Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Do juiz boca-da-lei à lei segundo a boca-do-juiz: notas sobre a aplicação-interpretação do direito no início do séc. XXI * Maria Celina BODIN DE MORAES ** As genuínas tragédias do mundo não são conflitos entre certo e errado. São conflitos entre dois certos. – HEGEL 1. Introdução Uma análise retrospectiva desses anos pós-constitucionais revela, no geral, uma história muito bem-sucedida. Contamos com um ordenamento jurídico plural e solidário, com a proteção cada vez mais plena e integral da pessoa humana e com uma metodologia de interpretação e aplicação do direito mais flexível e justa. No âmbito do direito civil, em especial, consolida-se a ideia de que a supremacia hierárquica do texto constitucional impõe não apenas um respeito formal às normas superiores, mas exige também que a legislação ordinária seja sempre interpretada e aplicada de forma a garantir a máxima incidência e eficácia dos preceitos da Constituição. 1 O momento atual, todavia, apresenta também riscos e perigos, e deve ser observado com cautela. Um exame superficial já revela que as numerosas conquistas obtidas vieram acompanhadas, por vezes, de consequências negativas as quais, sem a devida correção, podem afastar os próprios objetivos que inicialmente se buscava atingir. Um exemplo no âmbito da responsabilidade civil é especialmente ilustrativo. Com efeito, o início do séc. XXI no Brasil coincidiu com a explosão de um fenômeno a um só tempo extraordinário e assustador: a avassaladora quantidade de casos de reparação de danos, das mais variadas espécies e gêneros, considerados indenizáveis. 2 Qualquer resistência à indenização dos danos morais fora definitivamente eliminada pelo art. 5º, V e X, da Constituição Federal. No espírito de proteção privilegiada da pessoa humana, as lesões à sua dignidade passaram a ser plenamente ressarcíveis. Esta abertura desencadeou uma avalanche de demandas reprimidas, que não parece arrefecer. Pode-se mesmo afirmar que, atualmente, as lesões a direitos e * Texto escrito para compor a obra em homenagem ao Professor Carlos Alberto Dabus Maluf. Agradeço a pesquisa, o auxílio e as sugestões do Professor Carlos Nelson Konder bem como a leitura atenta dos doutorandos Eduardo Nunes de Souza, Thamis Dalsenter e Fernanda Nunes Barbosa. ** Professora Titular de Direito Civil da Faculdade de Direito da UERJ e Professora Associada do Departamento de Direito da PUC-Rio. 1 Para o início dessa história, v. Maria Celina BODIN DE MORAES. A caminho de um direito civil- constitucional. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar. 2010, p. 3 e ss. 2 Para exemplos, v., por último, Maria Celina BODIN DE MORAES. Dano moral: conceito, função, valoração. Revista Forense n. 413, 2011. Stefany Realce 2 interesses extrapatrimoniais são indenizadas aqui como nunca antes haviam sido, pelo menos em países de matriz romano-germânica. Entretanto, a viabilização dessa conquista, como de outras desde a promulgação do texto constitucional, ocorreu mediante a exacerbação do recurso à técnica legislativa da cláusula geral e do livre arbitramento, que deixam a cargo do magistrado, respectivamente, todo e qualquer juízo acerca da existência de ato contrário ao Direito, bem como o cálculo de sua compensação, normalmente prescindindo de provas. Não foram ainda, como se sabe, elaborados critérios (ou mesmo parâmetros) minimamente objetivos que possam auxiliar o juiz nessas difíceis matérias, atribuídas, inteiramente, à sua consciência. A jurisprudência, ainda inexperiente no tocante a tal metodologia, tem tido que a aplicar sem o necessário apuro técnico, o que contribui para o cenário atual de caos e arbitrariedade em relação ao tema. Mas não só: esse fenômeno é também consequência de uma atuação judicial nova e diferente, atuação esta que somente agora vem sendo completamente revelada e compreendida: é a consideração, inédita em nosso sistema, de que é a jurisprudência quem diz o que é o Direito. Uma das manifestações mais explícitas desse pensamento nos Tribunais Superiores pode ser atribuída ao Min. Humberto Gomes de Barros, o qual, não sem certa dose de acidez, afirmou: “Não me importa o que pensam os doutrinadores. Enquanto for Ministro do Superior Tribunal de Justiça, assumo a autoridade da minha jurisdição. O pensamento daqueles que não são Ministros deste Tribunal importa como orientação. A eles, porém, não me submeto. (...) Esse é o pensamento do Superior Tribunal de Justiça, e a doutrina que se amolde a ele. É fundamental expressarmos o que somos. Ninguém nos dá lições. Não somos aprendizes de ninguém. Quando viemos para este Tribunal, corajosamente assumimos a declaração de que temos notável saber jurídico – uma imposição da Constituição Federal. Pode não ser verdade. Em relação a mim, certamente, não é, mas, para efeitos constitucionais, minha investidura obriga-me a pensar que assim seja”. 3 A influência das artes cinematográficas, aliada a temporadas de estudos em direito público e direito empresarial conduzidos na América, juntamente com o fato dessa influência decorrer também da ampla oferta de bibliografia e de bibliotecas e do predomínio da disponibilização de documentos online, acaba por gerar uma confusão no âmbito jurídico que precisa ser desfeita para que se conheçam, ao menos, as fronteiras tocadas pela discussão. A manifestação do ministro, com efeito, amolda-se com perfeição a ordenamentos do sistema da Common Law, ordenamentos em cuja base está o precedente judicial. Assim, por exemplo, embora atualmente seja frequente a referência a “precedente”, especialmente pelo STJ, não se trata da mesma coisa: o nosso precedente, necessariamente plural e relativo ao direito, denota, na verdade, o comportamento da “jurisprudência”, enquanto o “precedente” em sua acepção original, de matriz anglo-americana, com frequência é único e refere-se aos fatos principais da demanda. São diferenças, portanto, tanto qualitativas como quantitativas. 4 3 STJ, 1ª Seção, AgReg em EREsp 279.889/AL, Rel. Min. Francisco Peçanha Martins, Rel. p/ ac. Min. Humberto Gomes de Barros, julg. 14.08.2002. 