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O Misterio de Falconbridge Hall - Maggi Andersen

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Direitos Autorais
Título Original: The Mystery at Falconbridge Hall
Copyright©2018 por Maggi Andersen
Copyright da tradução©2020 Leabhar Books Editora Ltda.
 
Tradução: Camila Kahn
Revisão: R.M. Vieira
Diagramação: Jaime Silveira
Capa: Luis Cavichiolo
 
Todos os direitos reservados.
 Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sob quaisquer meios
existentes sem autorização por escrito do proprietário dos direitos autorais.
Todos os direitos reservados, no Brasil e língua portuguesa, por Leabhar Books
Editora Ltda.
CP: 5008 CEP: 14026-970 - RP/SP - Brasil
E-mail: leabharbooksbr@gmail.com
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U
Prólogo
ma lua cheia pintava os jardins em tons de um roxo
escuro e chumbo. Ela correu esperando que fadas
surgissem para dançar entre as árvores naquela noite mágica. Ele
ficaria feliz? Seu coração batia rápido em antecipação para ver seu
belo rosto. O lago era prata líquida, tranquilo e calmo.
O pavilhão assomava. Ela começou a recitar seu poema favorito:
E sob a lua o ceifeiro cansado
Empilhando maços em planaltos arejados
Ouvindo, sussurra
‘É a fada Lady de Shallot’
Um homem apareceu no topo dos degraus.
— O que tem aí?
Ela ergueu seu prêmio.
 
V
Capítulo 1
anessa Ashley esperava chegar ao seu destino
tranquila e composta, mas se sentia um lírio murcho.
Passou o lenço no suor que escorria por sua gola enquanto a
umidade se acumulava sob o chapéu de palha. A estação de trem
de Clapham High Street era um barulhento e malcheiroso centro de
atividades; felizmente, a casa que seria seu novo lar ficava no
campo.
Um homem baixo e barbudo se aproximou e educadamente
tocou o chapéu.
— Para Falconbridge Hall, senhorita?
— Sim, sou a srta. Ashley. Obrigada, senhor…?
— Me chamam de Capstick, srta. Ashley. Por aqui — ele a levou
até uma carroça. Depois de guardar seu baú e bicicleta, ambos se
acomodaram. Estalou as rédeas e ordenou que o cavalo andasse.
— A senhorita é a nova preceptora?
Ela sorriu:
— Sim.
— Mais uma — ele murmurou e balançou a cabeça.
Assustada, Vanessa o encarou: — Quantas foram?
— A última não ficou muito tempo.
— Mas por quê?
Capstick se recusou a comentar. Ele grunhiu e balançou a
cabeça.
— Bem, eu pretendo ficar — Vanessa aprumou os ombros. É
verdade que ela nunca desejou ser uma preceptora. Ainda que
fosse relativamente jovem, seu desejo de ter seus próprios filhos
parecia improvável de se realizar, e se aquele fosse o seu destino,
pretendia fazer o seu melhor. Uma pessoa sem renda, com uma
aparência comum e pouco graciosa não tinha muitas possibilidades.
— Boa sorte, então — Capstick gracejou, revelando um grande 
espaço nos seus dentes da frente. 
Com uma habilidade tranquila, contornou um bonde puxado a
cavalo enquanto passavam por um coreto no parque e seguiam por
uma avenida ladeada de árvores. Os palacetes eram logo
substituídos por ruas com casas graciosas entre belos jardins. A
placa, Parque Estadual de Clapham, apareceu, seguida por grandes
casas de campo em áreas cultivadas.
Passaram pela última casas e chegaram ao campo. Áreas
verdes entremeadas de sebes que se estendiam em fileiras numa
floresta à distância. A carroça seguiu pela estrada por mais alguns
quilômetros, então chegou em frente a uma grande parede de tijolos
com impressionantes portões forjados em ferro e o nome
Falconbridge Hall gravado em letras douradas. Capstick seguiu e
uma casa apareceu entre as árvores. Diversas chaminés se
elevavam do sólido telhado de ardósia.
À frente deles, um homem robusto de cabelos pretos cavalgava
um magnífico cavalo baio pelo gramado rodeando uma cerca.
Vanessa teve um vislumbre de olhos escuros e ciganos e um sorriso
de dentes brancos sob um bigode preto. Antes que se
aproximassem, ele virou o animal e cavalgou em direção ao bosque.
— Quem era aquele? — ela não conseguiu evitar a pergunta,
observando-o desaparecer entre as árvores.
— O cavalariço, Lovel, exercitando o cavalo do visconde —
Capstick balançou a cabeça. — Os jardineiros não ficarão felizes.
A estrada de cascalho ladeada por limeiras se transformava em
jardins elegantes até a frente da casa onde ele a deixou,
desaparecendo com seu baú e a bicicleta em direção à entrada dos
fundos e, ela presumiu, à cocheira e estábulos.
A extensa casa de pedra possuía uma torre em uma das
extremidades, com suas paredes parcialmente cobertas de hera.
Era mais antiga e bem maior que outras pelas quais haviam
passado no caminho desde a estação. A construção estava
sedimentada em seus arredores, e ela tinha a impressão que estava
aqui há bastante tempo, enquanto a expansão urbana de Clapham a
contornava cada vez mais de perto.
Consciente de que parecia amarrotada e desleixada, Vanessa
alisou a saia do seu vestido de linho verde oliva e endireitou a gola
branca e frouxa com luvas já surradas da viagem. Pegou sua bolsa
e subiu em direção às portas maciças e flanqueadas por colunas
brancas e robustas.
Antes que pudesse bater, uma criada usando uma touca e um
avental branco sobre um vestido cinza floral abriu a porta.
— Srta. Ashley? Por favor, entre.
Surpresa por não ser recebida por um mordomo numa casa
daquele porte, Vanessa pisou na grande sala de entrada. Uma
daquelas novas invenções, o telefone, estava apoiado numa mesa.
Um refinado tapete persa cobria todo o comprimento do assoalho de
madeira, um verde pálido acetinado revestia as paredes, e cortinas
esmeralda com franjas e borlas estavam penduradas nas janelas.
Apesar da luz difusa que entrava por um vitral sobre as escadas, a
casa era tão sombria por dentro que a noite já poderia ter caído.
— Milorde está em seu escritório, senhorita. Por favor, aguarde
aqui enquanto eu a anuncio.
Vanessa afundou grata na ponta de uma cadeira de espaldar
reto. Fazia horas que tinha bebido qualquer coisa e estava
terrivelmente sedenta. Agora seus joelhos tinham desenvolvido uma
horrível tendência a tremer. Para se distrair, passou a estudar os
excepcionais tons de pele de uma mulher com o torso nu na pintura
a óleo pendurada na parede oposta. Um François Boucher, se não
estivesse enganada. Mais pele do que seria decente, sem dúvidas.
Seu pai havia preferido o mar e os barcos como temas.
Inicialmente, ele considerara o corpo nu como uma pornografia sutil
e não uma obra de arte, mas mudou de opinião depois que os nus
se tornaram um importante patrimônio na coleção de qualquer
homem rico e começaram a alcançar preços altos. Mais de uma vez,
Vanessa se deparou com modelos nus posando no estúdio do pai,
mal cobertos por um tecido e, ocasionalmente, vestindo
absolutamente nada.
Ter pensado em seu pai e em seu lar na Cornualha, fez surgir
uma saudade de casa. Ela nunca havia vislumbrado uma mudança
tão dramática em seu destino. Aceitou e focou sua mente na carta e
na oferta que a tinham levado até ali.
Em sua escrita elegante, o visconde foi breve e direto ao ponto.
Era um viúvo com uma filha jovem que precisava de tutoria. Um
sócio dos tios de Vanessa o abordou em seu nome. Ela leu suas
palavras com inquietação. Ele parecia tão profissional e…
insensível.
Ele foi informado que o pai e a mãe de Vanessa haviam morrido
de gripe, mas suas poucas palavras de condolências falharam em
deixá-la mais confiante em relação ao que a esperava em seguida.
A cabeça da criada apareceu acima do corrimão: — O patrão vai
recebê-la agora.
Vanessa subiu a larga escada de carvalho. A criada esperou do
lado de fora de uma porta. Fez uma mesura e a deixou. Uma voz
grave atendeu à batida de Vanessa. Ela girou a maçaneta pensando
o quanto gostaria de ter se lavado antes de encontrar seu patrão;
era difícil parecer calma e controlada quando estava com tanto
calor.
A sala que entrou também estava imersa nas sombras. Uma
lâmpada a gás iluminava onde estava sentado um homem com as
mangas da camisa enroladas e suspensórios, sua cabeça escura
curvada sobre a mesa. Ela deu dois passos incertos e parou no
centro de um tapete persa carmesim. Vanessa juntou as mãos e
inspecionou a sala. Estantesde livros com lombadas de couro
revestiam uma parede. Pesadas cortinas de veludo cor de bronze
estavam puxadas até a metade da vidraça da janela que
emoldurava uma vista estreita, mas magnífica do parque, onde
amplas trilhas de cascalho dissipavam-se em grandes árvores. Ela
sentiu uma repentina necessidade de atravessar a sala, puxar as
cortinas e abrir uma janela.
Lorde Falconbridge pousou a borboleta conservada em vidro que
estava examinando e empurrou a cadeira de couro, ficando de pé.
Enquanto ela ia em sua direção, ele vestiu o casaco e foi a seu
encontro para apertar a sua mão.
— Srta. Ashley.
— Como vai, Lorde Falconbridge?
Ele indicou uma cadeira e depois sentou.
Devia estar com seus trinta e poucos anos, ela imaginou. Sua
bela aparência a fez se sentir ainda mais desarrumada. Seu cabelo
escuro caía sobre a sobrancelha farta e havia uma covinha no
queixo forte. Ele tirou os óculos e seus olhos eram similares ao azul
vívido da borboleta. Suas sobrancelhas escuras se encontraram
num franzir absorto, como se ela fosse uma distração indesejada.
— Bem-vinda a Falconbridge Hall. Espero que tenha feito uma
boa viagem.
— Sim, obrigada.
— A senhorita veio de muito longe. Deve estar cansada.
— Eu fiz uma parada no caminho na casa de uma tia em Tauton,
milorde — sua tia era bastante idosa e Vanessa tinha dormido no
sofá, mas ela não se sentia de todo cansada. Imaginava que o
cansaço chegaria de uma vez só, assim que a empolgação inicial
passasse.
— Sinto muito por sua perda, srta. Ashley.
— Obrigada.
— Entendi que a senhorita não tem experiência como
preceptora.
— Não.
— Gosta de crianças?
— Bastante, milorde.
— Então já teve alguma convivência com elas.
