Buscar

Do_juiz_boca_da_lei_a_lei_segundo_a_boca

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 15 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 15 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 15 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

Do juiz boca-da-lei à lei segundo a boca-do-juiz: notas sobre a 
aplicação-interpretação do direito no início do séc. XXI
*
 
 
 
Maria Celina BODIN DE MORAES
**
 
 
 
As genuínas tragédias do mundo não 
são conflitos entre certo e errado. 
São conflitos entre dois certos. 
– HEGEL 
 
 
1. Introdução 
Uma análise retrospectiva desses anos pós-constitucionais revela, no geral, uma 
história muito bem-sucedida. Contamos com um ordenamento jurídico plural e 
solidário, com a proteção cada vez mais plena e integral da pessoa humana e com uma 
metodologia de interpretação e aplicação do direito mais flexível e justa. No âmbito do 
direito civil, em especial, consolida-se a ideia de que a supremacia hierárquica do texto 
constitucional impõe não apenas um respeito formal às normas superiores, mas exige 
também que a legislação ordinária seja sempre interpretada e aplicada de forma a 
garantir a máxima incidência e eficácia dos preceitos da Constituição.
1
 
O momento atual, todavia, apresenta também riscos e perigos, e deve ser 
observado com cautela. Um exame superficial já revela que as numerosas conquistas 
obtidas vieram acompanhadas, por vezes, de consequências negativas as quais, sem a 
devida correção, podem afastar os próprios objetivos que inicialmente se buscava 
atingir. Um exemplo no âmbito da responsabilidade civil é especialmente ilustrativo. 
Com efeito, o início do séc. XXI no Brasil coincidiu com a explosão de um 
fenômeno a um só tempo extraordinário e assustador: a avassaladora quantidade de 
casos de reparação de danos, das mais variadas espécies e gêneros, considerados 
indenizáveis.
2
 Qualquer resistência à indenização dos danos morais fora definitivamente 
eliminada pelo art. 5º, V e X, da Constituição Federal. No espírito de proteção 
privilegiada da pessoa humana, as lesões à sua dignidade passaram a ser plenamente 
ressarcíveis. Esta abertura desencadeou uma avalanche de demandas reprimidas, que 
não parece arrefecer. Pode-se mesmo afirmar que, atualmente, as lesões a direitos e 
 
*
 Texto escrito para compor a obra em homenagem ao Professor Carlos Alberto Dabus Maluf. Agradeço a 
pesquisa, o auxílio e as sugestões do Professor Carlos Nelson Konder bem como a leitura atenta dos 
doutorandos Eduardo Nunes de Souza, Thamis Dalsenter e Fernanda Nunes Barbosa. 
**
 Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do 
Departamento de Direito da PUC-Rio. 
1
 Para o início dessa história, v. Maria Celina BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil-
constitucional. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar. 2010, p. 3 e ss. 
2
 Para exemplos, v., por último, Maria Celina BODIN DE MORAES. Dano moral: conceito, função, 
valoração. Revista Forense n. 413, 2011. 
Stefany
Realce
2 
 
interesses extrapatrimoniais são indenizadas aqui como nunca antes haviam sido, pelo 
menos em países de matriz romano-germânica. 
Entretanto, a viabilização dessa conquista, como de outras desde a promulgação 
do texto constitucional, ocorreu mediante a exacerbação do recurso à técnica legislativa 
da cláusula geral e do livre arbitramento, que deixam a cargo do magistrado, 
respectivamente, todo e qualquer juízo acerca da existência de ato contrário ao Direito, 
bem como o cálculo de sua compensação, normalmente prescindindo de provas. Não 
foram ainda, como se sabe, elaborados critérios (ou mesmo parâmetros) minimamente 
objetivos que possam auxiliar o juiz nessas difíceis matérias, atribuídas, inteiramente, à 
sua consciência. A jurisprudência, ainda inexperiente no tocante a tal metodologia, tem 
tido que a aplicar sem o necessário apuro técnico, o que contribui para o cenário atual 
de caos e arbitrariedade em relação ao tema. 
Mas não só: esse fenômeno é também consequência de uma atuação judicial 
nova e diferente, atuação esta que somente agora vem sendo completamente revelada e 
compreendida: é a consideração, inédita em nosso sistema, de que é a jurisprudência 
quem diz o que é o Direito. Uma das manifestações mais explícitas desse pensamento 
nos Tribunais Superiores pode ser atribuída ao Min. Humberto Gomes de Barros, o 
qual, não sem certa dose de acidez, afirmou: “Não me importa o que pensam os 
doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a 
autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste 
Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. (...) Esse é o 
pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É 
fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes 
de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração 
de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não 
ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, 
minha investidura obriga-me a pensar que assim seja”.
3
 
A influência das artes cinematográficas, aliada a temporadas de estudos em 
direito público e direito empresarial conduzidos na América, juntamente com o fato 
dessa influência decorrer também da ampla oferta de bibliografia e de bibliotecas e do 
predomínio da disponibilização de documentos online, acaba por gerar uma confusão no 
âmbito jurídico que precisa ser desfeita para que se conheçam, ao menos, as fronteiras 
tocadas pela discussão. A manifestação do ministro, com efeito, amolda-se com 
perfeição a ordenamentos do sistema da Common Law, ordenamentos em cuja base está 
o precedente judicial. Assim, por exemplo, embora atualmente seja frequente a 
referência a “precedente”, especialmente pelo STJ, não se trata da mesma coisa: o nosso 
precedente, necessariamente plural e relativo ao direito, denota, na verdade, o 
comportamento da “jurisprudência”, enquanto o “precedente” em sua acepção original, 
de matriz anglo-americana, com frequência é único e refere-se aos fatos principais da 
demanda. São diferenças, portanto, tanto qualitativas como quantitativas.
 4
 
 
3
 STJ, 1ª Seção, AgReg em EREsp 279.889/AL, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Rel. p/ ac. Min. 
Humberto Gomes de Barros, julg. 14.08.2002. 
4
 Para essas e outras considerações acerca das consequências da mencionada diferença, v. Michele 
TARUFFO. Precedente e giurisprudenza. Roma: Editoriale scientifica, 2007, passim. 
3 
 
