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dança e dra- matur- gia [s ] © Vila das Artes, 2016 © Paulo Caldas, 2016 © Ernesto Gadelha, 2016 coordenação editorial Peter Pál Pelbart e Ricardo Muniz Fernandes assistente editorial Isabela Sanches tradução Nathália Mello, Rosa Ana Druot de Lima e Sylvain Druot revisão Milena Bandeira e Papel Ofício revisão técnica Ernesto Gadelha e Paulo Caldas projeto gráfico Renan Costa lima diagramação Jorge Salum e Renan Costa Lima A reprodução parcial sem fins lucrativos deste livro, para uso privado ou coletivo, em qualquer meio, está autorizada, desde que citada a fonte. Se for necessário a reprodução na íntegra, solicita-se entrar em contato com os editores. |nexus é um selo da n-1 edições| dança e dra- matur- gia [s ] ––––– o r g s . P a u l o C a l d a s e e r n e s t o g a d e l h a nexus 2016 Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Odilio Hilario Moreira Junior CRB-8/9949 D173 Dança e Dramaturgias (s) / organizado por Paulo Caldas, Ernesto Gadelha ; traduzido por Nathália Mello, Rosa Ana Druot de Lima, Sylvain Druot - Fortaleza; São Paulo : Nexus, 2016. 312 p ISBN: 978-85-66943-36-3 1. Dramaturgia. 2. Dança. 3. Coreografia. I. Caldas, Paulo. II. Gadelha, Ernesto. III. Mello, Nathália. IV. Lima, Rosa Ana Druot de. V. Druot, Sylvain. VI. Título. CDD 792.62 CDU 793 2016-434 Índice para catálogo sistemático: Artes : Dança 792.62 Artes : Dança 793 – 4 – 5 sumário Vila das artes u m a a p o s ta d o p o d e r p ú b l i c o n a p o t ê n c i a da a rt e 7 dança e dramaturgia(s) pau l o c a l da s e e r n e s t o g a d e l h a 11 1 e 2 dramaturgias v e r b e t e 19 o crime compensa ou o poder da dramaturgia a n a pa i s 25 errância como trabalho a n d r é l e p e c k i 61 corpo v e r b e t e 85 o dramaturgista ignorante b o ja n a c v e j i c ć 91 a economia da proximidade b o ja n a k u n s t 111 moVimento v e r b e t e 131 Formando espaços crít icos: h e i d i g i l p i n 137 pensar o pensamento de ninguém m a a i k e b l e e k e r 149 olhar v e r b e t e 173 o processo dramatúrgico m a r i a n n e va n k e r k h ov e n 179 dramaturgia ansiosa m y r i a m va n i m s c h o o t 191 sentido v e r b e t e 215 dramatologias da dança s a n d r a m e y e r 221 dança, dramaturgia e pensamento dramatúrgico s y n n e k . b e h r n d t 243 deriVas de um plano de composição em dança t h e r e z a ro c h a 269 reFerências b i b l i o g r á f i c a s 307 – 6 – 7 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 7 � � � � � � � � � � � � � � � � Vila das Artes Uma aposta do poder público na potência da arte Completando um ciclo de gestão à frente da pasta da Cultura do município de Fortaleza, situamos a publicação do livro Dança e dra- maturgia[s] como uma ação ancorada na compreensão de que as políticas públicas da gestão cultural são, antes de tudo, possibilida- des de ampliação do acesso à informação e à educação. No exercí- cio da dinamização do ambiente sociopolítico, percebemos essa ini- ciativa pela via da qualificação do corpo cultural como aposta no desenvolvimento humano e nas suas mais diversas manifestações de pensamentos e práticas. No que se refere à construção de ins- trumentos fomentadores dos complexos campos em que se dão os processos artístico-culturais, os escritos reunidos nessa publicação apresentam-se como um bem cultural e consolidam-se como subsí- dio para reflexões estéticas e políticas; acolhem, assim, a difusão e a fruição de pensamentos, num cruzamento que sinaliza caminhos possíveis para novos desdobramentos de paradigmas artísticos na criação em dança no Brasil. Dança e dramaturgia[s] é formulação afirmativa sem ser dogmá- tica. E se quer pública. Longe de apresentar-se como uma coleção segmentada de ideias, é obra plural que interroga e aguça, desenca- deando a produção de diferentes percepções e sentidos. Numa su- peração da tendência imobilista habitual dos antecedentes históri- uma aposta do poder público na potência da arte vila das aRTEs – 8 – 9 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 8 � � � � � � � � � � � � � � � � cos das políticas culturais, estabelece de forma estruturada um ter- ritório que tece novas conformações do conhecimento e amplia o campo de ação da dramaturgia; evoca, portanto, ressignificações dos processos criativos no campo da arte. No âmbito do direito cultural, a Secretaria Municipal da Cul- tura de Fortaleza (Secultfor), através da Vila das Artes, assume essa ação como conexão híbrida, de múltiplas interações e de função co- letiva que busca sedimentar uma experiência com vistas a romper com a lógica do fazer episódico e demasiadamente localizado. Ao mesmo tempo em que émemória,Dança e dramaturgia[s] é também matéria cultural que desloca e tensiona os espaços, tempos e ações, sem negligenciar a variação de contextos e seus aspectos singulares. Considerando que as políticas públicas para a cultura têm trajeto re- cente e sua institucionalidade ainda vem acompanhada de desafios merecedores de atenção, destacamos que essa iniciativa da publica- ção faz confluir um conjunto de elementos que explicitam os esfor- ços impulsionadores e inaugurais de uma atuação do ente público na percepção da cultura como bem de coletividade e de múltiplas autorias. Aberto esse novo campo, há dois destacados desafios gera- dos: estabelecer agendas que garantam a continuidade de ações que fomentem a produção teórica no campo cultural local, bem como a criação de canais de socialização dessa produção, tornando-a mais acessível, abrangente e fluida. O daqui em diante já antecipa uma boa provocação. Vale expressar o quanto celebramos, na instância municipal, a efetivação dessa ação pública que alcança um lugar definitivo nas propostas de política cultural da cidade. A Vila das Artes, equipa- mento público vinculado à Secretaria Municipal da Cultura, idea- lizadora do Dança e dramaturgia[s] através da Escola Pública de Dança, é um espaço formativo que completa 10 anos e tem como premissa a construção de laços entre o fazer e o pensar, apostando nesse encontro como propulsor de forças criativas. Rememorando um traço histórico, a Escola Pública de Dança da Vila das Artes surge a partir de discussões travadas com os mais diferentes seg- LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 9 � � � � � � � � � � � � � � � � mentos da cidade e apresenta-se como espaço que se propõe a con- tribuir para a percepção e abordagem da dança a partir de perspec- tivas múltiplas. Com um corpo docente formado por profissionais do Brasil e do exterior, seu programa pedagógico promove a for- mação e o aperfeiçoamento técnico, artístico e teórico em dança cê- nica, proporcionando aos alunos o contato com distintas visões so- bre os vários processos e conteúdos da dança. Finalmente, numa perspectiva mais ampla, cabe mencionar que a Vila das Artes, atua, ainda em programas de formação voltados para o audiovisual, o teatro e a cultura digital. Instaura assim, na rotina cultural de Fortaleza, distintas práticas que redesenham as relações tecidas entre arte, política e cidade. A presente publica- ção, com suas múltiplas dramaturgias, torna-se, portanto, uma fer- ramenta relevante de prolongamento e desdobramento dos saberes e fazeres da cena cultural. magela lima Secretário Municipal da Cultura de Fortaleza cláudia pires Diretora da Vila das Artes – 10 – 11 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 11� � � � � � � � � � � � � � � � A o principiar um breve texto em que transcreve e editaas palavras recolhidas numa série de encontros intituladaConversations on Choreography1, realizada entre 1999 e 2000, Scott deLahunta (2000) admite que, não obstante sua“evo- lução”, a dramaturgia permanecia uma “prática desconcertante” e que as questões quanto a “[…] sua definição (o que é dramaturgia?) e metodologias (o que faz o dramaturgista?) constantemente pre- faciam cada livro, simpósio ou aula sobre o tema” (p. 25, tradução nossa). Pois é assim que, de alguma maneira, repetimos como primeira a questão “o que é dramaturgia?” ao abrir os textos ensaísticos aqui reunidos já com um primeiro verbete da obra coletiva De quoi la dramaturgie est-elle le nom? (boudier et al., 2014): pois ali, a par- tir da breve obra de Joseph Danan (2010), que faz daquela questão seu título (Qu’est-ce que la dramaturgie?), são listados dois sentidos porque distintos dois fazeres: no sentido 1, diríamos sumariamente, a dramaturgia é afirmada como um fazer sobretudo textual, produ- tor de literatura dramática; no sentido 2, como um fazer ligado me- nos a textos do que a tessituras, a matérias e sentidos para além da 1O texto refere-se às duas primeiras sessões do projeto, realizadas em Ams- terdam (março de 1999) e em Barcelona (novembro de 1999); entre os partici- pantes, além do próprio Scott deLahunta, listam-se nomes como André Lepecki, Heidi Gilpin e Myriam Van Imschoot, além de Diana Theodores, Hildegard De Vuyst e Isabelle Ginot. Formado em Dança Contemporânea na Escola Angel Vianna (RJ), o coreógrafo Paulo Caldas é diretor da companhia de dança Staccato e codiretor do dança em foco – Festival Internacional de Vídeo & Dança. Bacharel em Filosofia, é mestre e doutorando em Educação. Atualmente, é professor dos cursos de bacharelado e licenciatura em Dança da UFC. _ Graduado em Pedagogia da Dança pela Ballettakademie Köln / Rheinische Musikschule e pós-graduado em Dança Contemporânea pela Folkwang Universität der Künste, atua como professor, gestor e curador em diversos projetos. Atualmente, coordena a Escola Pública de Dança da Vila das Artes e faz a direção artística e pedagógica da Bienal Internacional de Dança do Ceará. – Paulo Caldas dança e dRaMa- TuRgia[s] orgs. ErnEsto GadElha – 12 – 13 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 12� � � � � � � � � � � � � � � � (eventual) dimensão propriamente textual, um fazer afinal copro- dutor de cena, de encenação. E é mesmo neste sentido 2 que, hoje, reconhecemos algo que está, claramente, na base de toda criação artística, quer se trate de mon- tar uma peça ou de dar um concerto. Nós lidamos o tempo todo com dramaturgia, até quando nós não lidamos com ela. Desde que se saiba no que consiste a dramaturgia, pode-se vê-la e encontrá-la em todos os lugares (lamers, apud kerkhoven, 1997, p. 19).2 A língua alemã, aquela a partir da qual o “moderno”3 sentido 2 da palavra dramaturgia emergiu, soube evitar a equivocidade na no- meação das figuras às quais se atribuem aqueles fazeres; assim, as palavras Dramatiker (o autor de textos dramáticos) e Dramaturg (o coautor de tessituras cênicas) distinguem fazeres de uma maneira que não se repete nas línguas inglesa, francesa ou portuguesa, nas quais as palavras dramaturg, dramaturge e dramaturgo, respectiva- mente, recobrem ambos os sentidos. No entanto, aqui, assumimos o termo não completamente dicio- narizado dramaturgista4 para operar em nossa língua aquela distin- ção, mesmo que, entre nós, não seja incomum operá-la repetindo a original alemã Dramaturg. Assumimos, assim, o termo que tem se consolidado em razão de seu uso por aqueles – falantes do portu- guês – que tratam de dramaturgia: indagado a esse respeito, André Lepecki muito simplesmente respondeu: “[…] foi como sempre usei o termo em português, dado que dramaturgo significa também ou principalmente, escritor de peças de teatro, e dramaturg me parece não português”.5 2Consultar a presente publicacão, p. 179. 