— Sim, eu era muito próxima aos filhos de meus vizinhos.
Cuidava deles com frequência enquanto os pais trabalhavam.
— A senhorita não teve a oportunidade de se casar na
Cornualha?
— Eu recebi uma proposta, milorde — o vigário viúvo, Harold
Ponsonby fez o pedido, numa tentativa de resgatá-la do antro de
imoralidade pagão em que ela se encontrava.
Ele a fitou: — E o recusou?
Será que ele pensava que era imprudente?
— Sim, ele era muito gentil, mas eu o recusei.
— Possui alguma habilidade especial, srta. Ashley, que possa
transmitir a minha filha?
— Não, milorde — ela respirou fundo. Não esperava uma
pergunta deste tipo — Infelizmente não herdei o talento artístico de
meu pai, mas eu tenho a mente inquisitiva de minha mãe e o
interesse dela em história e política.
— Política? — ele a encarou por um longo tempo, e ela desejou
mais uma vez que tivesse tido a oportunidade de se arrumar. — O
restante do dia é seu. Vamos discutir suas obrigações amanhã na
biblioteca às 10 horas. A sra. Royce, minha governanta, vai mostrar
seu quarto.
Com um olhar distraído para a mesa, ele levantou-se e foi tocar
a campainha.
A escrivaninha de mogno estava totalmente coberta por penas e
papéis, um microscópio, algum tipo de sonda, um conjunto de
pinças compridas, uma enorme lente de aumento e uma lupa
pequena portátil, tomos empilhados um em cima do outro, sob o
risco de cair; e a borboleta, em sua prisão de vidro, com suas belas
asas presas por alfinetes, que nunca voariam novamente. Atraída
por sua beleza e morte prematura, o poema de Keats “Ode sobre
uma urna grega”, veio à sua mente: Tu, forma silenciosa, a mente
nos torturas... tal como a eternidade.
O visconde virou-se e arqueou as sobrancelhas.
— Perdão?
Vanessa deu um pulo e sentiu as bochechas corarem. Ela havia
dito as palavras em voz alta. Provavelmente tinha tomado sol
demais.
— Keats, milorde.
— A senhorita é devota dos Românticos?
— Não exatamente — chateada consigo mesma e, de forma
inconsciente, com ele por insistir no assunto, ela disse — Desculpe-
me, foi um pensamento fortuito.
Ele cruzou os braços e a analisou.
— A senhorita é dada a arroubos de pensamentos filosóficos
fortuitos?
Ela deu um puxão na gola úmida.
— Não como via de regra. Eu estou um pouco cansada e tem
estado tão quente.
Com pressa para mudar de assunto, ela foi em direção à parede
coberta por borboletas emolduradas de todos os tamanhos e cores.
Um espécime em particular chamou sua atenção: — Extraordinário.
Ela sentiu sua presença perturbadoramente perto atrás dela.
— Qual delas?
Ela apontou.
— Essa aqui, com manchas púrpura e azul escuro nas asas.
— A senhorita tem um bom olho. Essa é uma Nymphalidae do
Peru. Entende de borboletas?
Ela olhou para ele, descobrindo que seus olhos azuis estavam
mais brilhantes.
— Receio que muito pouco — ela disse, com medo que sua
contribuição para a conversa se mostraria desapontadora. — Temos
muitas alaranjadas com pontos pretos na Cornualha.
— Fritillary verde-escuro — a luz de interesse em seus olhos se
apagou.
— Não pode ser. Elas são cor de laranja — ela falou.
— Esse é seu nome, fritillary verde-escuro.
— Por que elas seriam chamadas de verde-escuro se…? — sua
voz foi morrendo ao notar a impaciência mal disfarçada dele.
— Essa espécie é comum e de pouco interesse — ele a
analisou. — A menos que a senhorita tenha notado algum aspecto
interessante de seus hábitos?
— Não, não exatamente, milorde… hum, elas pareciam se
concentrar em árvores e na grama… — ela mordeu o lábio
enquanto ele assentia e se virava. Era esperado que uma
preceptora entendesse muito de borboletas e botânica? Para além
da Cornualha, seu conhecimento em fauna e flora mal valeria a
pena comentar.
Uma mulher entrou na sala, sua figura arrumada em um vestido
preto de sarja, com um chapéu rendado e um relógio de bolso preso
sobre o seio. Correntes repletas de chaves estavam penduradas em
sua cintura. Vanessa imaginou que ela tivesse quarenta e poucos
anos. Seu nariz pontudo e olhar afiado faziam parecer que ela não
deixava quase nada passar.
— Ah, sra. Royce, essa é a nova preceptora, srta. Ashley. Por
favor, leve-a para conhecer o quarto infantil e a sala de aula, e a
apresente a minha filha antes levá-la a seus aposentos.
— Sim, milorde.
— Srta. Ashley — o visconde acenou. — Eu a verei aqui de novo
amanhã às 10 horas. Vamos discutir seus planos para ensinar
minha filha. Tenho interesse que ela se torne proficiente em
matemática, francês e botânica.
— Botânica, milorde? — os medos de Vanessa haviam se
concretizado. Totalmente despreparada, ela examinou toda a
extensão de livros alinhados na estante. Será que ela teria tempo de
estudar sobre o assunto? Ela notou nos olhos do visconde que ele
estava ciente de seu desconforto, e levantou o queixo —
Certamente história e inglês seriam igualmente importantes?
— Isso não é nem necessário mencionar — ele se virou de volta
para a escrivaninha. — Amanhã às 10.
Sumariamente dispensada, Vanessa seguiu a governanta pelo
corredor. Ela havia captado um brilho satisfeito em seus olhos antes
que ele se virasse? Sua cabeça se encheu de perguntas. Seria
difícil trabalhar para ele? Talvez por isso as preceptoras não
ficassem lá por muito tempo?
A sra. Royce olhou para o vestido enrugado e os sapatos
arranhados de Vanessa.
— Deve estar sentindo bastante calor, imagino. Tivemos um
verão daqueles — sem aguardar uma resposta, abriu a porta do
quarto infantil e uma jovem criada pôs-se de pé rapidamente. Ela
derrubou sua costura enquanto fazia uma reverência.
— Esta é a criada do quarto infantil, Agnes.
Vanessa cumprimentou a criada enquanto a sra. Royce se
aproximava da criança que não tinha se dado conta de sua
presença.
— Srta. Blythe, essa é a srta. Ashley, sua nova preceptora.
Blythe olhou para cima de onde estava ajoelhada ao lado de
uma casa de boneca com a expressão distante de alguém que havia
acordado de repente. Uma boneca esfarrapada com o rosto de
porcelana estava caída numa pilha a seu lado.
Sobrancelhas finas franziram devido à intrusão, lembrando
Vanessa do pai da menina. Ela ficou de pé.
— É uma satisfação conhecê-la, srta. Blythe — Vanessa sorriu e
estendeu a mão. — Eu estava muito ansiosa por esse momento.
— Como vai? — Blythe disse educadamente. Deslizou a mão
pequena pela de Vanessa e, depois de um leve toque, a retirou.
Haviaherdado o cabelo preto do pai e os olhos azuis, além da sua
altura; aos dez anos, Blythe já quase alcançava os ombros da sra.
Royce.
— Já está quase na hora do chá da tarde — a sra. Royce falou.
— Vou levá-la para seu quarto, srta. Ashley.
A governanta fechou a porta do quarto e conduziu Vanessa pelo
corredor.
Sua nova responsabilidade parecia muito controlada de uma
forma não natural para uma menina de dez anos. Vanessa se
perguntou se ela passava muito tempo fechada no quarto com a
criada. Planejava mudar isso imediatamente. Uma criança deveria
ficar do lado de fora, no ar puro, na parte mais fresca do dia.
Vanessa tinha avistado um encantador pavilhão sombreado entre as
árvores, como uma relíquia antiga do passado. Ela se apressou
para alcançar a sra. Royce, que andava rápido pelo corredor.
Subiram por uma escada estreita.
— Quantos criados há por aqui? — Vanessa perguntou para
quebrar um silêncio que lhe parecia estranho.
— Vinte na casa. Dorcas é a criada principal. O mordomo não
está presente no momento.
— Nenhum lacaio?
A sra. Royce cerrou os lábios.
— Não — ela parou e abriu uma porta. — Esta é a sala de aula.
Era uma sala de bom tamanho no sótão com cadeiras
confortáveis, uma mesa, uma escrivaninha infantil e um quadro
negro num cavalete.
— Excelente! — Vanessa disse com satisfação.
No final do corredor estava o quarto de Vanessa; as paredes
inclinadas estavam cobertas por um papel de parede com estampa
de margaridas e decoradas com flores prensadas em molduras. A
cama de ferro pintada de branco possuía uma colcha floral e uma
escrivaninha ficava a seu lado. Uma cadeira estofada estava
próxima à lareira. A prateleira acima da cornija era perfeita para
Vanessa colocar as coisas que havia trazido com ela. Um tapete
cobria o assoalho. O quarto pequeno parecia alegre e confortável.
Surpresa com a boa sorte, Vanessa disse: — Que lindo! Eu me
sentirei em casa aqui.
As cortinas estavam fechadas e o quarto abafado. Foi até a
janela e abriu, olhando para o gramado verde e o pavilhão. Seu teto
circular era apoiado por colunas arredondadas decoradas, com vista
para um lago ornamental.
— Eu espero que sim — a sra. Royce cerrou os lábios. — Blythe
precisa de estabilidade.
Sentia falta disso até então? Sem ter certeza de como
responder, Vanessa chegou à conclusão que não era necessário, já
que a sra. Royce, que parecia ser uma mulher de poucas palavras,
já estava na porta do quarto. Ela gesticulou: — Temos todas as
conveniências modernas aqui. Tem um lavatório e um banheiro para
seu uso neste andar. Um chá será trazido a seu quarto às dezesseis
horas. A partir de amanhã, o tomará na sala de aula com a senhorita
Blythe.
Assim que a porta fechou atrás da governanta, Vanessa correu
para abrir a janela. Uma brisa abafada entrou, mas aproveitou a luz
e o ar fresco.
No banheiro, a banheira possuía uma borda de mogno. Água
quente e fria desciam por um aquecedor barulhento. Deleitada,
Vanessa resistiu ao impulso de tomar um banho e contentou-se em
lavar as mãos. Ela se olhou no espelho e encolheu-se ao ver a
mancha escura em seu nariz. Seus olhos se arregalaram, alarmada.
O que o visconde deve ter pensado dela? Esfregou o rosto com
uma toalha até que brilhasse e passou uma esponja com água fria
no pescoço quente.