4 Para essas e outras considerações acerca das consequências da mencionada diferença, v. Michele TARUFFO. Precedente e giurisprudenza. Roma: Editoriale scientifica, 2007, passim. 3 Mas, independentemente das evidentes e ineludíveis aproximações entre os dois sistemas, que aqui não vêm ao caso, a diferença estrutural que os distingue baseia-se justamente no fato de que a força e o poder de um estão na teoria e na exegese; do outro, na prática e na perícia. Nos sistemas romano-germânicos entende-se haver uma “ciência”, decorrente do conhecimento do ordenamento, visto como um sistema que, composto pelo corpo de normas contidas em diplomas legislativos diversos, é dotado de algumas características essenciais: a unidade e a coerência. 5 Daí, portanto, ser um direito doutoral, de professores, aqueles que em virtude de estudos aprofundados, impossíveis de ser realizados no dia a dia, por força das demandas cotidianas do julgar, melhor conhecem e, em consequência, melhor elaboram sua interpretação sistemática e teleológica. 6 Na tradição da Common Law, ao contrário, o direito é jurisprudencial, baseado nos casos concretos (case law) e pouco codificado. O primado é conferido aos processos, que devem ser leais (fair trial) e realizado pelos cidadãos (jury trial), e cuja maestria se adquire sobretudo pela prática ou por técnicas pedagógicas que se aproximam ao máximo da prática profissional (o case method). 7 As escolas de Direito são, desse modo, semelhantes a laboratórios. O status da regra jurídica não se considera fundado numa teoria moral ou numa ciência racional, mas tem em mira tão somente“dar uma solução a um litígio, situando-se, deliberadamente, no nível da casuística das aplicações particulares”. 8 Nesse contexto, entendido o Direito não como ciência, mas como “experiência”, o jurista da Common Law é o magistrado. 9 Em virtude das recentes e significativas mudanças tanto de conteúdo, como de forma e de método, parece oportuna uma breve e genérica reflexão acerca do caminho percorrido, das conquistas obtidas e dos malogros sofridos, mas, principalmente, dos rumos que já estão sendo trilhados. 2. Explicando o passado Embora se trate do ramo mais antigo do Direito, o auge do desenvolvimento teórico do direito civil conforme é concebido atualmente encontra-se nos séculos XVIII e XIX. Naquela altura, foram formulados os seus conceitos e criados os seus institutos mais importantes – ou, ao menos, conferiu-se a eles o molde pelo qual os identificamos até hoje. Como, porém, o Direito é sempre fruto do contexto social e histórico no qual se origina, cumpre identificar os valores que então predominavam e que, portanto, ficaram impregnados nas construções jurídicas que herdamos daquela época. A característica mais marcante daquele período era a separação do ordenamento a partir de uma summa divisio: a dicotomia entre direito público e direito privado. Esta divisão tradicional, que vem acompanhada de outras a ela ligadas, tais como Estado e sociedade, autoridade e liberdade, política e economia, Direito e moral, entre outras, 5 Norberto BOBBIO. Teoria dell’ordinamento giuridico. Torino: Giappichelli, 1960, p. 80 e ss. 6 Pierre BOURDIEU. O poder simbólico. Trad. de F. Thomaz. 4. ed. s.l.: Bertrand Brasil, 2001, p. 209 ss. 7 ID., o.l.u.c. 8 ID, o.l.u.c. 9 Oliver Wendell HOLMES Jr. The Common Law. 1881, em cuja primeira página se lê: “The life of the law has not been logic; it has been experience”. Disponível online, acesso em 23 dez. 2012. 4 justifica-se do ponto de vista de um Estado liberal, não interventor, que serve apenas à proteção do livre jogo econômico. A mão invisível do mercado, uma instituição natural, pré-política, garantiria, nesse cenário, o funcionamento harmônico da sociedade civil, cabendo ao Estado intervir excepcionalmente e apenas para conter eventuais excessos. 10 Naquele momento histórico é da codificação o papel de elemento central unificador do sistema. Convertido em “monumento legislativo”, o código era considerado repositório, não de um direito “voluntário” (contingente e mutável), mas do direito natural, universal e perpétuo. 11 No direito codificado, já consolidados os valores individualistas, voluntaristas e patrimonialistas da burguesia, a referência ao direito natural, até então recorrente, tornou-se uma ameaça de retorno à sociedade de castas anterior. Em consequência, diante do direito positivo recém-elaborado, plenamente adequado aos anseios da classe dominante, o positivismo jurídico se torna a metodologia jurídica dominante. Nesse primeiro momento, fala-se em “positivismo voluntarista”. Com efeito, da Revolução Francesa emerge, em 1804, o Code Napoléon, que se tornaria a principal referência para todos aqueles que o sucederam. Em direta oposição ao regime anterior de privilégios nobiliárquicos, o Code é pautado pela igualdade formal de todos perante a lei e pela liberdade individual. Esta liberdade era compreendida a partir de uma concepção de homem, sujeito de direitos, cujo elemento central é a vontade, que protagoniza toda a disciplina presente na lei. Daí um regime em que os contratos faziam lei entre as partes e só podiam ser invalidados com base em um rol taxativo de “vícios da vontade”. 12 Complementarmente, a constrição à atividade judicial era exercida por meio de uma metodologia de aplicação do Direito calcada na interpretação literal, passiva e mecânica, a chamada “escola da exegese”, de modo a garantir a efetiva implementação da nova legislação burguesa. Isto decorreu da combinação do teor do art. 4 do Code, 13 obrigando ao juiz a julgar cada caso, com o veto ao teor do art. 9, que projetava a possibilidade de recurso pelo magistrado à equidade. Com efeito, não sendo possível ao juiz, nem em caso de lacuna ou obscuridade, usar a equidade (termo que, com o veto, desaparece do Code) e estando ele obrigado a julgar todos os casos, uma vez que não podia mais recusar-se (em decorrência do princípio iluminista da separação dos poderes e incompativelmente com o princípio romano do non liquet), compreenderam os primeiros intérpretes que deveria fazê-lo sempre e somente com base em lei, que naquele momento, estava inteiramente contida no Código. Assim se pavimentou o caminho inexorável em direção ao positivismo, fruto do exagero que ficou conhecido como o “fetichismo da lei”. 