3Consultar Pavis, 1999. 4Como escreve Fátima Saadi (2010, p. 102), “só a partir da década de 1990 a palavra dramaturgista começou a ser utilizada na imprensa e, aos poucos, nas fichas técnicas dos espetáculos de teatro”. 5E-mail aos editores. LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 13� � � � � � � � � � � � � � � � Para além da pergunta “o que é dramaturgia?” – pergunta que não quer resposta, mas fazer problema –, e considerada a paisagem cênica nacional hoje, importa com igual pertinência ainda uma ou- tra: como pensar dramaturgia na ausência desta figura que encarna e personifica a tarefa do seu fazer? Mais simplesmente: como pen- sar dramaturgia sem dramaturgista? Pois é fato que, à diferença do que se passa talvez em outras paisagens — sobretudo, sabida- mente, na alemã e na belga —, a dramaturgia na dança se faz ques- tão entre nós predominantemente na ausência daquela figura. Daí que, embora alguns dos ensaios aqui recolhidos pareçam ocupar-se dela, importa — mesmo neles — pensar sobretudo os fazeres vários subsumidos pela palavra dramaturgia, o que, material e imaterial- mente, implica o fazer dramatúrgico. Importa pensar, afinal, aquilo que Bernard Dort (1986, p. 8, tradução nossa) chamou, desde a pai- sagem teatral francesa, de “estado de espírito dramatúrgico”: A reflexão dramatúrgica está presente (conscientemente ou não) em todos os níveis da realização. É impossível limitá-la a um elemento ou a um ato. Concerne tanto à elaboração do cenário, ao modo de repre- sentar dos atores, como ao trabalho do “dramaturgista” propriamente dito. Impossível circunscrever no teatro um domínio dramatúrgico. En- tão, em vez de trabalho dramatúrgico, falarei de estado de espírito dra- matúrgico. É por assim definir a dramaturgia que Dort (idem, p. 10) pode di- zer, talvez polemicamente: “O dramaturgista é transitório. […] Uma vez partilhado o estado de espírito por todos, o dramaturgista será supérfluo”. O fazer dramatúrgico se quer portanto plural, errático, trans- versal, distributivo e expansível sobre variados domínios cênicos e artísticos, nutrido por variados domínios não necessariamente cê- nicos nem artísticos, ligado a uma poética de sentido inscrita no espaço-tempo singular de cada obra – de cada uma de suas efetua- ções performativas –, operando das mediatas decisões das salas de – 14 – 15 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 14� � � � � � � � � � � � � � � � ensaio até as imediatas decisões que modulam um gesto cada vez que é performado. Daí que a dramaturgia seja repetidamente afirmada, hoje – exista ou não a figura do dramaturgista –, como um fazer com- partilhado, um “campo coativo” em que “não tanto um texto, mas uma textura é tecida, entrelaçada, suturada”6, um espaço comum pois ocupado por todos com a propriedade de seus saberes e com o exercício de seus não saberes. Fazer in situ, a dramaturgia não pode supor (pre)determinações generalizantes. Recuando a Lessing, de fato, ao preterir o inicialmente consi- derado título Didascálias de Hamburgo (o que talvez erroneamente insinuasse um desejo de instrução, indicação ou mesmo de norma- tização de procedimentos, à maneira de escritos aristotélicos) em favor de Dramaturgia de Hamburgo, ele permite-se “decidir o que [nela] incluir ou não” (s/d, p. 488)7, não sem lembrar a seus leitores – sacrificando-se “[…] o axioma da não-contradição, a pretensão de coerência própria, que assumimos como obrigatórios para todos os que escrevem e falam”, conforme escreve a esse propósito Hannah Arendt (2008, p. 11) – que estas folhas contém tudo menos um sistema dramático. Portanto, não sou obrigado a resolver todas as dificuldades que crio. Meus pensamen- tos podem parecer cada vez menos conexos, podem mesmo parecer se contradizer, pouco importa, desde que sejam pensamentos em que se encontre matéria para pensar! Aqui, quero apenas disseminar fermenta cognitionis (lessing, s/d, p. 479, tradução nossa). Daí que a “revolução operada por Lessing” (danan, 2010, p. 14), mesmo ali onde não se trata ainda propriamente da questão da en- cenação, tal como veio a se estabelecer a partir de fins do século xix, instaure dimensões que, diríamos, permanecem caras à dramatur- 6Conforme Lepecki, na presente publicacão,p. 61. 7Em LESSING, lemos: I had had the intention of calling my journal the ‘Hamburg Didaskalia’. But the title sounded too foreign and now I am very glad I preferred the present one. What I chose to bring or not to bring into a Dramaturgy, rested with me”. LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 15� � � � � � � � � � � � � � � � gia que nos interessa, pois que se anuncia como uma “[…] ‘prática’ (aberta) que visa questionar e a produzir pensamento” (idem), alheia a qualquer desejo de prescrever procedimentos e arbitrar sentidos. Os textos aqui coletados pretendem, portanto, não mais do que isso: questionar e produzir pensamento. Sua disposição obedece à mera e arbitrária ordem alfabética de nomes: diante do único de- sejo de dar a ler textos referenciais – donde um certo sabor de anto- logia e a predominância de escritos europeus –, qualquer outra con- figuração pareceu-nos artificiosa: portanto, não há aqui nem blocos temáticos, nem uma ordenação cronológica, mas uma série de en- saios mais ou menos curtos, intervalados, eventualmente, ora por alguns aforismos, ora por algum dos cinco verbetes colhidos dentre os mais de trinta publicados no recente e, diríamos, já fundamental De quoi la dramaturgie est-elle le nom?, um léxico produzido pelo Laboratoire Agôn – Dramaturgies des arts de la scène, de Lyon.8 Aqui, estão abarcadas aproximadamente duas décadas: do semi- nal dossiê Danse et dramaturgie publicado pela Nouvelles de Danse, em 1997, até a recém-publicada coletânea organizada por Pil Han- sen e Darcey Callison, de 2015, extraímos textos assinados por no- mes notabilizados como pensadores e fazedores de dramaturgia. Evidentemente, teria sido possível – não fosse a dimensão limitada de nosso projeto editorial –, multiplicá-los. Esperamos que outras iniciativas o façam, haja vista a atualidade do tema na dança e na cena que produzimos hoje no Brasil. Este Dança e dramaturgia[s] quer, portanto, sobretudo, colabo- rar com a formação de uma bibliografia em língua portuguesa sobre o tema, e ambiciona ter seus textos transitando entre aqueles que pensam e fazem dramaturgia tanto no contexto artístico quanto no acadêmico. Por isso, mesmo seu projeto gráfico se quer favorecedor 8Agradecemos aos editores Marion Boudier, Alice Carré, Sylvain Diaz e Barbara Métais-Chastanier, assim como à editora L’Harmattan pela gentil concessão dos direitos de tradução e publicação dos verbetes aqui apresentados. Para acessar a produção textual do laboratório, consultar a Agôn: Revue des arts de la scène, no link: agon.ens-lyon.fr/. – 16 – 17 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 16� � � � � � � � � � � � � � � � de sua circulação em outros formatos: a proporção de suas páginas, a posição de sua área impressa, o contraste e o tamanho de seus caracteres, os espaços vazios que ladeiam seus textos (e que convi- dam a anotações) querem alegremente facilitar a reprodução, des- tino sabido e fundamental para uma efetiva capilarização de produ- ções impressas, diante de nossa realidade social e educacional: a fo- tocópia de qualquer folha deste livro é legal, diríamos, contrariando a praxe editorial. Agradecemos ao Instituto de Cultura e Arte (ica) e aos cursos de bacharelado e licenciatura emDança da Universidade Federal do Ceará, dos quais fazem parte os professores Paulo Caldas eThereza Rocha. Agradecemos imensamente aos autores e editoras, sobretudo à sarma – Laboratory for discursive practices and expanded publica- tion9, plataforma online mantenedora de um importante acervo de documentos escritos e sonoros, inclusive de antologias de textos de André Lepecki e Marianne Van Kerkhoven (da qual gentilmente nos cedeu o direito de tradução e publicação). A André Lepecki e ArmandoMenicacci, nossos agradecimentos pelo apoio e pelo estímulo ao desenvolvimento deste projeto. Por fim, gostaríamos de agradecer à Petrobras por patrocinar a realização desta publicação, fruto da política de apoio à produção e difusão de conhecimento em dança da Vila das Artes, equipamento cultural ligado à Secretaria Municipal da Cultura de Fortaleza. ernesto gadelha e paulo caldas 9Consultar: sarma.be/pages/Index . LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 17� � � � � � � � � � � � � � � � Referência • arendt, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Compa- nhia das Letras, 2008. • danan, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. • delahunta, Scott. Dance dramaturgy: speculations and reflexi- ons. Dance Theatre Journal, v. 16 n. 1, 2000, p. 20–25. • dort. Bernard. L’état d’esprit dramaturgique. Théâtre/Public, Dra- maturgie, n.67, 1986. • kerkhoven, Marianne Van. Les processus dramaturgique.Nouvel- les de Danse. Dossier danse et dramaturgie, n. 31. Bruxelas: Con- tredanse, 1997. • lessing, Gotthold Ephraim. Hamburg dramaturgy. Londres: Wil- liam Clowes and Sons, Ltd. s/d. • pavis, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 1999. • saadi, Fátima. Dramaturgia/Dramaturgista. In: nora, Sigrid. Te- mas para a dança brasileira. São Paulo: Edições sesc sp, 2010. – 18 caldas, paulo; gadelha, ernesto. Dança e dra- maturg ia[s] . são Paulo : nexus , 2016. BoudIer, Mar ion et a l . De quo i la dramaturg ie est-e l le le nom? Par is : l’harmattan , 2014 . p . 