Seu baú havia chegado enquanto estava no banheiro. Feliz por
ter descartado suas roupas de luto, colocou uma saia cinza com
uma blusa branca, prendendo-a com um cinto. Assim que seu
cabelo estava arrumado, aplicou uma fragrância de lírio do vale,
acrescentando um pouco no seu lenço.
Retirou seus preciosos bens do baú, arrumando seu conjunto de
escova e pente de madrepérola na cômoda, ao lado da miniatura da
mãe, forjada pelas mãos de seu pai, repleto de amor em cada traço
de seu pincel. Admirá-la fez seus olhos encherem-se de lágrimas.
Incomodada com sua atitude, enxugou-as com seu lenço e depois
foi até o baú para retirar os livros de arte do pai e os de história da
mãe, além dos seus próprios. Arrumou-os na prateleira,
acrescentando lindas conchas que havia pegado na costa da
Cornualha.
Depois de tirar do baú seus poucos vestidos e roupas de baixo,
afundou na cama, repentinamente exausta. Ainda era difícil
acreditar que sua vida confortável no litoral havia ficado para trás.
Que havia se tornado isso, uma empregada na casa de outro
homem. Seus pais não teriam aprovado, mas que escolha ela tinha?
Sua mãe era uma mulher estudada com interesse em política. Ela
havia se juntado a pessoas com a mesma opinião para lutar pelos
direitos das mulheres. Um membro respeitado da sociedade, foi
requerida tanto por políticos como por reformistas. Mulheres haviam
lotado seu salão para reuniões. Seu pai era menos passional pelas
causas de sua mãe. Ele as dirigia um leve sorriso antes de
desaparecer no seu estúdio para pintar.
A bandeja de chá chegou pouco depois que um sino ressoou
pela casa. Scones leves e macios com geleia de ameixa e uma fatia
de bolo de frutas acompanhavam o bule de chá. Ela saboreou as
últimas gotas do chá saboroso e forte e serviu uma outra xícara. A
cada pedaço engolido, se sentia muito mais viva depois.
Vanessa escapou para explorar a enorme casa. Passou de sala
em sala onde as cortinas estavam puxadas. No térreo, saiu por uma
porta para uma explosão de luz do sol e piscou, encontrando-se em
uma estufa, um grande espaço de vidro no lado sul ensolarado da
casa.
Um grito gelou seu sangue.
Com o coração disparado, Vanessa correu em direção ao som.
Entre grandes vasos de laranjeiras vívidas e folhagem verde, uma
mesa estava repleta de guloseimas deliciosas. Blythe estava
sentada sozinha, mordiscando um pedaço de bolo gelado e
balançando as pernas.
— O que foi aquele grito sobrenatural? — Vanessa questionou,
olhando ao redor. A resposta à sua pergunta veio de uma gaiola
dourada. Um pássaro grande com penas brilhantes estava num
poleiro e gritou de novo.
— Essa é a arara que meu pai trouxe da América do Sul —
Blythe falou.
Vanessa foi em direção à jaula. Com o peito carmesim, penas
em azul claro e verde, e olhos decididamente brilhantes, o pássaro
era de fato magnífico. Ele virou a cabeça para estudá-la.
— Ele pode estar querendo alguma coisa?
— Eu creio que ele gostaria de algumas nozes.
Como Vanessa não tinha nozes para oferecê-lo, voltou à mesa.
— Estava explorando o lugar.
Blythe assentiu.
— Tem uma casa adorável.
— Obrigada — a criança deslocou sua atenção para o copo de
leite.
— É bom sentar sob o sol, não é? — Vanessa disse, esperando
conduzir a menina à conversa.
— Imagino que sim — Blythe a olhou de relance. — Estou
tomando chá com meu pai.
— É uma ocasião especial?
— Sim, não fazemos isso com frequência.
Desejando não estar no local quando ele chegasse, Vanessa se
virou para ir embora.
O contraste daquele espaço com o resto da casa era drástico. O
sol tocava as folhas brilhantes das plantas nos vasos, deixando-as
num tom de verde intenso, e o ar tinha cheiro de terra e orquídeas
perfumadas. Do lado de fora, uma mosca varejeira batia contra o
vidro em vão. Vanessa poderia ter entrado numa floresta tropical.
Não conseguia deixar de olhar para o domo de vidro buscando
borboletas e sorriu ironicamente enquanto se virava para sair.
— Achou algo divertido?
Lorde Falconbridge passou pela porta. Ela não esperava vê-lo
até seu compromisso no dia seguinte. Ele havia tirado os óculos e
agora usava um terno azul marinho com uma gravata listrada
amarrada no pescoço.
— Sente-se, srta. Ashley.
— Não, obrigada, milorde. Já tomei meu chá — ela estava
parada com as mãos cruzadas à frente do corpo, esperando que ele
a dispensasse e então poderia continuar sua exploração da casa e
suas terras.
Ele puxou uma cadeira para ela.
— Se a senhorita não se sentar, terei que continuar em pé e eu
gostaria de tomar meu chá.
— Obrigada — relutantemente, ela sentou na cadeira que ele
ofereceu.
Ele sentou perto da filha e se recostou, cruzando uma perna
comprida em cima da outra. A luz clara revelava linhas nos cantos
de seus olhos, provavelmente devido ao tempo passadonum clima
quente. Ela desviou o olhar, ciente de que seu patrão a estudava
com mais interesse do que em seu primeiro encontro. Seu olhar
estava tão concentrado que seus dedos se curvaram e ela resistiu
ao impulso de afrouxar sua gola. Não poderia ter ficado mais 
satisfeita por ter lidado com aquela mancha. 
Ele dificilmente estaria admirando seu perfil. Quando o pai havia
pintado seu retrato, transformou seu nariz arrebitado em um formato
com proporções mais clássicas.
— A cor do cabelo de minha mãe era parecida com a da srta.
Ashley, não era, pai? — Blythe perguntou.
— Sua mãe tinha o cabelo castanho-avermelhado — ele
respondeu num tom prosaico. Blythe, também, demonstrou pouca
emoção ao mencionar sua mãe. Talvez Lady Falconbridge tenha
falecido muitos anos atrás. — O da srta. Ashley é loiro-avermelhado,
mais parecido com o da Hypanartia cinderella — ele disse,
assentindo para ela.
— Do Peru — Blythe acrescentou.
—Que interessante — Vanessa falou, tentando não se inquietar
sob o olhar observador de seu senhorio. Céus, ele tinha a habilidade
de roubar-lhe a compostura com um olhar.
— Sim, e a senhorita compartilha seu nome com a Vanessa
cardui, uma borboleta com um estranho padrão de voo, como em
um formato de parafuso. Assim — ele fez uma espiral circular para
baixo com o dedo.
Com certeza ele não a estava provocando, estava? Ela o
observou com suspeita.
— Eu espero que seja apenas meu nome que o lembre da
borboleta, milorde.
Um canto de sua boca inclinou-se num sorriso fraco.
— Borboletas são bem interessantes em sua diversidade, srta.
Ashley.
Ela queria que ele não soasse sempre como se estivesse dando
uma aula. Ele estaria a examinando sob uma lupa?
Vanessa tentou mudar de assunto. Ela não se importava de ser
comparada com as borboletas de seu patrão.
— Gosta de ler, srta. Blythe?
Os olhos de Blythe iluminaram-se.
— Oh, sim. Eu amo livros.
Feliz, Vanessa disse: — Podemos apreciá-los juntas.
— Então devo autorizar seu livre acesso à minha biblioteca, srta.
Ashley — o visconde pousou a xícara na mesa. Ele puxou uma das
mechas de Blythe, levantou-se, acenou para Vanessa e saiu da
estufa.
Blythe e Vanessa permaneceram em silêncio depois de sua
saída.
Vanessa se sentiu estranhamente vazia. Sua aparência o
desapontou? Ela não havia sido contratada por sua imagem, com
certeza.
Tinha decidido voltar para o quarto quando Blythe falou: — Meu
vestido de baile é rosa. Qual é a cor do seu?
— Eu não trouxe um — ela disse, surpresa. — Não vai haver
ocasiões para usá-lo.
— Papai convidou algumas pessoas para o sábado. Teremos
música.
— Oh. Bem, que ótimo. Mas preceptoras não vão a festas.
— A srta. Lillicrop ia.
— É mesmo?
Cílios negros e grossos esconderam os olhos azuis de Blythe
como uma veneziana sobre uma janela.
— Eu a vi da minha janela. Ela dançou no terraço.
Vanessa adoraria ter perguntado com quem, mas a sra. Royce
apareceu com a criada para retirar o chá.
— Quais livros leu, Blythe? — Vanessa perguntou, desejando
prolongar a conversa com a criança.
— Alice no país das maravilhas é meu favorito — o rosto da
menina ruborizou de prazer.
— Existem muitas histórias maravilhosas. Prometo que leremos 
novas a cada semana — Vanessa fez uma lista mental de obras. 
— A senhorita parece ser muito gentil — Blythe disse com sua
vozinha tranquila. — Vai ficar mais do que a srta. Lillicrop?
— Certamente planejo ficar — Vanessa disse, com a curiosidade
despertada.
A sra. Royce falou da entrada: — Sua professora de música está
esperando, srta. Blythe.
— Até mais — Blythe desceu da cadeira e deixou o local.
J
V
— Entendo que a srta. Lillicrop tenha sido a preceptora anterior,
correto? — Vanessa perguntou à governanta.
— Correto.
— Ela ficou por muito tempo?
— Alguns meses.
— Tão pouco? Aconteceu alguma coisa?
— É melhor perguntar ao patrão sobre isso — o tom da sra.
Royce deixou bem claro que ela não discutiria mais o assunto.
Deixada com seus próprios pensamentos, Vanessa saiu em
direção ao jardim.
ulian olhou pela janela e viu sua nova empregada
cruzar o terraço com um passo determinado. Ela havia
sido uma surpresa. Ele estava feliz porque as mulheres haviam
dispensado a crinolina, gostava do balanço natural dos quadris de
uma mulher. Tinha conhecido o avô da srta. Ashley, o Conde de
Gresham, mas não seu pai, o irresponsável caçula que havia se
afastado da família, deixando a filha sem um centavo. Julian
considerava o antigo conde arrogante demais para seu gosto e
incapaz de olhar para qualquer coisa além do próprio umbigo, e o
filho mais velho, agora de posse do título, não era melhor - ou foi o
que ele ouviu falar. Retornou ao livro-razão; esses pensamentos não
fariam o trabalho ser concluído. Tinha muito a fazer antes de partir
para a Amazônia.
anessa pegou o caminho que parecia levar ao lago. O
ar ainda estava parado e quente e todas as flores e
plantas nos canteiros do jardim estavam caídas. O caminho a levou
a um denso bosque de árvores, onde era fresco e sombrio.