14 10 A respeito, v., por todos, Gustavo TEPEDINO. Temas de direito civil. 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2004, p. 223. 11 António Manuel HESPANHA. Panorama histórico da cultura jurídica europeia. Portugal: Publicações Europa-América, 1997, p. 162. 12 Segundo Henri BATTIFOL. A filosofia do direito. Trad. de E. Cavalheiro. Lisboa: Editorial Notícias, s.d., p. 13: “a fórmula mais ilustre e influente do voluntarismo é a que nos dá Rousseau. A tradição do contrato social preparava uma explicação voluntarista da lei: esta é a expressão da vontade geral”. 13 Code Napoléon, art. 4 : “Le juge qui refusera de juger, sous prétexte du silence, de l’obscurité ou de l’insuffisance de la loi, pourra être poursuivi comme coupable de déni de justice ”. 14 V., a propósito do tema, Norberto BOBBIO. O positivismo jurídico. Lições da Filosofia do Direito. Trad. e notas de M. Pugliesi. São Paulo: Ícone editora, 1995, p. 73 e ss. 5 Enquanto a França, então um país já consolidado, pôde encontrar refúgio no seu Código, na Alemanha, que só viria a se unificar na segunda metade do século XIX, os juristas foram buscar na História a base para a construção do seu direito civil moderno, através da observação do produto espontâneo do “espírito popular” – Volksgeist. 15 De inspiração kantiana, a pandectística baseava-se na construção de um sistema de conceitos extraídos da cultura, da língua, do folclore, da tradição literária, das manifestações de “alta cultura” consolidadas pela comunidade, mas por meio da dotação de tratamento rigorosamente formal, com função estruturante do próprio ordenamento. A coerência interna das categorias e a descrição neutra dos princípios prevaleciam em virtude da desvalorização da lei e dos fatos sociais. Mas, na mesma linha da tradição francesa, esta escola, dita Histórica, deixou um legado de restrição ao poder do juiz, neste caso em decorrência da criação do dogma da subsunção, isto é, da ideia de que a aplicação do Direito se dava através de um raciocínio lógico, silogístico e automático. 16 Este quadro de enfraquecimento do Poder Judiciário, aliado às primeiras manifestações de intervencionismo estatal diante do naufrágio da economia liberal, será aperfeiçoado e substituído, em um segundo momento, por um positivismo formalista, estatal. Em reação a tendências com viés sociológico (teológico e humanista), tem início o apogeu do formalismo, que buscava a purificação da teoria jurídica – como no modelo Kelseniano – por meio da concepção de um sistema dotado de apenas conceitos fundamentais. 3. Entendendo o presente O século XX representa um momento de transição. O colapso do modelo liberal, explicitado pela sucessão de graves crises econômicas, enseja a construção de um modelo de intervenção na economia, o chamado Estado do bem-estar social. De outro lado, a legitimidade jurídica formal que acabou por permitir o florescimento dos regimes totalitaristas na Europa ocidental revela o fracasso do paradigma do positivismo normativista. A necessidadede que o Direito forneça instrumentos de reprovação aos regimes autoritários que vilipendiaram a dignidade das minorias – como demandado simbolicamente pelo tribunal de Nuremberg – impunha a reformulação do paradigma jurídico. A transformação se inicia no direito internacional, através das declarações de direitos humanos que, a partir da Declaração Universal de Direitos do Homem de 1948, proliferaram em número e abrangência das garantias oferecidas a todas as pessoas. Concomitantemente, o direito interno sensibiliza-se àquela transformação com a positivação, nas longas Constituições, de um rol de direitos e garantias individuais fundamentais (Itália em 1948 e Alemanha em 1949). A positivação dos direitos fundamentais e da proteção à dignidade da pessoa humana nos textos constitucionais acabou por ter um papel determinante na mudança de um ponto nevrálgico na metodologia contemporânea: o da força normativa das normas constitucionais. 15 Henri BATTIFOL. A filosofia do direito, cit., p. 9. 16 António Manuel HESPANHA. Panorama histórico da cultura jurídica europeia, cit., p. 185 e ss. Stefany Realce 6 Em consequência, uma vez que a Constituição confere unidade, coerência e harmonia ao ordenamento, pois todas as normas inferiores lhe devem obediência – são especificações para a plena realização de seus preceitos –, esvazia-se a tradicional divisão entre direito público e direito privado. Os interesses privados e públicos se confundem, na medida em que, de um lado, os interesses privados só são juridicamente protegidos por possuírem relevância pública e, de outro lado, o tradicional e ameaçador conceito de “interesse público” se transforma, nas sociedades democráticas, na composição deliberativa e na reconstrução dialógica dos interesses privados. 17 O poder estatal perdeu, em grande medida, o aspecto terrorista, porque as defesas dos cidadãos se fortaleceram em muito; contudo o fenômeno dos poderes privados são ameaças tão ou mais fortes, e restam normalmente impunes. As intimidações do poder privado não podem ser ignoradas e diante delas a autonomia privada, tradicionalmente neutra e imparcial, mostra-se “seriamente erodida”. 18 Frente a esse poder será necessário passar a intervir, recorrendo aos direitos fundamentais, de modo a garantir a proteção da dignidade humana também nas relações privadas. Do mesmo modo, a legislação ordinária de direito civil, em seu dever de obediência às normas superiores, converte-se em mecanismo de realização e efetivação dos preceitos constitucionais nas relações privadas – instrumentos de realização do projeto constitucional. 19 Fala-se, assim, na funcionalização dos institutos tradicionais de direito civil: o contrato, a propriedade e a família passam a ser protegidos somente quando relevante sua função social. Em especial, a importância conferida no texto constitucional à dignidade humana e aos direitos fundamentais impôs a prevalência, no âmbito privado, das situações jurídicas existenciais, em um processo que se denominou de “despatrimonialização do direito civil”. 