como uma sombra, at~ no teatro pobre. O 
que podem?' chamar de componente masoquista do ator ~ a va-
riante negativa do que~ criativo no diretor. que se apresenta na for-
~~ :o~~~:~:~~~tfu~~dica. Aqui, como em toda parte, as tre-
Quando me coloco contra as coisas pela metade, a mediocrida-
de e as atitudes cômodas, ~ simplesmente porque devemos criar coi-
u.s que eitejam firmememeoricntadas paTa a luz ou para as trevas. 
Mu devemos sempre lembrar que o que ~ luminoso dentro de nós 
cont~ uma parte de escuridAo, que podemos penetrár, mas nunca 
aniquilar. 
&fundo o que wxl disse, o "Sflgrado'' no teatro pode ser conse-
guido através de uma disciplina pslquico particulor e de v6rlos 
exerclcl~ /lsicos. Nas (SCOIO.f dt lf!Qiro, no teatro tradicional como 
".o upenmtntal, ntlo uisre taltendlncia, nenhuma renratiWl obj~ 
llva de ela!Joror nado idlntlco. Como stt pode preparar o a~mlnho 
para o t~mamento dos otorts e produtores "santos"? A ti onde 1 
=~~~;;a~e::~ros "mondsticos", em oposiç4o ao teatro "pa~ 
N!o .acredito que a crise do teatro possa ser separada de certas 
outras cnses do ~r~ da cultura c:ontemportnea. Um dos seus 
elementos essenaats - o desaparecimento do sagrado e de sua 
42 
funçlo riiUal no teatro-~ um resultado do óbvio e provavelm~t~ 
inevitivel decllnio da re.ligiAo. Estamos falando, ao contràno, 
sobre a possibilidade de criar uma sacrum secular no ~~tro . O 
problema é: pode o atual estágio de desenvolvimento da ctvdlz.açlo 
tornar este postulado uma realidade em escala coletiva? 
Nlo tenho resposta para isto. Devemos contribuir pa~~ sua 
realizaçlo, pois uma conscientizaçAo secular, em vez .da rehatosa, 
parece ser uma necessidade psic~mocial ~r~ a soctedade. E~sa 
transiçAo deveria acontecer, mas tsto n!o stamfica que necessana· 
mente aconteça. Acredito que existe, de certa forma, uma regra 
~ica, como a quedizque o homem nlo deve a~ir como lobo do seu 
irm!o homem. Mas, como todos sabemru;, taJS regras nem sempre 
são aplkadas. 
De qualquer modo, tenho certeza de que essa renovaç~o nl.o 
virâ do teatro dominante. No entanto, ao mesmo tempo, extstem e 
existiram umas poucas pessoas, no teatro oficial, que devem ser 
considerados como santos seculares: Stanislavski, por exemplo. Ele 
afirmava que os sucessivos estágiru; do despertar e da renovaçll.o no 
teatro tiveram seus primórdios entre os amadores. e nll.o nos clrcu-
los dos profissionais endurecidos e desmoralizados. Isto t~m~m 
foi confirmado pela exper~ncia de Vakh!anaov; ou, para ~lfar um 
exemplo de outra cultura, pdo teatro Nô Japonb, que, devado • ca-
pacidade técnica que exiae, poderia ser descrito como uma "s~­
perprofisslo", embora sua estrutura o torne um t~tro. se!"•· 
amador. De onde pode vir êssa renovaçlo? De pessoas msamfet~as 
com as condiçOea: do teatro normal, que assumam a tarda de cnar 
teatros pobres, com poucos atores, "conjuntos de clmara" que 
possam ser transformados em institutos para .educaça.o do atores; 
ou ainda de amadore5,trabalhando nas frontearasdo teatro pr.ofis· 
sional, e que por conta própria atingiram uma técnica supenor ê 
exigida no teatro dominante; em suma, de uns poucos loucos que 
nlo tenham nada a perder, e qu~ tampouco temam um trabalho 
exaustivo. 
Parece-mee55eDcial fazer um esforço para oraanizar escolas se-
cundArias de teatro. O ator começa a aprender sua profiSSAo muito 
tarde, quando já psiquicamente formado e, pior aind~, mor~l~n­
te moldado; e imediatamente começa a sofrer tend!nc1as arnvtStas, 
caracterlstica de grande número de alunos de escola de teatro. 
