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@servicosocialparaconcursos http://www.servicosocialparaconcursos.com/ 1 O CONSERVADORISMO MODERNO: esboço para uma aproximação The modern Conservatism: a sketch for an approach Jamerson Murillo Anunciação de Souza1 Resumo: Procura-se apreender algumas determinações do pensamento conservador moderno. O ponto de partida é o patamar acumulado de conhecimento e crítica ao conservadorismo que a profissão de Serviço Social estabeleceu desde seu processo de renovação. O objetivo é fazer uma aproximação teórica às novas características que o sistema de ideias conservador adquire na atualidade. Palavras-chave: Conservadorismo moderno. Serviço Social. Razão. Abstract: We have tried to apprehend some determinations of the modern conservative thinking. The starting point is the accumulated level of knowledge and the criticism of Conservatism that the Social Work profession has established since its process of renewal. The aim is to make a theoretical approximation to the new characteristics that the conservative system of ideas has acquired nowadays. Keywords: Modern Conservatism. Social Work. Reason. 1. INTRODUÇÃO A abordagem do tema do conservadorismo moderno impõe questões e demanda pressupostos. A relevância dele para o Serviço Social se expressa, entre outras dimensões, no significativo acúmulo de estudos sobre as determinações políticas, econômicas e culturais que lhe conferem substância2. Tais estudos respondem por uma demanda objetiva, que é a defesa e consolidação da direção social estratégica inscrita no chamado "projeto ético-político" do Serviço Social. Essa defesa, contraditória em relação ao movimento histórico da sociedade burguesa, requisita a explicitação e a crítica, teórica e política, do que se designa como conservadorismo, tanto em suas expressões sócio- 1 Professor assistente I do departamento de Serviço Social da Universidade Federal da Paraíba – UFPB. Doutorando do programa de pós-graduação em Serviço Social da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE/ Recife, Brasil. E-mail: jamersonsouza@ymail.com. 2 Citando apenas alguns poucos fundadores, os escritos de Iamamoto (2011, 2012), José Paulo Netto (2005, 2009) e Leila Escorsim Netto (2011). mailto:jamersonsouza@ymail.com 2 históricas gerais, quanto em suas incidências e características particularmente profissionais. Uma das questões, referidas acima, diz respeito ao método de problematização e exposição do conservadorismo na contemporaneidade. Dados os limites de espaço e a complexidade que envolve a temática, são necessárias escolhas expositivas que enfatizem o desenvolvimento histórico do conservadorismo como sistema de ideias. Portanto, não é nosso objetivo abordar o conteúdo conservador (ou até mesmo reacionário) de determinados fenômenos e movimentos de caráter político-cultural (com raízes econômicas) que se intensificam na cena brasileira contemporânea, a exemplo de manifestações aproximadas a ideias integralistas, fascistas, neonazistas, xenofóbicas, racistas, entre outras, pois uma abordagem dessa natureza requisita espaço próprio. Esse recorte de método, porém, não significa abstração dessas e de outras dimensões propriamente políticas, culturais e econômicas. Elas decorrem, prioritariamente, do acirramento das contradições entre as classes sociais fundamentais, bem como entre estas e os demais segmentos assalariados e frações burguesas. Todavia, parece-nos precipitado derivar, imediata e espontaneamente, do conservadorismo (como sistema de ideias), clássico e moderno, a emergência de tais fenômenos, que podemos designar, provisoriamente, como manifestações de "extrema- direita". Apesar de ser possível identificar alguns pontos de contato entre certas ideias do conservadorismo moderno (principalmente econômicas e valorativas) com algumas palavras de ordem presentes no discurso de movimentos de extrema-direita, por outro lado, parece ser precipitado constituir uma identidade direta entre pensamento conservador moderno e fenômenos políticos de "extrema direita" na contemporaneidade. Estes últimos têm fundamento ontológico e material, no geral e resguardadas proporções e mediações particulares, na ativação dos limites absolutos do capital (MÉSZÁROS, 2002). Dentre as consequências dessa ativação, que é constitutiva da crise estrutural desde 1970, estão: a intensificação da exploração do trabalho pelo capital - na tentativa de reverter a queda da taxa de lucro, o desemprego crônico e seus desdobramentos, além da catastrófica crise ambiental. No que respeita a inspirações ideais, os fenômenos de "extrema-direita" estão aproximados de tendências irracionalistas ou de convergências decadentes da "miséria da razão" (COUTINHO, 2010). Isso significa um leque de 3 influências que não se resume ao pensamento conservador em sentido estrito, concretizando uma cadeia causal complexa e multifacetária. O conservadorismo clássico (NETTO, L, 2011), surgido no período moderno, passou por transformações substantivas ao longo da história. Algumas de suas características iniciais foram revertidas, outras, intensificadas, além daquelas que se constituem como novas em relação ao período fundador. Essas transformações têm como fundamento histórico o desenvolvimento das contradições do sistema do capital (desenvolvimento das forças produtivas e relações de produção). Contradições que se particularizam do período de consolidação dos monopólios e da atual crise estrutural, que se arrasta insuperavelmente (MÉSZÁROS, 2002). Essa crise tem implicações conhecidas para a luta de classes e para o terreno amplo das alienações e ideologias. Esse fundamento histórico, explorado e antecipado por Marx3 e desenvolvido pela melhor tradição marxista4, é pressuposto indispensável para o debate que objetiva atualizar algumas determinações centrais do sistema de ideias conservador. Outro pressuposto importante é o patamar de problematização já acumulado pelo Serviço Social no Brasil acerca do conservadorismo. Sem prejuízo de outros enfoques, é possível perceber certa concentração dos estudos em torno de quatro eixos prioritários. Estabelecendo uma síntese, investigou-se o conservadorismo que incidiu na profissão a partir: (i) do neotomismo e do estrutural-funcionalismo, cuja influência máxima se fez sentir nos momentos de gênese e institucionalização do Serviço Social no Brasil5, (ii) do positivismo e da fenomenologia, que repercutiram com força em setores profissionais durante o período da renovação e reconceituação6, (iii) do assim chamado "neoconservadorismo" de corte genericamente designado como "pós-moderno", que tem se robustecido nos últimos quarenta anos no campo da filosofia e das ciências sociais7 (históricos interlocutores do Serviço Social) e (iv) do chamado conservadorismo clássico8, cujas influências sócio-históricas chegam ao Serviço Social através de matizes e mediações que requisitam abordagem exclusiva, posto o corte sistêmico (por oposição ao pensamento "pós-moderno") que atravessa algumas de suas formulações. 3 Especificamente, as categorias de concentração e centralização do capital, elaboradas no capítulo XXIII d'O Capital, lançam as bases para o desvendamento do processo monopólico (MARX, 1985). 4 Entre outros, com algumas distinções teóricas que não infirmam a concepção crítica da sociedade burguesa: Mészáros (2002), Hobsbawm (1995), Duménil e Lévy (2014), Mandel (1982) e Harvey (2013). 5 Os estudos de Iamamoto (2011) e Iamamoto e Carvalho (2012) são representativos desse enfoque. 6 Esse é o terreno no qual vão se mover algumas reflexões de Netto (2005). 7 Entre outros, o livro de Santos (2007), apresenta essa preocupação. 8 Estudo de Leila Escorsim Netto (2011), onde o conservadorismo clássico é tomado como objeto de estudo a partir de seu momento moderno e fundador: períodopós-Revolução Francesa. 4 Situadas essas questões e indicados os pressupostos, nosso objetivo é tão somente tracejar algumas das propriedades que o sistema de ideias do conservadorismo adquire na atualidade, indicando alguns pontos históricos e teóricos de inflexão, de um lado e, de outro, seu contato com outras correntes e tradições de pensamento, igualmente fundadas na modernidade, a exemplo do liberalismo/liberismo, do utilitarismo e do pragmatismo. 