Momentos depois emergiu num local ensolarado e se aproximou do
pavilhão perto do lago. Uma brisa fresca bem-vinda soprou os
cachos úmidos de sua testa. A construção era uma estrutura
elaborada, as colunas gregas intricadamente esculpidas com folhas
e flores. Degraus levavam à entrada em arco de frente para a água.
Do lado de dentro, havia um divã de veludo carmesim que poderia
estar num boudoir, cadeiras de vime e uma mesa. O lugar perfeito
para ela e Blythe fazerem um piquenique ou até mesmo para uma
aula de inglês. Seria mais prazeroso neste local adorável.
Vanessa voltou para a casa e para seu quarto. Encolheu-se em
uma cadeira de chintz, com o queixo apoiado na mão. Seu novo
empregador permanecia em seus pensamentos. Porque nunca
conhecera ninguém como ele, supôs. Parecia um homem decente,
mas seria necessário sangue frio para matar insetos e colocá-los
sob um vidro.
A natureza subjugada de Blythe a incomodava. Não era timidez.
A menina era muito contida. Estava frequentemente sozinha,
Vanessa acreditava que fosse o motivo. Estava determinada a
inserir alguma diversão na vida de Blythe. Vanessa havia sido muito
afortunada por ter sido abençoada com uma mãe amorosa até se
tornar adulta. E enquanto crescia teve muito mais liberdade, que
acreditava importar mais que bens materiais. Quão despreocupada
havia sido, pelo menos até o ano anterior quando as coisas deram
terrivelmente errado.
Vanessa suspirou e sentou à mesa. Pegou uma caneta e
começou a preparar as aulas. Quando ficou satisfeita com a lista,
guardou na gaveta da escrivaninha. Assim que tentou fechar, a
gaveta emperrou. Ela a puxou para fora e espreitou a parte de
dentro. No fundo, havia um pedaço de papel amassado. Alisando-o
na mesa, ela descobriu ser o desenho detalhado de uma borboleta,
suas asas pintadas de púrpura, assim como as da que estava no
escritório do visconde. Parecia que a antiga preceptora a tinha
desenhado. Tão finamente detalhada, fornecia uma pista do seu
conhecimento avançado em borboletas. Suas habilidades devem ter
agradado o lorde. Ela colocou o desenho no lugar e fechou a
gaveta. O que faria com que uma preceptora tão competente
deixasse Falconbridge Hall tão rápido?
T
Capítulo 2
ropeçou pela praia, enquanto a névoa rodopiava ao
seu redor, bloqueando sua visão. Ondas ribombavam
contra o cascalho, e podia sentir o sabor do mar salgado em sua
língua. Teria gostado de estar em casa de novo, mas de repente
estava se debatendo na água escura, lutando para chegar à
superfície. Subiu ofegante e tentou alcançar o corpo que flutuava
para longe dela. As mãos do pai desesperadas a agarraram e a
puxaram para baixo com ele.
Vanessa acordou suando, arfando, com o coração batendo forte.
Ela se esforçou para conseguir se apoiar nos cotovelos. Tentando
se acalmar, procurou por objetos familiares, mas o quarto lhe
parecia estranho. As frágeis gavinhas do sonho tentaram agarrá-la,
desaparecendo quando se deu conta de onde estava. A bela colcha
dobrada na beirada da cama de ferro, as cortinas estampadas
balançando sobre ajanela aberta. Seu novo quarto. Ela respirou
fundo e as batidas do seu coração se aquietaram.
Suada e com calor, afastou o lençol, pensando nas semanas e
meses que cercavam a doença e morte de seu pai. Ele logo havia
seguido sua mãe, ambos sucumbindo à gripe, a deixando
desamparada.
Vanessa vivia um luto profundo quando seu tio, o novo conde,
chegou para oferecer um lar com ele como uma dama de
companhia de sua esposa. Ela nunca havia conhecido seu avô, o
Conde de Gresham. Seu pai era o segundo filho, deserdado depois
que casou com sua mãe e tornou a pintura como profissão. Seu tio
era um estranho para ela e estava apenas cumprindo seu dever. Ela
recusou. Preferia ganhar a vida por conta própria, nem que para
isso precisasse trabalhar como criada. Ele então fez algumas
indagações em nome dela e encontrou essa colocação.
Vanessa não fazia ideia de que horas eram. Saindo da cama, foi
em direção à janela aberta. Os jardins silenciosos estavam sob uma
camada de neblina prateada. Uma brisa carregava o perfume de
glicínias e rosas brancas que cresciam na treliça abaixo.
Falconbridge tinha um encanto diferente. A natureza domesticada
pela mão do homem, diferente da força selvagem do mar. Depois
daquele sonho perturbador, ela estava feliz por isso. O ar fresco a
tranquilizou e sua respiração se acalmou. Esperando dormir, voltou
para a cama.
Uma campainha estava tocando. Ela tinha perdido a hora no seu
primeiro dia! Vanessa pulou da cama. Arrastando seu robe correu
para o banheiro para se lavar rapidamente, satisfeita por ter lidado
com o velho aquecedor e ter tomado um banho antes de dormir.
Depois de se vestir rápido, saiu correndo de seu quarto, fechando
os botões dos punhos.
Vanessa hesitou no final das escadas. Não fazia ideia de para
onde ir. Uma bandeja havia sido enviada para ela na noite anterior.
A sra. Royce saiu por uma porta.
— Bom dia, sra. Royce. Eu estava me perguntando onde…
— Vou levar a senhorita até a sala do desjejum — a sra. Royce
relanceou um olhar aprovando o vestido azul marinho, com sua gola
e punhos de renda impecáveis, adornado simplesmente com o
relógio de ouro de sua mãe em uma corrente. — A senhorita está se
sentindo melhor depois de uma boa noite de descanso, espero.
— Sim, eu… — Vanessa se apressou atrás da sra. Royce. Ela
começou a entender que a governanta não esperava uma resposta,
nem a desejava. Ela limpou a garganta.
— Sra. Royce — ela disse, dirigindo-se à parte de trás do exíguo
vestido preto de sarja da governanta —, onde minha bicicleta teria
sido guardada?
— Capstick colocou sua máquina de duas rodas em um dos
anexos. Ele irá te mostrar onde — ela estalou a língua. — Espero
que essas tendências modernas não cheguem aqui. Vai encorajar
morais duvidosas.
— Por experiência própria, não vejo motivo para que se
preocupe, sra. Royce — Vanessa percebeu que elas não haviam
subido as escadas para as dependências dos criados.
— Tem sido habitual aqui, já que não há uma senhora na casa,
que a preceptora faça as refeições com a família, embora o lorde
muitas vezes coma em seu escritório — a governanta encolheu
seus ombros magros em desaprovação desse arranjo, enquanto
parava na porta do salão de desjejum. — A cozinheira gosta que
todos estejam prontos.
Vanessa espiou através da porta a comprida mesa de mogno e o
aparador onde uma criada estava colocando água quente na
chaleira. Uma fileira de janelas francesas abria para o terraço, a
vista parcialmente oculta por cortinas verde damasco. Quando ela
olhou para trás, a sra. Royce tinha ido embora.
Ela entrou na sala.
— Bom dia.
Um cacho loiro escapou da touca da criada quando ela se virou.
— Bom dia, senhorita. Eu sou Dorcas, senhorita.
Vanessa sorriu, reconhecendo o sotaque.
— Myttin da Dorcas. — Ela desejou bom dia em córnico —Veio
da Cornualha?
A criada sorriu.
— Eu nasci lá. Sinto falta do oceano.
— Quem não sente, não é mesmo? Está na mansão há muito
tempo?
— Três anos agora.
— Gosta daqui?
— O patrão fica muito tempo longe, então fica bem calmo — a
moça deu de ombros. — Mas ultimamente… — Dorcas deu uma
rápida olhada para a porta.
— Ultimamente? — Vanessa incitou.
— A senhorita deve querer torradas — Dorcas se apressou.
Com o prato em mãos, Vanessa passou pela fileira de réchauds
de prata contendo ovos mexidos, bacon, salsichas, peixe defumado
e rins recheados. Faminta, ela encheu seu prato. Estava tomando
uma xícara de chá quando Blythe apareceu. Sua pupila usava um
avental branco sobre um vestido azul e branco com a cintura baixa.
Estava rapidamente ficando maior que a roupa, pois a saia estava
acima do joelho.
— Minha nossa, como fica bonita de azul, srta. Blythe —
Vanessa não conseguiu deixar de dizer. A pele da criança tinha a
cor e a textura de um pêssego. Ela com certeza seria linda quando
crescesse.
— Azul é minha cor favorita — Blythe deu um puxão na saia.
Vanessa pousou sua xícara.
— Vamos ver — ela curvou-se para examinar a bainha. — Se é
uma cor favorita, não podemos esquecê-la. Talvez você consiga
usar por mais uma estação antes que se desgaste.
— Oh? Eu gostaria disso.
— Gosta de ovos mexidos? Estão deliciosos.
— Não, obrigada — escolhendo um pãozinho, Blythe sentou-se
à mesa.
— Vamos começar a estudar inglês mais tarde nesta manhã,
depois que me encontrar com seu pai — Vanessa espetou o último
ovo e o colocou na boca, saboreando o gosto amanteigado.
Blythe torceu o nariz.
— A srta. Lillicrop amava poesia. Ela lia bastante.
— Sim, poesia fará parte de seus estudos. Mas vamos começar
com inglês, no entanto — Vanessa se perguntava se a srta. Lillicrop
havia ensinado botânica. Devia possuir um excelente conhecimento
em entomologia para desenhar borboletas com detalhes tão
primorosos.
A sra. Royce entrou na sala.
— Seu pai insiste que coma os ovos, srta. Blythe. E não deixe de
beber seu leite — ela gesticulou para a criada. — Sirva alguns ovos
para a srta. Blythe.
A boca de Blythe curvou-se para baixo.
— Eu não gosto de ovos.
— Vamos lá, a senhorita sabe que não esteve bem — a srta.
Royce disse. — O médico insiste em um ovo por dia.
Finalizado seu desjejum, Vanessa pousou seu guardanapo e deu
um sorriso tranquilizador para Blythe.
— Vamos começar na sala de aula às onze horas — ela
empurrou sua cadeira. — Durante a tarde, iniciaremos uma nova
história, e depois pode me levar numa exploração pelos jardins.
Quando ela deixou a sala, a sra. Royce falou: — Por favor, coma
alguns ovos, srta. Blythe. Se não, terei que informar seu pai.
Vanessa lembrava-se de ter passado pela biblioteca no seu
primeiro dia. Ela a localizou sem dificuldade, contente por tê-la
encontrado vazia. O espaço havia sido projetado para o conforto
masculino e havia um cheiro persistente de charuto e cachimbo.
