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Juliana Mesquita Hidalgo Ferreira
André Ferrer P. Martins
História e Filosofi a da Ciência
A ciência em oposição
ao “senso comum”
Autores
aula
13
D I S C I P L I N A
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sem a autorização expressa da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN)
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Secretaria de Educação a Distância (SEDIS)
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência
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Apresentação
Oferecemos, nas últimas aulas, diversos olhares acerca da produção e do desenvolvimento do conhecimento científi co. De uma perspectiva rígida, calcada na ideia do “método científi co”, chegamos ao anarquismo epistemológico de Feyerabend que propõe uma 
metodologia pluralista. Nesse caminhar, apresentamos o verifi cacionismo popperiano, as 
revoluções científi cas de Kuhn e os programas de pesquisa de Lakatos.
Nesta última aula do curso, abordaremos alguns aspectos do pensamento de Gaston 
Bachelard que trazem novos elementos a esse debate. Além disso, teremos oportunidade de 
retomar certas questões relativas ao potencial pedagógico da História e da Filosofi a da Ciência.
Objetivos
Apresentar as principais características do pensamento de Gaston 
Bachelard.
Abordar conceitos centrais da proposta bachelardiana, tais como: 
obstáculo epistemológico e perfi l epistemológico.
Reconhecer a possibilidade de uma “leitura bachelardiana” de 
episódios da História da Ciência.
Retomar e problematizar questões próprias do campo da Filosofi a 
da Ciência.
Oferecer elementos para uma análise crítica do potencial pedagógico 
da História e da Filosofi a da Ciência.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência2
A epistemologia
de Gaston Bachelard
Cronologicamente, faremos agora um movimento inverso em relação à sequência das aulas anteriores. Afi nal, Gaston Bachelard (1884-1962) foi um fi lósofo francês que produziu suas principais obras sobre a ciência nas décadas de trinta e quarenta do 
século passado, portanto, antes de Kuhn, Lakatos e Feyerabend. Apesar disso, seu pensamento 
é extremamente atual, razão pela qual o deixamos para esse último momento do curso.
Bachelard atuou, durante cerca de 16 anos, como professor de diversas disciplinas 
(como física, química e fi losofi a) no – equivalente ao nosso – nível médio de ensino, em sua 
cidade natal no interior da França. Torna-se professor universitário tardiamente, primeiro em 
Dijon e, depois, na Sorbonne de Paris. Sua intensa produção intelectual pode ser dividida em 
duas grandes vertentes: a epistemológica, preocupada fundamentalmente com a análise da 
constituição e evolução da razão científi ca, e a poética, voltada à exploração do imaginário e 
à criação artística e literária. A primeira vertente fi cou conhecida como a do “homem diurno”, 
enquanto a segunda, como a do “homem noturno”.
Epistemologia
Novamente, utilizaremos 
o termo ‘epistemologia’ 
como sinônimo de 
“teoria do conhecimento 
científi co”.
Bachelard
Esta apresentação do 
pensamento desse autor 
encontra-se presente, em 
grande parte, em Martins 
(2004). As principais obras 
de Bachelard citadas no 
texto são: A Epistemologia 
(Bachelard, 1981); O 
Novo Espírito Científi co 
(Bachelard, 1985); A 
Filosofi a do 
Não (Bachelard, 
1991); e A Formação 
do Espírito Científi co 
(Bachelard, 1996).
Figura 1 – Gaston Bachelard (1884-1962)
A epistemologia de Bachelard pode ser caracterizada, num primeiro momento, como 
histórica, racionalista e descontinuísta.
Histórica porque não abdica do uso da História da Ciência em sua fundamentação. Mais do 
que isso, aprende com o material histórico, buscando nele elementos que ilustram, justifi cam e 
alicerçam as principais teses dessa epistemologia. Mas não é ainda de qualquer história da ciência 
de que se trata. Bachelard a denomina história recorrente, uma história “que se esclarece pela 
fi nalidade do presente, uma história que parte das certezas do presente e descobre, no passado, 
as formações progressivas da verdade” (BACHELARD, 1981, p. 207). Histórica também porque 
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência 3
concebe a verdade de hoje como uma retifi cação histórica de um erro de ontem. À medida que 
o conhecimento científi co evolui, progride, pensamentos são retifi cados.
Racionalista porque se opõe a epistemologias do tipo empirista, que colocam a origem 
de todo o conhecimento (do menos ao mais evoluído) no objeto sensível, ou mesmo na 
experiência primeira. Bachelard coloca-se contra a “ideologia do dado”, contra a ideia de 
que a simples observação dos “fatos” leva ao conhecimento, sendo esse fundado, portanto, 
na experiência. Não que ele se encontre no extremo oposto e suponha que o conhecimento 
nasça da razão, numa postura fi losófi ca mais próxima ao idealismo. Para ele, a prova científi ca 
afi rma-se na experiência e no raciocínio, no contato com a realidade e numa referência à razão. 
Seu posicionamento é mesmo num ponto intermediário entre o racionalismo e o empirismo, 
embora mais próximo do primeiro.
Segundo Bachelard, a nova ciência (principalmente a física da virada do século XX, 
que o impressionou bastante) caracteriza-se pela “realização do racional” (ou “realização do 
matemático”): o pensamento científi co é “realizante”. Isso porque a experiência científi ca 
moderna é um momento da construção teórica, uma “razão confi rmada”. O pensamento faz 
realizar o fenômeno, que é construído antes de ser dado. É nesses termos que Bachelard 
defende um racionalismo aplicado, que deve tirar lições da experiência objetiva ao mesmo 
tempo em que a dirige. Há sentido, por exemplo, em se criar um acelerador de partículas se 
não acreditarmos na existência de átomos?
Por último – mas não menos importante – a epistemologia bachelardiana é marcada 
pela perspectiva descontinuísta. Vejamos de que modo isso se evidencia, ao analisarmos um 
importante conceito da obra de Bachelard: o de obstáculo epistemológico.