15-18 1 e 2 drama- turgias LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 19� � � � � � � � � � � � � � � � “O qe é a dramaturgia?”, pergunta, com razão, numaobra epônima, Joseph Danan (2010), que relembra adupla acepção deste termo na língua francesa. A dra- maturgia, em primeiro lugar, é “[…] a arte da composição de peças de teatro” (p. 7), seguindo uma definição que prevalece desde Lit- tré até Patrice Pavis, como relembra o ensaísta que fala de “drama- turgia no sentido 1”, ou “dramaturgia 1”.1 A dramaturgia é, em se- gundo lugar, de acordo com a definição dortiana, retomada e sinte- tizada por Joseph Danan, o “[…] pensamento da passagem à cena das peças de teatro” (idem, p. 8) que se encontra designado como “dramaturgia no sentido 2”, ou “dramaturgia 2”. Essa segunda acepção foi herdada de uma prática alemã inici- ada no século xviii por Lessing, que, em Hamburgo, trabalha em nada menos que uma reforma do teatro.2 Trata-se, especialmente, de desfazer o sistema do principado entre os atores, que até então era regra — o ator principal se impondo como empresário e diretor artístico da companhia. Tal empreitada se dá pela introdução, na instituição teatral, de um terceiro, que estaria encarregado de favo- recer a colaboração entre a direção do teatro — que escolhe as obras 1DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Arles: Actes Sud, 2010. p.7. (Coleção Apprendre). 2LESSING, Gotthold Ephraim. Dramaturgie de Hambourg. Tradução de Jean-Marie Valentin. Paris: Klincksieck, 2010 [1769]. p.4. (Coleção Germanistique). – 19 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 20� � � � � � � � � � � � � � � � — e os praticantes — que as conduzem à cena — a fim de oferecer ao espectador uma apresentação coerente, atendendo às exigências es- téticas e ideológicas do autor.3 Além disso, importa ressaltar a des- crição dada por Lessing ao considerar o efêmero Teatro Nacional de Hamburgo (1767–1768) como uma “[…] sociedade de amigos do teatro colocando a mão na massa” e trabalhando em um projeto de utilidade pública contra os cálculos egoístas dos chefes de trupe.4 Essa é a identidade do primeiro Dramaturg. No entanto, é ne- cessário notar que Lessing nunca se designa como tal, mesmo que, no final de sua experiência em Hamburgo, ele tenha publicado, em 1769, uma coleção de textos inicialmente destinados aos espec- tadores do Teatro Nacional, precisamente intitulada Dramaturgia de Hamburgo. O termo Dramaturgia não é, contudo, objeto de ne- nhuma definição. Lessing apenas apresenta sua obra na introdução como “uma revisão crítica” de todas as apresentações que acontece- ram no Teatro Nacional de Hamburgo, a fim de “[…] acompanhar cada passo que fará a arte do poeta, como a do ator”.5 Elevolta a tratar do título de sua obra no último artigo da coleção, no qual ex- plica ter cogitado dar como título Didascálias de Hamburgo em re- ferência a “[…] estas curtas notas […] que o próprio Aristóteles não se recusava em redigir sobre as peças da cena grega”.6 Pelo fato de “[…] os eruditos pensarem que sabem com o que ela[s] deve[em] parecer”, Lessing prefere, finalmente, Dramaturgia à Didascálias de Hamburgo, forma inédita na qual ele é o único a decidir o que pode “incluir ou não incluir”.7 3Sobre a participação de Lessing no projeto do Teatro Nacional de Hamburgo entre os anos de 1797 e 1798, cf.: DORT, Bernard. Le ‘Mule’ de Lessing. L’Écrivain périodique. Editado por Chantal Meyer-Plantureux. Paris: P. O. L., 2001. p.332–351. 4LESSING, Gotthold Ephraim. Dramaturgie de Hambourg, op.cit., p.4. 5Id. 6Ibid., n.101–104, 19 de abril de 1768, p.332. 7Id. LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 21� � � � � � � � � � � � � � � � Para o autor, então, a dramaturgia não é mais que uma forma de escrita crítica que oferece uma certa liberdade na sua ausência de normatividade, razão pela qual deve permanecer não definida. Não é a própria obra de Lessing que determina a dramaturgia 2, mas a prática singular do teatro iniciada emHamburgo, quando ela supõe a aparição de um terceiro denominado ulteriormente Dramaturg. É importante notar que esse neologismo impede qualquer con- fusão como autor de peças, nomeado em alemãoDramatiker ; confu- são, ao contrário, efetiva na língua francesa, onde dramaturge (dra- maturgo) designa tanto quem escreve a obra como quem acompa- nha o processo de sua criação, suscitando desconfiança com relação a essa função e mal-entendidos quanto a essa prática. Tanto que, como Claude-Henri Buffard, alguns artistas não necessariamente francófonos chegaram a militar pela invenção de uma nova palavra para designar a dramaturgia 2, a fim de diferenciá-la da dramatur- gia 1.8 Assim, Corrado Bertoni, um dos colaboradores de Caterina Sagna, propõe falar de “dramasurgia (o que permite o surgimento da ação)”, ou também de “dramapurgia (o que purga a ação)”, e até mesmo de “drama-urgie”, para ressaltar “a urgência da ação”.9 E um universitário do Quebec preferiu, ao termo de “dramaturgo”, o de “dramaturgista”, a fim de evitar qualquer confusão.10 Não podemos negar a ambiguidade desta noção fugidia, por sua dualidade, de dramaturgia, mas será que temos, contudo, que re- nunciar a ela? Com efeito, convém, com Joseph Danan, considerar que é a sua própria dualidade que determina seu interesse11, pois se elas são distintas, dramaturgia 1 e dramaturgia 2 não se excluem: 8BUFFARD, Claude-Henri; GALLOTA, Jean-Claude. Le chorégraphe et son drama- turge. Encontro organizado por Marion Boudier e Aude Thuries. Agôn [re- vista eletrônica], Danse et dramaturgie, Le laboratoire. Disponível em: <http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=924>. Acesso em: 23 nov. 2009. 9ADOLPHE, Jean-Marc. La dramaturgie est un exercice de circulation pour tenir le monde à l’écart. in Nouvelles de danse, n. 31, 1997, p.32. 10BOURASSA, André G. Glossaire du théâtre. Disponível em: <http://www.theatrales.uqam.ca/glossaire.html#D>. Acesso em: 7 abr. 2011. 11DANAN, Joseph. Qu’est-ce que la dramaturgie? Op.cit., p.5–6. – 21 – 20 1 e 2 dra- matur- gias – 23 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 22� � � � � � � � � � � � � � � � frequentemente, o comentário da obra se faz reescritura para dar sentido12 à representação. Isso é ainda mais verdadeiro nas práti- cas artísticas não-textuais, onde dramaturgia 1 e 2 tendem, às ve- zes, a se confundir. Assim, no campo da dança, Bojana Cvejić con- sidera, junto a outros, que coreografia e dramaturgia são um só: so- mente regimes de trabalho diferentes durante o processo de criação do espetáculo.13 Então, como pensar não a unidade, mas a coerência dessa dra- maturgia necessariamente dual, plural e que poderíamos conside- rar como contraditória? Talvez a etimologia, sondada por Euge- nio Barba em L’Énergie qui danse (2008), possa nos ajudar: “drama- -ergon” designa, de fato, segundo ele, o “trabalho”, a “implementa- ção das ações” no palco, definição que corresponde tanto à drama- turgia 1 quanto à dramaturgia 2.14 12N. do E.: Consultar verbete SENTIDO na página 215. 13Bojana Cvejić, em entrevista inédita concedida a Marion Boudier, Alice Carré e Barbara Métais-Chastanier, realizada em Paris no dia 17 de abril de 2010. C.-H. Buffard está próximo, neste ponto, da posição expressa por B. Cvejić: Buffard, Claude-Henri; Gallota, Jean-Claude. Le chorégraphe et son dramaturge. Encontro organizado por Marion Boudier e Aude Thuries. Agôn [revista eletrônica], Danse et dramaturgie, Le laboratoire. Disponível em:. Acesso em: <http://agon.ens-lyon.fr/index.php?id=924> 23 nov. 2009. 