20 O direito civil renovado passa a ser guiado pela proteção integral da pessoa humana, deixando de ter um único protagonista (a vontade do burguês), mas uma grande diversidade de sujeitos de direito, concretos e específicos, únicos em sua dignidade e em suas necessidades: a criança, o adolescente, o idoso, a gestante, o obeso, o deficiente, o consumidor, o microempresário, o sócio minoritário etc. Todos são compreendidos como pessoas, e não indivíduos (abstratos); trata-se, em outras palavras, de seres reais cuja identidade é necessariamente construída através da interação com a comunidade que os cerca: homo non clausus. Daí o surgimento de novas questões jurídicas, que aqui são apenas mencionadas, envolvendo alteridade, solidariedade e, especialmente, intersubjetividade. Renovação semelhante só foi possível graças à transformação da metodologia de interpretação e aplicação do Direito. A superioridade normativa da Constituição já tinha sido afirmada no contexto positivista, mas traduzia-se quase que exclusivamente do ponto de vista formal, com a obediência ao processo legislativo e por meio da atribuição 17 Para uma exposição do tema, v. Daniel SARMENTO. A trajetória da dicotomia público/privado. Revista trimestral de direito civil. vol. 22, abr./jun. 2005, p. 239-257. 18 Juan María BILBAO UBILLOS. ¿En qué medida vinculan a los particulares los derechos fundamentales? In I. W. Sarlet (org.). Constituição, direitos fundamentais e direito privado. 3. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2010, p. 264-266. 19 Gustavo TEPEDINO. Temas, cit., espec. pp. 1-22. 20 Pietro PERLINGIERI. Perfis do direito civil. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 33. Stefany Realce 7 e distribuição de competências. A reconstrução do Direito a partir de princípios – que representam valores estabelecidos na Constituição – é viabilizada através do que se denominou “pós-positivismo”. O termo, pioneiramente apresentado entre nós por Paulo Bonavides, representa uma tentativa de superação do formalismo do positivismo sem o recurso jusnaturalista de se atribuir juridicidade a valores não positivados por meio de deliberação democrática. 21 Conforme se afirmou em outra sede, reconhece-se, ao contrário, “dentro do próprio direito positivo, a abertura do sistema que, em sua dinâmica, permite, através do processo de interpretação, o recurso – sempre argumentativo – aos valores. Isso se dá especialmente através dos princípios, normas que por sua estrutura peculiar, impõem ao intérprete um esforço especial de justificação”. 22 Daí o papel essencial que assume, sob o paradigma pós-positivista, a argumentação. O recurso aos princípios deflagra hipóteses em que dois princípios, ambos válidos e legítimos, entram em colisão ao oferecerem soluções opostas ao caso concreto: nestas hipóteses, a aplicação do Direito impõe o recurso à chamada ponderação, para encontrar qual deles é o mais adequado àquele caso, qual tem sua aplicação mais justificada. Este procedimento é essencialmente argumentativo e vem inspirado pela construção de uma teoria da argumentação, calcada na existência de uma lógica informal, que se aparta da racionalidade matemática, mas sem abrir mão dos processos de verificação de razoabilidade que lhe garantem legitimidade. 23 4. A guinada do direito civil O impacto dessas transformações, especialmente da presença imanente das normas constitucionais, projeta-se em cada uma das áreas do direito civil. De modo geral, a comparação entre o antigo Código Civil de 1916, a democrática Constituição de 1988 e o canhestro Código Civil de 2002 – construído a partir de um projeto de 1975, elaborado durante o regime militar – é ilustrativa. A lógica patrimonialista do diploma de 1916 é substituída por uma lógica solidarista do texto constitucional, expressada como lógica da “socialidade” no Código de 2002. Na teoria geral, a proteção conferida pelo Código de 1916 ao indivíduo, sujeito de direitos patrimoniais, dá lugar à proteção integral da dignidade da pessoa humana no art. 1º, III, da Constituição, e influencia a previsão de um bem-intencionado (mas irremediavelmente obsoleto) rol de direitos da personalidade no Código vigente, sem provocar, por outro lado, mudanças substanciais na tradicional disciplina do negócio jurídico, hoje sabidamente inadequada à instrumentalização dos interesses subjetivos existenciais. 21 Paulo BONAVIDES. Curso de direito constitucional. 6. ed. São Paulo, Malheiros, 1996, p. 238. 22 Maria Celina BODIN DE MORAES. O jovem direito civil-constitucional. Editorial a civilistica.com. a.1, n.1., 2012, com base em Antonio C. Maia, Notas sobredireito e argumentação. In M. Lacombe (org.). 1988-1998: Uma década de constituição. Rio de Janeiro: Renovar, 1999, p. 395-431. 23 Sobre o tema, v. Chaïm PERELMAN e Lucie OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da argumentação: a nova retórica. São Paulo: Martins Fontes, 2003; Robert Alexy. Teoria da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2005. 8 Nas obrigações e contratos, o princípio maior e imponderável da autonomia da vontade dá lugar à proteção constitucional da solidariedade (e consequentemente da boa-fé objetiva, da defesa do consumidor e de diversos outros valores socialmente relevantes). O Código de 2002, reconhecendo a funcionalidade dos institutos, expressa que a liberdade de contratar será exercida nos limites e em razão da função social do contrato. 24 A funcionalização transparece também no direito das coisas, onde a proteção primordial à até então soberana propriedade privada vem dinamicamente condicionada à realização da sua função social, que hoje se alastra também para reconhecer efeitos jurídicos a uma função social da posse. Na responsabilidade civil, ultrapassa-se a tradicional limitação à reparação apenas do dano patrimonial e somente com fundamento na culpa para, com a Constituição, assegurar igualmente a indenização por dano moral e, com o Código de 2002, a cláusula geral de responsabilidade civil pelo risco. 