Estantes cobriam todo o espaço disponível nas paredes. Um canapé
em couro escuro e um par de cadeiras estavam agrupados em
frente à lareira. Os jornais The Times, The Daily Telegraph, The
London Daily News, The London Standard, e o Penny Press
estavam empilhados ordenadamente na mesa larga sob a janela.
Uma variedade de revistas estava em uma prateleira ao lado do
sofá. Vanessa vasculhou entre The Gentleman’s Magazine, Punch,
The Strand, e a London Sunday Journal. Ela selecionou a Punch e a
Penny Press para levar para seu quarto.
Ela perambulou pelas estantes procurando livros adequados e
encontrou alguns de botânica, incluindo um tomo impressionante de
Lorde Falconbridge sobre Lepidoptera. Ela os colocou numa mesa
de mogno, junto com os livros e as anotações que havia buscado
em seu quarto. Fazendo uma busca mais profunda, avistou O
Banquete, de Platão, e subiu a escada. Estava fora do alcance. Sem
querer descer, ela inclinou-se. Seus dedos tocaram a capa e ela se
inclinou mais. Estava quase lá.
— Lê os gregos antigos, srta. Ashley? — a voz de Lorde
Falconbridge veio de trás dela.
Vanessa deu um pulo e seu pé escorregou do degrau. Ela
perdeu o equilíbrio e caiu sobre dois braços fortes.
Ele a colocou de pé.
Lorde Falconbridge a havia segurado por apenas alguns
minutos, mas a sensaçãode um corpo firme masculino e o cheiro
almiscarado permaneciam. O coração dela batia loucamente. Ela
soprou uma mecha de cabelo de cima de seus olhos, com certeza
seu rosto estava vermelho.
— Não possuo nenhum grau de conhecimento sobre eles,
milorde — ela conseguiu dizer.
Seu patrão moveu a escada, subiu, e pegou o livro que ela
estava tentando alcançar. Ele o entregou.
— Aqui. Para fazer as pazes. Me desculpe por ter te assustado.
Ainda completamente desconcertada, Vanessa pegou o livro.
— Obrigada. Foi apenas por um momento.
Ele foi até a mesa e analisou os livros que ela havia selecionado.
— Está interessada em ler Darwin? — ele levantou a cabeça do
livro de Charles Darwin, A origem das espécies. — Não se
incomoda com as ramificações religiosas de suas ideias
progressivas?
— Não posso dar uma opinião. Ainda vou lê-lo, milorde.
Ele assentiu.
— Quando ler, gostaria de saber suas reflexões. Aprovo todos,
exceto este aqui — ele levantou um dos favoritos da mãe dela,
Frankenstein; ou, o Prometeu Moderno. — Creio que não esteja
querendo transformar Blythe numa sufragista.
O desapontamento inundou seu rosto com calor.
— Não, mas há muito tempo desejo ler este livro — ela não tinha
ciência que ele sabia de sua mãe. Esperava que isso não se
tornasse um ponto de discórdia entre eles. Muitos homens não
aprovavam o movimento sufragista feminino.
Ele apontou para o sofá.
— Sente-se, por favor, srta. Ashley.
— Imaginei que o senhor gostaria de ver o que planejei — ela
reuniu suas anotações. — Aqui está uma lista de temas que
pretendo abordar e livros que eu trouxe comigo.
Sentando numa cadeira, ele pegou as anotações e as leu. Sem
fazer comentários, folheou os livros.
Ela respirou fundo, sabendo que precisava abordar a questão.
— Milorde, preciso dizer-lhe que ainda não pensei em nada
sobre botânica. Precisarei de algum tempo para me preparar.
— Já vi o suficiente — ele falou, sem olhar para cima. Depois de
alguns minutos, fechou os livros. — Parecem ser apropriados — ele
deu um leve sorriso. — Não precisa preocupar-se. Eu ensinarei
botânica a minha filha.
Então por que não havia mencionado isso? Ele gostou de deixá-
la desconfortável? Mordeu o lábio antes que um comentário de
ultraje escapasse. Passou horas se preocupando com as aulas de
botânica antes de dormir. Tinha certeza que isso havia causado
aquele sonho perturbador.
— Eu gostaria de aprender algo de botânica, por mim mesma.
— A senhorita pode assistir às aulas, se desejar. 
— Obrigada.
— Suas escolhas de material de leitura me surpreendem. Eu
também gosto de ler os clássicos. Shakespeare em particular.
— Fiquei maravilhada ao ver que o senhor tem sua obra
completa aqui.
— A senhorita tem um favorito?
— Henry V.
Ele arqueou as sobrancelhas.
— Estava esperando as peças mais românticas de Shakespeare,
“Como gostas ou Noite de reis”.
— Elas são muito interessantes, mas eu prefiro os dramas mais
poderosos.
— De fato — seus olhos azuis a estudavam enquanto ele se
levantava. — Acho que cobrimos tudo. O que a senhorita planeja
para Blythe esta tarde?
— Soube que ela está sob os cuidados de um médico. Creio que
uma caminhada ao ar livre seja benéfica.
— Uma excelente ideia. Mas, por favor, evite entrar no bosque.
— Oh? Caçadores, milorde?
— Nós tivemos algumas armadilhas de caçadores no passado,
mas receio que um incidente mais sério tenha acontecido há alguns
meses. Depois que uma jovem mulher desapareceu de um vilarejo
próximo, seu corpo foi encontrado no nosso bosque. Ela se matou.
Vanessa inspirou fundo.
— Que triste.
— Realmente. Eu prefiro que Blythe não vá lá — ele andou em
direção à porta, fechando-a atrás dele e deixando Vanessa sozinha.
Ela estava horrorizada. O que levaria uma mulher a fazer algo
assim?
V
Capítulo 3
anessa levantou antes do desjejum e vestiu uma saia
com uma divisão nas pernas que usava quando ia
pedalar na Cornualha. Deixou a casa silenciosa e circulou pela
propriedade, aproveitando o pio baixinho das andorinhas nas
árvores; passou por velhas macieiras retorcidas, a grama pintada de
frutas caídas após a colheita e ao longo do caminho dos limoeiros.
O vento tinha ficado mais forte durante a noite, o ar docemente
perfumado pelas flores caídas que cobriam o solo.
Enquanto seguia pela estrada de cascalho, pensava no que tinha
descoberto na primeira edição do Penny Press na noite anterior. Um
artigo crítico ao filho da Rainha Victoria, Edward, Príncipe de Gales,
descrevendo sua vida de luxos notórios e como ele era conhecido
por um número expressivo de casos públicos, mais notadamente
com a beldade e atriz Lillie Langtry, assim como a sra. Alice Keppel.
O príncipe tinha ido atrás da bela da sociedade, Clara Montague,
filha do Hon. Clive Montague, ministro do gabinete, antes de ela se
casar o Visconde de Falconbridge, de Falconbridge Hall. Uma foto
granulada mostrava a elegante Clara nas corridas de Ascot, usando
um chapéu de abas largas decorado com penas e flores. Que bonito
casal Lorde e Lady Falconbridge devem ter sido.
Vanessa pedalou de volta para o galpão onde ficava guardada
sua bicicleta, planejando se trocar antes do desjejum. Ela assustou
duas criadas que estavam no caminho. Elas pararam para encará-la
enquanto passava, ambas cochichando.
Vanessa voltou renitente para a casa. Ela detestava ser
observada e criticada. Nunca antes havia sofrido tal escrutínio. Este
mundo era tão formal e tão diferente da vida despreocupada que
tinha. Na Cornualha algumas vezes ela saía sem sapatos!
Quando entrou na cozinha, a conversa cessou abruptamente,
começando de novo assim que ela deixou o local. Deixe falarem.
Logo se cansariam disso quando não houvesse mais nada
interessante a dizer. Ela endireitou os ombros e se recusou a
permitir que isso a aborrecesse. A posição de preceptora era difícil,
presa entre a família e a criadagem. Esperava que com o tempo
pudesse ser aceita e fizesse amigos ali.
No terceiro dia, Vanessa e Blythe haviam estabelecido uma
rotina. Aulas pela manhã, almoço seguido por uma caminhada nos
jardins, as tardes tomadas pelas aulas de música de Blythe com
uma professora, e leitura ou aula de arte com Vanessa.
Quando Lorde Falconbridge avisou sobre uma aula de botânica
às três da tarde, Vanessa compareceu.
Ele colocou seus óculos, parou em frente ao quadro-negro e
pegou um pedaço de giz.
— Confesso que sei mais sobre a vegetação amazônica do que
sobre a flora e fauna britânicas — ele virou-se para o quadro. —
Agora, vamos começar com…
Uma hora passou e a aula teve o foco direcionado para as
perguntas insistentes de Blythe sobre sua próxima viagem. Ele
descreveu os suprimentos que precisavam ser levados — colchões,
barracas, mosquiteiros, medicamentos — e as mulas e guias nativos
contratados antes de entrar na Amazônia. Assim que Blythe tinha
esgotado todas as perguntas, ele começou a falar das borboletas,
animais e pássaros que habitavam a selva.
Vanessa estava fascinada. Não admira que o visconde estivesse
ansioso para voltar lá.
— Há realmente cobras tão grandes assim? — os olhos de
Blythe estavam do tamanho de pires.
O lorde parecia estar se divertindo tanto quanto sua filha.
— Elas são chamadas de jiboias. Apertam suas presas até a
morte e depois as engolem inteiras.
Blythe soltou um guincho selvagem.
— Conte-me sobre os leopardos de novo.
— Certo. Mas a próxima aula terá que ser sobre a flora ao invés
da fauna — ele disse, com um olhar tímido para Vanessa.
Ela olhou para baixo com um sorriso. Aquela aula não poderia
ser considerada de botânica, mas ele havia suscitado o interesse da
criança e prolongado o dela mesma. Vanessa apenas desejava que
suas aulas tivessem o mesmo resultado.
Cada vez mais Vanessa sentia que havia algo errado. A criança
possuía uma melancolia não natural, embora não houvesse cortinas
pretas ou quaisquer sinais de luto na casa. Certamente a perda da
mãe há algum tempo não era mais a origem dessa tristeza. O pai
com certeza a mimava.
No almoço do dia seguinte, Blythe estava com os olhos pesados.
Ela bocejou algumas vezes.
— Não dormiubem na noite passada? — Vanessa perguntou.
Blythe balançou a cabeça.
— Estava muito quente.
— Sim, estava. Certamente o tempo vai mudar em breve.
— Logo teremos os ventos do outono e então o frio intenso e a
neve do inverno, imagino — Blythe estava brincando com seu prato
de manjar.