14BARBA, Eugenio. Actions au travail. In: BARBA, Eugenio; SAVARESE, Nicola. L’énergie qui danse. Montpellier: L’Entretemps, 2008. p.54. – 22 – 24 – 25 caldas, paulo; gadelha, ernesto. Dança e dra- maturg ia[s] . são Paulo : nexus , 2016. Versão ampl iada e atua l izada do texto publ icado em: nora, s igr id (org . ) . Temas para a dança bras i le i ra . são Paulo : ed ições sesC sP, 2010. o crime compensa ou o poder da drama- turgia –––––– AnA PAis Dramaturgia é a ética que compõe o trabalho que traz ao mundo a obra-por-vir. André Lepecki [e-mail aos editores] trecho de: – 26 – 27 Ana Pais é dramaturgista, curadora e investigadora. Além disso, é doutora em Estudos de Teatro na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa com a dissertação: Comoção: os ritmos afectivos do acontecimento teatral e autora do livro O discurso da cumplicidade. Dramaturgias contemporâneas (2. ed. Lisboa: Edições Colibri, 2016). – o crime compensa ou o poder da dramaturgia –––––– AnA PA is LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 27� � � � � � � � � � � � � � � � qando este texto foi publicado pela primeira vez no Brasil, na coletânea editada pelo sesc Temas para a dança brasileira, em 2010, assistíamos a um momento de viragem na edição de textos sobre dramaturgia no plano internacional. Desde 2006, surgiu mais de uma dezena de novos volumes sobre dramaturgia (só em 2015 foram publicados cinco estudos).1 Tais publicações propõem outras cartografias e problematizam o papel do dramaturgista no contexto atual da sociedade globali- zada. Algumas obras centram-se nas práticas teatrais; outras nas práticas coreográficas; outras ainda expandem-se pelo campo das artes visuais e artes multimídia. Esta emergente bibliografia sina- liza a urgência de refletir sobre a expansão do conceito de drama- turgia, intensificando-se à medida que a figura do dramaturgista 1TRENCSÉNYI, Katalin. Dramaturgy in the making: a user’s guide for theatre practitioners. Londres; Nova York: Bloomsbury, 2015. PROFETA, Katherine. Dramaturgy in motion: at work on dance and movement performance. Madison: University of Wisconsin Press, 2015. KUNST, Bojana. Artist at work, proximity of art and capitalism. Winchester: Zero Books, 2015. HANSEN, Pil; CALLISON, Darcey (Orgs.). Dance dramaturgy: modes of agency, awareness and engagement. Londres: Palgrave Macmillan, 2015. PITÁGORAS 500: Revista de Estudos de Teatro. Dossiê dramaturgias di- versas, v. 8, (jun. 2015). Disponível em: <publionline.iar.unicamp.br- /index.php/pit500». Acesso em: 29 jan. 2016. – 28 – 29 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 28� � � � � � � � � � � � � � � � ganha terreno em áreas distantes da sua origem vinculada ao texto dramático, a exemplo das áreas de curadoria e das práticas discur- sivas. Porém, as recentes publicações estão disponíveis maioritaria- mente em inglês, revelando a necessidade imperiosa da presente antologia em português, bem como da reedição portuguesa, em 2016, do livro que deu origem a este artigo (pais, 2004). Uma das ra- ras exceções é a edição bilíngue inglês/espanhol Rethinking drama- turgy, errancy and transformation (belisco; cifuentes, 2010). Este volume enfatizaa importância de abordar a dramaturgia como um “campo expandido”, um espaço de mediação entre elementos do evento teatral e os âmbitos social e político (direção para a qual a segunda seção do livro aponta). O volume contempla tópicos da dramaturgia da dança e da multimídia, para além das práticas tea- trais, promovendo uma inovadora mediação entre tradição e con- temporaneidade, teatro e dança, o Norte (geografias de onde ainda surgem a maioria dos trabalhos) e o Sul. Esta noção de um campo expandido é relevante não só para compreender a disseminação do conceito de dramaturgia, mas também os riscos que ela acarreta. Se hoje o conceito de dramaturgia tem validade operativa em vá- rias disciplinas artísticas e em diferentes campos discursivos, isso se deve, por um lado, a uma crescente conceitualização das artes enquanto práticas expandidas, que designam quer cruzamentos de formatos artísticos, quer ligações entre o artístico, o social e o polí- tico. Por outro lado, a miscigenação das linguagens artísticas prati- cada desde o surgimento da Performance Art, cuja sintaxe define a singularidade artística da estética dos criadores, vem exigindo uma reflexão sobre metodologias e formas de estruturação de sentido e reclamando operações dramatúrgicas na construção de novos for- matos e enunciados. Em ambos os casos, a dramaturgia é reclamada como uma ferramenta pertinente para atravessar esses novos terri- tórios, mostrando uma forte influência na definição do posiciona- mento artístico e teórico dessas práticas, bem como na reconfigura- ção dos próprios campos. LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 29� � � � � � � � � � � � � � � � Podemos falar de coreografia expandida desde que Mårten Spångberg promoveu uma conferência sobre o tema em 2012, con- tando com participantes de vários campos artísticos e teóricos.2 Naquela ocasião, começamos a pensar noções de teatralidade ex- pandida, pelo menos a partir da discussão de Michael Fried (1998) sobre a força insidiosa da teatralidade sobre as formas puras da es- cultura; podemos conceber a coreografia, a documentação ou o ar- quivo como “práticas expandidas”, como as designou Paula Caspão (2016), dinamizando um seminário em Lisboa com o objetivo de ressituar as suas práticas transversais na relação com o capitalismo neoliberal e as economias de conhecimento a ele associadas. Nes- tas práticas, a dramaturgia afigura-se, explícita ou implicitamente, uma ferramenta essencial para circunscrever o lugar de onde se fala e o campo para o qual se fala, na medida em que esta circuns- crição decorre de escolhas estruturais sobre o modo como se atra- vessam diferentes campos, onde se insere o discurso produzido e como estes gestos reconfiguram os campos tradicionais, quer da arte, quer da sua relação com os aspectos sociais e políticos. Como ferraa figura do dramaturgistamenta de produção e aná- lise, a dramaturgia surge em práticas artísticas que, de alguma forma, desviam-se dos materiais, processos e metodologias tradici- onais das disciplinas em que emergem. Os múltiplos e crescentes cruzamentos entre linguagens artísticas, bem como entre técnicas tradicionais e tecnologias inovadoras que caracterizam muitas das experiências contemporâneas, exigem repensar os modos de fazer. Embora as estratégias estéticas da Performance Art venham conta- minando outras artes há mais de uma década, nos nossos dias, a variedade de opções de formatos, processos e cruzamentos é expo- nencialmente maior. Os próprios criadores começam por ter uma formação híbrida, tanto técnica, dentro de uma mesma disciplina, 2O encontro Expanded Choreography: Situations, Movements, Objects foi rea- lizado de 28 a 31 de março de 2012. Disponível em: <macba.cat/en/expanded- -choreography-situations>. o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 30 – 31 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 30� � � � � � � � � � � � � � � � quanto disciplinar, combinando ferramentas de diferentes campos. Neste sentido, podemos acrescentar a Marianne Van Kerkhoven, para quem não só cada processo dramatúrgico é único, posto que depende das pessoas, das condições e dos acasos envolvidos no pro- jeto, mas também que para cada artista/obra existe uma singulari- dade estética decorrente dos processos dramatúrgicos que a define como única, já que as linguagens e formatos artísticos convocados e articulados já partem de uma matriz miscigenada (kerkhoven, 1994b). A dramaturgia tornou-se, portanto, um modo de fazer; um con- ceito e uma prática familiar a diversas áreas artísticas e não artís- ticas. Se familiar é aquilo que conhecemos, fator de conforto e se- gurança fundamental para o domínio de qualquer prática, aquilo que nos é estranho, pelo contrário, é como um grão na experiência, um incômodo capaz de potencializar novos desafios. Ao tornar o mundo mais próximo, a familiaridade também cria hábitos de ação e de relação com ele, visto que ela estrutura, constrói e delimita um território de intimidade apaziguador que se concretiza na repe- tição de gestos, ações e de encontros. Entrar no hábito, porém, im- plica entrar na invisibilidade. A grande intimidade com determina- dos aspectos familiares do mundo e da nossa ação nele apaga os de- talhes da experiência, retirando a possibilidade de ver a coisa como ela é. A “força do hábito”, como a expressão popular tão bem for- mula, opera sem sabermos em consciência se as opções que toma- mos são adequadas ou não, posto que os gestos, as ações e os en- contros se tornam invisíveis, esquecidos e ignorados, abandonados a uma força que repete sem ser questionada. Como lembra Giorgio Agamben no seu ensaio sobre o conceito de Genius, o deus que nos cabe como protetor no dia em que nas- cemos tal como era entendido na Antiguidade romana, o que nos é mais íntimo e pessoal é também aquilo que é mais impessoal: em- bora nos pertença, não o conhecemos. Para ele, viver com a divin- dade que nos guia não é apenas uma crença espiritual como tam- bém uma prática impessoal. Convivemos com o nosso Genius sem LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 31� � � � � � � � � � � � � � � � necessariamente o conhecermos, tal como o nosso corpo funciona do ponto de vista fisiológico independentemente da consciência do Eu. O Genius é o ser que nos é estranho, mas com o qual convi- vemos intimamente; torna-se invisível pelo hábito, embora perma- neça como uma “uma zona de não conhecimento” (agamben, 2007, p. 17). À parte da questão divina, a dramaturgia partilha, com esta ca- racterização do Genius, a noção de uma intimidade com um ser es- tranho, que se constitui fatalmente como uma zona de não conheci- mento – no caso, inerente ao espetáculo ainda por ser criado e que se revela durante o processo. De certa forma, a invisibilidade que identifiquei como constitutiva da dramaturgia e que está patente na escolha do conceito de cumplicidade para distinguir o seu dis- curso no espetáculo possui uma relação íntima com a encenação, posto que prevalece a tradição da autoria consignada ao encenador (ou ao autor), ficando a dramaturgia encrustada na visibilidade das opções tomadas por ele (pais, 2004). Enquanto zona desconhecida e estranha, tal invisibilidade par- ticipa da constituição do espetáculo e revela-se nas escolhas do seu lado visível. Neste sentido, a dramaturgia pode ser familiar, mas ignorada enquanto força autônoma; desconhecida, mas ativa na es- truturação de sentidos; estranha, mas íntima dos processos de cons- trução do enunciado. No entanto, por mais familiar que se torne nos diversos campos onde ocorre e em que vai se reconfigurando, a dramaturgia resiste a tornar-se um hábito que age por si justa- mente porque seu tipo de invisibilidade é estranho e desconhecido. Esse grão do processo criativo potencializa diversificados modos de fazer, outros enunciados artísticos e renovadas cumplicidades. Ao longo da pesquisa para o livro O discurso da cumplicidade. Dramaturgias contemporâneas, de que este artigo constitui um re- sumo, era clara,para mim, a necessidade de um movimento para- doxal: para compreender a especificidade da dramaturgia era pre- ciso considerar o seu amplo espectro de incidência e, assim, descor- tinar as razões da