25 No direito de família, a família-instituição do Código de 1916, protegida como um bem em si mesmo, a despeito da realização pessoal de seus integrantes, é reconstruída na Constituição de 1988 em virtude da afirmação da proteção integral da criança e da igualdade entre os cônjuges, entre os filhos e mesmo entre as diferentes estruturas familiares. Trata-se da família-instrumento, funcionalizada ao livre desenvolvimento da personalidade de cada um de seus membros, ou família democrática, na medida em que garante a liberdade, a igualdade e o direito de voz entre seus membros. 26 Até mesmo o direito das sucessões, tradicionalmente protetor exclusivamente da vontade do testador, sofre influência das novas tendências, especialmente oriundas da família e da propriedade, e inclui o cônjuge como herdeiro necessário, exige que a cláusula de inalienabilidade passe a ser motivada e, de modo geral, funcionaliza a sucessão à realização dos valores do ordenamento. 27 Mais do que a transformação do conteúdo do direito positivo, tem-se que lidar com o novo recorte metodológico. E então, bastará indagar: quem é o sujeito do direito civil contemporâneo? O indivíduo abstrato, homo clausus, protegido em seus bens (pai, marido, proprietário, contratante, testador) – cuja tutela é expressada pelo princípio geral do enriquecimento sem causa –, deu lugar à pessoa concreta, protegida em sua dignidade (criança, adolescente, idoso, mulher, consumidor, deficiente) – cuja tutela é expressada através do princípio da dignidade da pessoa humana. Mais ainda, qual é o objeto do direito civil contemporâneo? A vontade (“quem diz contratual diz justo”), a limitada igualdade formal, a autonomia privada entendida como liberdade nas situações patrimoniais e a vedação ao ato ilícito foram substituídas pela finalidade, pela promoção da igualdade substancial e do direito à diferença, pela autonomia privada entendida 24 Sobre esta concepção do tema, cf. Maria Celina BODIN DE MORAES. A causa dos contratos. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 289 e ss. 25 A respeito, v. Maria Celina BODIN DE MORAES. Solidariedade, risco e responsabilidade objetiva. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 381 e ss. 26 A respeito, v. Maria Celina BODIN DE MORAES. A família democrática. Na medida da pessoa humana. Rio de Janeiro: Renovar, 2010, p. 207 e ss. 27 Em exemplo desta tendência, v., por todos, Ana Luiza MAIA NEVARES. A função promocional do testamento. Rio de Janeiro: Renovar, 2008, passim. Stefany Realce 9 como um espaço de liberdade nas situações existenciais e pela complementação da vedação do ato ilícito pela proibição do ato abusivo. Finalmente, como é a forma de interpretação e aplicação do direito civil contemporâneo? A mudança é de monta: da prevalência da estrutura dos institutos jurídicos à primazia de sua função; dos conceitos aos valores; das regras aos princípios; do estudo dos enunciados normativos abstratos ao dos casos concretos; da vontade do legislador à vontade do juiz (devidamente fundamentada); da segurança (certeza) à justiça (incerteza); da manutenção do status quo à função promocional do direito; da subsunção à ponderação; da técnica à cultura; enfim, da objetividade à relatividade – tendo-se em mente que não se trata de substituir um termo pelo outro, mas sim de agregá-los. 5. Inferindo o futuro: o desafio da diferença O processo de transformação do direito civil, como observado, impôs a substituição do paradigma centralizado na autonomia privada, no indivíduo livre mas isolado, na tutela da vontade e do patrimônio, pelo paradigma da dignidade humana, da pessoa inserida no meio social, na tutela dos vínculos sociais de que ela depende – a solidariedade. Todavia, essa reviravolta não pode significar o descarte dos espaços de autonomia, uma vez que a própria liberdade também é constitutiva da dignidade. Em meio a este processo, em virtude da ligação histórica que se estabeleceu entre o conceito de autonomia, o voluntarismo e o patrimonialismo, a autonomia ficou relegada a um segundo plano, e o sistema como um todo, em virtude dessa inconsciente omissão, ganhou um forte tom paternalista. A incipiência da separação entre, de um lado, a autonomia privada patrimonial, pacificamente funcionalizada, instrumentalizada, submetida à satisfação de interesses superiores, e, de outro lado, a autonomia privada existencial, ainda indefinida, não suficientemente afirmada e estudada, criou mais este desafio ao direito civil contemporâneo. Não à toa, a principal crítica ao método da chamada constitucionalização do direito civil reside neste ponto: questiona-se se a invasão das relações intersubjetivas pelo texto constitucional não conduziria a uma redução do espaço das escolhas individuais, podendo resultar em um autoritarismo ou paternalismo judicial. 28 A doutrina não é uniforme. De um lado, Pietro Perlingieri afirma que este tipo de crítica se calca na falsa ideia de que a intervenção legislativa seria um obstáculo ou uma restrição à autonomia privada, sem reconhecer que, em sociedades desiguais, é a atuação do legislador e do Poder Público que garantem a efetiva liberdade da pessoa humana. 29 Mais do que isso, o autor afirma que a autonomia privada nunca é um valor em si, merecendo proteção apenas enquanto corresponder a um interesse digno de tutela pelo ordenamento. 30 Repudia, assim, qualquer forma de pensamento que tenda a conceber a existência de “espaços de não-direito” e reputa ilusória a concepção de que o silêncio do legislador significaria um espaço de plena liberdade individual, subtraído à 28 Daniel SARMENTO. Direitos fundamentais e relações privadas. Rio: Lumen Juris, 2004, p. 215. 29 Pietro PERLINGIERI. Perfis, cit., p. 17. 30 Pietro PERLINGIERI. Perfis, cit., p. 279. 