— Eu gosto do outono. As folhas ficam com cores tão bonitas
como ocre, carmesim e âmbar.
A boca de Blythe curvou-se para baixo.
— Eu o odeio.
— Ódio é uma emoção muito forte.
— Minha mãe nos deixou no outono. Eu me lembro porque
estava guardando as folhas em um livro.
— Ah, minha querida — ela alcançou a mão de Blythe. Ela não
tinha certeza se Blythe quis dizer que a mãe tinha ido embora ou
havia falecido. Não se falava em Lady Falconbridge e Vanessa
ainda precisava saber as circunstâncias de sua morte.
— Mamãe acenou para mim da carruagem, mas nunca mais
voltou para casa. Seu retrato está no corredor de cima, usando um
vestido verde. Ela era muito bonita.
— Preciso ir lá vê-lo.
— Ela morreu em Paris. Fica na França.
O tom desinteressado e sem emoção da criança desconcertou
Vanessa.
— Que triste. Sinto muito.
— Eu não a via muito — Blythe disse, com um embaraço na voz.
— Ela estava sempre muito ocupada.
— Creio que ela tivesse muitas coisas para fazer.
Blythe limpou as lágrimas que estavam se acumulando em seus
cílios.
— Eu não me importava que ela saísse o tempo todo. Ela
deixava papai infeliz quando estava aqui — seu rostinho se
enrugou. — E não acho que ela me amasse.
Preocupada, Vanessa puxou sua cadeira mais para perto dela e
colocou o braço ao redor dos ombros de Blythe.
— Claro que ela amava. Como poderia não te amar, bobinha? —
ela a apertou. — Afinal, é tão adorável e todas as mães amam seus
filhos.
— Amam, srta. Ashley?
— Claro que sim — Vanessa afirmou.
Blythe encostou a cabeça no peito de Vanessa e chorou lágrimas
quentes. Segurando o corpo pequenino da criança que soluçava,
Vanessa segurou as próprias lágrimas. Blythe havia guardado aquilo
por muito tempo. Casais da sociedade de fato tinham vidas
ocupadas. Nem sempre estavam envolvidos com seus filhos como
aqueles de classes inferiores. Ela acariciou o cabelo de Blythe e
tentou não desprezar sua mãe. Casamentos davam errado e era
impossível para outras pessoas atribuir culpa, mas negligenciar uma
criança era imperdoável.
— Tem cabelos de elfo — ela penteou para trás as mechas
escuras que haviam se soltado das tranças de Blythe.
Grandes olhos azuis molhados de lágrimas olharam para ela.
— O que são cabelos de elfo?
— Seu cabelo é enrolado. Já ouviu a fábula da Rainha Mab e
suas fadas da noite?
Blythe balançou a cabeça.
— Elas faziam travessuras enquanto todos estavam dormindo. É
o que Mercúcio diz em Romeu e Julieta, de Shakespeare. “Ela é a
mesma Mab que embaraça a crina dos cavalos à noite e assa os
cabelos dos elfos, deixando-os desgrenhados, fétidos e indecentes,
cabelos que, uma vez desembaraçados, são sinal de muito azar.”
Blythe deu uma risada lacrimosa e enxugou os olhos.
— Posso escovar e trançar seu cabelo?
— Sim, daqui a pouco — Blythe suspirou profundamente e
encostou-se nela. — A senhorita vai ler para mim?
— Vamos começar outro livro — Vanessa falou. — Que tal A
Princesinha? É a história de uma princesa que flutua no ar e precisa
ser trazida para baixo antes que o vento a leve. Infelizmente, ela
não pode chorar, e é preciso achar uma cura para quebrar a
maldição.
— Oh, sim, por favor.
— O que acha de mais uma colher de manjar?
Blythe obrigou-se a comer mais uma antes de colocar o prato de
lado.
— Vamos então?
Blythe concordou com um sorriso ansioso.
Na sala de aula, Vanessa buscou o livro. Ela sentou e o abriu na
primeira página, enquanto Blythe levava sua cadeira mais para
perto.
Elas ainda estavam lendo duas horas mais tarde, pois Blythe se
interpunha com frequência fazendo perguntas, o que resultava em
longas discussões. Vanessa estava com a garganta seca e ficou
feliz quando Dorcas levou o chá.
Ela ficou aliviada pois a história distraiu Blythe dos seus
pensamentos tristes. Era um conto leve e bobo. Uma distração
perfeita. Pensaria em outros livros com a mesma proposta.
Depois do chá, no momento em que Vanessa desfazia as
tranças de Blythe e escovava seus longos cabelos cor de ébano, a
porta abriu e Lorde Falconbridge entrou.
— Papai! — Blythe saltou da cadeira, as longas mechas voando
enquanto ela corria em sua direção. — Nós estávamos lendo o
melhor livro.
Vanessa entregou o livro a ele, torcendo para que não
desaprovasse algo tão sem propósito.
Ele olhou com atenção para Blythe, então assentiu e o devolveu.
— Continue, srta. Ashley — ele deixou a sala.
Enquanto Blythe estava com a professora de música na tarde
seguinte, Vanessa pedalou até o vilarejo. Passando pela hospedaria
Black Horse e uma ferraria, cruzou uma estreita ponte de pedra
sobre o rio que cortava as terras Falconbridge. A igreja ficava numa
ladeira ao fim do vilarejo. Uma elegante fileira de casas georgianas
agraciava o lado sul do gramado. Do lado oposto estava um
aglomerado de lojas, algumas eram antigas habitações de pau a
pique, e uma loja de chá com uma encantadora janela em arco. Um
ferrador e estábulos podiam ser vistos mais adiante na rua.
No momento em que ela virou a bicicleta e pedalou sobre o
gramado, vendedores e seus clientes pararam de conversar para
observá-la. Mulheres fofocando na rua se enrolaram em seus xales
e a fitaram. Tentando ignorar uma reação tão inesperada, Vanessa
seguiu passando pelo correio e pelo açougueiro, e parou no
armazém. Uma placa sobre a porta indicava: Sr. Fernley:
proprietário. Ela encostou a bicicleta num poste e entrou, com a
intenção de comprar alguns artigos que precisava. A loja oferecia
uma variedade de serviços e produtos, desde itens de mercearia a
botões e seda, meias, papelaria, equipamentos, remédios, e até
mesmo brinquedos. O cheiro inebriante de pão recém assado lutava
com o odor menos atrativo de graxa e carvão. Uma cadeira vaga de
barbeiro estava em um canto.
Com a expansão do entroncamento de Clapham a apenas
algumas milhas de distância, ela se perguntou se a loja do sr.
Fernley ainda estava operando bem.
— A senhorita veio da mansão — um grisalho sr. Fernley falou,
alisando o avental branco em sua cintura.
— Sim, eu sou a nova preceptora — as notícias corriam rápido
em cidades pequenas. — Srta. Ashley, é um prazer conhecê-lo, sr.
Fernley.
— Como vai?
Ela perambulou pela loja. Uma bela gola de renda e um pequeno
sachê de lavanda para sua gaveta de roupas íntimas chamaram sua
atenção e ela os adicionou às suas compras de grampos de cabelo,
meias, lápis, agulhas e linha com a cor perfeita para combinar com o
vestido azul de Blythe.
O sr. Fernley embrulhou sua sacola de pano com os itens
escolhidos e entregou a ela.
— Tem uma história e tanto aquele lugar — ele disse.
— É mesmo? — Vanessa esperou que continuasse, mas ele
apenas deu de ombros.
— Que engenhoca é aquela que a senhorita conduz? — um
homem mais velho perguntou quando entrou na loja.
Quando ela explicou, ele riu e balançou a cabeça.
— Nunca trocarei o cavalo.
Ela se perguntou o que ele faria com as novas carruagens sem
cavalos sobre as quais havia lido no jornal. Estavam asfaltando as
estradas - segundo o artigo - antecipando a substituição dos cavalos
um dia.
Ao passar pedalando pelos portões, ela viu Lovel, o cavalariço,
com um cachecol púrpura enrolado no pescoço, e sua camisa clara
aberta, mostrando um tufo de pelos escuros no peito. Ele conduzia
um cavalo que tinha perdido a ferradura durante o transporte para
os estábulos. Ela estava fantasiando ou ele a havia olhado como se
tivesse tirado suas roupas? Desconfortável, Vanessa desviou o
olhar.
Quando ela virou a cabeça, ele estava sorrindo para ela sobre o
ombro. Ele tirou o chapéu e levou o cavalo embora.
Durante a noite, Vanessa acordou com lampejos de luz
aparecendo nas bordas das cortinas e os trovões ribombando pelo
céu sobre sua cabeça. Mesmo dormindo nua, estava muito quente.
Saiu da cama e se serviu de um copo d’água do jarro sobre acômoda. Bebericando a água, andou até a janela. Uma chuva
pesada começou a bater contra o vidro. Deslizando a cortina para o
lado, encontrou água no peitoril. Quando se aproximou para fechar
a janela, um choro abafado chegou a ela trazido pelo vento. Ficou
imóvel, ouvindo entre um estrondo e outros dos trovões, e escutou
de novo.
O quarto de Blythe é quase diretamente abaixo do seu. Seria
ela? Tinha visto Lorde Falconbridge embarcando na carruagem mais
cedo. Era possível que ainda não tivesse retornado.
Vanessa hesitou e então se enfiou no roupão. Amarrando a faixa
apertada, ela apressou-se pelo corredor e desceu as escadas. Outro
estrondo do trovão ressoou, e a criança gemeu de medo.
— Minha querida — Vanessa correu para fechar a janela. Ela a
travou e puxou as cortinas para cobri-la. Voltou para Blythe e
sentou-se na cama. — É só uma tempestade de verão.
— Eu não gosto de tempestades — Blythe soluçou.
Vanessa a pegou nos braços e deu tapinhas em suas costas
magras.
— Relâmpagos e trovões não vão machucá-la, prometo. Afinal,
eles não trazem a chuva? E a chuva reabastece o córrego para os
peixes e faz as plantas crescerem no jardim. Gosta que os pássaros
tenham água para beber e se banhar, não gosta?
— S… sim.
Ela afastou o cabelo da criança do rosto.
— Tempestades parecem assustadoras, mas elas não podem
nos machucar se estamos aconchegadas em nossas camas. Deite-
se e feche os olhos. Quando acordar de manhã, ela já terá
desaparecido.
— Obrigada — Blythe deitou e fechou os olhos. Ela parecia tão
delicada; a visão despedaçou o coração de Vanessa.
— Vou desligar a lâmpada e sentar nessa cadeira ao lado da
cama, tudo bem?
— Sim, por favor — Blythe disse num fio de voz.