2. O conservadorismo moderno: esboço para uma caracterização O conservadorismo clássico, em sua gênese pós-1789, constituiu-se como sistema de ideias e posições políticas marcadamente antimodernas, antirrepublicanas e antiliberais. Em síntese: antiburguesas. É possível caracterizá-lo como uma reação ideológica e política aos avanços da modernidade. Avanços esses identificados, naquele momento, no desenvolvimento das forças produtivas e nas transformações das relações de produção, que implicaram profundas mudanças sócio-institucionais e culturais. Em geral, o raio de ação política dos conservadores girava em torno da defesa de determinadas características institucionais do Antigo Regime (NISBET, 1987), principalmente aquelas relacionadas com o princípio da autoridade constituída. Apesar de negarem, no discurso, filiações ideológicas claras, o resultado e o conteúdo histórico de suas objetivações, teóricas e políticas, estiveram a serviço das forças da reação. O pensamento conservador surge e se desenvolve no contexto da moderna sociedade de classes, marcado por seu dinamismo, por suas múltiplas e sucessivas transições; como função dessa sociedade, não é um sistema fechado e pronto, mas sim um modo de pensar em contínuo processo de desenvolvimento [...] Estruturado como reação ao Iluminismo e às grandes transformações impostas pela Revolução Francesa e pela Revolução Industrial, o conservadorismo valoriza formas de vida e de organização social passadas, cujas raízes se situam na Idade Média. É comum entre os conservadores a importância dada à religião; a valorização das associações intermediárias situadas entre o Estado e os indivíduos (família, aldeia tradicional, corporação) e a correlata crítica à centralização estatal e ao individualismo moderno; o apreço às hierarquias e a aversão ao igualitarismo em suas várias manifestações; o espectro da desorganização social visto como consequência das mudanças vividas pela sociedade ocidental (FERREIRA, BOTELHO, 2010, p. 11, 12). É nesse contexto que estão situadas, ressalvadas especificidades que não são centrais para nosso debate, as formulações de Edmund Burke (1729-1797), Joseph de Maistre (1753-1821), Klemens Von Metternich (1773-1859), Benjamim Disraeli (1804- 1881) e Alexis de Tocqueville (1805-1859). Ainda que alguns conservadores contemporâneos, como João Pereira Coutinho (2014), afirmem que as raízes da tradição conservadora inglesa remontam ao século XVI, é possível considerar esse conjunto de pensadores como fundadores do conservadorismo clássico, com destaque para Edmund 5 Burke. Nesse primeiro momento histórico, uma característica marcante é a unidade do pensamento filosófico, político e econômico, pois a fragmentação acadêmica dos saberes ainda não havia se completado inteiramente. Certos princípios do conservadorismo clássico vão ganhar dimensão "científica" com as sociologias de August Comte (1798-1857), Hebert Spencer (1820-1903) e Émile Durkheim (1858-1917). Ao receber a chancela da “ciência social”, valores da tradição conservadora são elevados a conceitos. Ideias conservadoras clássicas acerca das relações entre indivíduo, Estado e sociedade, passam a receber o anteparo da solidariedade orgânica, da harmonia e da coesão social. O positivismo impulsionou o sistema de ideias conservador, ao mesmo tempo em que o modificou, pois estabeleceu sua reconciliação com a sociedade capitalista consolidada e sua institucionalidade. Realinhou o foco das disputas políticas dos conservantistas9, de posições antiburguesas para posições antiproletárias e, por derivação, contrarrevolucionárias. A Sociologia como disciplina e “ciência” específica passa a vocalizar certas aspirações conservadoras clássicas, principalmente aquelas em defesa das instituições estabelecidas. Opera essa vocalização por meio de "métodos científicos" que esvaziam a produção de conhecimento sobre a sociedade de suas mediações econômicas e políticas. Esse fôlego renovado que valores conservadores centrais recebem das "ciências sociais" é repleto de consequências históricas. Para efeitos de uma periodização metodológica e provisória, o conservadorismo clássico pode ser identificado entre 1789 e 1914. Esse período histórico coincide com o intervalo entre dois grandes marcos: vai da Revolução Francesa até o início da primeira guerra mundial. Seu fôlego final converge no desfecho do pensamento de Émile Durkheim. 10 A partir de finais da década de 1910 até 1960-70 seria admissível supor como período de formação do pensamento conservador moderno. A partir daí, mudanças sensíveis ocorrem. Expoentes de distintas áreas do saber elaboram sistemas totalizantes de explicação da vida social. Ora enfatizando a política, ora a cultura, o interacionismo, a burocracia, a institucionalidade, a moral ou a filosofia, intelectuais de distintas áreas do 9 Os termos conservadorismo e conservantismo são tomados como sinônimos nesse artigo. 10 Os estudos de Leila Escorsim Netto (2011) concentram-se nesse intervalo. 6 saber reformulam, ampliam ou universalizam determinados temas centrais da tradição conservadora11. Entretanto, frequentemente essa genealogia não é explicitada ou assumida abertamente. Na maior parte das vezes, essas intervenções preferem apresentar-se como relativas à moderna democracia política (burguesa). Tais sistemas imprimem, até a contemporaneidade, concepções de história e ciência antagônicas às que foram formuladas por Marx e pela melhor tradição marxista. Algumas delas foram conscientemente construídas para subsidiar alternativas teóricas ao marxismo. Como se pode notar, uma geração intelectual após as últimas lições de Émile Durkheim, observa-se o surgimento de uma pluralidade importante de saberes, ampliadora dos alicerces (concepção de mundo e fundamentos para ação política) do conservadorismo. Com essa referência, sinalizamos que o pensamento conservador realiza mais um giro em seu eixo. Na sequencia de sua incorporação pela nascente sociologia positivista, aproxima-se também do liberalismo, seu antigo antagonista. É uma aproximação que não se realiza irrestritamente. Os conservadores preservam suas tradicionais ressalvas à estruturação de valores que possam ser universalizados, como o individualismo da tradição liberal, por exemplo. Isso porque, no seu entender, tais valores tendem a subestimar a “complexidade” das possibilidades humanas (COUTINHO, 2014). Todavia, cerram fileiras quanto à tendência mais abrangente de reprodução da sociedade vigente. As consequências dessas mudanças são inteligíveis quando se pauta o processo histórico que permitiu ao conservadorismo transpassar de reação à modernidade para posições supostamente progressistas na contemporaneidade. Trata-se da consolidação do estágio monopolista de reprodução do capital. Esse é o cenário histórico (real) de contradições que requisita, dos "neoconservadores" de então, novas bases ídeo-políticas. Destaque (dentre outros) cabe ser feito à contribuição que a apropriação do conceito de "totalitarismo", de Hannah Arendt (1989), significou para o conservadorismo moderno. O nivelamento das experiências fascistas e socialistas, sob o 11 Resguardadas as proporções e diferenças teóricas, políticas e de método, assim como de objeto de investigação,as quais não podem ser tematizadas aqui, é possível identificar, genericamente, alguns expoentes que representam essa tendência, em um ou outro ponto de sua obra: Martin Heidegger (2013), Karl Popper (1980, 1987, 2013), Norberto Bobbio (2000, 2004, 2006, 2011), Raymond Aron (1980, 2008), Hannah Arendt (1989, 2011), Talcott Parsons (2010a, 2010b), Friedrich von Hayek (2013), entre outros. 7 conceito de “totalitarismo”, ofereceu uma chave mestra conceitual para o pensamento conservador. O conservadorismo moderno incorporou o conceito de “totalitarismo” nesses termos niveladores e, com ele, elaborou uma concepção de mundo que encastela o significado ontológico do tempo presente, esvaziando-o do devir histórico. Realiza esse encastelamento através, de um lado, da blindagem do presente em relação às “utopias” revolucionárias, que desejam transformar radicalmente a sociedade vigente. De outro, projetando-se contrários às “utopias” reacionárias, aferradas que são às formas do passado. Com essa blindagem "presentista" (nem passado - reacionário, nem futuro - revolucionário, somente o presente importa), o conservadorismo moderno acredita estar se movendo em bases “progressistas”, uma vez que rejeita, equalizando, tanto as "utopias" revolucionárias, quanto reacionárias, ambas concebidas, pejorativamente, como idealizações potencialmente "totalitárias". Os conservadores modernos, munidos com esse conceito, reclamam-se como prudentes defensores do presente democrático (burguês) contra as “perigosas e violentas utopias” (fascismo e comunismo) que, além de partilharem bucólicas concepções de natureza humana, costumam não poupar vidas humanas em busca de sua idealizada “perfeição humana” (COUTINHO, 2014). Em síntese, desde que veio à tona na metade do século XX, o conceito de “totalitarismo” tem servido como uma das pedras angulares da tradição conservadora moderna. O “presentismo”12 opera um traço fundamental da decadência ideológica que permeia o pensamento burguês: a desistoricização do tempo presente13. Outro elemento que concorre para essa desistoricização é o aprisionamento da razão aos variados modelos formais e abstratos, exemplificados com as elaborações do positivismo lógico. Como consequência lógica e histórica desse “presentismo”, o conservadorismo moderno cancela a possibilidade de construção de qualquer projeto societário alternativo à sociabilidade vigente. E esse cancelamento é apoiado com o argumento de que “sacrificar” uma geração no presente em nome da construção ("incerta") de um futuro formulado sobre princípios revolucionários (encarados como “utópicos” e “totalitários”) é uma decisão contrária ao princípio da prudência. Outro princípio que afasta os 12 É sintomático que a epígrafe escolhida por Hannah Arendt (1989), para abrir seu livro As origens do totalitarismo, seja uma frase de Karl Jaspers que afirma: “Não almejar nem os que passaram nem os que virão. Importa ser de seu próprio tempo”. 