10 interferência do ordenamento, uma vez que toda e qualquer conduta humana permanece avaliada de acordo com o sistema constitucional. Toda e qualquer relação intersubjetiva sofrerá a incidência da principiologia constitucional, e os espaços de afirmação da liberdade individual decorrerão sempre do resultado da ponderação entre estes princípios, nunca se constituindo em um a priori intocável. Contudo, a questão se revela especialmente complexa nas hipóteses em que o fato realizado não repercute, ao menos diretamente, sobre a esfera de terceiros, como nos casosparadigmáticos do arremesso do anão e, no âmbito dos atos de disposição do próprio corpo, dos transexuais. O primeiro caso, já bastante divulgado, ocorreu em certame realizado na França, em 1991, por empresa do ramo de entretenimento para jovens, que consistia “em transformar um indivíduo de pequena estatura (um anão) em projétil a ser arremessado pela plateia de um ponto a outro da casa de diversão”. A controversa interdição da prática pelo prefeito da cidade de Monsang-sur-Orge, em nome da ordem pública, levou o caso às altas instâncias francesas – embora o Tribunal Administrativo de Versailles tenha anulado o ato do Prefeito sob o fundamento de liberdade de trabalho, o Conselho de Estado entendeu que a atividade era atentatória à dignidade humana – e internacionais. O caso chegou às Nações Unidas, em virtude de apelo do Sr. Wackenheim, mas também nessa instância a decisão lhe foi contrária. 31 O segundo caso, menos inusitado mas igualmente ilustrativo, refere-se aos transexuais que desejam ver reconhecido seu direito a uma nova identidade, com a mudança jurídica de seu status – nome e gênero no registro civil –, independentemente de cirurgia de redesignação sexual. A dificuldade aqui ainda é grande no país. Imagine- se que somente em 2009 o STJ admitiu, pela primeira vez, a mudança do gênero no registro de um transexual operado. 32 Claramente, o entendimento médico ainda considera que transexual é aquela pessoa que, por não suportar conviver com a genitália de seu sexo biológico, necessita de uma cirurgia. 33 No entanto, a segunda geração de pessoas transexuais, ao conviver de perto com a primeira, percebeu os sacrifícios 31 Joaquim BARBOSA GOMES. O poder de polícia e o princípio da dignidade da pessoa humana. ADV- COAD: Seleções, n. 12, 1996, p. 17. Para a decisão em última instância, v. Manuel Wackenheim v France Communication No 854/1999, UN Doc. CCPR/C/75/D/854/1999 (2002). Afirma L. Roberto Barroso. “Aqui, lá e em todo lugar”: a dignidade humana no direito contemporâneo e no discurso transnacional. Revista dos Tribunais online, vol. 919, p. 127, Mai/2012 DTR\2012\2773, nota 267 que “a decisão tem sido mundialmente criticada com base no argumento de que a dignidade como autonomia deveria ter prevalecido.(...) V. Stéphanie Hennette-Vauchez, When Ambivalent Principles Prevail: leads for explaining western legal orders’ infatuation with the human dignity principle, Legal Ethics, n. 10, p. 193, 206-208, 2007. 32 STJ, 3ª T., REsp 1.008.398. Rel. Min. Nancy Andrighi, julg. em 10.10.2009, garantindo ao transexual que tenha se submetido à cirurgia de mudança de sexo a troca do nome e do gênero em registro sem que conste anotação no documento. O registro de que a designação do sexo foi alterada judicialmente deve constar apenas nos livros cartorários. 33 A Resolução do Conselho Federal de Medicina n. 1.955/2010, em seu art. 3º dispõe que a definição de transexualismo obedecerá, no mínimo, aos seguintes critérios: i) desconforto com o sexo anatômico natural; ii) desejo expresso de eliminar os genitais, perder as características primárias e secundárias do próprio sexo e ganhar as do sexo oposto; iii) permanência desses distúrbios de forma contínua e consistente por, no mínimo, dois anos; iv) ausência de transtornos mentais. 11 impostos pela retirada de seus órgãos genitais, e deseja ver reconhecida a nova identidade social sem a correspondente a alteração anatômica. 34 Em virtude de todos esses fatores, posicionando-se de outro lado, Stefano Rodotà, em veemente defesa da privacidade, vem sustentando a importância dos espaços resguardados, de não interferência, como mecanismo de garantir às pessoas âmbitos de livre escolha. 35 Para o autor “é a consciência individual, com os seus tormentos, que deve ser respeitada pelo legislador, ao qual se dirige a sobriedade e, nos casos limites, o silêncio. Além disso, admitindo que exista uma área ‘indecidível’ pelo legislador e remetida às decisões individuais no quadro dos princípios gerais, se encontraria uma regra capaz de evitar conflitos lacerantes onde uma ou mais visões políticas fariam referência a valores considerados não negociáveis”. 36 O preceito constitucional que afirma o pluralismo de projetos de vida individuais imporia o respeito, mesmo perante o legislador – e o juiz –, destes espaços de autonomia existencial. Assim, para o autor, para permitir que o transexual se apresente socialmente em conformidade com o seu sexo psicológico, poderá ser suficiente o procedimento jurídico-formal realizado no registro civil, com a alteração do nome e do sexo da pessoa portadora de tal identidade. 37 Aduz-se ainda, nesta linha, que além do perigo geral que seria a desconsideração ou diminuição do princípio da liberdade, este problema gera um grave reflexo: um modelo paternalista, ao privar as pessoas da autonomia, tratando-as como incapazes e vulneráveis – e o exemplo mais emblemático é, certamente, o tratamento atualmente conferido aos consumidores –, estaria a liberá-las da responsabilidade pelos seus atos. A lição é simples: sem autonomia, não há responsabilidade. Consequentemente, a responsabilidade passa a ser automaticamente transferida a terceiros, em um processo de “vitimização” já descrito com precisão por Tzvetan Todorov. 38 A divisão que este desafio oferece ao direito civil contemporâneo reflete, neste âmbito mais específico, uma controvérsia mais ampla, entre posições ditas liberais e comunitárias. 39 De fato, enquanto de um lado se prioriza a prerrogativa de cada 34 No Brasil, a 2ª C. C. do Tribunal de Justiça do Estado do Sergipe, em novembro de 2012, em decisão unânime, concedeu a transexual o direito de ter o nome no registro civil alterado para o gênero feminino sem a necessidade de cirurgia de transgenitalização. A assistente social A. L. S. teve seu pedido negado em primeira instância. O Ministério Público de Sergipe recorreu sustentando que o autor apesar de ter nascido homem se identifica, desde a adolescência, psicológica e corporalmente, com o sexo feminino, tendo adquirido hábitos e postura característicos do gênero. Disponível no site do IBDFam., acesso em 02 dez. 2012. 35 Stefano RODOTÀ. La vita e le regole: tra diritto e non diritto. Milano: Feltrinelli, 2006, p.. 36 Stefano RODOTÀ. Riaprire il dialogo sui valori della vita. La repubblica, 10.05.2006. 