A noção de obstáculo epistemológico
Ao analisar o progresso da ciência (cuja existência não põe em dúvida), Bachelard conclui 
que é em termos de obstáculos que devemos colocar o problema do conhecimento científi co. 
Não se trata, porém, de priorizar difi culdades devidas à complexidade dos fenômenos, como 
poderia parecer à primeira vista. Esses obstáculos surgem inevitavelmente na relação dos 
sujeitos com os objetos do conhecimento, aparecem no “âmago do próprio ato de conhecer” 
– são obstáculos epistemológicos. Embora inerentes ao ato de conhecer, é a sua superação 
que permite o avanço do conhecimento,tanto no nível do sujeito individual como no nível do 
sujeito coletivo da ciência.
Hoje, os objetos da ciência já não são dados, são construídos. Diferem dos objetos 
comuns na medida em que são fruto de uma refl exão teórica. São objetos teóricos, distanciam-
se do real imediato, que é vinculado a uma experiência primeira. Resultam de um trabalho de 
produção teórica e organização de ideias que se encontra além da pura e simples “observação 
neutra e direta do real”. Esta, cara aos empiristas, já não pode ser a base epistemológica dos 
objetos da ciência moderna, construídos pela razão, produtos da mente humana. É mesmo no 
sentido de um pensamento segundo, de uma reapresentação à consciência, que poderíamos 
caracterizá-los como representações do real.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência4
No entanto, o sujeito, no contato com o real imediato, tende a acumular valores, sensações, 
“hábitos”, que difi cultam a abstração e a construção dos objetos teóricos da ciência. Em sua 
obra A Formação do Espírito Científi co, Bachelard busca analisar exaustivamente a natureza 
desses obstáculos epistemológicos, tomando exemplos principalmente da História da Ciência 
do século XVIII. Listaremos abaixo, brevemente, alguns dos obstáculos elencados por ele, 
procurando clarear o signifi cado e a amplitude desse importante conceito.
Um primeiro obstáculo seria a observação primeira, imediata, que tenciona compreender 
o real a partir de um “dado” claro e nítido. Trata-se de um “empirismo fácil”, que coloca os 
“fatos” antes das “razões”, que não refl ete para experimentar. Bachelard aponta o perigo do 
deslumbramento, da satisfação do espírito com as “experiências coloridas” que, pretensamente, 
proporcionariam um empirismo evidente e básico. Entre outros exemplos, cita aqui as 
experiências da ciência da eletricidade do século XVIII, cheias de falsos centros de interesse 
e imagens pitorescas, que imobilizam a razão. O espírito pré-científi co, tal como o denomina 
Bachelard, contenta-se com essa ciência de primeira aproximação, em que não é preciso 
compreender: basta ver. Pelo contrário, o espírito científi co deve-se formar contra a natureza, 
oferecendo-lhe resistência. Há muito de concreto e subjetivo nas experiências primeiras. Por 
isso, diz Bachelard, “não é pois de admirar que o primeiro conhecimento objetivo seja um 
primeiro erro” (BACHELARD, 1996, p. 68).
Um segundo obstáculo epistemológico seria o conhecimento geral, em que a 
generalização é capaz de imobilizar o pensamento. Por trás de uma lei ou conceito geral, o 
espírito pré-científi co pretende, muitas vezes, explicar tudo, acabando por não explicar nada. 
Bachelard cita como exemplo os conceitos de coagulação e fermentação, estendidos a domínios 
tão diversos, de modo que a simples palavra parece conter todo o princípio explicativo. Já o 
pensamento científi co moderno caracteriza-se por limitar os conceitos e suas condições de 
aplicação, fazendo corresponder a um conceito o seu anticonceito (o que “não-fermenta”...). 
“O conhecimento geral é quase fatalmente conhecimento vago” (BACHELARD, 1996, p. 90).
Em estreita ligação com o anterior há o obstáculo verbal, em que uma única imagem 
pode constituir toda a explicação. Bachelard cita o caso da esponja, e como ela pôde 
tornar-se uma verdadeira “categoria empírica”, capaz de servir de metáfora aos fenômenos 
mais heterogêneos. Nesse caso, a própria palavra parece carregar a função, levando o espírito a 
aceitar imagens fáceis, a reconhecer metáforas como realidades. Bachelard afi rma que também 
a alavanca, o espelho, a bomba, a peneira, seriam exemplos desse tipo de obstáculo, que leva 
a “físicas específi cas, generalizadas apressadamente” (BACHELARD, 1996, p. 99).
Outro importante obstáculo epistemológico analisado por Bachelard é o obstáculo 
substancialista, que se apresenta de diversas maneiras. Por um lado, são atribuídas a uma 
mesma substância qualidades diversas e até opostas, povoando-a de forças, poderes etc. Há 
um acúmulo de adjetivos para um mesmo substantivo, quando o progresso científi co dá-se no 
sentido inverso, de uma redução desse número. Por outro lado, e de forma complementar, nota-se 
a presença do obstáculo substancialista quando o espírito pré-científi co faz corresponder 
a toda qualidade, uma substância, ou seja, propriedades são “substantivadas”, pensam-se 
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência 5
substâncias para realizar contradições que vêm da experiência. Já para a ciência moderna a 
substância é uma “concretização de ideias teóricas abstratas” (BACHELARD, 1996, p.143).
Há também o obstáculo animista, que resulta da aplicação da “intuição da vida” aos 
mais variados fenômenos. Bachelard chega a falar de um “fetichismo da vida”, que carrega 
uma marca e um valor muito intensos. O espírito pré-científi co associou a vida aos fenômenos 
elétricos, aos minerais. Para o pensamento que busca o concreto e não a abstração, “vida” é 
uma palavra mágica e imediatamente valorizada. Dessa forma, persistem fantasias animistas, 
inclusive devido ao caráter afetivo e duradouro que tem a intuição da vida. Para Bachelard, a 
“imagem animista é mais natural; logo, mais convincente” (BACHELARD, 1996, p. 202).