sua disseminação enquanto metáfora e prática. o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 32 – 33 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 32� � � � � � � � � � � � � � � � O elo comum consiste nas operações de escolha e no modo como estas estabelecem conexões significativas e complexas. O discurso da cumplicidade. Dramaturgias contemporâneas toma por objeto a dramaturgia enquanto modo de estruturação do sen- tido no espetáculo. Contemplam-se dois propósitos nucleares: iden- tificar e sistematizar as múltiplas e coexistentes acepções e contex- tos do termo dramaturgia e subsequentes visões do dramaturgista; e analisar o discurso dramatúrgico como modo de dar a ver, cons- tituindo um ponto de cruzamento entre materiais cênicos através da criação de relações de sentidos no tecido da representação. As- sim, num primeiro capítulo, distinguem-se os momentos da evolu- ção do termo dramaturgia nas artes performativas em geral, e no teatro e na dança em particular, que nos parecem pertinentes para a discriminação da variedade dos seus significados e de conotações deles decorrentes (Lessing e Brecht, a Performance, os anos 1960 e 1970 e os paradigmas pós-modernistas da Europa Central). Na segunda parte, foi ensaiada uma proposta teórica da dramaturgia como modo de criar relações de cumplicidade – implícitas, invisí- veis e ilícitas – numa ação comum, passível de contribuir para o entendimento da sua participação fundamental em qualquer espe- táculo. Ela será, pois, equacionada como um discurso da cumplici- dade. Ambicionou-se, ainda, refletir sobre as implicações da metá- fora do teatro e a invasão terminológica da dramaturgia em discur- sos e saberes não artísticos, procurando perceber como ambas –me- táfora e invasão – estão patentes na forma de constituir a realidade “mundo” e na relação que com ele estabelecemos. I. Depois da incontornável contribuição de Brecht para a prática dra- matúrgica, abrindo as portas da sala de ensaio ao dramaturgista e inaugurando o conceito de dramaturgia como “adaptação”, deram- -se outras revoluções que alteraram profundamente os materiais, os processos criativos e o funcionamento das equipes que levam à cena LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 33� � � � � � � � � � � � � � � � um espetáculo. Essas revoluções envolvem o lugar do texto no es- petáculo e as relações de contaminação recíproca entre as diferen- tes artes que acontecem a partir dos anos 1960/1970. Por um lado, é retirada do texto – matriz em potência traduzida para a cena – a centralidade, convertendo-se num material paritário e transformá- vel, tal como todos os outros materiais cênicos. Simultaneamente, o questionamento da figura do encenador enquanto visionário e au- tor maior do espetáculo teve consequências claras tanto na ampli- tude dos processos criativos (criação coletiva, colaborações) como na própria organização interna dos mesmos (distribuição de fun- ções, fixação de escolhas). Por outro lado, o surgimento da Perfor- mance e a interdisciplinaridade que dela emerge também oferecem estimulantes desafios para as artes performativas, particularmente no plano da concepção do que são os materiais cênicos e das suas possibilidades de utilização em cena. A Performance abre um uni- verso de questionamento e reflexividade para as artes de palco que exige um labor dramatúrgico na estruturação dos sentidos do espe- táculo e uma procura de outras lógicas de organização dos materi- ais, deixando as suas marcas bem visíveis na diversidade das práti- cas contemporâneas. A dança, especialmente a contemporânea, sobretudo a partir dos anos 1980/1990, reclamou para o seu espaço de ensaio e sua ex- perimentação a figura do dramaturgista, tirando partido dele como um colaborador ativo na criação, cúmplice direto da construção de novas lógicas e de relações de sentido entre os materiais na cena. Quando existe um dramaturgista envolvido na produção de um es- petáculo, há uma série de expectativas quanto a sua colaboração no processo. Ele desempenha, contudo, um papel ambíguo, porque enquanto elemento participante na concretização do espetáculo, a sua colaboração nunca é fixa e não está incluída no elenco tradici- onal das funções artísticas. Ela pode abarcar múltiplas tarefas, que são estipuladas no início de cada processo criativo e até alteradas no seu decorrer. Tentemos enumerar, de forma inevitavelmente in- o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 34 – 35 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 34� � � � � � � � � � � � � � � � completa, dadas as especificidades de cada processo, suas tarefas e funções na atualidade: 1. trabalho com os materiais: • desenvolver uma análise ou descrição crítica do texto dramático (no caso de se tratar de uma tarefa vinculada ao texto), da temática ou da abordagem a que se propõe o espetáculo; • pesquisar o contexto histórico e cultural do texto, do autor e do tema; • pesquisar temáticas ou tópicos que possam relacionar-se com o es- petáculo e inspirar o processo criativo recorrendo a qualquer tipo de material (literatura, filosofia, cinema, música, imagens, mitos, história, ciência, artes plásticas, artigos de jornais, programas de televisão, novas tecnologias etc.), de modo a ampliar as possibili- dades das escolhas; • fundamentar as opções da encenação ou coreografia, constituindo as relações de sentido entre os materiais cênicos; • assessorar o dramaturgo no processo de escrita ou adaptação (cor- tar, reescrever, determinar uma linha interna de coerência entre as personagens, história etc.), caso haja um; • adaptar e/ou traduzir textos dramáticos, poéticos ou narrativos, concebendo um roteiro do espetáculo; • escrever e editar textos para o programa. 2. ensaios: • tomar notas para debater com o encenador ou coreógrafo; • colaborar com o encenador (ou coreógrafo), confrontando-o com o seu ponto de vista; • colocar de modo sistemático as perguntas (por quê? quando? onde? como?); LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 35� � � � � � � � � � � � � � � � • manter-se alerta, numa atitude de observador/participante que re- corda as motivações do espetáculo, tendo em vista a sua concep- ção global, comentando o desenrolar do processo; • contribuir para a estruturação de sentidos do espetáculo, opi- nando, questionando, refazendo, problematizando as escolhas que envolvem todo o discurso da cena; • servir o processo como uma consciência crítica; • ampliar o universo de materiais e escolhas e, posteriormente, aju- dar a reduzi-las ao essencial; • atender à coerência das relações internas dosmateriais cênicos uti- lizados em função dos objetivos e implicações da concepção geral do espetáculo; • ter presente a ideia da totalidade do espetáculo e dos efeitos que as opções da encenação pressupõem; • observar o processo e gerir o momento e a forma adequados para expressar as suas opiniões; • trazer materiais (imagens, registros de áudio e vídeo, artigos de jornal, entrevistas, filmes, livros e frases) e fazer propostas de idas a lugares, exposições ou espetáculos passíveis de estimular a cria- tividade do encenador (ou coreógrafo) e de toda a equipe; e • considerar a sua função de “olhar exterior” ou de “primeiro espec- tador, mediando a relação entre espetáculo e público. O vasto e diversificado elenco de tarefas pode ser lido tanto como uma consequência da especialização (do fato de cada vez mais es- treitarmos o âmbito da nossa atividade, havendo, portanto, drama- turgistas especializados em determinadas tarefas) quanto como re- sultado da evolução do conceito de dramaturgia e da amplitude de exigências feitas ao dramaturgista contemporâneo. No processo cri- ativo, a sua pertinência consiste numa presença menos retórica e mais orgânica: ele constitui-se como um colaborador,um Outro, o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 36 – 37 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 36� � � � � � � � � � � � � � � � prefigurando uma ontologia da alteridade. Queremos, com isto, di- zer que a imagem que propomos do dramaturgista nas práticas atu- ais assenta-se na sua contribuição enquanto sujeito histórico e cul- tural, indivíduo com saberes e instrumentos próprios e diferentes dos do encenador ou do coreógrafo. Estas diferenças constitutivas não distinguem qualitativamente a posição do dramaturgista da dos seus pares “fazedores” do espetáculo; não tornam a sua contribui- ção superior ou inferior a qualquer outra, técnica ou artística. Não é o valor hierárquico da colaboração que está em causa. Pelo contrá- rio, entendemos que, de representante de uma verdade autoral ou de um conhecimento especializado, o dramaturgista tem passado a ser visto como um colaborador, uma figura de alteridade, convo- cada para o interior do processo criativo, para aí operar em uma re- lação paritária na estruturação de sentidos de um mesmo objeto: o espetáculo. Embora a trave-mestra da lista apresentada seja o teatro, a maior parte das suas tarefas é transversal a outros tipos de formas artísticas, depurando-se num traço comum: todas dizem respeito a operações de escolha, seleção, enquadramento e composição. Cada espetáculo resulta de um conjunto de opções que são feitas em função do material que se seleciona, do enquadramento através do qual se dá a ver esse material (ponto de vista) e da estrutura- ção dos seus sentidos (composição). Aqui, entende-se estruturação como uma tomada de consciência em relação ao modo como se dá a ver o espetáculo determina os seus efeitos perante um público. Ao escolher materiais cênicos e articulá-los na cena, o olhar artís- tico estrutura-os também dramaturgicamente, fundamentando es- sas opções e criando uma lógica e uma coerência próprias a cada espetáculo. Assim, cabe ao dramaturgista-colaborador, por um lado, alimen- tar o processo com materiais e reflexões, ampliando o horizonte da pesquisa e das escolhas, e, por outro, contribuir para, a partir do caos, criar uma nova ordem dos