37 Stefano RODOTÀ. La vita e le regole, cit., p.88. Essa tendência foi incorporada por países da Europa e, recentemente, pela Argentina, que aprovou em maio de 2012 a sua Lei de Identidade de Gênero. Com a Lei 26.743, a Argentina passou a permitir a mudança de gênero e nome nos documentos sem necessidade de tratamento ou cirurgia prévia. Essa lei e outras do gênero (Portugal, Espanha) estão sendo formuladas a partir dos Princípios de Yogyakarta sobre a Aplicação do Direito Internacional de Direitos Humanos às Questões de Orientação Sexual e Identidade de Gênero. A propósito, v. o site http://www.unhcr.org/refworld/category,REFERENCE, ICJRISTS,,,48244e602,O.html, acessado em 21 dez. 2012. 38 Tzvetan TODOROV. O homem desenraizado. Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 225. 39 Sobre o tema, faz-se referência ao trabalho pioneiro de Gisele CITTADINO. Pluralismo, direito e justiça distributiva: elementos da filosofia constitucional contemporânea. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999. 12 indivíduo de realizar as escolhas de vida – subtraindo-se, portanto, as liberdades fundamentais da esfera de poder do legislador –, nega-se, de outro lado, a possibilidade de interpretar tais liberdades de forma dissociada do conjunto de valores coletivamente compartilhados – e, portanto, tais direitos ficariam submetidos às manifestações coletivas de soberania popular. Nesse cenário, impõe-seaos estudiosos do direito civil um significativo desafio: desenvolver parâmetros para que, na aplicação do Direito à luz dos princípios constitucionais, seja possível compatibilizar a superação da autonomia privada clássica, patrimonial, concebida como um valor unitário (sempre igual, independentemente da circunstância), com a proteção contemporânea da liberdade (rectius, da autonomia existencial) como um aspecto da dignidade da pessoa humana – em outras palavras, como livre desenvolvimento da personalidade de cada um, que, portanto, deve ser respeitado. 6. Conclusão: a necessária calibragem Assim como ocorreu nas primeiras duas décadas do século passado, reputado o breve século XX, ainda estamos em um período de grande indefinição. Sabemos quais são os problemas, mas, aparentemente, ainda não temos os instrumentos necessários para solucioná-los. Segundo Zygmunt Bauman, vivemos em um período de interregno (“inter rex”), semelhante ao que ocorreu em Roma na lendária transição do trono em virtude da morte de Rômulo, seu mítico fundador. Conforme relata Plutarco, depois de 38 anos de reinado, Rômulo desapareceu, levado pela chuva e pelo vento, sem que tivesse dele restado nada, nem sequer seu cadáver. Não havia sido formulado, até então, qualquer processo de transição que apontasse um sucessor, de modo que a coroação de Numa Pompílio não ocorreu imediatamente após a morte de Rômulo, mas por um tempo os senadores governaram a cidade em rotação, alternando-se a cada dez dias, em uma tentativa de substituir a monarquia com uma oligarquia – período que ficou conhecido, justamente, como interregno. 40 Qualquer conclusão que se possa extrair do panorama geral traçado será apenas prospectiva. Contudo, exatamente nesta linha, é importante alertar que a consolidação da metodologia pós-positivista e da constitucionalização do direito civil em nossa doutrina e, especialmente, em nossos tribunais, tem sinalizado para um perigo crescente. A necessária superação do formalismo por uma perspectiva mais flexível e principiológica foi efetivada, e agora nos deparamos com o alerta do risco oposto. O receio dos juristas mais tradicionais parece encontrar eco quando se veem decisões que, sob o pretexto da constitucionalização e da aplicação dos princípios, mais parecem realizar o que vem sendo chamado de banalização do Direito. 41 De fato, o rigor excessivo na proteção da segurança jurídica, com a imposição do método único da subsunção na aplicação das normas, encontra-se justificadamente 40 PLUTARCO, Vidas paralelas. T. I, p. 109. Disponível em <http://www.elaleph.com>, acesso em 27 dez. 2012. 41 Daniel SARMENTO. Ubiquidade constitucional: os dois lados da moeda. In C. P. de Souza Neto e D. Sarmento (coord.). A constitucionalização do Direito. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2007, pp. 113-148. Stefany Realce 13 superado, até mesmo porque traduz uma segurança ilusória e uma neutralidade falsa, por trás das quais apenas se mascaram as escolhas políticas existentes no processo. 42 No entanto, a superação da aplicação mecânica não pode funcionar como pretexto para se conferir ao magistrado carta branca para decidir, de acordo com suas concepções pessoais, mediante a invocação genérica de algum princípio constitucional que ele acredite amparar sua própria e individual versão de justiça. 43 Neste sentido, tão perigosas quanto o discurso positivista da dedução neutra revelam-se as suspeitas de que, através deste espaço, os juízes ou tendem a favorecer a parte mais fraca nas ações judiciais como forma de fazer justiça social e redistribuição de renda (justiça “Robin Hood”), ou tendem a refletir a subversão generalizada das instituições pelos ricos e politicamente influentes em seu próprio benefício (justiça “King John”), ou, ainda, efetivam, em submissão à influência dos poderes locais, a “subversão paroquial da justiça”. 44 A constatação de que vivemos em uma era de incertezas e de que o mecanismo de aplicação do Direito é guiado por uma lógica informal não permite abrir mão da segurança jurídica. A previsibilidade das decisões judiciais é também uma questão de justiça, pois decorre da necessária coerência e harmonia que devem caracterizar o sistema. 45 Ao que parece, todavia, parte do Judiciário não percebeu que a derrubada do limite externo, formal, que restringia o intérprete – o dogma da subsunção – não significou a consagração do arbítrio, mas, ao contrário, impôs um limite interno, – metodológico – a exigência de fundamentação (argumentativa) da sentença. Como já se afirmou em doutrina, “nesse quadro atual, onde os magistrados dispõem de uma área maior ainda de liberdade do que a tradicionalmente garantida em nossa história jurídica, impõe-se uma atenção maior à questão concernente às justificativas pelas quais os juízes chegam às decisões que dirimem as lides a eles submetidas”. 