Embora haja outros obstáculos analisados em A Formação do Espírito Científi co, os 
listados acima são sufi cientes para que se tenha uma ideia do signifi cado dado por Bachelard 
a essa noção. Os obstáculos epistemológicos não são apenas característicos da pré-ciência, 
mas “aderem aos conceitos” e perturbam mesmo o “novo espírito científi co”. São difíceis de 
serem desalojados e carregam valores afetivos que difi cultam a objetivação.
Um importante ponto a ressaltar é que tais obstáculos não estão presentes apenas no 
desenvolvimento histórico da ciência, podendo ser encontrados na análise de seu progresso. 
Bachelard é explícito ao dizer que essa noção pode ser estudada na prática cotidiana da 
educação, uma vez que os alunos chegam à escola com conhecimentos já constituídos. Por isso 
Bachelard defende que se estude a “psicologia do erro”, e que se compreenda a necessidade 
de uma verdadeira “catarse intelectual e afetiva”, para o aprendizado da ciência. Há que se 
vencer, um a um, os obstáculos epistemológicos que a vida cotidiana foi edifi cando, bem como 
os novos obstáculos que o próprio aprendizado da ciência vai forjando.
Trata-se, então, de um processo marcado por rupturas: a ciência opõe-se ao senso 
comum, à opinião. O conhecimento que se pretende objetivo deve também opor-se ao 
conhecimento sensível que carrega todo tipo de impurezas e valores, não corrigidos ainda pelas 
“repreensões do objeto”. O caminho dessa objetivação não é evitar sistematicamente o erro: 
é, antes, a consciência do erro. Sob esse ângulo, o erro adquire uma conotação positiva, útil. 
Ele não é um “acidente de percurso” ou uma prova de limitação, mas uma etapa a atravessar, 
um “elemento motor do conhecimento”. Esse é um ponto fundamental, pois, ao afi rmar a 
inevitabilidade dos erros, vinculando-os ao próprio ato de conhecer, Bachelard dialetiza a 
noção de erro, que passa a ter um duplo aspecto: negativo enquanto refl exo de um obstáculo 
a superar; positivo na medida em que, “psicanalisado”, torna-se quase que um pré-requisito 
à aquisição de novos conhecimentos (mais elaborados).
Esse é o teor da “psicanálise do conhecimento objetivo” que Bachelard propõe. Ela faz 
surgir o espírito científi co como um “conjunto de erros retifi cados”. O conhecimento científi co 
aproximar-se-ia cada vez mais da verdade – mas nunca a alcançando – corrigindo e retifi cando 
erros (dialética erro-verdade), num processo de natureza descontínua.
Por último, caberia dizer que o esforço de dessubjetivação do cientista, em direção à 
objetivação, tem por base o controle social (da “cidade científi ca”). Somente numa ciência 
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência
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a 1.2.
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socializada é possível realizar a psicanálise do conhecimento, dispor a série de erros. É também 
essa ciência socializada que permite padronizar os instrumentos de medida, e quantifi car. Sob 
o olhar do “outro” é que se funda a objetividade, para Bachelard.
Procure estabelecer uma semelhança e uma diferença entre a fi losofi a 
de Bachelard e as fi losofi as de Popper, Kuhn, Lakatos ou Feyerabend.
Escolha um dos tipos de obstáculos epistemológicos trabalhados 
por Bachelard e apresentados na seção acima. Forneça, a seguir, um 
exemplo de um contexto da história da física em que esse tipo de 
obstáculo, em sua opinião, esteve presente.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência 7
A noção de perfi l epistemológico
Bachelard vai além da constatação da existência de obstáculos na evolução do 
conhecimento individual e científi co, ou seja, do sujeito individual e do sujeito coletivo da 
ciência. Tendo sempre como referência as profundas transformações sofridas pela ciência no 
início do século XX, com a teoria da relatividade e a mecânica quântica, ele tenta estabelecer 
as bases fi losófi cas desse novo espírito científi co. Em sua obra A Filosofi a do Não, Bachelard 
considera o conhecimento como uma evolução do espírito.
Resgatando a noção de obstáculos, afi rma que o espírito científi co só pode constituir-se 
destruindo o espírito não científi co, os erros, valores e preconceitos acumulados. Tarefa 
que não é fácil, porque “a ignorância é um tecido de erros positivos, tenazes, solidários” 
(BACHELARD, 1991, p. 11). Os erros se reforçam, fazendo com que as “trevas espirituais” 
tenham uma estrutura:
Espírito
É importante frisar que 
a palavra ‘espírito’, no 
contexto da epistemologia 
bachelardiana, não 
apresenta qualquer 
conotação mística 
ou religiosa.
Figura 2 – Os erros são solidários...
O espírito que evolui deve romper com essa estrutura, superar obstáculos. E é esse 
movimento que Bachelard procurará analisar a partir de um pluralismo fi losófi co.
Reclama então aos fi lósofos a liberdade de tomar emprestado elementos fi losófi cos 
desligados dos sistemas mais gerais nos quais eles nasceram. A fi losofi a capaz de dar conta 
do desenvolvimento científi co passa a ser uma “fi losofi a dispersa”, plural. Utilizando esses 
elementos, Bachelard procura “estruturar” o progresso epistemológico da ciência, defendendo 
que existam certas fases que se sucedem ao longo da evolução fi losófi ca de um conhecimento 
científi co particular. Essas fases iriam do animismo (ou realismo ingênuo) ao surracionalismo, 
passando pelo empirismo e pelo racionalismo tradicional. O surracionalismo englobaria o que 
Bachelard chama de racionalismo complexo e de racionalismo dialético.