43 
A idade é tio imponante, para a educação do ator, quantu pa· 
ra o pianista ou o dançarino- isto é, não se deve ter mais Ue 14 
anos para começar. E se fosse posslvel, eu sugeriria o inicio ~té nn 
idade mais jovem, com um curso técnico de quatro :mm , de 
exerdcios técnicos e concentrados. Ao mesmo tempo, o aluno de.. 
veria receber uma ~ucação humanlstiea adequada, apoiada não 
num acúmulo de amplos conhecimentos da literatura, de história 
do teatro, e assim por diante, mas num despertar da sua sensibilida· 
de, apresentando-o aos fenômenos mais estimulantes da cultura 
mundial. 
A edueaçlo secundária do ator deveria ser depois complemen-
tada por quatro anos de trabalho como aprendiz de ator, com um 
&rupo laboratório, tempo em que ele nllo só adquiriria uma grande 
soma de experi&lcia em representaçlo, mas tambtm continuaria 
seus estudos nos campos da literatura, pintura, filosofia, etc., num 
nlvel necessArio à sua profissão, e nlo com a finalidade de brilhar 
numa sociedade pernóstica. Ao completar seus quatro anos de tra-
balho prático, num Teatro-Laboratório, o estudante deveria rtte-
ber uma espécie de diploma. Assim, depois de oito anos de trabalho 
desse tipo, o ator estaria comparativamente bem equipado para 
enfremar a profissão. Nao teria escapado aos perigos que ameaçan'l 
todo o ator, mas suas capacidades seriam muito maiores, e seu 
caráter estaria moldado com muito mais firmeza. A soluçAo \deal 
seria estabelecer institutos de pesquisa, que seriam dirigidos com 
probrez.a e rigorosa autoridade. O orçamento para sustentar um 
instituto assim seria a metade do que é gasto pelo Estado para sus-
tentar um teatro provinciano. Sua equipe dirigente seria composta 
por um pequeno grupo de especialistas em problemas associados 
com o teatro: um psicanalista e um antropólogo social, por 
exemplo. Haveria um grupo de atores de Teatro-Laboratório nor-
mal e um grupo de pedagogos de escola secundãria de teatro, mais 
uma ~itora, para imprimir os resultados práticos que seriam imer-
eambiados com outros ctntros idênticos e enviados a pessoas que 
faztm pesquisas em campos afins. é absolutamente essencial que 
toda pesquisa desu tipo seja supervisionada por um ou mais crlti-
cos, que, de fora- mais ou menos como o advogado do diabo-
analise as defici&lci85 do teatro, e que baseiem seus julgamentos 
em princlpim estéticos id!nticos aos do teatro normal. Como voe! 
sabe, Ludwik Aaszen tem esta tarefa no nosso grupo. 
44 
Como pode um tal teatro refletir o nossn tempo? Falo do conteúdo 
f do an61LM dos problemas atuoi.r. 
Responderei de acordo com as eJ(pcriências de nosso teatro. 
embora ukmos com freqUência textos clàssicos, nosso teatro é 
contemporâneo, na medida em que confronta nossas raizes com 
nosso comportamento e nossos estereótipos correntes , e dessa for · 
ma apresenta o nosso "hoje" em relaçllo com o "ontem", e o nos· 
so "ontem" com o "hoje" . Mesmo se este teatro usa uma lingua-
aem elementar de gestos e sons- comprecnslvel, a\t:m do valor se-
mlntico da palavra, até para uma pessoa que nao compreenda a 
llngua na qual a peça t: representada -. tal teatro deve ser nacia. 
na\, uma vez que se baseia na introspecçao e no todo do nosso supe-
rego social, que foi moldado num clima nacional particular, 
tornando-se assim uma parte dele. 
Se desejamos, na verdade, pesquisar profundamente dentro da 
lógica de nossa consciência e do nosso comportamento, e atingir 
seus pontos mais recônditos, seu motor secreto, entlo o sistema in· 
tegral de simbolos construido na montagem deve apelar para a nos-
sa experiência, para a realidade que nos surpreendeu e nos mode· 
lou, para esta linguagem de gestos, murmúrios, sons e entonações 
extralda das ruas, dos trabalhos, dos cafés - em suma, de todo 
comportamento humano que tenha deixado uma impress.ll.o em 
nO.. 