elementos, sintetizando-os e fixando-os de acordo com a intenção global do projeto. Sendo as LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 37� � � � � � � � � � � � � � � � opções da dramaturgia a dupla face – oculta e fundacional – das opções da encenação ou coreografia, poderíamos acrescentar que tanto o dramaturgista como o encenador ou coreógrafo partilham funções basilares: observam, selecionam e estruturam os materi- ais. Neste sentido, ambos podem apresentam semelhanças com o dj nas festas. Aproximando-se das metodologias contemporâneas de composição em dança, esta figuração pós-moderna do criador (autor) foi argutamente equacionada por Helena Katz (1998, p. 22– 23), atribuindo ao coreógrafo as competências do dj, manipulador de si mesmo e das experiências que o rodeiam. As questões relacionadas ao ponto de vista do dramaturgista e da transformação dramatúrgica como um espaço de confronto en- tre diferentes, estimulante e construtivo, afiguram-se fulcrais para a compreensão da evolução do conceito de dramaturgia e das suas acepções. Sobre isso, consideramos exemplar o trabalho desenvol- vido por Marianne Van Kerkhoven, para quem a dramaturgia de dança, no essencial, não difere da dramaturgia do teatro, apesar da natureza e da história do seu material serem distintos (kerkhoven, 1996b, p. 146). Nas décadas de 1980 e 1990, Van Kerkhoven foi dramaturgista residente no Kaaitheater de Bruxelas, onde o seu trabalho se tor- nou famoso pela colaboração com a coreógrafa Anne Teresa De Ke- ersmaeker, instituindo uma das principais fontes de documentação e pensamento sobre a dramaturgia da Europa Central nesta época, a revista Theaterschrift, da qual foi diretora entre os anos de 1992 e 1995. Participando como dramaturgista em produções variadas (também no teatro e em espetáculos em que a palavra detinha uma função central), Van Kerkhoven dispôs de um conjunto de informa- ções privilegiado sobre o qual procurou refletir. Nas suas sistema- tizações sobressaem dois aspectos que nos parecem dominantes na prática dramatúrgica da nossa época: a dramaturgia como o estabe- lecimento de relações entre materiais, que tem como premissa um grau zero de formalização antecipada e de objetivos estabelecidos o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 38 – 39 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 38� � � � � � � � � � � � � � � � antes do processo criativo, e a importância da intuição para o seu trabalho. Uma das características fundamentais do que designamos hoje por ‘Nova Dramaturgia’ é precisamente a escolha de um método de tra- balho orientado para o processo. Por isso, os atores têm frequente- mente uma contribuição significativa através do material que eles dis- ponibilizam durante os ensaios. Este material pode ter a forma de um texto, claro, mas também pode ser imagens, sons, movimentos, etc. (kerkhoven, 1994a, p. 18, tradução nossa). Uma dramaturgia orientada para o processo tal como é apre- sentada por Marianne Van Kerkhoven não tem origem em qual- quer conceito ou elemento definido antes dos ensaios. Ela permite que o significado e a estruturação do espetáculo, temporários na sua natureza pós-moderna, possam emergir durante o seu pro- cesso de construção. Esta prática, que a Performance vem impul- sionar, concentra-se na estruturação de sentido entre os materiais cênicos no desenrolar do processo, por oposição à forte dicotomia forma/conteúdo, típica do teatro político dos anos 1960 e 1970.3 De um modo genérico, Van Kerkhoven entende por materiais todos os elementos passíveis de serem integrados num espetáculo, com linguagens de naturezas diferentes e com expressividades especí- ficas, incluindo aqueles que servem de estímulo aos ensaios (foto- grafias, filmes, objetos, sons, jornais etc.). Esta designação ampla remete-nos à abolição das fronteiras conceituais de forma e con- teúdo decorrentes da performance, pois cada material passa a ser considerado intrinsecamente forma e conteúdo, sendo estruturado e enquadrado numa composição global. Assim, Kerkhoven afirma: “As preocupações principais [da dramaturgia] são: o domínio de 3Note-se também a evolução significativa do conceito de dramaturgia no teatro antropológico de Eugenio Barba, patente nas diferenças entre o seu artigo de 1985, no qual privilegiava a ação e o texto, e o artigo escrito quinze anos mais tarde (2000), em que distingue três faces da dramaturgia (orgânica, narrativa e de estados de mudança) para além do texto ou da história. LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 39� � � � � � � � � � � � � � � � estruturas; atingir uma visão global; ganhar percepção sobre como lidar com materiais, seja qual for a sua origem – visual, musical, textual, fílmica, filosófica, etc…” (1994b, p. 146, tradução nossa). Cada processo criativo é singular e corresponde a uma conjun- tura específica de condições, pessoas e responsabilidades. Cada cria- ção é diferente e as funções dos elementos do grupo estão em aberto, prontas para serem reinventadas. As variáveis existem em maior número do que as condições fixas, na certeza, porém, de que toda a proposta dramatúrgica que privilegie a presença da alteridade tem lugar num espaço de transformação. Esta transformação tam- bém existe, obviamente, quando há acúmulo de funções (encena- dor/dramaturgista/cenógrafo/ator), embora, neste caso, não sendo melhor ou pior, nem mais ou menos interessante, possa ser menos rica porque não está aberta a confrontos, e o ponto de interseção subjetivo não se desloca do centro do sujeito que se enuncia. No nosso entender, o enfoque no processo modifica o estatuto do dramaturgista de especialista a colaborador, participante na cri- ação, funcionando como uma figura de alteridade, um Outro que usa a intuição e o seu repertório de materiais como ferramentas do seu fazer (ibid.).Esta ontologia da alteridade reside no entendi- mento do dramaturgista enquanto figura comprometida com um programa estético, ao lado do encenador ou coreógrafo, cuja con- tribuição deriva da confrontação de pontos de vista e de uma parti- cipação na estruturação do sentido do espetáculo. O dramaturgista é, portanto, um outro elemento participante da construção do espetáculo, a par de todos os outros; simplesmente cabe-lhe uma tarefa tão definida quanto invisível. E se defendemos anteriormente que a participação do dramaturgista releva da aber- tura de um espaço, que a performance consagra à relação com o ou- tro e/ou desconhecido, será o caso de afirmar que o confronto e a transformação de materiais e pontos de vista são diretamente pro- porcionais à abertura que é facultada ao dramaturgista, permitindo a troca e a viabilidade da comunicação. o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 40 – 41 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 40� � � � � � � � � � � � � � � � Parafraseando a entrevista feita com Fransien van der Putt, dra- maturgista de dança e uma das primeiras críticas de dança na Ho- landa, o que pode ser muito estimulante para um coreógrafo fazer pode ser bastante previsível para o dramaturgista ver, sendo que a sua pergunta constante ao espetáculo é sempre a seguinte: “[…] como é que esta composição organiza a minha percepção?” (tra- dução nossa). Para van der Putt, a sua colaboração passa, de uma forma muito consciente, pela sua presença nos ensaios enquanto um Outro que observa com uma visão externa (idêntica ao “olhar exterior”): Eu contribuo sendo uma voz de um Outro mas igualmente por não ter um corpo treinado da mesma forma. Eu não vejo os bailarinos da mesma forma que eles próprios. Os bailarinos veem os outros bailari- nos com o conhecimento e a consciência do treino e da técnica, que o público, ou eu, não temos. Não me refiro a histórias que poderia ver, mas a uma noção quotidiana de equilíbrio e de espaço (putt, tradução nossa).4 A consciência apurada de estarmos perante uma função especí- fica de estruturação de materiais cênicos numa plataforma de cola- boração dentro do coletivo permitiu o nascimento gradual de um dramaturgista participante. Do confronto com a alteridade resulta o fato assinalado por Marianne Van Kerkhoven de que os sentidos e a intuição são instrumentos, por excelência, dessa participação. Ao longo dos textos de Van Kerkhoven, sobretudo na revista Thea- tershrift, podemos encontrar palavras que nos remetem ao territó- rio semântico da sensibilidade e das relações humanas. Esta ênfase salienta um nível de participação singular do dramaturgista, por- quanto ele desenvolve a intuição como “instrumento de trabalho” (kerkhoven, 2000)5, dispondo do sempre necessário repertório de conhecimentos. A intuição constitui um saber indispensável para li- 4Entrevista realizada em Amsterdam em 14 de novembro de 2000. 