Como exemplo de atuação dessa filosofia dispersa na explicação do progresso 
epistemológico, Bachelard apresenta o conceito de massa. Em sua forma animista (ou 
realista ingênua), a massa aparece como “uma apreciação quantitativa grosseira” da realidade, 
relacionada essencialmente às “coisas grandes”. Encaixam-se aqui visões de senso comum que 
atribuem maior massa a um objeto maior, ou que somente a consideram como uma quantidade 
quando sufi cientemente grande.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência8
Num segundo nível, encontraríamos uma noção empirista de massa, vinculada a uma 
pretensa determinação objetiva e precisa. Bachelard refere-se a uma “conduta da balança”, 
que escamoteia uma complicação teórica por trás de um instrumento aparentemente simples, 
criando um pragmatismo seguro. “Pesar é pensar. Pensar é pesar” (BACHELARD, 1991, p. 26).
Inserindo o conceito de massa num “corpo de noções”, a mecânica newtoniana inaugura, 
na visão de Bachelard, o conceito racionalista de massa. Este já não representa uma experiência 
imediata e direta, mas defi ne-se com referência a outras noções (força e aceleração), sendo uma 
espécie de “coefi ciente de devir”. É, enquanto relação. O caráter simbólico da noção de massa 
irá intensifi car-se com a mecânica racional (articulação matemática da mecânica newtoniana), 
passando a ser um “instante da construção racional”.
Com a teoria da relatividade, vemos a noção absoluta de massa sofrer uma abertura. Deixa 
de ser um conceito relacionado a outros para tornar-se um conceito complexo em si, múltiplo. 
A massa é agora função da velocidade. Não é mais heterogênea à energia. O racionalismo 
complexo surge da multiplicação, segmentação e pluralização do racionalismo tradicional. A 
abertura dá-se no “interior da noção”.
Por último, Bachelard apresenta o conceito de massa presente na mecânica de Dirac 
como um exemplo do racionalismo dialético. A ideia de “massa negativa” sugere uma ruptura 
com o pensamento racionalista anterior e suscita uma “dialética externa”, que não poderia 
ser encontrada refl etindo-se sobre as noções anteriores de massa. Temos agora um conceito 
novo, que surge desvinculado da realidade comum, mas que a matemática procurará “realizar”.
Cada doutrina fi losófi ca (do realismo ao surracionalismo) esclarece apenas uma face do 
conceito. Bachelard propõe que essas doutrinas sejam hierarquizadas, e que a evolução de 
um determinado conceito científi co, entendida como um processo que atravessa essas fases, 
represente um progresso fi losófi co desse conceito. A evolução fi losófi ca do conhecimento 
dá-se no sentido de uma maior coerência racional.
Entretanto, nem todo conceito particular, nem toda área do conhecimento, encontram-
se no mesmo estágio com relação à hierarquia de doutrinas fi losófi cas. Mais do que isso, os 
próprios pensamentos dos indivíduos teriam coefi cientes de realismo ou de racionalismo 
diversos, não havendo sentido em os classifi carmos simplesmente sob os rótulos de “realistas” 
ou “racionalistas”.
É dentro desse pluralismo fi losófi co hierarquizado que Bachelard funda o conceito 
de perfi l epistemológico, segundo o qual as diversas doutrinas fi losófi cas encontram, no 
indivíduo, certo “peso relativo”, certa “intensidade de presença”. “Seria através de um tal 
perfi l mental que poderia medir-se a ação psicológica efetiva das diversas fi losofi as na obra 
do conhecimento” (BACHELARD, 1991, p. 40).
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência
Realismo
ingênuo
Racionalismo
dialético
Empirismo
claro e
positivista
Racionalismo
complexo
(relatividade)
Racionalismo
clássico da
mecânica
racional
surracionalismo
9
Figura 3 – Perfi l epistemológico da noção de massa em Bachelard
É enfatizado por Bachelard o fato de o perfi l ser algo válido para certo espírito em particular, 
com relação a um conceito designado, num certo estágio de sua cultura. Dessa forma, diferentes 
indivíduos apresentarão diferentes perfi s conforme as noções em causa, havendo ainda uma 
alteração progressiva desses perfi s em função do tempo (história individual). E, num mesmo 
indivíduo, num dado momento, noções diferentes apresentarão perfi s diferentes.
Outro ponto importante no entendimento da noção de perfi l é a percepção de que há 
uma permanência das ideias fi losófi cas no desenvolvimento intelectual de cada indivíduo, ou 
seja, a superação de obstáculos e a construção progressiva de outras “zonas” do perfi l não 
implicam o desaparecimento automático de concepções anteriores. As “condutas realistas” 
tendem a permanecer latentes mesmo nos espíritos que já as superaram, não sendo possível 
colocar-se de forma absoluta e defi nitiva no surracionalismo.
O progresso do conhecimento científi co, entendido como progresso epistemológico no 
sentido de um racionalismo crescente, permite a Bachelard cunhar a expressão “fi losofi a do 
não” para designar essa nova fi losofi a das ciências. Isso porque o avanço do conhecimento 
dá-se contra um conhecimento anterior, negando-o. Um “não”, porém, que nunca é defi nitivo, 
porque o reconhecimento e afastamento dos erros, que a psicanálise do conhecimento objetivo 
representa, permitem “alargar” esse mesmo conhecimento, recuperá-losob nova ótica.
Seria importante frisar aqui o sentido desse “alargamento”, que não pretende caracterizar 
uma continuidade entre os pensamentos anterior e posterior. Não se trata de manter uma 
estrutura (algo como um “núcleo teórico”) e fazê-la crescer, de modo contínuo, até que se atinja 
o novo conhecimento (mais amplo). O processo é descontínuo, envolve rupturas. Embora o 
novo conhecimento seja uma generalização do anterior, os conceitos já não têm os mesmos 
signifi cados, foram transformados ao longo do processo. Dessa maneira, podemos caracterizar 
também o pensamento epistemológico bachelardiano como descontinuísta, porque assume 
Bachelard exemplifi ca essa ideia traçando o seu próprio perfi l referente ao conceito de massa:
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência
Atividade 2
10
a existência de rupturas no desenrolar do desenvolvimento científi co. Bachelard evidencia, 
por exemplo, o caráter de ruptura presente no surgimento de uma mecânica não-newtoniana:
Vivíamos, aliás, no mundo newtoniano como numa residência espaçosa e clara. O 
pensamento newtoniano era de saída um tipo maravilhosamente transparente de 
pensamento fechado; dele não se podia sair a não ser por arrombamento (BACHELARD, 
1985, p. 43).