Mas, independentemente das evidentes e ineludíveis aproximações entre os dois 
sistemas, que aqui não vêm ao caso, a diferença estrutural que os distingue baseia-se 
justamente no fato de que a força e o poder de um estão na teoria e na exegese; do outro, 
na prática e na perícia. Nos sistemas romano-germânicos entende-se haver uma 
“ciência”, decorrente do conhecimento do ordenamento, visto como um sistema que, 
composto pelo corpo de normas contidas em diplomas legislativos diversos, é dotado de 
algumas características essenciais: a unidade e a coerência.
5
 Daí, portanto, ser um 
direito doutoral, de professores, aqueles que em virtude de estudos aprofundados, 
impossíveis de ser realizados no dia a dia, por força das demandas cotidianas do julgar, 
melhor conhecem e, em consequência, melhor elaboram sua interpretação sistemática e 
teleológica.
 6
 
Na tradição da Common Law, ao contrário, o direito é jurisprudencial, baseado 
nos casos concretos (case law) e pouco codificado. O primado é conferido aos 
processos, que devem ser leais (fair trial) e realizado pelos cidadãos (jury trial), e cuja 
maestria se adquire sobretudo pela prática ou por técnicas pedagógicas que se 
aproximam ao máximo da prática profissional (o case method).
 7
 As escolas de Direito 
são, desse modo, semelhantes a laboratórios. O status da regra jurídica não se considera 
fundado numa teoria moral ou numa ciência racional, mas tem em mira tão somente“dar uma solução a um litígio, situando-se, deliberadamente, no nível da casuística das 
aplicações particulares”.
8
 Nesse contexto, entendido o Direito não como ciência, mas 
como “experiência”, o jurista da Common Law é o magistrado.
9
 
Em virtude das recentes e significativas mudanças tanto de conteúdo, como de 
forma e de método, parece oportuna uma breve e genérica reflexão acerca do caminho 
percorrido, das conquistas obtidas e dos malogros sofridos, mas, principalmente, dos 
rumos que já estão sendo trilhados. 
 
2. Explicando o passado 
Embora se trate do ramo mais antigo do Direito, o auge do desenvolvimento 
teórico do direito civil conforme é concebido atualmente encontra-se nos séculos XVIII 
e XIX. Naquela altura, foram formulados os seus conceitos e criados os seus institutos 
mais importantes – ou, ao menos, conferiu-se a eles o molde pelo qual os identificamos 
até hoje. Como, porém, o Direito é sempre fruto do contexto social e histórico no qual 
se origina, cumpre identificar os valores que então predominavam e que, portanto, 
ficaram impregnados nas construções jurídicas que herdamos daquela época. 
A característica mais marcante daquele período era a separação do ordenamento 
a partir de uma summa divisio: a dicotomia entre direito público e direito privado. Esta 
divisão tradicional, que vem acompanhada de outras a ela ligadas, tais como Estado e 
sociedade, autoridade e liberdade, política e economia, Direito e moral, entre outras, 
 
5
 Norberto BOBBIO. Teoria dell’ordinamento giuridico. Torino: Giappichelli, 1960, p. 80 e ss. 
6
 Pierre BOURDIEU. O poder simbólico. Trad. de F. Thomaz. 4. ed. s.l.: Bertrand Brasil, 2001, p. 209 ss. 
7
 ID., o.l.u.c. 
8
 ID, o.l.u.c. 
9
 Oliver Wendell HOLMES Jr. The Common Law. 1881, em cuja primeira página se lê: “The life of the 
law has not been logic; it has been experience”. Disponível online, acesso em 23 dez. 2012. 
4 
 
justifica-se do ponto de vista de um Estado liberal, não interventor, que serve apenas à 
proteção do livre jogo econômico. A mão invisível do mercado, uma instituição natural, 
pré-política, garantiria, nesse cenário, o funcionamento harmônico da sociedade civil, 
cabendo ao Estado intervir excepcionalmente e apenas para conter eventuais excessos.
10
 
Naquele momento histórico é da codificação o papel de elemento central 
unificador do sistema. Convertido em “monumento legislativo”, o código era 
considerado repositório, não de um direito “voluntário” (contingente e mutável), mas do 
direito natural, universal e perpétuo.
11
 No direito codificado, já consolidados os valores 
individualistas, voluntaristas e patrimonialistas da burguesia, a referência ao direito 
natural, até então recorrente, tornou-se uma ameaça de retorno à sociedade de castas 
anterior. Em consequência, diante do direito positivo recém-elaborado, plenamente 
adequado aos anseios da classe dominante, o positivismo jurídico se torna a 
metodologia jurídica dominante. 
Nesse primeiro momento, fala-se em “positivismo voluntarista”. Com efeito, da 
Revolução Francesa emerge, em 1804, o Code Napoléon, que se tornaria a principal 
referência para todos aqueles que o sucederam. Em direta oposição ao regime anterior 
de privilégios nobiliárquicos, o Code é pautado pela igualdade formal de todos perante a 
lei e pela liberdade individual. Esta liberdade era compreendida a partir de uma 
concepção de homem, sujeito de direitos, cujo elemento central é a vontade, que 
protagoniza toda a disciplina presente na lei. Daí um regime em que os contratos faziam 
lei entre as partes e só podiam ser invalidados com base em um rol taxativo de “vícios 
da vontade”.
12
 Complementarmente, a constrição à atividade judicial era exercida por 
meio de uma metodologia de aplicação do Direito calcada na interpretação literal, 
passiva e mecânica, a chamada “escola da exegese”, de modo a garantir a efetiva 
implementação da nova legislação burguesa. Isto decorreu da combinação do teor do 
art. 4 do Code,
13
 obrigando ao juiz a julgar cada caso, com o veto ao teor do art. 9, que 
projetava a possibilidade de recurso pelo magistrado à equidade. Com efeito, não sendo 
possível ao juiz, nem em caso de lacuna ou obscuridade, usar a equidade (termo que, 
com o veto, desaparece do Code) e estando ele obrigado a julgar todos os casos, uma 
vez que não podia mais recusar-se (em decorrência do princípio iluminista da separação 
dos poderes e incompativelmente com o princípio romano do non liquet), 
compreenderam os primeiros intérpretes que deveria fazê-lo sempre e somente com 
base em lei, que naquele momento, estava inteiramente contida no Código. Assim se 
pavimentou o caminho inexorável em direção ao positivismo, fruto do exagero que 
ficou conhecido como o “fetichismo da lei”.
14
 