5Van Kerkhoven em entrevista realizada em Amsterdam em 2 de novembro de 2000. LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 41� � � � � � � � � � � � � � � � dar com a complexidade contemporânea: confiando nela, o drama- turgista resolve quebra-cabeças, organiza o caos numa nova, não obstante temporária, ordem (kerkhoven, 1994b, p. 146). Intuir é igualmente um modo de ver com os olhos do espírito, diriam os Antigos. A dramaturgista holandesa Maaike Bleeker, que atualmente dirige o Departamento de Teatro da Universidade de Utrecht, descreveu justamente o conceito de dramaturgia como um modo de olhar: “A dramaturgia torna-se um modo de olhar. Um modo de olhar que implica uma atenção para as possibilidades de sentido inerentes às ideias e ao material, bem como para as suas implicações, os seus efeitos” (bleeker, 2000, tradução nossa). Esta proposta demonstra uma consciência do trabalho drama- túrgico no âmbito da recepção, produtor de efeitos para um pú- blico, o que nos ajuda na caracterização de uma dramaturgia do olhar pela sua tônica na potencialidade expressiva dos materiais e consequentes implicações da sua estruturação. Para Bleeker, o co- reógrafo ou encenador e o dramaturgista, fazendo parte do mesmo processo, operam sobre omesmomaterial mas olham-no através de um prisma diferente, de olhares diferentes (ibid.). Esta dramaturgia do olhar pode ser tomada também como um modelo de análise dos componentes estruturais e significativos de outras expressões cul- turais, como, por exemplo, museus, instituições ou cidades. Em face da recorrente utilização do conceito e, em medidas variáveis, da prática da dramaturgia em contextos não exclusi- vamente teatrais nem apenas artísticos, tornou-se urgente, du- rante o período de pesquisa, encontrar uma forma abrangente de caracterizá-la com justeza. Inquietava-me a sua transversalidade magnânima, estimulando a compreensão do seu poder escondido e tão frequentemente solicitado. Acompanhando-me desde a gênese deste trabalho, o termo cumplicidade ganhava então uma clareza e pertinência que até o momento da escrita apenas intuía. o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 42 – 43 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 42� � � � � � � � � � � � � � � � ii. Sendo invisível, a dramaturgia só se deixa detectar quando o espe- táculo é representado; ela só é perceptível por meio de uma concre- tização material, visível. Ela é indissociável do espetáculo porque participa de todas as escolhas que o estruturam, mas permanece in- visível; pertence à esfera da concepção do espetáculo, uma espécie de fio que tece ligações de sentido, criando um discurso. Simultane- amente dramatúrgico e performativo, este discurso caracteriza-se por um movimento que envolve a teia latente de sentidos fabrica- dos e entrelaça todos os materiais estéticos. Tal como uma fotogra- fia, o discurso do espetáculo sobrepõe um negativo – a dramatur- gia – e um positivo – a composição estética –, ambos produzidos no processo criativo e revelados no decorrer do espetáculo, que é uno. Por isso, quando tentamos individualizar a dramaturgia num espe- táculo, nomeamos inevitavelmente as opções manifestas da encena- ção, da cenografia, dos figurinos, da interpretação, do movimento, em suma, todas as escolhas reveladoras de relações de sentido pos- síveis e que radicam na sua concepção. Adjetivamos, muitas vezes, essas escolhas com qualidades dramatúrgicas e isso nos mostra, por um lado, a sua onipresença em cada opção, e, por outro, a invisibili- dade dessa presença. A dramaturgia é, em rigor, o outro lado do es- petáculo, o aspecto invisível de toda a extensão do visível, firmando a representação no espaço e no tempo em que ela acontece. A sua dimensão latente é aquela em que participam o olhar artístico, fun- dado dramaturgicamente, e as múltiplas leituras do espectador. Uma teoria da cumplicidade procura dar corpo a um pensa- mento sobre a condição ontológica da dramaturgia no espetáculo: onde, quando e como existe. Propomo-nos analisar o seu modo discursivo, como este se constitui e participa no ato performativo. A apropriação do termo dramaturgia em várias áreas da cultura e do pensamento leva-nos a crer que ele será tudo, menos um ele- mento menor na construção de qualquer discurso. Na sua invisibi- lidade constitutiva reside, a nosso ver, o seu poder. As motivações LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 43� � � � � � � � � � � � � � � � subjacentes ao uso da metáfora do teatro serão pensadas no que diz respeito às qualidades intrínsecas do ato performativo: o gesto e a palavra que se fazem e dizem mutuamente e nos remetem à noção de discurso como formação continuadamente atualizada da subje- tividade, ou seja, como movimento discursivo implicado no espetá- culo/mundo. A relação determinante entre encenação e dramaturgia é uma cumplicidade que converte produtivamente a potencialidade – o caos – em articulações renovadas de sentido, o microcosmos de cada espetáculo. Negociando uma turbulência dionisíaca do questi- onamento com uma ordenação global apolínea,a dramaturgia tem como função a articulação dos materiais do espetáculo. Ela situa-se nas suas margens, delineando a concepção fundamental do mesmo, numa ausência constitutiva. É das margens que ela tece e (in)forma o visível, construindo o modo implícito pelo qual o espetáculo se concretiza em opções e relações várias. É nas periferias da materia- lização do visível, nas zonas de contato e cruzamento entre materi- ais cênicos, que ela opera, transgride e participa no espetáculo. As categorias – visível e invisível – não se opõem, não se ex- cluem mutuamente, mas implicam-se reciprocamente. Compreen- dendo-as num movimento único, como o “avesso” e o “direito”, ou o “côncavo” e o “convexo” (merleau-ponty, 2000, p. 209) de um mesmo objeto ou realidade, poderemos pensar as margens e o cen- tro como uma realidade una para a qual são igualmente importan- tes a transformação dramatúrgica e a composição estética. O cará- ter singular de cada processo artístico confere uma cumplicidade à ligação entre uma e outra, o que permite a reconstrução, o fazer de novo de cada espetáculo. Como se de uma fotografia se tratasse, o negativo que informa e constitui o espetáculo é uma película ex- posta à luz a qual retém as formas visíveis contidas no seu par posi- tivo; a fotografia é una porque a sua totalidade compreende o duplo de si mesma. É chegada, pois, a altura de nos aprofundarmos nas consequências desta proposta, ou seja, a reciprocidade entre ence- o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 44 – 45 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 44� � � � � � � � � � � � � � � � nação e dramaturgia e das suas possíveis ilações: o que há a equa- cionar é a complexidade da relação cúmplice entre uma e outra. Os conteúdos lexicais das palavras são mais abrangentes do que o campo semântico específico em que ocorrem, que é sempre con- textualizado. Ao extrairmos um termo do seu contexto para apro- fundar as suas mais densas camadas lexicais e assim o compreen- dermos com maior acuidade, devemos agir com rigor e delicadeza, com uma certa “cortesia lexical” (steiner, 1993, p. 143-144). Ao aco- lhermos os “segredos etimológicos” da palavra cumplicidade logo nos surpreendem três significados, nem sempre explícitos no seu uso cotidiano: cumplicidade significa “implícito”, “pacto criminoso” e “ação comum”. De origem latina, ela é composta pela preposição cum (união, reciprocidade) e pela forma verbal plicare (dobrar, enro- lar), significando a “ação conjunta de dobrar”, o que a aproxima pe- rigosamente de termos vizinhos como “complicado” ou “complexo”. De fato, a raiz é a mesma e em todos os significados permanece a ideia de tortuosidade, de dificuldade. Esta dificuldade prende-se à própria ação que as predica: dobrar ou enrolar é moldar o espaço que determinado objeto ocupa (como um tecido ou uma peça de roupa), tornando-o, para além disso, apenas parcialmente visível. Ora, o domínio em que penetramos é de um complicado mundo de dobras, pregas, novelos; um universo cuja totalidade não é percep- tível a olho nu. Também verdade, todavia, que a partir do mesmo verbo latino se compõem os verbos explicar (ex plicare) e implicar (in plicare), e consequentemente os adjetivos explícito e implícito. Ou seja, a ação de dobrar tanto pode ser efetuada para dentro como para fora do objeto em questão, pode ser desenrolar ou enrolar; as dobras tanto podem deslindar e esclarecer como enredar e embru- lhar; as pregas tanto podem abrir e tornar algo visível como po- dem fechar-se e torná-lo invisível. E é justamente na invisibilidade de um mundo de dobras e pregas que a cumplicidade dramatúrgica participa no espetáculo. Articulando materiais e estruturando o sentido do espetáculo, a dramaturgia estabelece cumplicidades entre o visível e o invisível, LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 45� � � � � � � � � � � � � � � � entre a concepção e a concretização do espetáculo, fazendo do pú- blico seu cúmplice no discurso. Neste sentido, uma definição possí- vel e abrangente do discurso específico da dramaturgia será dizer que ela consiste em criar relações de cumplicidade. O implícito, o crime e a ação comum são características que se ajustam, de forma lapidar, à prática e ao discurso dramatúrgico: a dramaturgia está im- plícita em todas as escolhas do espetáculo, possui a qualidade cri- minosa de transgredir as leis do visível (o centro) através de reno- vadas articulações de sentido (periféricas) e participa, na ação co- mum que constitui, o processo criativo e o discurso dos variados materiais cênicos. A dramaturgia cria relações de cumplicidade. O implícito é uma das qualidades que a caracteriza. Essas relações encerram enigmas complexos, visto que transportam em si o paradoxo de estrutura- rem possibilidades de sentido invisíveis num espetáculo materiali- zado no visível, habitando-o. Sendo invisível, mas constituindo-se como um modo de dar a ver, a dramaturgia ocupa um lugar espe- cialmente ambíguo, quer nas suas práticas, quer na sua participa- ção em qualquer espetáculo. O conceito de cumplicidade possibilita, em nosso entender, equacionar um plano ontológico do discurso da dramaturgia baseado na forma implícita de como as relações de sentido estão patentes no espetáculo, sem com isso perverter a sua condição invisível. Uma relação define-se por uma ligação entre dois ou mais ele- mentos num determinado período de tempo ou espaço. No contexto das artes performativas, as relações entre os materiais podem ser de ordens variadas, mas estabelecem-se, inevitavelmente, no tempo do discurso. Assim, também as relações dramatúrgicas de sentido de um espetáculo existem no seu tempo de duração, instalando- -se nas dobras do visível, dando-se a ver num determinado lugar. O tempo afigura-se, pois, uma categoria-chave para o entendimento da cumplicidade enquanto conjunto de relações invisíveis, partici- pante no período de duração do discurso performativo: é na tem- poralidade das relações invisíveis estabelecidas entre os materiais o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 46 – 47 