A generalização pelo não inclui aquilo que nega, operando de modo dialético ao considerar 
visões opostas como complementares (e não contraditórias) para uma síntese. A geometria 
não-euclidiana, por exemplo, amplia a geometria euclidiana, alarga-a; na mesma medida em 
que a mecânica não-newtoniana a completa, retifi cando-a.
Retome a caracterização feita por Bachelard para a massa, com referência às 
três primeiras escolas fi losófi cas: realismo ingênuo, empirismo e racionalismo 
tradicional. Tente realizar uma caracterização semelhante, considerando somente 
essas três escolas, para o conceito de “energia”.
Bachelard e possíveis
leituras da História da Ciência
Embora de modo muito breve e incompleto, apresentamos, nas seções anteriores, um 
panorama da fi losofi a de Bachelard. Em duas de suas características principais – histórica e 
descontinuísta –, podemos dizer que a fi losofi a desse autor aproxima-se de posições defendidas 
por Kuhn e Feyerabend.
Embora Bachelard não proponha algo como a “incomensurabilidade”, a noção de ruptura 
é marcante em sua obra, como vimos. A ciência, enquanto tal, constitui-se contra a opinião, 
contra a experiência primeira e imediata, contra o senso comum. Além disso, o movimento de 
afastamento gradativo dos erros e de superação dos obstáculos epistemológicos representa 
sempre um processo de ruptura com saberes anteriores.
No entanto, a noção de perfi l epistemológico resgata, em certa medida, uma ideia de 
progresso do conhecimento que parece distante das abordagens de Kuhn e Feyerabend. 
Bachelard não apenas afi rma a existência de um progresso, como também sinaliza para 
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência 11
uma compreensão da natureza desse processo. A sucessão de escolas fi losófi cas propostas 
por ele (realismo ingênuo, empirismo, racionalismo e surracionalismo) procura iluminar o 
desenvolvimento histórico-fi losófi co de um conceito em particular (como no exemplo da 
massa), descrevendo uma maneira de pensarmos num alargamento do conhecimento. Tal 
alargamento não é linear, tampouco contínuo. Nesse sentido, Bachelard afasta-se de uma 
noção positivista de progresso.
Em relação ao aspecto histórico, também vemos semelhanças entre a perspectiva 
bachelardiana e as fi losofi as de Kuhn e Feyerabend. Todos eles buscam, na História da Ciência, 
elementos que fundamentem e justifi quem as teses que defendem. Bachelard, especifi camente, 
trabalha bastante, na A formação do espírito científi co, a história da eletricidade nos séculos 
XVIII e XIX, embora mencione outras épocas e episódios históricos.
Um destaque merece ser feito nesse ponto: a “história recorrente” de Bachelard não se 
assemelha à “reconstrução racional” de Lakatos! Enquanto que a segunda pretende reconstruir 
a história (interna) com vistas a torná-la, em certo sentido, uma explicação e justifi cativa dos 
modelos atualmente aceitos, esforçando-se por evidenciar um caráter linear e racional do 
desenvolvimento conceitual da ciência, a história recorrente de Bachelard busca, antes de 
tudo, identifi car no passado as fontes de erros e tropeços, tendo o presente como referência. 
Mas isso não signifi ca “limpar” a história! Pelo contrário, pretende, justamente, trazer à tona 
a riqueza do pensamento de cada época, da psicologia do cientista de cada período e dos 
obstáculos que se interpuseram no caminho.
Um aspecto parece afastar a abordagem de Bachelard das de Kuhn e Feyerabend: o 
racionalismo. Enquanto os dois últimos foram acusados de manter uma postura irracionalista, 
por alguns críticos, Bachelard defende, claramente, a racionalidade do empreendimento 
científico. No entanto, esse aspecto surge em contextos diferentes das obras desses 
autores. A crítica a Kuhn e Feyerabend deve-se ao fato deles realçarem aspectos como a 
propaganda, a proposição de hipótese ad hoc, entre outros, que não fazem parte de uma 
visão de “senso comum” da ciência e da prática dos cientistas. Já em Bachelard, a questão 
do racionalismo surge numa oposição ao empirismo fi losófi co e, embora o autor defenda um 
“racionalismo aplicado” e uma superação dessa dicotomia, coloca-se mais claramente no polo 
do racionalismo. Nesse sentido, opõe-se a uma perspectiva positivista e, portanto, aproxima-se 
das teses de Kuhn e Feyerabend.
Por último, cabe retomarmos o exercício realizado em aulas anteriores e aplicá-lo à 
epistemologia de Bachelard, ou seja, promovermos uma leitura bachelardiana de episódios 
da História da Ciência.
Uma vez que as teses de Bachelard se fundamentam no material histórico, essa tarefa 
não é muito difícil e já foi, em parte, realizada nas seções anteriores. A noção de obstáculo 
epistemológico, em particular, é bastante frutífera numa análise de episódios históricos. 