13 György Lukács (2012, p. 192) oferece uma contribuição valorosa acerca da concepção de tempo histórico em termos ontológicos, isto é, do significado dessa dimensão para o ser social. 8 conservadores dessas posições “totalitárias” é o da “humildade”, que decorre da constatação da “imperfeição (intelectual) humana” (COUTINHO, 2014). O conservadorismo de nosso tempo pretende, portanto, ser um terceiro termo entre as propostas revolucionárias e as revanches reacionárias. Nem sempre é possível estabelecer uma identidade teórica e política entre conservadores, para os quais é caro o princípio da prudência na política, e reacionários. Esse é um elo importante que abre passagem para que os conservadores atuais apareçam como progressistas. Afirmando diretamente: quando o antagonista político é reacionário, um conservador pode aparecer como elemento de avanço, porque valoriza o dado imediato instituído, em desfavor de mudanças potencialmente regressivas14. No entanto, essa aparência demanda a crítica e a desmistificação dos setores comprometidos com a emancipação humana. O pensamento conservador contemporâneo se particulariza também sob outros pontos de vista. Adquiriu contornos específicos no contexto da divisão social internacional do trabalho e dos mercados, sem prejuízo de sua estruturação em totalidade. Na França, na Inglaterra, Estados Unidos, Alemanha, entre outros, a forma e o conteúdo do conservadorismo, mantidas as variantes acima esboçadas, adquiriram influências e características conjunturais. No Brasil, congrega propriedades europeias e norte- americanas. Sofre também mutações desde dentro, recombinando, ecleticamente, propostas, valores e ideais com a nossa realidade concreta, desde finais do século XIX. O resultado - considerando as condições de inserção subordinada de nossa formação social no circuito de capital mundial monopolizado, além das contradições tipicamente decorrentes da passagem brasileira à modernização capitalista - é a intensificação das tonalidades mais à direita do conservadorismo, aproximando-o de ideias ao sabor dos reacionários. Essa recombinação incide sobre as grandes concepções orientadoras do ideário das classes dominantes no Brasil. É daí que extraem parte de suas ideias sobre o papel do Estado, das liberdades civis e políticas, dos mercados, dos grandes proprietários como sujeitos políticos, da família, da propriedade e assim por diante. As linhas de desenvolvimento dessa apropriação desdobram-se em muitas outras tendências intelectuais e forças políticas singulares, subdividida em frações e segmentos, mas unificada em projeto de sociedade. “Em suma: quando o pensamento brasileiro 'importa' uma ideologia universal, isso é prova de que determinada classe ou camada social de 14 A questão do “trabalho escravo”, na contemporaneidade, poderia exemplificar bem essas distinções. 9 nosso país encontrou (ou julgou encontrar) nessa ideologia a expressão de seus próprios interesses brasileiros de classe” (COUTINHO, 2011 (a), p. 41, grifo do autor).15 Outra particularidade do conservadorismo moderno está relacionada à formação de sua autoimagem. Isto é, à representação que os sujeitos conservadores elaboram acerca de si mesmos e de seu significado social e histórico. Segundo as indicações inferidas da literatura, essa autoimagem é construída sobre uma espécie de “existencialismo conservador”, com tonalidades irracionalistas. A importância de decifrar e fazer a crítica da autoimagem conservadora reside na perspectiva de superação dessa visão mistificadora. Superação que depende, sobretudo, da perspectiva do método dialético em relação às mediações complexas entre produção e reprodução social. Tais relações constituem o momento predominante a partir do qual os sistemas de ideias, e de saber, tanto surgem quanto se desenvolvem. Não são raras as produções que atribuem o conservadorismo a determinados “traços de personalidade”. Segundo elas, trata-se de tendências subjetivas, típicas dos indivíduos e grupos que são cautelosos e apegados à situação social vigente, tal como se apresenta no aqui e agora. Outras caracterizações qualificam o conservadorismo como “forma de ser”, uma “atitude mental” que se inclina à crítica de mudanças substantivas. Nesse tipo de análise, psicologizante, é conservador aquele que resiste às mudanças “arriscadas”, que se apega a formas estabelecidas, institucionalizadas e fortalecidas pela tradição. Ao reduzir o conservadorismo a “traços de personalidade”, tende-se a se subtrair o conteúdo e o significado histórico, específico e contraditório, dessa corrente de pensamento e ação em relação à totalidade social. É assim que Quintin Hogg (1947), Fossey Hearnshaw (1933) e Hugh Cecil (1912), vão oferecer descrições irracionalistasdo conservadorismo. Seus termos vão variar entre “força interior”, “temperamento”, “fé”, “espírito”, “instinto”, “disposição”, “inclinação pura e natural da mente humana”, entre outros. Com esse tipo de definição, qualquer debate é abortado em princípio. Isso porque o conservadorismo é elevado à “condição humana”. É também universalizado, na medida 15 Leandro Konder antecipou essa determinação em 1979, quando escreveu no Jornal da República, do estado de São Paulo: “O pluralismo da ideologia da direita pressupõe uma unidade substancial profunda, inabalável: todas as correntes conservadoras, religiosas ou leigas, otimistas ou pessimistas, metafísicas ou sociológicas, cientificistas ou místicas, concordam em um determinado ponto essencial. Isto é: impedir que as massas populares se organizem, reivindiquem, façam política e criem uma verdadeira democracia” (apud COUTINHO, 2011 (b), p. 50). 10 em que todos os indivíduos são apresentados como conservadores em alguma medida, nem que seja na inclinação à preservação de si próprio, entes queridos ou círculo de amizades. Resta então diluído o conteúdo do conservadorismo através da autoimagem que os conservadores produzem. Para exemplificar a sistemática desse tipo de elaboração, talvez seja útil resgatar ao menos duas afirmações de dois grandes representantes modernos do conservadorismo: Michael Oakeshott (1901-1990), caracterizado por Perry Anderson (2012, p. 21) como um dos expoentes da “direita intransigente” inglesa, e Russel Kirk (1918-1994). Oakeshott, herdeiro do conservadorismo clássico, é um dos arautos da atual tradição conservadora no mundo. Defende ele, agarrando-se à categoria da razão, tal como a concebe o conservadorismo moderno, que: (o conservadorismo, J.S.) não é uma crença nem uma doutrina, mas uma forma de ser e estar. Ser conservador significa uma inclinação a pensar e a comportar- se de determinada forma; é preferir certas formas de conduta e certas condições das circunstâncias humanas a outras; é dispor-se a tomar determinadas decisões. [...] Distinguir as características gerais desta atitude não é tarefa difícil, embora elas tenham sido constantemente confundidas. Elas resumem-se a uma propensão ao uso e gozo daquilo que se tem, em vez do desejo ou busca de outra coisa, a aprazer-se mais com o presente do que com o passado ou o futuro. [...] não existe nenhuma idolatria simples pelo que já passou ou já se foi. [...] Assim, ser conservador é preferir o familiar ao desconhecido, preferir o tentado ao não tentado, o facto ao mistério, o real ao possível, o limitado ao ilimitado, o próximo ao distante, o suficiente ao superabundante, o conveniente ao perfeito, a felicidade presente à utópica. [...] Para além disso, ser conservador não é apenas ser avesso à mudança [...] é também a forma de nos adaptarmos às mudanças, algo que foi imposto a todos os homens. (2014, p. 4,5,6, grifos nossos). Russel Kirk, cujas reflexões foram recentemente coligidas e publicadas no Brasil16, é outro alto signatário do conservadorismo moderno. Conhecido por suas contribuições ao pensamento político norte-americano e estudioso de Edmund Burke, desenvolve em termos similares uma concepção de conservadorismo: Não sendo nem uma religião nem uma ideologia, o conjunto de opiniões designado como conservadorismo não possui nem uma Escritura Sagrada, nem um Das Kapital, como fonte de dogmas. [...] Talvez fosse adequado, na maioria das vezes, utilizar a palavra 'conservador' mormente como adjetivo. Não existe um modelo conservador, e o conservadorismo é a negação da ideologia: é um estado de espírito, um tipo de caráter, um modo de ver a ordem civil e social. A posição chamada conservadora se sustenta em um conjunto de sentimentos, e não em um sistema de dogmas ideológicos. [...] Para a preservação de uma diversidade saudável em qualquer civilização, devem remanescer ordens e classes, diferenças 16 Trata-se da obra: A política da prudência (2014), onde se encontra mais um aporte sistemático (e sistêmico) em favor explícito do conservadorismo moderno. 