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 46� � � � � � � � � � � � � � � � que a dramaturgia permeia o espetáculo e atravessa o espaço vi- sível, constituindo-o. O discurso performativo é um ato no espaço (no visível) e no tempo (no invisível). Como tal, é no cruzamento de ambos os eixos que o espetáculo ganha terreno ontológico: existe dizendo-se e fazendo-se. Assim como no ato de dobrar uma peça de roupa, no qual con- centramos o seu espaço nas pregas com que a moldamos, o espetá- culo apresenta dobras, zonas que, não se vendo, não deixam de o constituir, de ser parte integrante dele. Tornamos parcialmente vi- sível a roupa sem anular o seu conjunto – não vemos as mangas do suéter arrumado, mas sabemos que elas fazem parte da sua cons- tituição –; implicamos nessa operação tátil a capacidade de com- plexificar a existência do objeto, confrontando a percepção visual com a experiência do invisível. Esta complexidade do objeto não faz depender a sua existência da visão – o suéter existe com man- gas dobradas, invisíveis ao olhar. Com um espetáculo passa-se exa- tamente o mesmo, não obstante os seus contornos conceituais mais imbricados. O espetáculo tem uma existência dupla: um tecido vi- sível, constituído e fundamentado por pregas invisíveis. As opções que materializam o espetáculo no plano do visível são dobradas por relações invisíveis que as integram. Dobrando para dentro, complexificando e estruturando o espe- táculo, a dramaturgia implica dimensões possíveis de sentido, en- tretece as pregas do invisível no visível. Nesse trabalho microscó- pico de criar relações de cumplicidade, a dramaturgia, velha tecelã, delimita um território de participação no espetáculo. É próprio da configuração do espetáculo a existência de dobras invisíveis, de sen- tidos implicados e decorrentes da articulação de materiais cênicos (corpo, luz, som, palavra etc.). As dobras fazem parte da suareali- dade total, por isso têm uma existência autônoma, mas indissociá- vel do espetáculo. Ao estruturar a composição dos elementos cênicos, a dramatur- gia seleciona determinados sons, cores e movimentos que se relaci- onam e se afetam entre si: um corpo de mulher vestido de verme- LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 47� � � � � � � � � � � � � � � � lho lendo passagens de Madame Bovary, de Flaubert, oferece um quadro dramatúrgico de potências de sentido, diferentemente da re- petição incessante de uma frase do mesmo livro proferida por um corpo negro de homem. Destas escolhas advém a cumplicidade que a dramaturgia estabelece no seu discurso, ou seja, de forma implí- cita os materiais relacionam-se, pregueiam implicações que cabem ao espectador desvelar e à dramaturgia fundamentar. No tempo, simultaneamente movimento e mudança, a drama- turgia gera sentidos no espetáculo. Ela existe na medida em que participa dele como concepção invisível – a lógica que subjaz a to- das as escolhas –, fazendo parte, assim, da representação. Também o espetáculo não se restringe, ontologicamente, ao visível: é um dis- curso da presença e do estar no espaço e no tempo mais complexo do que a mera relação entre quem vê e o que é visto. Desta forma, a especificidade das artes performativas possui uma condição efê- mera, vinculada, portanto, à passagem ou à extinção do tempo, e, com maior razão, a criação de relações de cumplicidade ativa-se, estrategicamente, no tempo em que o espetáculo existe, ou melhor, em pleno cruzamento do tempo e do espaço. Entendemos a invisibilidade da dramaturgia como instrumento de renovação de cada criação, sediada nas margens do visível, que ocupa o centro do discurso performativo. O visível é a lei cuja or- dem definidora e legitimadora do espetáculo como aquilo que se vê a dramaturgia desafia. No teatro, a reescrita dos clássicos – encena- ções que reveem o texto, evidenciando nele uma perspectiva dife- rente – é talvez o exemplo mais declarado de ações criminosas, pois refletem leituras feitas a partir da periferia do texto canônico. À luz dos paradigmas sociológicos e jurídicos, a dramaturgia funcionaria como um espaço de resistência, de fronteira, onde se cruzariam as variadas linguagens e materiais potenciadores de relações de sen- tido. Experiências contemporâneas, por exemplo, de intercultura- lismo, hibridismo, espetáculos multimídia ou virtuais constituem- -se numa linha inconformista própria da sua dramaturgia. Portanto, conceitos fundamentais para a viabilização do discurso da cumpli- o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 48 – 49 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 48� � � � � � � � � � � � � � � � cidade, transgressão e periferia merecem uma reflexão mais apro- fundada. A invisibilidade tem um papel fundamental na constituição do discurso do espetáculo. Na tradição filosófica e teatral do Ocidente, o teatro (do grego theatron, lugar onde se vê) define-se em termos de visibilidade e de espacialidade: o que se vê, quem vê, onde se vê. Ver e ser visto, no lugar específico do teatro (e, por extensão, das ar- tes de palco), são condições que conferem uma existência ao espe- táculo. Associado à ordem, à vigilância e ao poder, e sendo objeto privilegiado da desconstrução pós-estruturalista, o visível constitui a lei de base segundo a qual a composição estética do espetáculo é concebida, isto é, para ser visto por um público no espaço do teatro. Contudo, a afirmação da prática dramatúrgica na criação contem- porânea das artes performativas compele-nos a repensar a centra- lidade tradicional da visão destas artes na atualidade e o papel do invisível na criação e sustentação do espetáculo. Infringindo a lei do visível, que subjaz à concepção tradicional do teatro, a dramaturgia é uma possível cúmplice da subversivi- dade característica da arte, na medida em que reside numa zona de fronteira, deslocando-se nas margens do visível e consumindo- -se no plano temporal do espetáculo. Ela recria as formas do visível; é um modo de fazer mundos e, consequentemente, de fazer as leis que regem esses mundos (goodman, 1995). Daí que tenhamos afir- mado, relativamente às práticas dramatúrgicas pós-modernistas, a sua função de articulação de sentidos do espetáculo como ummodo de dar a ver, que tornam visíveis mundos outros por uma acção pe- riférica e ambígua. Como veremos, não só no visível se consuma o espetáculo, mas também no tempo durante o qual as relações de cumplicidade existem. No paradigma tradicional, a visibilidade funciona como um dis- curso de poder, posto que circunscreve e atesta a existência do real (é visto, logo, existe) e da subjetividade (o eu vê e é visto, logo, existe). Assim, o que é visto pode ser conhecido, circunscrito e cartografado, enquanto aquilo que não se apreende pela visão per- LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 49� � � � � � � � � � � � � � � � manece nas zonas insondáveis do desconhecido, não existente. Do mesmo modo, no teatro, o que é visto no lugar do teatro existe, é real, embora seja um mundo ficcional. Compreende-se, por isso, que a dramaturgia não seja facilmente reconhecida como um componente passível de ser identificado no espetáculo, pois, sendo invisível, não encontra neste paradigma da visão um espaço de existência autônomo. Sugerimos, porém, uma existência autônoma da dramaturgia em qualquer espetáculo. A possibilidade da sua realidade releva, no nosso entender, da fun- ção de “contrapoder”, periférico e clandestino, através do qual a dra- maturgia constitui e participa no visível do espetáculo. Se ela con- siste em criar relações de cumplicidade que se estabelecem numa zona periférica do visível, como uma linha que contorna e deli- mita a sua forma e existência, essas relações decorrem concomitan- temente num plano temporal – no decorrer do espetáculo. Assim sendo, a dramaturgia é, simultaneamente, invisível e efêmera, e é nessa qualidade – clandestina, para o paradigma da visão – que ela está presente no espetáculo. Peggy Phelan aborda criticamente o poder do visível, explo- rando a condição da ausência na performance (entendida num sen- tido lato) e reivindicando o poder do invisível (bem como do silên- cio e do não-reproduzível) na construção do visível. O poder do in- visível configura-se, para Phelan, no conceito de unmarked, numa subjetividade que informa, constitui e ultrapassa as representações visíveis. A ensaísta inscreve o visível no plano da lei e da vigilância, defendendo a performance enquanto a arte da desaparição, isto é, constrói uma subjetividade que se desvanece no momento em que se concretiza, resistindo ao visível enquanto único poder de criar realidades e de as reproduzir (phelan, 1993, p. 6). Assentado na efe- meridade intrínseca do ato performativo – depois da representa- ção, o que resta são as críticas, o texto, ou, mais recentemente, o re- gisto em vídeo, documentos de natureza diferente do espetáculo –, este paradigma ontológico da performance convoca a invisibilidade como uma característica potencialmente transgressora, que “cons- o crime compen- sa ou o poder da dra- matur- gia –––––– AnA PAis – 50 – 51 LIVRO 16 de dezembro de 2016 22:36 Page 50� � � � � � � � � � � � � � � � titui e define” o que é visível (ibid. p. 14). Depois de Phelan, é difícil sustentar o visível como elemento único e totalizante na constru- ção da representação sem considerar o valor e a participação do in- visível enquanto realidade integrante da efemeridade, traço ontoló- gico do espetáculo ao vivo. A dramaturgia consubstancia uma transgressão inconformista, embora complementar, na periferia do visível, pelo que a lei deste último é infringida na medida em que é através da invisibilidade da dramaturgia que o espetáculo é constituído. Das margens do vi- sível, das suas dobras implícitas, surgem relações de sentido que se desenrolam, indeléveis, no tempo do espetáculo. Em outras pa- lavras, a dramaturgia transgride a ordem do visível porque o
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