Bachelard nos chama a atenção para as “experiências coloridas” da eletricidade dos séculos 
XVIII e XIX, com falsos centros de interesse, representativas da ideia da “observação primeira” 
como obstáculo.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência12
Também podemos notar a forte presença desse obstáculo na história da mecânica, em que 
o senso comum e a observação direta dos fenômenos, quase sempre difi cultaram a construção 
de uma física inercial. Assim, o movimento aparente dos astros em torno da Terra e a queda 
mais rápida de objetos mais pesados, próximos à superfície de nosso planeta, podem ser 
considerados obstáculos no âmbito das “experiências primeiras”. Para o desenvolvimento da 
física inercial (e das noções de movimento compartilhado, relatividade de movimento etc.) era 
necessária a superação desses obstáculos, o distanciamento da experiência diária e concreta.
Outro obstáculo bastante presente na História da Ciência é o obstáculo substancialista. 
Dois exemplos marcantes são o modelo do calórico, no estudo dos fenômenos térmicos, 
e o modelo dos fl uidos elétricos, no campo da eletricidade. Quanto ao primeiro, sabemos 
que o calórico foi concebido, durante algum tempo, como uma substância responsável por 
fundamentar a explicação de diversos fenômenos relativos ao calor, como o aquecimento em 
geral, as trocas de calor entre corpos, a combustão etc. A busca por essa substância e suas 
propriedades perdurou por um longo período e foi objeto de estudo e preocupação de diversos 
pesquisadores, tais como A. L. Lavoisier e J. Black, principalmente em fi ns do século XVIII. 
Ainda hoje, a linguagem da física guarda “resquícios” de uma concepção substancialista do 
calor, ao se utilizar de termos como capacidade térmica e quantidade de calor, por exemplo 
(aliás, isso já seria uma ilustração de um “obstáculo verbal” à aquisição do conceito científi co 
de calor, numa visão bachelardiana...!).
Jáos fenômenos associados à eletricidade, marcadamente no século XVIII, eram 
explicados com referência a um – ou dois! – “fl uidos elétricos” (Charles Du Fay, por exemplo, 
defendia o modelo dos dois fl uidos, enquanto Benjamin Franklin o modelo do fl uido único). A 
noção de campo elétrico, como algo imaterial, surgiria somente ao fi nal do século XIX. Até lá, 
predominou uma concepção substancialista da eletricidade, o que, numa visão bachelardiana, 
funcionou como um obstáculo epistemológico (haveria outros exemplos, como o fl ogístico, 
o éter etc.).
Além da noção de obstáculo, abordamos também a ideia de perfi l epistemológico. Não 
entraremos em detalhes quanto a isso, mas cabe destacar que a superação de obstáculos como 
um processo de alargamento do conhecimento em direção a uma maior coerência racional e 
objetivação, exposta na noção de perfi l, pode ser utilizada na interpretação da história.
Embora Bachelard proponha o perfi l para cada conceito em particular, a hierarquia de 
escolas fi losófi cas seria uma espécie de estrutura recorrente, que pode servir como “pano de 
fundo” para pensarmos o desenvolvimento histórico-fi losófi co da ciência. Simplifi cadamente, 
podemos “ver” a história da termodinâmica (ou da mecânica, ou do eletromagnetismo...) 
a partir desse “pano de fundo”, com fases que remetem ao realismo ingênuo, empirismo, 
racionalismo etc. Esse é um exercício complexo de ser realizado e não imediato. Mas seria 
uma forma de ilustrar um possível uso da epistemologia de Bachelard na interpretação do 
desenvolvimento científi co.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência 13
Retomando questões
da Filosofi a da Ciência
Nesse momento fi nal de nossa viagem fi losófi ca, propomos a você uma retomada de 
alguns questionamentos que foram trazidos na aula 9 - Indução, empirismo e o método 
científi co. Naquela oportunidade, procuramos fazê-los na intenção de apresentar várias 
temáticas e focos de atenção do campo da Filosofi a da Ciência.
De que forma vemos, agora, esses mesmos questionamentos?
Como o fi lósofo grego Heráclito já dizia, há mais de dois milênios, tudo fl ui. É impossível 
banharmo-nos duas vezes no mesmo rio, pois nem o rio nem nós seremos os mesmos... Tendo 
Heráclito como referência, voltemos nossa atenção àquelas questões:
  Que método(s) a ciência utiliza em seu desenvolvimento?
  Em que circunstâncias podemos afi rmar que uma teoria científi ca foi “provada”?
  O conhecimento científi co pode ser considerado “verdadeiro”?
  As teorias científi cas “evoluem”? É possível falar em “progresso da ciência”?
  Que papel devemos atribuir aos experimentos na construção do conhecimento científi co? 
E à razão?
  Há “experiências cruciais”?
  A ciência refl ete o real de forma objetiva?
  Qual o papel da comunidade científi ca e do contexto histórico na construção desse 
conhecimento?
  É possível estabelecer critérios claros para dizer o que é – e o que não é – ciência?
Esperamos que você possa dialogar com essas questões, agora, de modo mais 
sofi sticado, ou seja, com elementos próprios do campo da Filosofi a da Ciência. Bacon, Popper, 
Kuhn, Feyerabend, Lakatos e Bachelard (além de outros que estiveram ausentes de nossas 
discussões!), trazem olhares diferenciados e enriquecedores na análise desse empreendimento 
chamado ciência. O conhecimento dessas diversas abordagens permite-nos problematizar 
essas questões para nós mesmos e para os outros, o que é importante quando pensamos nas 
salas de aula dos níveis médio e superior.
A primeira questão, por exemplo, referente ao método, remete diretamente aos temas 
tratados por nós. Discutimos a concepção empírico-indutivista e propusemos sua superação. 
Chegamos ao extremo de uma metodologia pluralista. Tudo isso ilumina o “que fazer” 
científi co e nos traz novos referenciais de análise da ciência passada e atual. Da mesma forma, 
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência
Atividade 3
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esperamos que você perceba que conhecimento “seguro”, “verdadeiro” e “provado” é algo que 
as perspectivas fi losófi cas mais recentes não costumam atribuir à ciência. Um dos grandes 
consensos construídos no terreno da moderna Filosofi a da Ciência é o entendimento de que a 
ciência é um empreendimento humano coletivo, condicionado histórica e socialmente e, portanto, 
mutável. As observações não são neutras e dependem de modelos e teorias preestabelecidas.