Falamos de profançlo. O que, na realidade, serà isto, senao 
um tipo de falta de tato baseado no confronto brutal entre nossas 
declarações e nossas ações diãrias, entre as exper!ncias de nossos 
antepassados, que vivem dentro de nós, e nossa busca de uma vida 
confortâvel ou nossa concepção de luta da sobrevivência, entre 
nossos complexos individuais e os da sociedade como um todo? 
Isto significa que cada montagem clàssica é como nos olhar· 
mos num espelho, vermos nossas idéias e tradições, e nlo apenas a 
descriçlo do que pensaram e fizeram os homens dos séculos passa· 
dos. 
Toda a montagem construida sobre um tema contemporAneo é 
um encontro entre os traços superficiais do dia de hoje e suas raizes 
profundas, seus motivos escondidos. A montagem é nacional por· 
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~uc é uma pesquisa sincera c absoluta no nosso ego histórico; é rca-
bsta porque é um excesso de verdade; é social porque é um desafio 
ao ser social, o espectador. 
Teatro é Encontro* 
Em uma tk suos dedaroçlks, vQCl d~ qu~ o teatro pode existir 
sem figurinos nem crndrlos, sem efeitos mwicais ou luminosos- e 
a ti M!m um texto. Vocl ocrescentou: ""No desenvolvimento da arte 
teatral, o texto foi um dos últimos elerrlentos a ser acrescentado'', 
H6, em suo opini6o, um único elemento que o teatro nlJo pode dis-
pensar- o ator. No entanto, desde o Commedia dell' Arte existem 
dramaturgos. Devt o di~tor de hoje desresfNifor uma trodiç6o de 
diversos skulos? Que lugar voei confere ao texto, como diretor? 
Este nlo é o lmago do problema. O lmqo ~ o encontro. O 
texto é uma realidade: artlstica, existente num sentido objetivo. 
Ora, se o texto for suficientemente: velho, c se preservou todas as 
suas forças at~ hoje- em outras palavras, se o texto cont~m certas 
---;-Em junhodt 1961,durantraE:I;~1. noCanadt, JrnyOrocowUioompare-
«u 1 um slmp61iointnnacional dctftltro, m1 Montra! . Durante JUI pmnanlncia, 
ooncrdrua~quintr mu~. a Naim Kauaa, que foi publiud• em Arutt Ullrn, 
U lhi'CW(Julhol961). 
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concentrações de experi!ncias humanas, representações, ilusOes, 
mitos e verdades que ainda sAo válidos para nós, hoje- entao o 
texto torna-se u~na mensagem que recebemos das gerações anterio-
res. 'Iodo o vaJordo texto já está presente, uma vez escrito: isto é li-
teratura, e nós podemos ler ptÇas como parte da "literatura". Na 
França, is peças publicadas em forma de livro é dado o nome de 
Tmtro- um en&ano, em minha opiniao, pois isso nao é teatro, e 
sim literatura dr•mádca. Diante desta literatura, podemos tomar 
uma destas duas posições: ou ilustramos o texto, através da m-
terprdaçao dos atores, da montagem, do cenàrio, da situaçAo da 
peça, e nesse caso o resultado nllo é teatro, sendo o único elemento 
vivo, em tal montagem, a literatura; ou ignoramos, virtualmente, o 
texto, tratando-o apenas como um pretexto, fazendo illlerpolaçOcs 
c modificações, c reduzindo-o a nada. Sinto que essas duas so-
luções sAo falsas, porque nos dois casos nao estaremos cumprindo 
nosso dever como artistas, mas tentando cumprir certas regras - c 
a arte n!o gosta de regras. As obras-primas slo sempre baseadas na 
transcendl:ncia das regras. Embora, é claro, o teste se verifique na 
montagem. 
Tomemos, por exemplo, Stanislavski. Seu plano era compre-
ender todas as intcnçOes do dramaturgos, criar um teatro literário. 
E quando falamos do estilo de Tchckhov, na verdade estamos alu-
dindo ao estilo das montagens que Stanislavski fazia das peças de 
Tchekhov. Na realidade, Tchckhov protestou quanto a isto, ao di-
ter: ''Escrevi vaudt\o/1/i!S c Stanis\avski pOs dramas sentimentais no 
palco". Stanislavski era um artista genuíno;

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