 
10
 A respeito, v., por todos, Gustavo TEPEDINO. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 
2004, p. 223. 
11
 António Manuel HESPANHA. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Portugal: 
Publicações Europa-América, 1997, p. 162. 
12
 Segundo Henri BATTIFOL. A filosofia do direito. Trad. de E. Cavalheiro. Lisboa: Editorial Notícias, 
s.d., p. 13: “a fórmula mais ilustre e influente do voluntarismo é a que nos dá Rousseau. A tradição do 
contrato social preparava uma explicação voluntarista da lei: esta é a expressão da vontade geral”. 
13
 Code Napoléon, art. 4 : “Le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l’obscurité ou de 
l’insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice ”. 
14
 V., a propósito do tema, Norberto BOBBIO. O positivismo jurídico. Lições da Filosofia do Direito. 
Trad. e notas de M. Pugliesi. São Paulo: Ícone editora, 1995, p. 73 e ss. 
5 
 
Enquanto a França, então um país já consolidado, pôde encontrar refúgio no seu 
Código, na Alemanha, que só viria a se unificar na segunda metade do século XIX, os 
juristas foram buscar na História a base para a construção do seu direito civil moderno, 
através da observação do produto espontâneo do “espírito popular” – Volksgeist.
15
 De 
inspiração kantiana, a pandectística baseava-se na construção de um sistema de 
conceitos extraídos da cultura, da língua, do folclore, da tradição literária, das 
manifestações de “alta cultura” consolidadas pela comunidade, mas por meio da dotação 
de tratamento rigorosamente formal, com função estruturante do próprio ordenamento. 
A coerência interna das categorias e a descrição neutra dos princípios prevaleciam em 
virtude da desvalorização da lei e dos fatos sociais. Mas, na mesma linha da tradição 
francesa, esta escola, dita Histórica, deixou um legado de restrição ao poder do juiz, 
neste caso em decorrência da criação do dogma da subsunção, isto é, da ideia de que a 
aplicação do Direito se dava através de um raciocínio lógico, silogístico e automático.
16
 
Este quadro de enfraquecimento do Poder Judiciário, aliado às primeiras 
manifestações de intervencionismo estatal diante do naufrágio da economia liberal, será 
aperfeiçoado e substituído, em um segundo momento, por um positivismo formalista, 
estatal. Em reação a tendências com viés sociológico (teológico e humanista), tem início 
o apogeu do formalismo, que buscava a purificação da teoria jurídica – como no modelo 
Kelseniano – por meio da concepção de um sistema dotado de apenas conceitos 
fundamentais. 
 
3. Entendendo o presente 
O século XX representa um momento de transição. O colapso do modelo liberal, 
explicitado pela sucessão de graves crises econômicas, enseja a construção de um 
modelo de intervenção na economia, o chamado Estado do bem-estar social. De outro 
lado, a legitimidade jurídica formal que acabou por permitir o florescimento dos 
regimes totalitaristas na Europa ocidental revela o fracasso do paradigma do positivismo 
normativista. A necessidadede que o Direito forneça instrumentos de reprovação aos 
regimes autoritários que vilipendiaram a dignidade das minorias – como demandado 
simbolicamente pelo tribunal de Nuremberg – impunha a reformulação do paradigma 
jurídico. 
A transformação se inicia no direito internacional, através das declarações de 
direitos humanos que, a partir da Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948, 
proliferaram em número e abrangência das garantias oferecidas a todas as pessoas. 
Concomitantemente, o direito interno sensibiliza-se àquela transformação com a 
positivação, nas longas Constituições, de um rol de direitos e garantias individuais 
fundamentais (Itália em 1948 e Alemanha em 1949). 
A positivação dos direitos fundamentais e da proteção à dignidade da pessoa 
humana nos textos constitucionais acabou por ter um papel determinante na mudança de 
um ponto nevrálgico na metodologia contemporânea: o da força normativa das normas 
constitucionais. 
 
15
 Henri BATTIFOL. A filosofia do direito, cit., p. 9. 
16
 António Manuel HESPANHA. Panorama histórico da cultura jurídica europeia, cit., p. 185 e ss. 
Stefany
Realce
6 
 
Em consequência, uma vez que a Constituição confere unidade, coerência e 
harmonia ao ordenamento, pois todas as normas inferiores lhe devem obediência – são 
especificações para a plena realização de seus preceitos –, esvazia-se a tradicional 
divisão entre direito público e direito privado. Os interesses privados e públicos se 
confundem, na medida em que, de um lado, os interesses privados só são juridicamente 
protegidos por possuírem relevância pública e, de outro lado, o tradicional e ameaçador 
conceito de “interesse público” se transforma, nas sociedades democráticas, na 
composição deliberativa e na reconstrução dialógica dos interesses privados.
17
 
O poder estatal perdeu, em grande medida, o aspecto terrorista, porque as 
defesas dos cidadãos se fortaleceram em muito; contudo o fenômeno dos poderes 
privados são ameaças tão ou mais fortes, e restam normalmente impunes. As 
intimidações do poder privado não podem ser ignoradas e diante delas a autonomia 
privada, tradicionalmente neutra e imparcial, mostra-se “seriamente erodida”.
18
 Frente a 
esse poder será necessário passar a intervir, recorrendo aos direitos fundamentais, de 
modo a garantir a proteção da dignidade humana também nas relações privadas. 
Do mesmo modo, a legislação ordinária de direito civil, em seu dever de 
obediência às normas superiores, converte-se em mecanismo de realização e efetivação 
dos preceitos constitucionais nas relações privadas – instrumentos de realização do 
projeto constitucional.
19
 Fala-se, assim, na funcionalização dos institutos tradicionais de 
direito civil: o contrato, a propriedade e a família passam a ser protegidos somente 
quando relevante sua função social. Em especial, a importância conferida no texto 
constitucional à dignidade humana e aos direitos fundamentais impôs a prevalência, no 
âmbito privado, das situações jurídicas existenciais, em um processo que se denominou 
de “despatrimonialização do direito civil”.
20
 