11 na condição material e muitos tipos de desigualdade (2014, p.102-108, grifos nossos). De tais colocações, repletas de consequências sociais, ressaltamos aqui apenas quatro pontos que ajudam a perceber mudanças significativas de posição do conservadorismo moderno em relação ao conservadorismo clássico: (i) eles dificilmente assumem uma filiação teórica ou tradição ideológica, considerada pejorativamente como dogmas; (ii) diferentemente dos primeiros conservadores, os contemporâneos valorizam o presente e não são nostálgicos de formas sociais passadas; (iii) aproximam-se do pragmatismo, ou, no mínimo, de um acentuado empirismo, na medida em que valorizam “o possível”, a situação dada tal como se apresenta; (iv) atualmente, conservadorismo não significa oposição a qualquer tipo de mudança, mas a determinados tipos específicos de mudança, a saber, aquelas que possam ser desencadeadas pelas classes dominadas17. Essa mudança de significado, ampliando o leque... aproximada às tendências do pragmatismo, constrói a possibilidade para uma aproximação com o pensamento liberal. Em matéria de conservação da ordem burguesa madura e consolidada, que é o conteúdo objetivo e histórico do conservadorismo moderno da contemporaneidade, poucas correntes de pensamento e ação são tão sólidas quanto o liberalismo. A relação do conservadorismo moderno com a categoria da razão é peculiar e merece atenção, uma vez que dela deriva as possibilidades de produção de conhecimento a partir do ponto de vista conservador. Afirma-se a importância da razão como elemento estruturante do processo de conhecimento e desenvolvimento da sociedade. Por outro lado, não poupa críticas ao racionalismo, tomado como corrente de pensamento. Para os conservadores, o racionalismo é uma subversão da razão, na medida em que pretende construir uma sociabilidade segundo princípios de evolução que conduziriam à “perfeição”, por intermédio da ideia-força das “possibilidades infinitas” - ideia que teria servido de base para as promessas de progresso e desenvolvimento humano no período moderno. Os conservadores reconhecem a necessidade de aprimoramento das relações humanas. Porém, qualificam como arrogantes e descabidas as tentativas de construção 17 Esses elementos se conjugam numa síntese aproximada ao comentário que Carlos Nelson Coutinho elaborou sobre os liberais, algo que podemos estender amplamente aos conservadores: “O liberal defende a mudança que se tornou necessária, valendo-se para tanto de formulações ideológicas progressistas; mas, ao mesmo tempo, recusa as consequências últimas do progresso, por temor explícito da “anarquia” e do “caos” que vem “de baixo”, das forças populares ainda “imaturas” (2011 (b), p. 50). 12 de relações sociais a partir dos princípios do racionalismo moderno. Isso porque, supõem os conservadores, o racionalismo persegue a pueril ideia de “perfeição humana” e “não é possível reduzir os problemas de uma comunidade a simples equações ou postulados que a razão acabaria por resolver por si só” (COUTINHO, 2014, p. 36). Por outro lado, também não abraçam abertamente o irracionalismo. O irracionalismo, extremo oposto da razão, por sua vez, abriria espaço demasiado para arbitrariedades subjetivas em termos de ação política e social. Uma ideia avançada por Oakeshott (2014) deixa entrever qual é a concepção de racionalidade a que aderem os conservadores. Segundo ele, o racionalismo entroniza o saber técnico-teórico, em detrimento do saber prático. Para os conservadores, a experiência, de onde provém o saber prático, fornece os melhores referenciais para orientaçãoda ação social. O saber teórico tenderia a deduzir os posicionamentos políticos a partir de elaborações ideais, o que significaria fazer abstração das condições objetivas de uma dada sociedade (essa conclusão, por parte dos conservadores, decorre da sua visão reificada da relação teoria e prática). Em nome do cálculo racional e das antecipações lógicas dos desdobramentos das ações políticas, os revolucionários (entendidos sempre como “totalitários”) tendem a levar a cabo suas doutrinas a qualquer custo. Nesse caso, segundo eles, haveria um hiato, talvez de qualidade ética, entre as intenções formuladas teoricamente e a efetividade das relações sociais, constatado no abismo entre os ideais “utópicos” dos revolucionários e a objetividade sangrenta dos regimes tanto socialistas, quanto fascistas. Como se pode notar, os conservadores procuram afastar-se do racionalismo, associando-o ao “totalitarismo” da revolução. Seria precipitado equalizar, sem mediações, a crítica conservadora e a crítica "pós-moderna" ao racionalismo. Contudo, resta intacto o denominador comum da identificação da razão à formalização positivista, associada à padronização e hierarquização. Essa definição acentua ao extremo algumas características do racionalismo, fazendo-o parecer uma caricatura de si mesmo, ao passo em que deixa de mencionar e problematizar outras dimensões dessa corrente de pensamento e ação18. Além disso, sequer considera, no debate, a tradição racional que tem origem na dialética19 de Hegel e se estende a Marx e aos melhores representantes do marxismo. 18 Para uma introdução ao racionalismo, conferir: HUENEMANN (2012). 19 Alvo preferencial dos ataques do filósofo da ciência Karl Popper. 13 Em síntese, o racionalismo, é sabotado a priori pelo princípio conservador da “imperfeição humana”. Esse princípio, apesar de certas semelhanças, não se identifica diretamente com a formulação cristã. No conservantismo, ele significa o impedimento (ontológico) de que a razão tenha êxito nas suas tentativas de controle e previsão absolutas das ações políticas. Isso porque não é possível à razão, em função de sua limitação, antecipar e manipular todas as possibilidades de desenvolvimento do real. O elemento de acaso (tomado numa concepção afastada da ontologia de Marx e de Lukács) interdita em germe a concretização do discurso racionalista. Por outro lado, os conservadores procuram prevenir-se contra o fatalismo, que aparece como possível desdobramento exponenciado do princípio da “imperfeição humana”. Ou seja, não desqualificam a priori as possibilidades de desenvolvimento humano, mas reivindicam certo ceticismo em relação à ação social, que talvez possa ser aqui qualificado, provisoriamente, como “ceticismo metodológico”. Esse ceticismo tenta preservar o princípio da prudência em relação aos conteúdos imprevisíveis, “desejáveis” ou “indesejáveis”, da reprodução da sociedade (COUTINHO, 2014). Para um conservador, a melhor imagem de ação social e política é aquela em que o sujeito persegue o “meio termo”, a via media entre os extremos possíveis da razão e da ação. Tanto melhor se esse sujeito tiver clareza de suas funções específicas na sociedade e orientar-se racionalmente. Essa orientação racional, nesses termos, significa a apropriação dos conhecimentos imprescindíveis para o exercício daquela função, conhecimentos majoritariamente selecionados a partir do acúmulo das tradições e das situações circunstanciais, ou seja, do saber prático. Os conservadores identificam a ação racional à manipulação bem-sucedida de dados empíricos. Agir racionalmente, do ponto de vista conservador, é manejar com destreza o “saber prático”. São nítidas, nas raízes dessas formulações, as influências da sociologia funcionalista de Émile Durkheim20, nominalmente no terreno conceitual da solidariedade orgânica, uma vez que o ideal de ação descrito acima se estende às relações institucionais. Do mesmo modo, está bem marcado um perímetro de aproximação com o pragmatismo e com o empirismo, frente à valorização da experiência como momento predominante do processo de conhecimento e ação. Todavia, caberia chamar a atenção à ênfase dada pelas vertentes conservadoras à ideia de via media, dada a sua proximidade com as propostas de “Terceira Via” (“nem neoliberalismo”, “nem comunismo”, tidos como 20 “[...] a ideologia conservadora tende sempre a olhar para a sociedade como um organismo vivo.” (COUTINHO, 2014, p. 70). 