A ciência representa um tipo de conhecimento especial? Vale a pena buscar critérios 
defi nidores do que é – e do que não é – ciência? Popper e Feyerabend responderiam de modo 
muito diferente a isso! E essa não é – embora possa parecer – uma questão de interesse 
restrito e abstrato. Como já foi dito, a ciência tem grande importância (e autoridade!) em 
nosso meio social, permeando discursos, formas de ver e lidar com o real, justifi cando ações e 
deliberações, forjando pontos de vista acerca de importantes e decisivos problemas. O crédito 
que devemos dar ou não ao discurso científi co depende, em grande parte, da visão que temos 
da ciência e do modo que ela é construída. E isso não é algo objetivo e monolítico, mas fruto 
de interpretações e concepções adquiridas no estudo da Filosofi a da Ciência.
Em função disso, gostaríamos que você também voltasse a refl etir sobre a relevância de 
uma abordagem histórico-fi losófi ca no ensino de ciências (foco de nossa Aula 02 - A História e 
a Filosofi a da Ciência no ensino de ciências). Como futuro professor, é imprescindível que você 
tenha consciência de que seus alunos estarão construindo uma imagem de ciência, em parte, 
com aquilo com que terão contato em suas aulas. Se – explícita ou implicitamente – a ciência 
for apresentada segundo um viés empírico-indutivista, isso deverá reforçar uma concepção 
de senso comum, como vimos antes. Por outro lado, o conhecimento de várias perspectivas 
teóricas ajuda tanto a interpretar o material histórico quanto a discutir aspectos da natureza da 
ciência. Sem falar no próprio potencial pedagógico de certos conceitos oriundos da Filosofi a 
da Ciência, tais como os de obstáculo e de perfi l epistemológico de Bachelard, que têm uma 
aplicabilidade frutífera no entendimento de questões de ensino.
É preciso não apenas ensinar ciência, mas ensinar sobre a ciência. Quem sabe isso seja 
tão – ou até mais – relevante do que aprender os conceitos científi cos...
Leia os dois trechos a seguir, retirados da obra Contra o método, de Paul Feyerabend:
TRECHO A:
Enfi m, descobrimos que o aprendizado não se desenvolve da observação para a teoria, 
mas sempre envolve ambos esses elementos. A experiência aparece acompanhada de 
pressupostos teóricos e não antes deles; e a experiência sem teoria é tão incompreensível 
quanto (supostamente) a teoria sem experiência” (FEYERABEND, 1977, p. 262-263).
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TRECHO B:
O conhecimento, concebido segundo essas linhas, não é uma série de teorias coerentes, 
a convergir para uma doutrina ideal; não é um gradual aproximar-se da verdade. É, 
antes, um oceano de alternativas mutuamente incompatíveis (e, talvez, até mesmo 
incomensuráveis), onde cada teoria singular, cada conto de fadas, cada mito que seja 
parte do todo força as demais partes a manterem articulação maior, fazendo com que 
todas concorram, através desse processo de competição, para o desenvolvimento de 
nossa consciência (FEYERABEND, 1977, p. 40-41, grifos do autor).
Com base no que foi discutido na seção precedente e ao longo das aulas de Filosofi a 
da Ciência, posicione-se criticamente em relação a esses trechos. Elabore um pequeno texto 
com a sua opinião.
Leia o texto a seguir, retirado da internet:
Cientistas encontram 1ª prova concreta de lago em Marte
REUTERS Qua, 17 Jun - 22h01 
WASHINGTON (Reuters) - Um longo e profundo cânion e os restos de uma praia 
talvez sejam a prova mais clara já encontrada sobre a existência de um lago na 
superfíciede Marte, e ele aparentemente continha água quando o planeta já 
deveria ter secado, disseram cientistas nesta quarta-feira.
Imagens de uma câmera chamada High Resolution Imaging Science Experiment 
a bordo do satélite Mars Reconaissance Orbiter indicam que a água escavou 
um cânion de 50 quilômetros de extensão, revelou um grupo da Universidade 
do Colorado.
Ele teria coberto uma superfície de 200 quilômetros quadrados, com profundidade 
de 450 metros, escreveram os pesquisadores da revista Geophysical 
Research Letters.
Hoje é incontestável que existe água no solo de Marte -- robôs de exploração 
encontraram gelo ali. Também há provas de que a água ainda pode brotar do 
subsolo para a superfície, ainda que ela rapidamente desapareça na fi na e gelada 
atmosfera do planeta vermelho.
Cientistas também já haviam visto o que poderiam ser praias de rios gigantescos 
ou mares “mas algumas das formações também poderiam ser obra de 
deslizamentos de terra”.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência16
“Essa é a primeira prova sem ambiguidades sobre linhas costeiras na superfície 
de Marte”, disse Gaetano Di Achille, que liderou o estudo.
“A identifi cação das linhas e as evidências geológicas nos permitem calcular o 
tamanho e o volume do lago, que parece ter se formado há cerca de 3,4 bilhões 
de anos”, afi rmou Di Achille em comunicado.
A água é um elemento-chave para a vida, e os cientistas procuram desesperadamente 
por provas de vida em Marte, seja passada ou presente. A existência de água no 
planeta também pode ser útil para futuros exploradores humanos.
“Na Terra, deltas e lagos são excelentes coletores e conservadores dos sinais de 
vida passada”, disse Di Achille. “Se a vida alguma vez existiu em Marte, os deltas 
podem ser a chave para desvendar o passado biológico de Marte”, acrescenta. 
“A pesquisa não prova apenas que houve um sistema lacustre de longa existência 
em Marte, mas nós podemos ver que o lago se formou após o período quente 
e úmido que pensava-se que teria se dissipado”, disse o professor assistente 
Brian Hynek.