46 Já que o controle da atividade judicial não mais se dá externamente, por meio de leis que impediam o juiz de se afastar da lógica formal e da letra da lei, esse controle passa a se realizar através dos fundamentos de que ele se utiliza, de forma argumentativa, com vistas a motivar, adequadamente e em obediência à Constituição, sua decisão, controle que é possível e mais adequado do que o anterior em uma sociedade democrática, complexa e plural. A doutrina que vem se dedicando ao tema destaca que toda decisão se dá em função de um determinado modo de pensar, orientado por valores, e que a análise da lógica que fundamenta tais decisões não é do tipo formal, 42 V. Ovídio A. BATISTA SILVA. Processo e ideologia: o paradigma racionalista. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 274 e Michele TARUFFO. Legalità e giustificazione nella creazione giudiziaria del diritto. Rivista trimestrale di diritto e procedura civile, 2001. 43 Sobre o tema, por todos, v. Luiz WERNECK VIANNA et al. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. 44 Entre as raras análises empíricas sobre o tema, v. o premiado trabalho de Ivan César RIBEIRO. Robin Hood versus King John: como os juízes locais decidem casos no Brasil? Disponível em <http://www.ipea.gov.br/ipeacaixa/premio2006/docs/trabpremiados/IpeaCaixa2006_Profissional_01lugar _tema01.pdf>, acesso em 21 dez. 2012. 45 Sobre o tema, Ricardo GARCIA MANRIQUE. Acerca del valor moral de la seguridad jurídica. Doxa, n. 26 (2003). Sobre a compatibilidade entre segurança jurídica e superação do formalismo, v. Antônio- Enrique PÉREZ LUÑO. La seguridad jurídica. Barcelona: Ariel, 1994. 46 Antonio C. MAIA. Notas, cit., p. 413. Stefany Realce 14 mas se guia em direção à razoabilidade destas decisões. 47 Em especial, as decisões que passam pela aplicação de princípios exigem a construção de um discurso de justificação, para além de um discurso de aplicação, que permita fundamentar a preferência de um princípio para sua aplicação ao caso concreto em detrimento de outro naquela hipótese concorrente. 48 De modo geral, a aceitação racional das decisões judiciais é guiada pela qualidade dos argumentos levantados, cuja verificação permite que o processo argumentativo seja concluído quando, desse todo coerente, resultar um acordo racionalmente motivado. 49 Em síntese, independentemente dos diversos matizes doutrinários acerca do tema, 50 verifica-se uma convergência acerca da importância e do valor da fundamentação argumentativa das decisões como base para o controle democrático de legitimidade da atuação jurisdicional. O ordenamento brasileiro consagra o dever de motivação da sentença não apenas na legislação ordinária, incluindo-o também entre as regras constitucionais; com isto, ao lado da função intraprocessual da motivação, confere-lhe uma função extraprocessual.Além de facilitar o questionamento da sentença pelas partes e sua revisão pelo juízo de segunda instância, o dever de motivação desempenha uma função garantista, ao viabilizar o controle externo sobre as razões que fundam a decisão. Traduz, portanto, a implementação de uma concepção democrática de poder – no caso, do Poder Judiciário. 51 Em vista disso, o disposto no art. 93, IX, da Constituição – “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões, sob pena de nulidade (...)” – não pode ser tido como mera formalidade, mas sim “uma justificação racional pautada em parâmetros intersubjetivamente compartilhados de argumentação”, 52 devendo ser respeitado e cumprido por ter se tornado a pedra angular, isto é, o princípio-base do ordenamento no que tange à atual metodologia de interpretação e aplicação do Direito. Nossa concepção de democracia funda-se no paradigma do Estado de Direito, ou seja, na ideia de que se pode estabelecer um quadro constitucional e normativo a partir do qual se torna possível uma sociedade livre, justa e solidária. A este ideário contrapõe Agamben a constatação de que “o problema fundamental não diz respeito à Constituição ou à lei; diz respeito ao governo. (...) O verdadeiro ponto misterioso da política ocidental não é o Estado, não é a Constituição, não é a soberania, mas o governo. Não o soberano, mas o ministro. Não o legislador, mas o funcionário”. 53 Mutatis mutandis, não o legislador, mas o juiz. 47 Margarida LACOMBE CAMARGO. Hermenêutica e argumentação: uma contribuição ao estudo do direito, 3. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 254. 48 Klaus GÜNTHER. Teoria da argumentação no direito e na moral: justificação e aplicação, trad. C. Molz. São Paulo: Landy, 2004, especialmente p. 367 e ss. 49 Jürgen HABERMAS. Between facts and norms: contributions to a discourse theory of law and democracy, Cambridge: MIT Press, 1998, p. 222 e ss. 50 Sobre o tema, de modo geral, Manuel ATIENZA. As razões do direito. Teorias da argumentação jurídica. São Paulo: Landy, 2002; e Ricardo GUASTINI. L’interpretazione dei documenti normativi. Milano: Giuffrè, 2004. 51 Michele TARUFFO. Motivazione in Enciclopedia giuridica Treccani, vol. XX, Roma, 1990. 52 ID, o.l.u.c. 53 Giorgio AGAMBEN. A política da profanação. Entrevista concedida em 18.09.2005. Folha de São Paulo. Disponível em http://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1809200505.htm, acesso em 21 set. 2012. 15 O nó a ser desvencilhado para que se possa avançar na promoção da justiça e dos valores constitucionais deslocou-se, assim, para o momento da aplicação do Direito, para o que se poderia apelidar, se tal fosse possível, de um “positivismo judicial”. Se antes as soluções repousavam na lei – na época em que o juiz era considerado simples mensageiro desta (na expressão clássica de Montesquieu, la bouche de la loi) –, o problema a ser enfrentado, no contexto atual, corresponde a determinar de que forma (isto é, em que nível de fundamentação), com base em que critérios e em que situações o Direito deverá ser dito pelo magistrado (o direito segundo a boca-do-juiz). O deslocamento foi radical e parece imprescindível sua rápida identificação, para que se comece, doutrinariamente, a sugerir limites e a indicar possibilidades.
Compartilhar