14 os extremos contemporâneos). Tais propostas, formuladas à luz do conceito de “modernização reflexiva”, receberam fôlego com as sociologias de Anthony Giddens (1991) e Ulrich Beck (2010). A importância da empiria cotidiana para os conservadores, designada por eles como “circunstâncias”, não pode ser abstraída. As "circunstâncias" são o dado elementar da ação. O imediato conjunto de condições objetivas com que se defronta o sujeito conservador. “São as circunstâncias que rodeiam o agente a informar o tipo de ação a seguir” (COUTINHO, 2014, p. 44). É com base nelas, ante as quais não cabem questionamentos sobre sua causalidade, que os conservadores devem orientar a ação. Essa orientação previne a transposição “autoritária”, para a prática, de valores formulados em teoria. Com frequência, os conservadores denominam essa orientação pragmática como “realista”. O “realismo”, nessa acepção, está resumido à adoção de práticas baseadas na reiteração do cotidiano. Para eles, o “realismo” conservador abre espaço à preservação e incentivo das singularidades subjetivas, uma vez que não tem como objetivo universalizar ou impor valores, tal como as demais ideologias e seus respectivos programas. Essa qualidade confere plasticidade e capacidade de antecipação tática, conciliatória, ao conservadorismo. Quanto às acusações de que o conservadorismo, à medida que equaliza todos os valores, poderia incorrer em relativismo cultural, os conservadores recorrem a ferramentas irracionais para defender-se. Essas ferramentas variam e apresentam características subjetivistas. Vão desde “sentimentos naturais” que se inquietam contra a “iniquidade” e a “injustiça”, “valores primários” incutidos pela “providência”, “decências fundamentais da vida”, até as “obrigações de justiça” (COUTINHO, 2014). Seriam essas as unidades morais últimas, imprescindíveis para o estabelecimento de qualquer sociedade “civilizada” e únicas a serem defendidas como prioritárias. Estruturas basilares, elas não são prescritivas, mas negativas, dizem respeito às restrições relativas às variadas formas de violência, isto é, consistem num sistema normativo mínimo. Essa determinação negativa fornece a solução para desfazer a aparente antinomia entre a recusa conservadora da universalização de valores abstratos e a necessidade de cristalização de um patamar moral básico, garantidor da reprodução coesa da sociedade. 15 Essas estruturas dão forma ao conjunto de circunstâncias que devem ser evitadas, um patamar moral a ser preservado, no caso de mudanças sócio-políticas serem fizerem necessárias. Fornecendo conteúdo social a esse patamar, estão: a injustiça, o crime, a pobreza, a guerra, compreendidos como “males primários” porque despertam “naturalmente” o “desgosto moral” de qualquer sociedade (COUTINHO, 2014), impedindo que muitos sujeitos acessem os avanços civilizatórios. Não é difícil capturar a forma abstrata e reificada pela qual o conservadorismo aborda essas expressões das contradições da sociabilidade capitalista. A consequência dessa abordagem é a proposta de “soluções” correspondentemente reificadas, expressadas, entre outras dimensões, nas variadas propostas regressivas endereçadas ao Estado e sua institucionalidade. A referida capacidade de antecipação“realista” é a pedra de toque do “pluralismo político”, ideia central do conservadorismo moderno e que não se confunde com o relativismo. Para este último, é preciso “respeitar” as diferenças, até mesmo quando elas forem irreconciliáveis. Essa dimensão é que permite evitar a “falácia agregadora” (COUTINHO, 2014 p. 48) das “cartilhas ideológicas”, que tendem a hipostasiar seus valores exclusivos. O conservadorismo se entende afastado da equalização (por baixo) operada pelas ideologias utópicas e seus valores supostamente universais. Sua crítica às ideologias consiste na inferida simplificação esquemática realizada por elas (KIRK, 2014). Essa simplificação não leva em consideração a complexidade do “real”, segundo o conservadorismo. A autoimagem do conservadorismo moderno o apresenta como via especial para o aprofundamento das liberdades individuais (valor caro aos liberais) e para a expansão das capacidades dos indivíduos (ideia cara à tradição marxista). Em qualquer das correntes e a depender da conjuntura, o conservantismo tenta aparecer como o canal mais prudente e seguro para a condução das mudanças sócio-políticas (estritamente) necessárias. No mesmo sentido, parece corporificar as melhores balizas para a razão, entronizando princípios valorativos como: a prudência, o “realismo”, a “humildade” e o “ceticismo metodológico”. Quanto ao processo de individuação, ideia mestra para qualquer sistema de saber que teorize sobre a sociedade, o conservadorismo situa a centralidade das tradições (tradicionalismo). Para os conservadores, as tradições, incluindo as rituais e institucionais, oferecem os elementos imprescindíveis para a inserção do indivíduo na sociedade. A função pedagógica que as tradições exercem sobre os sujeitos é reconhecida e 16 valorizada pelo conservadorismo moderno. É por essa mediação que valores são produzidos, difundidos e incorporados como uma espécie de “segunda natureza”, passando a orientar os comportamentos de uma maneira (quase) espontânea, pois tendem a se transformar em hábitos e costumes (COUTINHO, 2014). Para os conservadores, se uma tradição está viva e atuante, esta evidência empírica serve como fundamento para preservá-la. Isso porque a condição de sobrevivência histórica de uma tradição é sua capacidade de fornecer subsídios úteis à reprodução das sociedades. É por intermédio das tradições que os indivíduos adquirem a “gramática” necessária ao desempenho bem-sucedido (racional, na concepção conservadora) de suas funções na sociedade. “[...] ao indivíduo cabe receber o que foi preservado; desfrutar dessa herança como fiel depositário; e passá-la às gerações vindouras em uma cadeia que se percebe como invisível e interminável” (COUTINHO, 2014, p. 61). Esta concepção de individuação do conservadorismo, expressa em termos “jurídicos”, faz abstração da complexa teia categorial mobilizada em todo processo dessa natureza. Nesta acepção, a individuação é descrita como reiteração de um patrimônio construído por gerações passadas. O conservadorismo moderno valoriza os “preconceitos”. Para essa corrente, os "preconceitos" são tomados como sistema de valores acumulados. Longe do sentido comum que os debates cotidianos fornecem ao termo “preconceito”, geralmente associado a algum tipo de discriminação, no entender do conservadorismo, eles são balizas seguras para a orientação da ação social (e política) racional (COUTINHO, 2014) porque representam o conjunto de saberes adquiridos com o passar do tempo. Constituem, igualmente, o arco de ação das reformas sociais possíveis. Reformas que aprimorem, preservando, a tradição, já devidamente testada e experimentada empiricamente. No léxico conservador, as reformas constituem pequenas mudanças nos estritos limites do tradicionalismo e funcionam como importantes estratégias de prevenção de situações revolucionárias. São mudanças localizadas, específicas, transitórias, pontuais, paulatinas, absolutamente necessárias para evitar a degradação de algum traço da tradição. Uma concepção de reforma, como se pode notar, contraposta àquela produzida pela melhor tradição marxista. As relações do conservadorismo com o capitalismo constituem outro elemento central para uma problematização dessa temática na contemporaneidade. Elas sintetizam 17 as demais dimensões esboçadas acima: produção de conhecimento, tradicionalismo (que envolve a preservação das instituições) e individuação, fundamentos para a ação social e política. São conhecidos os conflitos entre o conservadorismo, no seu momento fundador, e o capitalismo. Conflitos advindos, prioritariamente, das mudanças relativamente rápidas e profundas que o capitalismo imprime nas tradições sociais, políticas, culturais e econômicas do antigo regime. A primeira geração de conservadores captou essa determinação, mas sob uma perspectiva reificada, não ontológica. Suas críticas giraram em torno de condenações morais ao capitalismo, tal como os socialistas utópicos, em outro diapasão. Seus argumentos apontavam, sobretudo, para os riscos de decadência moral decorrentes da racionalidade contábil capitalista. Os conservadores modernos trataram, no entanto, desde a década de 1970, de resgatar na tradição conservadora clássica os indícios conciliatórios com a tradição liberal. Esse conflito aparente entre as constantes mudanças (institucionais inclusive) imanentes ao capitalismo e