O lago provavelmente evaporou, ou congelou após uma abrupta mudança climática, 
afi rmaram os pesquisadores. Ninguém sabe o que fez Marte deixar de ser um 
planeta quente e úmido para se tornar o deserto gelado e sem ar que é hoje.
(Reportagem de Maggie Fox).
Agora responda: em que aspectos o texto é compatível com uma visão de ciência tal como 
defendida pela moderna Filosofi a da Ciência? Em que aspectos ele se afasta dessa visão? Em 
sua resposta, cite trechos do texto que reforcem sua argumentação.
Uma “dica” fi nal...
Chegamos ao fi m de nosso curso, após uma longa jornada que procurou apresentar a você o que são a História e a Filosofi a da Ciência. Apesar de todo o esforço, sabemos que isso é insufi ciente para que você tenha plenas condições de fazer uso da História e da Filosofi a 
da Ciência em suas aulas na educação básica. As pesquisas na área de Didática das Ciências têm 
revelado as difi culdades enfrentadas por professores no que diz respeito ao “como fazer”, ou 
seja, ao modo efetivo de levar elementos históricos e fi losófi cos para as salas de aula.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência 17
Apesar disso, gostaríamos de incentivá-lo a realizar esse esforço. Aos poucos, e com 
dedicação, você verá que é possível fazer muitas coisas para tornar as aulas de ciências 
mais interessantes e para promover discussões relevantes sobre a natureza do conhecimento 
científi co. Nessa direção, consideramos importante que você:
  esteja atento às fontes a serem utilizadas no preparo de suas aulas e atividades. Como 
discutimos em nosso curso, é preciso ter cuidado e buscar materiais confi áveis, que não 
distorçam a história, reproduzam equívocos ou dêem um tratamento superfi cial;
  procure consultar mais de um material a respeito de certo tema, para que seja possível 
estabelecer comparações e perceber, por exemplo, pontos de vista confl itantes. Crie o 
hábito de ler textos sobre História da Ciência;
  torne adequado o material ao nível cognitivo dos alunos. Textos muito longos e/ou 
complexos podem desestimulá-los e levar a um efeito inverso daquele pretendido;
  não inicie tentando abordar “todo o conteúdo” de uma maneira histórico-fi losófi ca. 
Procure ser modesto e inserir essa perspectiva em algumas poucas aulas de certa área 
(a mecânica, por exemplo). Mas não se limite a usar a história como mera “motivação” 
ou “curiosidade”, desvinculada do restante da programação! A História e a Filosofi a da 
Ciência podem ajudar a compreender os próprios conceitos da física!
  investigue as concepções dos alunos sobre o tema a ser tratado. Perceba possíveis 
relações com a história e explore tais relações no planejamento de suas aulas;
  não espere que todos os alunos gostem desse tipo de abordagem ou reconheçam, de 
imediato, que isso “também é física”! Leve-os a perceber, gradativamente, a importância 
da História e da Filosofi a da Ciência para um entendimento tanto de questões passadas 
quanto de aspectos atuais da prática científi ca. Diversifi car metodologias e estratégias 
de ensino é bastante útil.
Bom trabalho!
Leitura complementar
LOPES, A. R. C. Bachelard: o fi lósofo da desilusão. Caderno Catarinense de Ensino de Física, 
v. 13, n. 3, p. 248-273, 1996. Disponível em: <http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/fi sica/
article/view/7049/6525>. Acesso em: 11 nov. 2009.
Nesse artigo, a autora faz uma boa introdução ao pensamento de Gaston Bachelard, 
abordando, inclusive, algumas das implicações dessa epistemologia para o ensino das ciências.
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Resumo
Autoavaliação
Com base na leitura desta aula e nas Atividades desenvolvidas por você, refl ita sobre as 
seguintes questões:
Compreendo os principais conceitos da epistemologia de Bachelard?
Sou capaz de dar exemplos de obstáculos epistemológicos a partir de episódios 
históricos?
Sei comparar a fi losofi a de Bachelard com a perspectiva de autores como Kuhn, 
Feyerabend e Lakatos, estabelecendo semelhanças e diferenças?
Consigo realizar uma leitura bachelardiana da História da Ciência?
Sei identifi car temáticas próprias da Filosofi a da Ciência e dialogar com elas a partir 
dos referenciais estudados neste curso?
Percebo a importância e as difi culdades relacionadas ao uso pedagógico da História 
e da Filosofi a da Ciência?
Nesta aula, tratamos do pensamento de Gaston Bachelard. Caracterizamos sua 
epistemologia como histórica, racionalista e descontinuísta. Abordamos dois 
conceitos centrais de sua obra, a saber: as noções de obstáculo e de perfi l 
epistemológico. Propusemos a interpretação de passagens da história da ciência 
de um ponto de vista bachelardiano. Retomamos questões gerais relativas à 
Filosofi a da Ciência, procurando indicar a pertinência de um novo olhar sobre elas. 
Finalizamos a aula (e o curso) fornecendo elementos para uma refl exão sobre o 
uso pedagógico da História e da Filosofi a da Ciência.
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Anotações
19
Referências
BACHELARD, Gaston. A epistemologia. Lisboa: Edições 70, 1981.
______. O novo espírito científi co. 2.ed. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985.
______. A fi losofi a do não. 5.ed. Lisboa: Editorial Presença, 1991.
______. A formação do espírito científi co. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996.
FEYERABEND, Paul. Contra o método. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1977.
MARTINS, A. F. P. Concepções de estudantes acerca do conceito de tempo: uma análise à 
luz da epistemologia de Gaston Bachelard. 2004. Tese (Doutorado em Educação) – Faculdade 
de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2004.
ZANETIC, J. FMT405 - Evolução dos conceitos da física: notas de aula. São Paulo: Instituto 
de Física da USP, 2008. Mimeo.
Aula 13 História e Filosofi a da Ciência
Anotações
20
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