O direito civil renovado passa a ser guiado pela proteção integral da pessoa 
humana, deixando de ter um único protagonista (a vontade do burguês), mas uma 
grande diversidade de sujeitos de direito, concretos e específicos, únicos em sua 
dignidade e em suas necessidades: a criança, o adolescente, o idoso, a gestante, o obeso, 
o deficiente, o consumidor, o microempresário, o sócio minoritário etc. Todos são 
compreendidos como pessoas, e não indivíduos (abstratos); trata-se, em outras palavras, 
de seres reais cuja identidade é necessariamente construída através da interação com a 
comunidade que os cerca: homo non clausus. Daí o surgimento de novas questões 
jurídicas, que aqui são apenas mencionadas, envolvendo alteridade, solidariedade e, 
especialmente, intersubjetividade. 
Renovação semelhante só foi possível graças à transformação da metodologia de 
interpretação e aplicação do Direito. A superioridade normativa da Constituição já tinha 
sido afirmada no contexto positivista, mas traduzia-se quase que exclusivamente do 
ponto de vista formal, com a obediência ao processo legislativo e por meio da atribuição 
 
17
 Para uma exposição do tema, v. Daniel SARMENTO. A trajetória da dicotomia público/privado. Revista 
trimestral de direito civil. vol. 22, abr./jun. 2005, p. 239-257. 
18
 Juan María BILBAO UBILLOS. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? 
In I. W. Sarlet (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 3. ed. Porto Alegre: 
Livraria do Advogado, 2010, p. 264-266. 
19
 Gustavo TEPEDINO. Temas, cit., espec. pp. 1-22. 
20
 Pietro PERLINGIERI. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 33. 
Stefany
Realce
7 
 
e distribuição de competências. A reconstrução do Direito a partir de princípios – que 
representam valores estabelecidos na Constituição – é viabilizada através do que se 
denominou “pós-positivismo”. O termo, pioneiramente apresentado entre nós por Paulo 
Bonavides, representa uma tentativa de superação do formalismo do positivismo sem o 
recurso jusnaturalista de se atribuir juridicidade a valores não positivados por meio de 
deliberação democrática.
21
 Conforme se afirmou em outra sede, reconhece-se, ao 
contrário, “dentro do próprio direito positivo, a abertura do sistema que, em sua 
dinâmica, permite, através do processo de interpretação, o recurso – sempre 
argumentativo – aos valores. Isso se dá especialmente através dos princípios, normas 
que por sua estrutura peculiar, impõem ao intérprete um esforço especial de 
justificação”.
22
 
Daí o papel essencial que assume, sob o paradigma pós-positivista, a 
argumentação. O recurso aos princípios deflagra hipóteses em que dois princípios, 
ambos válidos e legítimos, entram em colisão ao oferecerem soluções opostas ao caso 
concreto: nestas hipóteses, a aplicação do Direito impõe o recurso à chamada 
ponderação, para encontrar qual deles é o mais adequado àquele caso, qual tem sua 
aplicação mais justificada. Este procedimento é essencialmente argumentativo e vem 
inspirado pela construção de uma teoria da argumentação, calcada na existência de uma 
lógica informal, que se aparta da racionalidade matemática, mas sem abrir mão dos 
processos de verificação de razoabilidade que lhe garantem legitimidade.
23
 
 
4. A guinada do direito civil 
O impacto dessas transformações, especialmente da presença imanente das 
normas constitucionais, projeta-se em cada uma das áreas do direito civil. De modo 
geral, a comparação entre o antigo Código Civil de 1916, a democrática Constituição de 
1988 e o canhestro Código Civil de 2002 – construído a partir de um projeto de 1975, 
elaborado durante o regime militar – é ilustrativa. A lógica patrimonialista do diploma 
de 1916 é substituída por uma lógica solidarista do texto constitucional, expressada 
como lógica da “socialidade” no Código de 2002. 
Na teoria geral, a proteção conferida pelo Código de 1916 ao indivíduo, sujeito 
de direitos patrimoniais, dá lugar à proteção integral da dignidade da pessoa humana no 
art. 1º, III, da Constituição, e influencia a previsão de um bem-intencionado (mas 
irremediavelmente obsoleto) rol de direitos da personalidade no Código vigente, sem 
provocar, por outro lado, mudanças substanciais na tradicional disciplina do negócio 
jurídico, hoje sabidamente inadequada à instrumentalização dos interesses subjetivos 
existenciais. 
 
21
 Paulo BONAVIDES. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 238. 
22
 Maria Celina BODIN DE MORAES. O jovem direito civil-constitucional. Editorial a civilistica.com. a.1, 
n.1., 2012, com base em Antonio C. Maia, Notas sobredireito e argumentação. In M. Lacombe (org.). 
1988-1998: Uma década de constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 395-431. 
23
 Sobre o tema, v. Chaïm PERELMAN e Lucie OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da argumentação: a nova 
retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2003; Robert Alexy. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: 
Landy, 2005. 
8 
 
Nas obrigações e contratos, o princípio maior e imponderável da autonomia da 
vontade dá lugar à proteção constitucional da solidariedade (e consequentemente da 
boa-fé objetiva, da defesa do consumidor e de diversos outros valores socialmente 
relevantes). O Código de 2002, reconhecendo a funcionalidade dos institutos, expressa 
que a liberdade de contratar será exercida nos limites e em razão da função social do 
contrato.
24
 
A funcionalização transparece também no direito das coisas, onde a proteção 
primordial à até então soberana propriedade privada vem dinamicamente condicionada à 
realização da sua função social, que hoje se alastra também para reconhecer efeitos 
jurídicos a uma função social da posse. Na responsabilidade civil, ultrapassa-se a 
tradicional limitação à reparação apenas do dano patrimonial e somente com 
fundamento na culpa para, com a Constituição, assegurar igualmente a indenização por 
dano moral e, com o Código de 2002, a cláusula geral de responsabilidade civil pelo 
risco.
25
 