os princípios do conservadorismo ganhou outra dimensão, para os conservadores, com as posições polêmicas de Margaret Thatcher à frente do Reino Unido (COUTINHO, 2014). Figura expoente do conservadorismo, causou alvoroço, no primeiro momento, ao assumir explicitamente a necessidade de implementação da agenda neoliberal. Essa agenda, repleta de medidas de longo alcance, significou alterações substantivas nas instituições estabelecidas. Ao final de sua administração, esse é o ponto que nos interessa, os conservadores pareciam menos reativos às mudanças institucionais no interior do capitalismo. Saiu fortalecido o argumento de que, se o capitalismo expressa a natureza comercial nos homens, as reformas que servirem à ampliação das liberdades de mercado estarão de acordo com essa natureza (COUTINHO, 2014). Isso implica: desregulamentação, liberalização, privatizações e reformas tributária, fiscal, monetária, trabalhistas, entre outros encaminhamentos político-institucionais. Dessa maneira, a primeira conciliação do conservadorismo com o capitalismo, encontrada na sociologia de funcional-positivista, foi complementada com a composição (neoliberal) política e institucional de Thatcher. Desta feita, para preservar o sistema estabelecido, há de serem assumidas as reformas (institucionais) necessárias. Desde então, na pauta teórica do conservadorismo, não são mais estranhas algumas concepções fundantes do liberalismo/liberismo. Entre outras, toma assento a 18 ideia do capitalismo como universalização natural das relações de troca e intercâmbio, desdobramento do homo economicus. As ideias sobre as funções do Estado, dos mercados, do individualismo (autodeterminação pelo mercado), também deixaram de causar desconforto aos ("neo") conservadores. A reconciliação do conservadorismo com o liberalismo completou-se na incorporação da ideia de que o lucro é a mediação fundamental do desenvolvimento, individual e coletivo. Daí em diante, o mercado livre passa a ser visto como portador e fundador das possibilidades de explicitação das capacidades humanas. Os ("neo") conservadores se adiantaram, desde então, ao trabalho de recuperar na tradição conservadora clássica, todos os indícios que poderiam aproximar Edmund Burke a Adam Smith. Realizada essa tarefa, tornou-se possível reclamar os princípios liberais com a rubrica da tradição conservadora, acrescida da força da tradição liberal. Essa reconciliação, em síntese, aparece comos seguintes termos: o capitalismo “[...] é a concepção menos romântica de ordem pública que uma mente humana já concebeu” (KRISTOL, Irving. apud COUTINHO, 2014, p. 88). Ou, nas palavras do historiador conservador português João Pereira Coutinho, “o capitalismo não parece despertar o mesmo fervor que outros ideais econômicos ou éticos [...] um conservador deve começar por valorizar uma ‘sociedade comercial’” (2014, p. 88). Evidentemente, os fundamentos da acumulação do capital, que supõem a exploração do trabalho como determinação ontológica e mediante a qual se produz e valoriza o valor, sequer acenam nesse terreno e o modo de produção capitalista é encarado, reificadamente, como se fosse apenas a universalização (natural e espontânea) das trocas mercantis. Segundo a visão conservadora, reconciliada com os preceitos liberais, trata-se, apenas, de zelar pelas qualidades morais necessárias à sadia permanência dos indivíduos dos mercados. Em poucas palavras, Samuel Gregg reúne determinações centrais que farão parte das preocupações teóricas e políticas dos “neoconservadores”: “A vida comercial exige, por exemplo, que os indivíduos corram riscos prudentes, confiem nos outros e sejam diligentes, industriosos e confiáveis.” (apud COUTINHO, 2014, p. 93, grifos nossos). Essa nova agenda conservadora, que envolve a centralidade e a universalização dos riscos, bem como a necessidade de resgatar a confiança, nos indivíduos e instituições, passa a ser parte importante, também, de algumas correntes teóricas da sociologia contemporânea. 19 3. CONSIDERAÇÕES FINAIS Construindo uma síntese, é possível afirmar que o conservadorismo moderno, em linhas gerais: (i) opera a desistoricização do tempo presente, baseada numa concepção de mundo "presentista"; (ii) há uma aproximação entre o sistema de ideias conservador e outras tradições de pensamento da burguesia: o liberalismo, o pragmatismo e o empirismo; (iii) o conservadorismo moderno também hiperdimensiona e hipostasia o saber prático; (iv) faz uma dura crítica ao racionalismo e procura distância do irracionalismo, entronizando uma concepção de razão extraída das formulações positivistas; (v) valoriza a função das tradições no processo de individuação; (vi) engrossa a fileira da defesa de reformas sociais que não afetem a estrutura da sociedade vigente e, nesse sentido, coloca-se como o veículo prudente para conduzir as "mudanças necessárias", sem recair nas variadas formas de "totalitarismo". As anotações aqui registradas têm caráter aproximativo e provisório. Com essa característica, sinalizamos a necessidade de maior concretização de algumas determinações, a exemplo das relações entre a crise estrutural do capital e as tendências do cenário ideológico da burguesia. Do mesmo modo, são necessários avanços no sentido de qualificar melhor a recepção do conservadorismo clássico pelo pensamento social brasileiro, clareando suas relações com a nossa passagem sui generis à modernização capitalista. Essa assimilação, que avança até o conservadorismo moderno, dá indícios de desenvolvimento que podem ser designados, parafraseando Roberto Schwarz (2014), como "as ideias em seu devido lugar", uma vez que, aqui, os traços que se acentuam do sistema de ideias conservador são, precisamente, aqueles mais à direita. Recebido em 7/1/15 Aprovado em 10/3/15 Referências bibliográficas ANDERSON, Perry. Espectro: da direita à esquerda no mundo das ideias. Tradução Fabrizio Z. Rigout, Paulo Cesar Castanheira. São Paulo: Boitempo, 2012. ARENDT, Hannah. 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Argentina and Brazil Claudio Katz* Resumen: El ensayo neodesarrollista de Argentina ha quedado afectado por la renuncia a una mayor apropiación estatal de la renta y por los subsidios improductivos a los capitalistas. Se reforzaron los perfiles extractivos y los desequilibrios industriales. Brasil no afrontó crisis y rebeliones de la misma envergadura y su política económica ha sido más conservadora. El neodesarrollismo es un programa de economías medianas afectadas por agroexportaciones, que disuaden la inversión fabril. Se intenta reorientar ese excedente pero se retroce‑ de frente a los conflictos que suscita. Palabras claves: Modelos económicos. Crisis. Capitalismo. América Latina Abstract: Argentina´s neo-developmental trial was affected by the renunciation of a larger state appropriation of the income and by the unproductive subsidies to capitalists. Both the extractive profiles and the industrial imbalances were reinforced. Brazil did not face crises and rebellions on the same scale, and its economic policy has been more conservative. Neo-developmentism is a program of medium economies affected by agro-exports that deter the industrial investment. It aims at reorienting that surplus, but it moves backwards when it is faced with the conflicts raised. Keywords: Economic models. Crisis. Capitalism. Latin America. * Licenciado en Economía, Universidad de Buenos Aires, Argentina. Doctor de la Universidad de Buenos Aires. Facultad de Filosofía y Letras, área Geografía, e-mail: <claudiokatz1@gmail.com>. http://dx.doi.org/10.1590/0101-6628.021 225Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 En Argentina se implementó el principal ensayo del neodesarrollista de la última década. El país volvió a encabezar los virajes econó‑micos de la región, como ya ocurrió en los años 50-60 con la sustitución de importaciones y en los 90 con el neoliberalismo extremo. Reafirmó su papel de experimentador de mutaciones significativas en América Latina. Este rol de adelantado es reivindicado por los autores que ponderan el modelo, en comparación a los esquemas ortodoxos de otras economías.1 Un corto ensayo El esquema intentado en Argentina logró cierta efectividad en la fase inicial del gobierno kirchnerista. Durante ese período (2003‑2007) se reunieron las condiciones para lograr alto crecimiento, con baja inflación y recuperación del empleo. Las políticas neodesarrollistas aportaron un tercer ingrediente a los fun‑ damentos objetivos de este ciclo. El primer determinante fue la depreciación de los salarios y la consiguiente recomposición de la rentabilidad que legó el derrumbe del 2001. El segundo motor de la expansión fue la valorización inter‑ nacional de las agroexportaciones. Las iniciativas neodesarrollistas introdujeron cambios en la administración del estado y un nuevo arbitraje entre los grupos dominantes. Pero este curso mantuvo muchos vasos comunicantes con el esquema precedente. Subordinó la meta de reindustrializar a la continuidad de exportaciones primarizadas y apuntaló a los sectores empresarios más internacionalizados. El modelo limitó inicialmente la valorización financiera y adaptó el rumbo de la economía a la nueva relación social de fuerzas impuesta por la rebelión del 2001. Hubo contemporización con las demandas populares y se recurrió a una mayor escala de asistencialismo. 