Vanessa se enrodilhou na cadeira coberta de chintz floral. A
tempestade parecia estar diminuindo, no fim das contas. Ela apoiou
a cabeça no encosto da cadeira e observou a pequena forma na
cama. Depois de revirar algumas vezes, Blythe acalmou-se. Sua
respiração ficou mais lenta.
Decidiu ficar mais um pouco para garantir que ela estivesse
dormindo. Vanessa fechou os olhos.
Uma mão sacudiu seu ombro. Ela acordou de repente, com o
coração martelando.
— Quem é?
— Estava dormindo, srta. Ashley — estava muito escuro para
que conseguisse ver seu rosto. — Acabei de chegar em casa e
pensei em vir checar Blythe. E o que descobri? Imagino que não
goste de sua cama.
Vanessa enrubesceu, desconcertada por estar com o cabelo
trançado e pior, nua sob o roupão.
— Vou acender a lâmpada — Lorde Falconbridge foi em direção
à mesa.
— Oh, não, por favor — ela implorou. A faixa estava folgada e
um pouco da coxa pálida aparecia sempre que ela se movia.
— Não vai acordar Blythe agora. Vê como ela está dormindo
profundamente?
— Não é isso. Eu… não estou vestida.
— Oh? — ele parecia muito interessado e ela corou. — A
senhorita não tem andado nua pela casa, eu presumo.
Ela tinha certeza que os olhos dele tinham piscado em diversão
e estava feliz que não podia vê-lo claramente.
— Houve uma tempestade mais cedo. Me acordou, e quando eu
estava fechando a janela, ouvi Blythe chorando e desci. Prometi
ficar com ela até que dormisse.
Seu patrão não respondeu imediatamente. Quando ele replicou,
o tom divertido tinha desaparecido.
— É gentil da sua parte. Blythe sempre teve medo de
relâmpagos e trovões.
Vanessa apertou a seda fina do seu robe ao seu redor. Ela
deslizou os pés para dentro dos chinelos.
— Vou retornar ao meu quarto agora. Se me dá licença.
— Sou grato, srta. Ashley — ele sentou na cadeira que ela tinha
vagado e cruzou as pernas. — Não há necessidade de acordar tão
cedo. Avisarei à sra. Royce que chegará tarde para o desjejum.
— Não é preciso, milorde.
— Veja como irá se sentir pela manhã.
— Obrigada — ela abriu a porta, ciente de que a luz acesa no
corredor revelaria sua falta de roupas. — Boa noite, milorde.
— Boa noite, srta. Ashley.
Ela caminhou na ponta dos pés pelo corredor até as escadas.
Seu patrão pretendia ficar até que os criados levantassem às seis
horas? Ela suspeitava que sim. Nem todos os pais se envolviam no
cuidado com os filhos ou eram próximos a eles. Devia ser difícil para
o visconde conciliar o amor pela filha com sua paixão por
Lepidoptera, o que resultava em longos períodos de ausência
quando ele viajava para a Amazônia.
 
L
Capítulo 4
orde Falconbridge chegou bem mais preparado na sua
aula seguinte. Desenhou belas imagens botânicas e falou
sobre polinização cruzada, o que levava nitidamente a seu interesse
preferido em insetos, quando falava como as abelhas carregavam o
pólen para suas colmeias, e como as borboletas o provavam através
de suas patas.
Vanessa admirava suas habilidades artísticas para desenhar
plantas e borboletas. Enquanto ele falava, ela pensou sobre seu
casamento. Por que sua esposa tinha ido embora? Tinha sido por
que ela não podia competir com as borboletas? E o que aconteceu
com ela em Paris?
Explorando as diversas pinturas da casa, Vanessa descobriu o
retrato de Lady Falconbridge na galeria. Será que o artista tinha sido
bem sucedido em capturar algo da personalidade da retratada? Os
olhos de Lady Falconbridge pareciam sombrios. Ela realmente tinha
sido tão requintada? Seus olhos eram do mesmo tom de verde das
esmeraldas em seu pescoço. Seus ombros macios e braços eram
tão perfeitos que poderia ter sido esculpida em mármore pelas mãos
de um dos mestres gregos. O vestido que usava era feito de renda,
fitas e laços.
Surpresa por sua curiosidade e um pouco envergonhada,
Vanessa decidiu não contar para ninguém que tinha visto o quadro.
— Está prestando atenção, srta. Ashley? — Lorde Falconbridge
estava segurando a imagem do estame de uma planta.
— Sim, milorde.
— Talvez eu faça um teste.
Vanessa riu e, para sua alegria, Blythe a acompanhou.
— Pai, podemos cavalgar amanhã?
À medida que a conversa ia e vinha entre os dois, com seu
patrão explicando por que não seria sábio, Vanessa descobriu que
Blythe não tinha montado no lombo de um cavalo neste verão. Ela
tinha estado bastante doente com um problema respiratório e o
médico recomendou que evitasse exercícios extenuantes. Sua
doença tinha regredido graças aos esforços da sra. Royce em fazê-
la comer bem.
— Mas isso foi séculos atrás, papai — Blythe implorou.
Sua expressão suavizou.
— De fato parece estar bem melhor agora.
Blythe bateu palmas.
— Vai cavalgar conosco, não vai, srta. Ashley?
Vanessa estava tão feliz por ver Blythe entusiasmada que levou
um momento para que a pergunta fosse absorvida.
— Cavalga, srta. Ashley? — o visconde questionou.
— Receio não ser adequada para os passatempos rurais — ela
também não se destacava na dança, apesar de amá-la bastante.
As sobrancelhas de Lorde Falconbridge arquearam.
— Se consegue pedalar aquela sua bicicleta, consegue ficar em
cima de um cavalo.
— Bicicletas não mordem, milorde.
Blythe riu.
— Mas nossos cavalos não mordem, srta. Blythe.
Vanessa desistiu.
— Muito bem. Desde que eu não precise pular cercas ou caçar
com os cães.
Os lábios de seu patrão tremeram.
— Nem a senhorita nem o cavalo serão submetidos a isso.
Ele com certeza a considerava divertida. Vanessa baixou a
cabeça para suas anotações, a fim de esconder o rubor nas
bochechas. Ela sentiu uma pontada de desconforto ao fazerem
parecer que era tão incapaz. Com certeza uma preceptora não
precisava cavalgar tão bem quanto ensinar sua pupila.
— Vou levar as duas para cavalgar amanhã. Vamos ver o que
poderemos fazer. A senhorita trouxe vestes de montaria?
— Sim — ela tinha a saia dividida nas pernas que havia usado
para pedalar. Teria que servir, embora fosse de um tom horroroso de
verde-ervilha. Não havia muitas opções de cores quando a
comprou.
— Blythe, leve a senhorita Ashley aos estábulos e mostre os
cavalos. Peça a Lovel para escolher um para ela.
Blythe sorriu, com os olhos dançando.
— Sim, papai.
— E não esqueça de dizer a ele que a srta. Ashley não sabe
cavalgar.
— Creio que eu possa falar por mim mesma, Lorde Falconbridge
— Vanessa disse, sem conseguir disfarçar seu incômodo, que ela
imaginavater mais a ver com suas próprias falhas.
— Estou apenas considerando sua segurança, srta. Ashley — o
visconde falou suavemente.
Vanessa ficou em silêncio. Suas explicações racionais sempre a
faziam se sentir que não estava sendo razoável. Se ela não fosse
um dos membros mais modestos da equipe de funcionários, era
possível que se saísse melhor numa discussão, mas duvidava.
Blythe pegou uma cenoura na cozinha e guiou Vanessa por uma 
quadra de tênis até o quarteirão dos estábulos. 
— Olá, Jim — Blythe chamou um cavalariço jovem e esguio que
estava esfregando os paralelepípedos do estábulo.
Ele colocou a escova de lado, se empertigou e tirou o chapéu.
— Srta. Blythe, srta. Ashley.
Vanessa sorriu.
— É um prazer conhecê-lo, Jim.
O cavalariço de cabelos escuros saiu das cocheiras, com uma
braçadeira de couro nas mãos.
— Srta. Blythe.
— Lovel, esta é a srta. Ashley.
Lovel inclinou sua cabeça em um gesto de respeito, mas não
antes de Vanessa captar o olhar de avaliação de seus olhos
escuros. Ele tinha um nome cigano, e sua aparência o confirmou
com pele morena e pelos pretos de carvão crescendo abaixo de
suas bochechas, sua boca sensual e lábio cheio sob um bigode
peludo.
— Planejando cavalgar hoje, srta. Blythe?
— Não hoje. Meu pai vai cavalgar conosco amanhã — Blythe
falou. — Ele gostaria que escolhesse um cavalo para a srta. Ashley.
— Um cavalo manso, por favor — Vanessa disse. — Não
costumávamos cavalgar na Cornualha.
— Da Cornualha, é? A senhorita não tem sotaque.
— Não, nem eu nem meus pais nascemos lá — Vanessa não se
ressentia de sua curiosidade, afinal, ela mesma havia pedido ajuda,
mas tinha algo no seu jeito que a preocupava. Os olhos escuros de
Lovel encararam por tempo demais seu corpo. Ela mudou de
posição, desconfortável, até ele virar-se em direção a uma baia.
— Flora é uma boa escolha.
— Oh, sim, Flora é perfeita — Blythe estava uma criança
diferente hoje. Bem mais animada do que Vanessa jamais tinha
visto. Elas seguiram o homenzarrão até a baia onde uma égua
mestiça colocou a cabeça para fora e relinchou.
Vanessa observou Lovel lidando com o cavalo. Sob seu toque
gentil e confiante, a égua obedeceu sem questionar. Ele a levou até
o cercado para que Vanessa a conhecesse.
Aliviada porque o animal era pequeno em estatura, Vanessa
alisou o focinho da égua.
— Acho que me servirá muito bem, Flora.
Lovel levou o cavalo de volta para a baia. Deu um puxão na
crina, mas a expressão malandra em seus olhos escuros zombava
do gesto.
— Agora, se me dão licença, senhoritas, tenho um trabalho para
fazer — ele pegou um arreio da bancada. Balançando-o em suas
mãos grandes, e afastou-se.
Blythe deu a cenoura para um cavalo cinza com uma mancha
branca no focinho.
— Conheça meu cavalo, Buttercup.
— Que belo cavalo — Vanessa falou.
— Ela é uma beleza, não é, Buttercup? — Blythe envolveu os
braços no pescoço da égua.
Quando elas deixaram os estábulos, Blythe ainda estava cheia
de energia.
— Vamos andar pelo bosque?
Vanessa lembrou-se do aviso do pai.
— Hoje não.
Blythe dançava sobre o gramado como um filhotinho que
acabara de ser solto da coleira.