No direito de família, a família-instituição do Código de 1916, protegida como 
um bem em si mesmo, a despeito da realização pessoal de seus integrantes, é 
reconstruída na Constituição de 1988 em virtude da afirmação da proteção integral da 
criança e da igualdade entre os cônjuges, entre os filhos e mesmo entre as diferentes 
estruturas familiares. Trata-se da família-instrumento, funcionalizada ao livre 
desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, ou família 
democrática, na medida em que garante a liberdade, a igualdade e o direito de voz entre 
seus membros.
26
 Até mesmo o direito das sucessões, tradicionalmente protetor 
exclusivamente da vontade do testador, sofre influência das novas tendências, 
especialmente oriundas da família e da propriedade, e inclui o cônjuge como herdeiro 
necessário, exige que a cláusula de inalienabilidade passe a ser motivada e, de modo 
geral, funcionaliza a sucessão à realização dos valores do ordenamento.
27
 
Mais do que a transformação do conteúdo do direito positivo, tem-se que lidar 
com o novo recorte metodológico. E então, bastará indagar: quem é o sujeito do direito 
civil contemporâneo? O indivíduo abstrato, homo clausus, protegido em seus bens (pai, 
marido, proprietário, contratante, testador) – cuja tutela é expressada pelo princípio 
geral do enriquecimento sem causa –, deu lugar à pessoa concreta, protegida em sua 
dignidade (criança, adolescente, idoso, mulher, consumidor, deficiente) – cuja tutela é 
expressada através do princípio da dignidade da pessoa humana. Mais ainda, qual é o 
objeto do direito civil contemporâneo? A vontade (“quem diz contratual diz justo”), a 
limitada igualdade formal, a autonomia privada entendida como liberdade nas situações 
patrimoniais e a vedação ao ato ilícito foram substituídas pela finalidade, pela promoção 
da igualdade substancial e do direito à diferença, pela autonomia privada entendida 
 
24
 Sobre esta concepção do tema, cf. Maria Celina BODIN DE MORAES. A causa dos contratos. Na medida 
da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 289 e ss. 
25
 A respeito, v. Maria Celina BODIN DE MORAES. Solidariedade, risco e responsabilidade objetiva. Na 
medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 381 e ss. 
26
 A respeito, v. Maria Celina BODIN DE MORAES. A família democrática. Na medida da pessoa 
humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 207 e ss. 
27
 Em exemplo desta tendência, v., por todos, Ana Luiza MAIA NEVARES. A função promocional do 
testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim. 
Stefany
Realce
9 
 
como um espaço de liberdade nas situações existenciais e pela complementação da 
vedação do ato ilícito pela proibição do ato abusivo. 
Finalmente, como é a forma de interpretação e aplicação do direito civil 
contemporâneo? A mudança é de monta: da prevalência da estrutura dos institutos 
jurídicos à primazia de sua função; dos conceitos aos valores; das regras aos princípios; 
do estudo dos enunciados normativos abstratos ao dos casos concretos; da vontade do 
legislador à vontade do juiz (devidamente fundamentada); da segurança (certeza) à 
justiça (incerteza); da manutenção do status quo à função promocional do direito; da 
subsunção à ponderação; da técnica à cultura; enfim, da objetividade à relatividade – 
tendo-se em mente que não se trata de substituir um termo pelo outro, mas sim de 
agregá-los. 
 
5. Inferindo o futuro: o desafio da diferença 
O processo de transformação do direito civil, como observado, impôs a 
substituição do paradigma centralizado na autonomia privada, no indivíduo livre mas 
isolado, na tutela da vontade e do patrimônio, pelo paradigma da dignidade humana, da 
pessoa inserida no meio social, na tutela dos vínculos sociais de que ela depende – a 
solidariedade. Todavia, essa reviravolta não pode significar o descarte dos espaços de 
autonomia, uma vez que a própria liberdade também é constitutiva da dignidade. 
Em meio a este processo, em virtude da ligação histórica que se estabeleceu 
entre o conceito de autonomia, o voluntarismo e o patrimonialismo, a autonomia ficou 
relegada a um segundo plano, e o sistema como um todo, em virtude dessa inconsciente 
omissão, ganhou um forte tom paternalista. A incipiência da separação entre, de um 
lado, a autonomia privada patrimonial, pacificamente funcionalizada, instrumentalizada, 
submetida à satisfação de interesses superiores, e, de outro lado, a autonomia privada 
existencial, ainda indefinida, não suficientemente afirmada e estudada, criou mais este 
desafio ao direito civil contemporâneo. Não à toa, a principal crítica ao método da 
chamada constitucionalização do direito civil reside neste ponto: questiona-se se a 
invasão das relações intersubjetivas pelo texto constitucional não conduziria a uma 
redução do espaço das escolhas individuais, podendo resultar em um autoritarismo ou 
paternalismo judicial.
28
 
A doutrina não é uniforme. De um lado, Pietro Perlingieri afirma que este tipo 
de crítica se calca na falsa ideia de que a intervenção legislativa seria um obstáculo ou 
uma restrição à autonomia privada, sem reconhecer que, em sociedades desiguais, é a 
atuação do legislador e do Poder Público que garantem a efetiva liberdade da pessoa 
humana.
29
 Mais do que isso, o autor afirma que a autonomia privada nunca é um valor 
em si, merecendo proteção apenas enquanto corresponder a um interesse digno de tutela 
pelo ordenamento.
30
 Repudia, assim, qualquer forma de pensamento que tenda a 
conceber a existência de “espaços de não-direito” e reputa ilusória a concepção de que o 
silêncio do legislador significaria um espaço de plena liberdade individual, subtraído à 
 