1. Bresser Pereira, Luiz Carlos. Globalización y competencia. Buenos Aires: Siglo XXI, 2010. p. 129, 141‑142. 226 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 Durante cuatro años se pudo gestionar la economía con los parámetros del modelo Bresser-Ferrer. Hubo superávit fiscal primario, alto tipo de cambio, bajas tasas de interés y expansión del consumo. Pero la acelerada disipación de esta coyuntura anticipó el escaso margen existente para mantener ese curso. En el 2007-2010 comenzó la inflación y se frenó el crecimiento. El mode‑ lo persistió con los nuevos impulsos aportados por la introducción de un ingre‑ so universal asistencial y la estatización de los fondos de pensión. Con esas medidas se intentó sostener un esquema ya amenazado por el deterioro de sus principales variables. Esos desequilibrios emergieron con fuerza a partir del 2011. La inflación se intensificó, la producción se estancó, el déficit fiscal reapareció y fallaron todas las iniciativas implementadas para revertir el declive. El control de cam‑ bios, la pesificación y la expansión de la emisión no atenuaron el resquebraja‑ miento del modelo. A comienzo del 2014 resurgieron finalmente las tensiones clásicasde la economía argentina que condujeron a las repetidas debacles del pasado. La reiteración de esos colapsos se encuentra actualmente contrarrestada por el li‑ mitado nivel de endeudamiento público y privado, la solvencia de los bancos y la continuada valorización de las exportaciones. Por esta razón el PBI se contrae, pero con apuestas a un rebote ulterior. Numerosos capitales internacionales ya preparan su arribo para adquirir empresas.2 Sin embargo, la continuidad del proceso neodesarrollista ha quedado se‑ veramente afectada por el debilitamiento político‑electoral del kirchnerismo. Es muy probable que en los próximos años, Argentina atraviese un giro políti‑ co semejante al observado al final de los grandes ciclos de las últimas décadas. Ya ocurrió a mitad de los 70, durante los 80 y en el 2001-03. En los tres casos el peronismo registró una convulsión mayúscula y pudo reconstituirse, pero sin recuperar la fidelidad popular que rodeó a su gestación. Ha sobrevivido más que otras fuerzas semejantes de América Latina transitando por una amplia 2. Nuestra visión general en: Katz, Claudio. La economía desde la izquierda I. coyuntura y ciclo, II. Modelo y propuestas. Argenpress, 29 nov. 2013. Disponible en: <http://www.argenpress.info/2013/11/la‑ ‑economia‑desde‑la‑izquierda‑i.html>. 227Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 gama de variantes, que incluyeron el nacionalismo inicial, la radicalidad popu‑ lar, el giro represivo y el neoliberalismo. A diferencia de sus antecesores, el kirchnerismo encabezó una adminis‑ tración con fisonomía centro-izquierdista y retórica progresista. Restauró el sistema político, otorgó importantes concesiones democráticas y sociales e improvisó un proyecto diferenciado del peronismo tradicional. Pero no logró generar una identidad política sustituta.3 Este período concluye con un giro conservador de adaptación a las de‑ mandas del establishment. Este viraje incluye una gran devaluación y acha‑ tamientos de los salarios. A la luz de los enormes desequilibrios acumulados durante los últimos años es muy dudosa la persistencia del curso económico actual. Múltiples desajustes La elevada tasa de inflación es la principal manifestación de las tensiones generadas por el modelo. Ese incremento de los precios supera en los últimos seis años la media global o latinoamericana y se ha estabilizado en torno al 25-30% anual. No decae en las coyunturas recesivas y su porcentaje real fue desconocido durante largo tiempo por la manipulación oficial de las estadísti‑ cas. La gestión cotidiana de la economía quedó afectada por esta distorsión de un indicador clave. El incremento de los precios obedeció inicialmente al reducido nivel de inversión frente a una demanda recompuesta. Ese cuello de botella se reforzó posteriormente por el manejo concentrado de numerosos sectores. La remarca‑ ción permitió mantener el nivel general de las ganancias una vez disipada la capacidad ociosa.4 3. Nuestro enfoque en: Katz, Claudio. Nuevo escenario, nuevas posibilidades. La Página de Claudio Katz. Textos de Ciencias Sociales, 22 mayo 2014. Disponible en: <http://katz.lahaine.org/?p=230>. 4. Schorr, Martín; Manzanelli, Pablo. Inflación oligopólica. Disponible en: <www.pagina12.com.ar>, 24-3. Inflación Página12, Suplementos Cash, 10 mar. 2013. Disponible en: <http://www.pagina12.com.ar/ diario/suplementos/cash/17‑6669‑2013‑03‑10.html>. 228 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 Algunos economistas cuestionan este diagnóstico de “inflación por oligo‑ polio”, estimando que la carestía deriva de una “puja distributiva” entre empre‑ sarios y trabajadores. Argumentan que en otros países la misma concentración de los negocios no se traduce en inflación.5 Pero tampoco la disputa social por el ingreso genera allí el mismo incre‑ mento de los precios. En esos países los mismos desequilibrios desembocan en otro tipo de tensiones, puesto que el recurso inflacionario no está incorporado al manejo corriente de la actividad. Por simple experiencia, los capitalistas ar‑ gentinos apelan más a la remarcación que sus pares de otros países. Es una conducta muy asociada con la elevada expatriación de capitales y el manejo de inversiones dolarizadas. Los rebrotes inflacionarios obedecen, además, a la preeminencia de una estructura exportadora de alimentos que encarece todos los costos agrarios, al compás de la valorización internacional de esos productos. Finalmente, en los últimos años la inflación se intensificó por la decisión oficial de sostener el consumo a través de una intensa emisión. Este ritmo de creación de moneda quedó divorciado del respaldo en divisas y de los montos requeridos para la producción. Por esta razón se acentuó la depreciación del peso. El déficit fiscal constituye el segundo punto crítico del modelo. Ya se aproxima al 3% del PBI y afecta duramente a las provincias, que destinan la mitad de sus presupuestos al pago de salarios. Ante la ausencia de financiación el gobierno promueve recortes a los subsidios del transporte y la energía para calmar las presiones del establishment. El tercer campo de turbulencia ha sido la caldera cambiaria que estalló a fin del 2013. El gobierno implementó la devaluación que pretendía evitar. Intentó contener la estampida cambiaria vendiendo reservas, pero terminó generando una hemorragia que redujo peligrosamente el respaldo de los pesos en circulación. También se introdujeron formas de control cambiario que los neoliberales cuestionaron a viva voz, culpando al intervencionismo estatal por la “inestabi‑ 5. Crespo, Eduardo; Fiorito, Alejandro. Es la puja distributiva”. Disponible en: <www.pagina12.com. ar>, 17/03. “Es la puja… Página12, suplementos Cash, 17 mar. 2013. Disponible en: <http://www.pagina12. com.ar/diario/suplementos/cash/17‑6669‑2013‑03‑10.html>. 229Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 lidad de los mercados”.6 Pero esa injerencia fue muy acotada y sólo buscó de‑ tener las presiones devaluatorias. Como Argentina no fabrica los dólares que utiliza para solventar sus compras externas, necesita algún tipo de regulación estatal cuando las divisas comienzan a escasear. El gobierno intentó contrapesar el “mercado libre” que manejan los ban‑ cos y los exportadores. No violó ninguna ley de la naturaleza, ni tampoco los principios de una economía sana. El control de cambios fue introducido en forma tardía y se manejó con total arbitrariedad. En lugar de penalizar a los especuladores, los funcionarios toleraron la apropiación bancaria de los men‑ guantes dólares. Después de transitar por todos los rumbos posibles, el gobierno se embar‑ có en un ajuste que cuestiona todos los principios neodesarrollistas. Elevó drásticamente las tasas de interés y forzó un encarecimiento del crédito que asfixia el consumo. De un estancamiento en la creación de puestos de trabajo se pasó a una coyuntura de menor empleo, en un marco de alta informalidad laboral. Este contexto se ubica muy lejos de la depresión del 2001, pero el modelo se ha quedado sin combustible. Lo más traumático son las medidas de restricción salarial que convierten a los ingresos populares en la variable de ajuste. La inflación licúa los salarios, las jubilaciones y los programas de gasto social. El gobierno oculta las cifras de pobreza e indigencia para no transparentar que su promedio actual se ase‑ meja a los decenios anteriores. Nadie puede exhibir como un logro de la “dé‑ cada ganada”, que la pobreza afecte hoy al trabajador y no al desocupado, o que el asistencialismo evite las situaciones de extrema hambruna. Argentina ha vivido muchas veces estas coyunturas críticas. Pero las condiciones actuales difieren significativamente en el plano político y econó‑ mico de los antecedentes traumáticos legados por el “rodrigazo” (1975), la hiperinflación (1989) o el colapso general (2001). La tensión actual notiene 6. Esta postura difunden economistas ortodoxos como: Melconian, Carlos. Faltan dólares, sobran pesos... Y seguiremos así. La Nación, Economía, 04 ago. 2013. Disponible en: http://www.lanacion.com.ar/1607100‑ -faltan-dolares-sobran-pesos-y-seguiremos-asi>. Ferreres, Orlando (2013). “Cómo salir del camino de la decadencia”. La Nación, Opinión, 05 jul. 2013. Disponible en: <http://www.lanacion.com.ar/1598171‑como‑ ‑salir‑del‑camino‑de‑la‑decadencia>. 230 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 el alcance del pasado, pero ilustra la impotencia de la receta neodesarrollista para evitar los temblores que atormentan a la economía. Crisis global y demanda Los problemas del esquema ensayado en Argentina son reconocidos por sus propios promotores. Suelen atribuir esas fallas al impacto de la crisis global que irrumpió en el 2008. Afirman que el modelo permitió contrarrestar las consecuencias más dramáticas de esa convulsión, pero sin neutralizar todos sus efectos. Establecen comparaciones con Europa y remarcan las virtudes del crecimiento nacional frente al resto de Sudamérica.7 Pero la crisis mundial afecta en forma muy diferente a cada región o país. Basta comparar la prosperidad de China con el derrumbe de Grecia para notar esas disparidades. El contraste que se establece entre Argentina y Europa del Sur olvida que la primera economía soportó en el 2001, el vendaval que actu‑ almente sacude al Viejo Continente. Los ciclos de prosperidad y depresión global no están sincronizados. Ciertamente el divorcio del mercado financiero internacional y la prioridad asignada al consumo, diferencian al modelo argentino de la apertura neoliberal, imperante en otros países de Sudamérica. Pero el impacto de la crisis mundial ha sido limitado y semejante en ambos casos, dada la afluencia común de divisas que generó la apreciación de las exportaciones. Los precios récord de la soja y los ingresos aportados por la agroexportación durante la última década, supera‑ ron en cinco veces el promedio de los 90 y en diez veces la media de los 80. Los principales desequilibrios del experimento neodesarrollista radican en el propio modelo. Ese esquema supuso que bastaba con alentar la demanda para incentivar el despegue de un círculo virtuoso de inversión y crecimiento. Inspirados en la heterodoxia keynesiana, sus promotores imaginaron que el simple aliento al consumo impulsaría a toda la economía hacia un sendero de 7. Feletti, Roberto. La crisis global y el futuro de la región. La Nación, Economía, 10 jun. 2013. Dis‑ ponible en: <http://www.lanacion.com.ar/1596613-la-crisis-global-y-el-futuro-de-la-region>. 231Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 crecimiento auto sostenido. Pero lo que funcionó en el 2003‑2007 perdió con‑ sistencia en el 2008-2010 y se tornó inviable desde el 2011. Bajo el capitalismo los empresarios no sólo se interesan por el comporta‑ miento de las ventas. Priorizan las ganancias y evalúan los costos. El empuje del consumo es reactivador en ciertas coyunturas, pero obstruye la rentabilidad en otras circunstancias. Los heterodoxos suelen cometer una ingenuidad simétrica al ideario neo‑ clásico, al imaginar grandes expansiones de la oferta productiva por el mero repunte de la demanda. Esperan una reacción inviablemente positiva de los empresarios frente a esa mejora, olvidando la gravitación de otras variables como el riesgo o el beneficio. Su idealización del capitalismo les impide perci‑ bir las contradicciones de este sistema. Con esas ilusiones apostaron una y otra vez a la autocorrección del mode‑ lo, mediante sencillos empujes de la demanda que terminaron generando im‑ pulsos inflacionarios, solventados con elevado gasto público y alta emisión. Lo que funcionó durante la salida de la convertibilidad por la existencia de impor‑ tantes recursos ociosos, perdió viabilidad en la coyuntura posterior. Esas políticas permitieron incluso ciertos resultados de corto plazo frente a la recesión del 2009. Aprovecharon la subsistencia de un gran colchón de fondos públicos para reanimar la economía. Pero ese excedente se disipó pos‑ teriormente. Cuando en el 2013‑2014 desapareció el margen para posponer ajustes, el gobierno recurrió a las políticas ortodoxas de contracción de la de‑ manda, que el neodesarrollismo suele objetar enfáticamente. La renta convalidada El ensayo neodesarrollista ha fallado por la incapacidad del gobierno para incrementar la apropiación estatal de la renta de la soja. Esta medida es una condición insoslayable para estabilizar un modelo de expansión productiva y mejoras sociales. El kirchnerismo pretendió aumentar la captación pública de ese excedente subiendo los impuestos a las exportaciones de la soja (retenciones). Pero fue derrotado en la confrontación del 2008 con el agronegocio y desde ese momento abandonó todo intento de retomar la iniciativa en este campo. 232 Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 Ese desenlace marcó un punto de inflexión. No le impidió al gobierno preservar (y recrear) su hegemonía política, pero le quitó al estado los recursos necesarios para la reindustrialización. Persistió cierto crecimiento, pero con los motores del desarrollo totalmente apagados. Argentina es una economía agroexportadora asentada en la extraordinaria fertilidad de la tierra. Ese ventajoso acervo de recursos naturales constituye una maldición bajo el capitalismo, puesto que establece un alto piso de renta comparativa para cualquier otra inversión. Ninguna actividad ofrece un nivel de rendimiento semejante al agro. Esta asimetría históricamente determinó la preeminencia inicial de la ganadería y los cereales y su reemplazo actual por la soja. La industria no pudo competir durante la centuria pasada con el latifundio terrateniente y no logra rivalizar en la actualidad con los Pools de Siembra. Un sector primario que ofrecía escasas ofertas de trabajo a los chacareros, ya no crea empleo en la era de la siembra directa. La aglomeración en villas miserias que generaba el éxodo rural del interior ha devenido en informalidad laboral masiva, a partir del deterioro de la industria. Los distintos proyectos de industrialización que se implementaron desde la segunda mitad del siglo XX apuntaron a contrarrestar esta tendencia a la primarización estructural. Pero todos afrontaron el mismo límite que impone la elevada renta agroexportadora al estrecho beneficio fabril. Como la fertilidad natural de la tierra asegura costos muy inferiores al promedio mundial, la vieja tentación de privilegiar el agro (o a su extensión agroindustrial) invariablemente se renueva. Esa primacía agroexportadora reapareció con fuerza en las últimas décadas de modernización de la producción agrícola (modificaciones genéticas, agroquí‑ micos, maquinaria de última generación) y aumento de la demanda internacional (por especulación financiera, compras de China-India y agrocombustibles). Este escenario volvió a disuadir el tibio intento oficial de sostener la ac‑ tividad fabril, más allá de alguna sustitución de importaciones. Los capitalistas de la soja mantuvieron su renta y el estado se quedó sin los ingresos necesarios para desenvolver un modelo productivo. En estas condiciones el gobierno 233Serv. Soc. Soc., São Paulo, n. 122, p. 224-249, abr./jun. 2015 archivó su proyecto y se resignó a gestionar el status quo de una economía sin dinamismo industrial. Algunos autores extraen otro balance del conflicto con los agrosojeros. Estiman que ese choque derivó en una radicalización progresista del oficialismo e incentivó medidas favorables al modelo neodesarrollista (como la estatización de los fondos de pensión y la asignación universal).8 Pero esta caracterización invierte lo ocurrido y no explica los desequilibrios que finalmente empujaron al kirchnerismo al ajuste. Ignora que al renunciar a un manejo mayor de la renta
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