28
 Daniel SARMENTO. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio: Lumen Juris, 2004, p. 215. 
29
 Pietro PERLINGIERI. Perfis, cit., p. 17. 
30
 Pietro PERLINGIERI. Perfis, cit., p. 279. 
10 
 
interferência do ordenamento, uma vez que toda e qualquer conduta humana permanece 
avaliada de acordo com o sistema constitucional. Toda e qualquer relação intersubjetiva 
sofrerá a incidência da principiologia constitucional, e os espaços de afirmação da 
liberdade individual decorrerão sempre do resultado da ponderação entre estes 
princípios, nunca se constituindo em um a priori intocável. 
Contudo, a questão se revela especialmente complexa nas hipóteses em que o 
fato realizado não repercute, ao menos diretamente, sobre a esfera de terceiros, como 
nos casosparadigmáticos do arremesso do anão e, no âmbito dos atos de disposição do 
próprio corpo, dos transexuais. O primeiro caso, já bastante divulgado, ocorreu em 
certame realizado na França, em 1991, por empresa do ramo de entretenimento para 
jovens, que consistia “em transformar um indivíduo de pequena estatura (um anão) em 
projétil a ser arremessado pela plateia de um ponto a outro da casa de diversão”. A 
controversa interdição da prática pelo prefeito da cidade de Monsang-sur-Orge, em 
nome da ordem pública, levou o caso às altas instâncias francesas – embora o Tribunal 
Administrativo de Versailles tenha anulado o ato do Prefeito sob o fundamento de 
liberdade de trabalho, o Conselho de Estado entendeu que a atividade era atentatória à 
dignidade humana – e internacionais. O caso chegou às Nações Unidas, em virtude de 
apelo do Sr. Wackenheim, mas também nessa instância a decisão lhe foi contrária.
31
 
O segundo caso, menos inusitado mas igualmente ilustrativo, refere-se aos 
transexuais que desejam ver reconhecido seu direito a uma nova identidade, com a 
mudança jurídica de seu status – nome e gênero no registro civil –, independentemente 
de cirurgia de redesignação sexual. A dificuldade aqui ainda é grande no país. Imagine-
se que somente em 2009 o STJ admitiu, pela primeira vez, a mudança do gênero no 
registro de um transexual operado.
32
 Claramente, o entendimento médico ainda 
considera que transexual é aquela pessoa que, por não suportar conviver com a genitália 
de seu sexo biológico, necessita de uma cirurgia.
33
 No entanto, a segunda geração de 
pessoas transexuais, ao conviver de perto com a primeira, percebeu os sacrifícios 
 
31
 Joaquim BARBOSA GOMES. O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana. ADV-
COAD: Seleções, n. 12, 1996, p. 17. Para a decisão em última instância, v. Manuel Wackenheim v 
France Communication No 854/1999, UN Doc. CCPR/C/75/D/854/1999 (2002). Afirma L. Roberto 
Barroso. “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso 
transnacional. Revista dos Tribunais online, vol. 919, p. 127, Mai/2012 DTR\2012\2773, nota 267 que 
“a decisão tem sido mundialmente criticada com base no argumento de que a dignidade como autonomia 
deveria ter prevalecido.(...) V. Stéphanie Hennette-Vauchez, When Ambivalent Principles Prevail: leads 
for explaining western legal orders’ infatuation with the human dignity principle, Legal Ethics, n. 10, p. 
193, 206-208, 2007. 
32
 STJ, 3ª T., REsp 1.008.398. Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 10.10.2009, garantindo ao transexual 
que tenha se submetido à cirurgia de mudança de sexo a troca do nome e do gênero em registro sem que 
conste anotação no documento. O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente deve 
constar apenas nos livros cartorários. 
33
 A Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.955/2010, em seu art. 3º dispõe que a definição de 
transexualismo obedecerá, no mínimo, aos seguintes critérios: i) desconforto com o sexo anatômico 
natural; ii) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do 
próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; iii) permanência desses distúrbios de forma contínua e 
consistente por, no mínimo, dois anos; iv) ausência de transtornos mentais. 
11 
 
impostos pela retirada de seus órgãos genitais, e deseja ver reconhecida a nova 
identidade social sem a correspondente a alteração anatômica.
34
 
Em virtude de todos esses fatores, posicionando-se de outro lado, Stefano 
Rodotà, em veemente defesa da privacidade, vem sustentando a importância dos 
espaços resguardados, de não interferência, como mecanismo de garantir às pessoas 
âmbitos de livre escolha.
35
 Para o autor “é a consciência individual, com os seus 
tormentos, que deve ser respeitada pelo legislador, ao qual se dirige a sobriedade e, nos 
casos limites, o silêncio. Além disso, admitindo que exista uma área ‘indecidível’ pelo 
legislador e remetida às decisões individuais no quadro dos princípios gerais, se 
encontraria uma regra capaz de evitar conflitos lacerantes onde uma ou mais visões 
políticas fariam referência a valores considerados não negociáveis”.
36
 
O preceito constitucional que afirma o pluralismo de projetos de vida individuais 
imporia o respeito, mesmo perante o legislador – e o juiz –, destes espaços de 
autonomia existencial. Assim, para o autor, para permitir que o transexual se apresente 
socialmente em conformidade com o seu sexo psicológico, poderá ser suficiente o 
procedimento jurídico-formal realizado no registro civil, com a alteração do nome e do 
sexo da pessoa portadora de tal identidade.
37
 
Aduz-se ainda, nesta linha, que além do perigo geral que seria a desconsideração 
ou diminuição do princípio da liberdade, este problema gera um grave reflexo: um 
modelo paternalista, ao privar as pessoas da autonomia, tratando-as como incapazes e 
vulneráveis – e o exemplo mais emblemático é, certamente, o tratamento atualmente 
conferido aos consumidores –, estaria a liberá-las da responsabilidade pelos seus atos. A 
lição é simples: sem autonomia, não há responsabilidade. Consequentemente, a 
responsabilidade passa a ser automaticamente transferida a terceiros, em um processo de 
“vitimização” já descrito com precisão por Tzvetan Todorov.
38
 
A divisão que este desafio oferece ao direito civil contemporâneo reflete, neste 
âmbito mais específico, uma controvérsia mais ampla, entre posições ditas liberais e 
comunitárias.
39
 De fato, enquanto de um lado se prioriza a prerrogativa de cada 
 
34
 No Brasil, a 2ª C. C. do Tribunal de Justiça do Estado do Sergipe, em novembro de 2012, em decisão 
unânime, concedeu a transexual o direito de ter o nome no registro civil alterado para o gênero feminino 
sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização. A assistente social A. L. S. teve seu pedido negado 
em primeira instância. O Ministério Público de Sergipe recorreu sustentando que o autor apesar de ter 
nascido homem se identifica, desde a adolescência, psicológica e corporalmente, com o sexo feminino, 
tendo adquirido hábitos e postura característicos do gênero. Disponível no site do IBDFam., acesso em 02 
dez. 2012. 
35
 Stefano RODOTÀ. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006, p.. 
36
 Stefano RODOTÀ. Riaprire il dialogo sui valori della vita. La repubblica, 10.05.2006. 
37
 Stefano RODOTÀ. La vita e le regole, cit., p.88. Essa tendência foi incorporada por países da Europa e, 
recentemente, pela Argentina, que aprovou em maio de 2012 a sua Lei de Identidade de Gênero. Com a 
Lei 26.743, a Argentina passou a permitir a mudança de gênero e nome nos documentos sem necessidade 
de tratamento ou cirurgia prévia. Essa lei e outras do gênero (Portugal, Espanha) estão sendo formuladas 
a partir dos Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos às 
Questões de Orientação Sexual e Identidade de Gênero. A propósito, v. o site 
http://www.unhcr.org/refworld/category,REFERENCE, ICJRISTS,,,48244e602,O.html, acessado em 21 
dez. 2012. 
38
 Tzvetan TODOROV. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 225. 
39
 Sobre o tema, faz-se referência ao trabalho pioneiro de Gisele CITTADINO. Pluralismo, direito e 
justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 
1999. 
12 
 
indivíduo de realizar as escolhas de vida – subtraindo-se, portanto, as liberdades 
fundamentais da esfera de poder do legislador –, nega-se, de outro lado, a possibilidade 
de interpretar tais liberdades de forma dissociada do conjunto de valores coletivamente 
compartilhados – e, portanto, tais direitos ficariam submetidos às manifestações 
coletivas de soberania popular. 
Nesse cenário, impõe-seaos estudiosos do direito civil um significativo desafio: 
desenvolver parâmetros para que, na aplicação do Direito à luz dos princípios 
constitucionais, seja possível compatibilizar a superação da autonomia privada clássica, 
patrimonial, concebida como um valor unitário (sempre igual, independentemente da 
circunstância), com a proteção contemporânea da liberdade (rectius, da autonomia 
existencial) como um aspecto da dignidade da pessoa humana – em outras palavras, 
como livre desenvolvimento da personalidade de cada um, que, portanto, deve ser 
respeitado. 
 
6. Conclusão: a necessária calibragem 
Assim como ocorreu nas primeiras duas décadas do século passado, reputado o 
breve século XX, ainda estamos em um período de grande indefinição. Sabemos quais 
são os problemas, mas, aparentemente, ainda não temos os instrumentos necessários 
para solucioná-los. Segundo Zygmunt Bauman, vivemos em um período de interregno 
(“inter rex”), semelhante ao que ocorreu em Roma na lendária transição do trono em 
virtude da morte de Rômulo, seu mítico fundador. Conforme relata Plutarco, depois de 
38 anos de reinado, Rômulo desapareceu, levado pela chuva e pelo vento, sem que 
tivesse dele restado nada, nem sequer seu cadáver.
 
Não havia sido formulado, até então, 
qualquer processo de transição que apontasse um sucessor, de modo que a coroação de 
Numa Pompílio não ocorreu imediatamente após a morte de Rômulo, mas por um 
tempo os senadores governaram a cidade em rotação, alternando-se a cada dez dias, em 
uma tentativa de substituir a monarquia com uma oligarquia – período que ficou 
conhecido, justamente, como interregno.
40
 
Qualquer conclusão que se possa extrair do panorama geral traçado será apenas 
prospectiva. Contudo, exatamente nesta linha, é importante alertar que a consolidação 
da metodologia pós-positivista e da constitucionalização do direito civil em nossa 
doutrina e, especialmente, em nossos tribunais, tem sinalizado para um perigo crescente. 
A necessária superação do formalismo por uma perspectiva mais flexível e 
principiológica foi efetivada, e agora nos deparamos com o alerta do risco oposto. O 
receio dos juristas mais tradicionais parece encontrar eco quando se veem decisões que, 
sob o pretexto da constitucionalização e da aplicação dos princípios, mais parecem 
realizar o que vem sendo chamado de banalização do Direito.
41
 
De fato, o rigor excessivo na proteção da segurança jurídica, com a imposição do 
método único da subsunção na aplicação das normas, encontra-se justificadamente 
 
40
 PLUTARCO, Vidas paralelas. T. I, p. 109. Disponível em <http://www.elaleph.com>, acesso em 27 dez. 
2012. 
41
 Daniel SARMENTO. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In C. P. de Souza Neto e D. 
Sarmento (coord.). A constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 113-148. 
Stefany
Realce
13 
 
superado, até mesmo porque traduz uma segurança ilusória e uma neutralidade falsa, 
por trás das quais apenas se mascaram as escolhas políticas existentes no processo.
42
 No 
entanto, a superação da aplicação mecânica não pode funcionar como pretexto para se 
conferir ao magistrado carta branca para decidir, de acordo com suas concepções 
pessoais, mediante a invocação genérica de algum princípio constitucional que ele 
acredite amparar sua própria e individual versão de justiça.
43
 Neste sentido, tão 
perigosas quanto o discurso positivista da dedução neutra revelam-se as suspeitas de 
que, através deste espaço, os juízes ou tendem a favorecer a parte mais fraca nas ações 
judiciais como forma de fazer justiça social e redistribuição de renda (justiça “Robin 
Hood”), ou tendem a refletir a subversão generalizada das instituições pelos ricos e 
politicamente influentes em seu próprio benefício (justiça “King John”), ou, ainda, 
efetivam, em submissão à influência dos poderes locais, a “subversão paroquial da 
justiça”.
44
 
A constatação de que vivemos em uma era de incertezas e de que o mecanismo 
de aplicação do Direito é guiado por uma lógica informal não permite abrir mão da 
segurança jurídica. A previsibilidade das decisões judiciais é também uma questão de 
justiça, pois decorre da necessária coerência e harmonia que devem caracterizar o 
sistema.
45
 Ao que parece, todavia, parte do Judiciário não percebeu que a derrubada do 
limite externo, formal, que restringia o intérprete – o dogma da subsunção – não 
significou a consagração do arbítrio, mas, ao contrário, impôs um limite interno, – 
metodológico – a exigência de fundamentação (argumentativa) da sentença. 
Como já se afirmou em doutrina, “nesse quadro atual, onde os magistrados 
dispõem de uma área maior ainda de liberdade do que a tradicionalmente garantida em 
nossa história jurídica, impõe-se uma atenção maior à questão concernente às 
justificativas pelas quais os juízes chegam às decisões que dirimem as lides a eles 
submetidas”.
46
 Já que o controle da atividade judicial não mais se dá externamente, por 
meio de leis que impediam o juiz de se afastar da lógica formal e da letra da lei, esse 
controle passa a se realizar através dos fundamentos de que ele se utiliza, de forma 
argumentativa, com vistas a motivar, adequadamente e em obediência à Constituição, 
sua decisão, controle que é possível e mais adequado do que o anterior em uma 
sociedade democrática, complexa e plural. A doutrina que vem se dedicando ao tema 
destaca que toda decisão se dá em função de um determinado modo de pensar, orientado 
por valores, e que a análise da lógica que fundamenta tais decisões não é do tipo formal, 
 
42
 V. Ovídio A. BATISTA SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 
2004, p. 274 e Michele TARUFFO. Legalità e giustificazione nella creazione giudiziaria del diritto. Rivista 
trimestrale di diritto e procedura civile, 2001. 
43
 Sobre o tema, por todos, v. Luiz WERNECK VIANNA et al. A judicialização da política e das relações 
sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 
44
 Entre as raras análises empíricas sobre o tema, v. o premiado trabalho de Ivan César RIBEIRO. Robin 
Hood versus King John: como os juízes locais decidem casos no Brasil? Disponível em 
<http://www.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006_Profissional_01lugar
_tema01.pdf>, acesso em 21 dez. 2012. 
45
 Sobre o tema, Ricardo GARCIA MANRIQUE. Acerca del valor moral de la seguridad jurídica. Doxa, n. 
26 (2003). Sobre a compatibilidade entre segurança jurídica e superação do formalismo, v. Antônio-
Enrique PÉREZ LUÑO. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994. 
46
 Antonio C. MAIA. Notas, cit., p. 413. 
Stefany
Realce
14 
 
mas se guia em direção à razoabilidade destas decisões.
47
 Em especial, as decisões que 
passam pela aplicação de princípios exigem a construção de um discurso de justificação, 
para além de um discurso de aplicação, que permita fundamentar a preferência de um 
princípio para sua aplicação ao caso concreto em detrimento de outro naquela hipótese 
concorrente.
48
 De modo geral, a aceitação racional das decisões judiciais é guiada pela 
qualidade dos argumentos levantados, cuja verificação permite que o processo 
argumentativo seja concluído quando, desse todo coerente, resultar um acordo 
racionalmente motivado.
49
 
Em síntese, independentemente dos diversos matizes doutrinários acerca do 
tema,
50
 verifica-se uma convergência acerca da importância e do valor da 
fundamentação argumentativa das decisões como base para o controle democrático de 
legitimidade da atuação jurisdicional. O ordenamento brasileiro consagra o dever de 
motivação da sentença não apenas na legislação ordinária, incluindo-o também entre as 
regras constitucionais; com isto, ao lado da função intraprocessual da motivação, 
confere-lhe uma função extraprocessual.Além de facilitar o questionamento da 
sentença pelas partes e sua revisão pelo juízo de segunda instância, o dever de 
motivação desempenha uma função garantista, ao viabilizar o controle externo sobre as 
razões que fundam a decisão. Traduz, portanto, a implementação de uma concepção 
democrática de poder – no caso, do Poder Judiciário.
51
 Em vista disso, o disposto no art. 
93, IX, da Constituição – “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão 
públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)” – não pode ser 
tido como mera formalidade, mas sim “uma justificação racional pautada em parâmetros 
intersubjetivamente compartilhados de argumentação”,
52
 devendo ser respeitado e 
cumprido por ter se tornado a pedra angular, isto é, o princípio-base do ordenamento no 
que tange à atual metodologia de interpretação e aplicação do Direito. 
Nossa concepção de democracia funda-se no paradigma do Estado de Direito, ou 
seja, na ideia de que se pode estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir 
do qual se torna possível uma sociedade livre, justa e solidária. A este ideário contrapõe 
Agamben a constatação de que “o problema fundamental não diz respeito à Constituição 
ou à lei; diz respeito ao governo. (...) O verdadeiro ponto misterioso da política 
ocidental não é o Estado, não é a Constituição, não é a soberania, mas o governo. Não o 
soberano, mas o ministro. Não o legislador, mas o funcionário”.
53
 Mutatis mutandis, não 
o legislador, mas o juiz. 
 
47
 Margarida LACOMBE CAMARGO. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do 
direito, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 254. 
48
 Klaus GÜNTHER. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, trad. C. 
Molz. São Paulo: Landy, 2004, especialmente p. 367 e ss. 
49
 Jürgen HABERMAS. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and 
democracy, Cambridge: MIT Press, 1998, p. 222 e ss. 
50
 Sobre o tema, de modo geral, Manuel ATIENZA. As razões do direito. Teorias da argumentação 
jurídica. São Paulo: Landy, 2002; e Ricardo GUASTINI. L’interpretazione dei documenti normativi. 
Milano: Giuffrè, 2004. 
51
 Michele TARUFFO. Motivazione in Enciclopedia giuridica Treccani, vol. XX, Roma, 1990. 
52
 ID, o.l.u.c. 
53
 Giorgio AGAMBEN. A política da profanação. Entrevista concedida em 18.09.2005. Folha de São 
Paulo. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, acesso em 21 set. 2012. 
15 
 
O nó a ser desvencilhado para que se possa avançar na promoção da justiça e dos 
valores constitucionais deslocou-se, assim, para o momento da aplicação do Direito, 
para o que se poderia apelidar, se tal fosse possível, de um “positivismo judicial”. Se 
antes as soluções repousavam na lei – na época em que o juiz era considerado simples 
mensageiro desta (na expressão clássica de Montesquieu, la bouche de la loi) –, o 
problema a ser enfrentado, no contexto atual, corresponde a determinar de que forma 
(isto é, em que nível de fundamentação), com base em que critérios e em que situações 
o Direito deverá ser dito pelo magistrado (o direito segundo a boca-do-juiz). O 
deslocamento foi radical e parece imprescindível sua rápida identificação, para que se 
comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar possibilidades.

Outros materiais