— Não vamos voltar para casa ainda — ela implorou. — A
senhorita gostaria de ver o jardim das rosas e a fonte?
Vanessa sorriu.
— Muito bem, mostre o caminho, Macduff.
Elas seguiram por um caminho de pedra até um banco de
madeira sob um caramanchão para desfrutar do som tranquilizante
da água cascateando numa piscina, vinda de uma urna de mármore
apoiada por uma mulher.
— Por que a senhorita deixou sua casa na Cornualha? — Blythe
perguntou.
— Eu precisava ganhar a vida e seu pai gentilmente me ofereceu
este cargo.
— A senhorita sempre quis ser preceptora?
— Não exatamente. Eu sempre quis ter um trabalho e dar um
bom uso à minha educação. Sabe, Blythe, as mulheres podem
estudar na Universidade de Oxford, mas não podem ter um diploma
ainda. Espero que isso mude ainda durante sua vida.
Os olhos de Blythe se arregalaram.
— Eu gostaria de fazer isso.
— Uma meta admirável. Mas precisaria se dedicar bastante às
suas aulas para conseguir. E se eu te der uma tarefa? Pode
escolher uma mulher famosa para estudar. Vamos buscar
informações na biblioteca de seu pai.
Blythe pegou uma rosa mosqueta e a examinou.
— Como uma mulher se torna famosa?
— Se sobressaindo em alguma conquista. Bem, vamos ver. Mary
Kingsley é uma exploradora. Ela viajou para a África tantas vezes
quanto seu pai. Marie Curie é uma cientista. Florence Nightingale e
Mary Seacole transformaram a profissão de enfermeira. Lilian
Murray é a primeira mulher a se tornar dentista. Marianne North foi
uma artista que viajou o mundo para pintar.
— Posso estudar duas delas?
— Sim, se quiser.
— Então eu vou escolher Marie Curie e Mary Kingsley. Eu
gostaria de ser uma cientista e uma exploradora, assim como meu
pai — ela virou-se, entusiasmada. — Aí está o papai.
Enquanto ele descia os degraus na direção delas, Blythe correu
para ele.
— Papai, a srta. Blythe está me ensinando sobre exploradoras e
cientistas famosas. Eu gostaria de estudar na Universidade de
Oxford. O senhor acha que eu poderia?
— Teremos que ver, Blythe.
Vanessa esperava que o patrão aprovasse seus métodos
modernos de ensino.
— Escolheu uma montaria?
— Escolhi, sim. Uma criatura pequena e, espero, com boas
maneiras.
— Estará cavalgando tão bem quanto Blythe em pouco tempo —
o lorde parecia assustadoramente resoluto.
Vanessa duvidava bastante, mas não via motivo para falar sobre
o assunto.
— A senhorita gosta de cavalos, não gosta, srta. Ashley? —
Blythe parecia não acreditar que alguém pudesse não gostar.
— Eu gosto de todos os animais — Vanessa lembrou,
apreensiva, que havia sido mordida no braço por um pônei quando
era criança.
Com uma palmadinha leve na cabeça de Blythe, Lorde
Falconbridge saiu em direção aos estábulos.
Vanessa o observou, apreciando seu passo tranquilo. O homem
possuía uma elegância inata.
Uma brisa forte agitou os galhos. Uma leve névoa veio da fonte,
à medida em que o dia se tornava atipicamente frio.
— Acho que é melhor voltarmos para casa — Vanessa olhou
para Blythe, que estava apenas com um vestido fino e a camisa. Ela
começou a esfregar os braços. — Vamos andar rápido, certo? — ela
odiaria que ficasse doente.
Na sala de aula, Vanessa foi direto para a janela e puxou as
cortinas para permitir a entrada de luz.
— Por que as cortinas ficam parcialmente fechadas na maior
parte das salas? — ela perguntou a Blythe.
— A sra. Royce tem medo que o sol desgaste os tapetes.
— Eu não creio que ela se importaria se não fizéssemos isso
aqui, não é?
Blythe balançou a cabeça. Um feixe da morna luz solar atingiu
seu rosto e iluminou todas as cores na sala.
Elas se instalaram para começar o novo livro no momento em
que Agnes levava o chá.
Blythe mordeu um bolinho.
— Não conte ao meu pai, mas nós temos fadas no jardim — ela
disse, entre uma mordida e outra, o mel escorrendo por seu queixo.
Olhos violeta confiantes encontraram os de Vanessa.
— Existem mesmo? — Vanessa respondeu, encantada por
Blythe ter confiado nela.
— Algumas vezes, tarde da noite quando não consigo dormir, eu
sento na janela e vejo duas luzes dançando através das árvores.
Elas sempre entram no pavilhão. Eu adoraria conhecê-las.
— O que a faz pensar que são fadas?
— A srta. Lillicrop disse que as luzes deviam ser fadas, quando
eu perguntei.
— Mas ela não disse que as viu? — seus dedos descobriram um
incômodo formigamento fazendo cócegas em sua nuca.
— Não exatamente, mas ela me mostrou imagens de fadas.
Uma noite eu irei lá conhecê-las.
Vanessa inclinou-se e tocou o braço da menina.
— Prometa-me que não vai.
Blythe virou a cabeça.
— Mas por que não? Fadas não vão machucar, a senhorita
sabe.
Pousando a xícara, Vanessa virou-se para o livro, mantendo a
voz desinteressada.
— Seu pai não iria gostar. Se eu souber que foi lá à noite,
sozinha, teria que informá-lo.
Blythe ofegou.
— Oh, não! Prometa-me que não vai contar a ele, vou observá-
las da minha janela.
— Faremos um acordo, certo? Não contarei a elese prometer vir
me buscar antes de sair perambulando pelos jardins.
Assim que Blythe concordou, Vanessa abriu o livro, esperando
que ela logo se esquecesse das luzes no jardim. Se era um
encontro amoroso secreto, parecia provável que acabaria quando o
tempo ficasse mais frio.
Vanessa distraiu Blythe com o livro, determinada a descobrir
mais ela mesma sobre as luzes misteriosas, assim que pudesse.
No dia seguinte, com alguns minutos livres antes das aulas
começarem, Vanessa escapuliu para os jardins. Encontrou o chefe
dos jardineiros com as roseiras, removendo as flores murchas
caídas. Ela pigarreou e o homem se aprumou, removendo o boné e
revelando um cabelo castanho ficando grisalho.
— Olá, eu sou a srta. Ashley, a nova preceptora. Estava
admirando os jardins. Eles são gloriosos.
— Thompson, senhorita — ele assentiu. — Obrigado. Temos
muito orgulho deles.
— Uma pessoa foi vista levando uma lanterna pelos jardins
durante a noite, Thompson. Seria o senhor ou algum dos seus
homens? Talvez alguma pá tenha sido esquecida?
Ele franziu a testa e abaixou-se para pegar a pá encostada na
parede.
— Nós cuidamos bem de nossas ferramentas, senhorita. São
itens valiosos. Observe o excelente acabamento — ele passou a
mão com carinho pelo cabo. — Madeira de faia; não há
possibilidade de deixarmos isso aqui do lado de fora, não importa o
tempo. Não realmente, senhorita. Todos nós voltamos para casa à
noite.
— Talvez o guarda-caça?
Ele coçou a cabeça.
— É improvável, senhorita. Não soube de nenhum problema com
roedores ou alguma raposa desordeira. Mas tivemos alguns
acontecimentos estranhos aqui, isso tivemos. A jovem mulher se
suicidando naquela direção. Estava pendurada no galho mais baixo
daquele carvalho grande na clareira — ele indicou com a cabeça a
direção dos bosques. — O guarda-caça a encontrou. Ficou muito
transtornado, o pobre homem — ele colocou seu boné de volta na
cabeça. — Não faço ideia de qual luz a senhorita esteja procurando.
Melhor perguntar ao visconde.
Vanessa voltou à casa. Ela não tinha a intenção de levantar a
questão com Lorde Falconbridge. Ele poderia muito bem pensar que
ela estava interferindo em assuntos que não eram de sua alçada.
A melancolia impregnada nos espaços fechados de Falconbridge
Hall não conseguiu esmorecer o ânimo de Vanessa. Era a ideia de
cavalgar que havia colocado o medo em seu coração. Mal tocou em
seu almoço e seu estômago roncava enquanto vestia a saia dividida
nas pernas. Não havia motivo para desejar que tivesse algo mais
prático para usar.
Sua esperança de que o lorde estivesse impossibilitado de
acompanhá-las foi frustrada quando ele confirmou sua intenção no
almoço. Enquanto ela beliscava sua comida, nervosa, ele disse que
estava ansioso para a ocasião.
Ansioso, realmente! Ele parecia determinado a vê-la montada
em um cavalo. Imaginava que ele gostaria que ela acompanhasse
Blythe em sua ausência.
Nos estábulos, Lovel a colocou em cima da sela. Vanessa tentou
não se encolher com o toque de suas mãos enormes. Ele olhou
para seu traseiro e, por um momento terrível, ela pensou que ele
fosse tocá-la lá.
— Sente-se ereta no cavalo, srta. Ashley. Se não, é ruim para o
animal.
Vanessa começou a suar sob o chapéu. Ela nunca havia perdido
o equilíbrio na bicicleta, mas era uma situação em que tinha total
controle. Cavalos eram imprevisíveis. Ela segurou a sela e
deslocou-se lentamente enquanto Lovel ajustava os estribos. Sua
mão segurou a bota de Vanessa e ela se sobressaltou com a
intimidade do gesto.
— Mantenha seu tornozelo esquerdo flexionado e o salto para
baixo — ele disse, curvando-o.
— Obrigada — ela falou, rígida.
Ele a entregou o chicote.
— Segure-o na sua mão direita, e use apenas em caso de
emergência, nunca para punir.
— Eu não tenho intenção nenhuma de machucar Flora — ela
também esperava que fosse a mesma intenção de Flora.
Ele afastou-se e assentiu com um sorriso dissimulado. Ele sentiu
o quanto a tinha irritado? Ou achava que todas as mulheres iriam se
apaixonar por seus encantos? Ela não conseguiu interpretar quase
nada daqueles olhos negros antes que ele se fosse embora. Ela
puxou as rédeas e virou a cabeça de Flora.
— Ande — o cavalo trotou obedientemente depois dos outros.
Durante o passeio equestre, Lorde Falconbridge refreou o cavalo
a seu lado, enquanto Blythe galopava à frente.
— Esse é o melhor caminho a tomar quando cavalgar com
Blythe — ele disse. — Eu não gostaria que ela te persuadisse a ir
muito longe.
— Eu não me incomodaria com isso, milorde — ela quicava
desconfortável ao lado dele, mantendo-a enfeitiçada por seus
brilhantes olhos azuis.
Sua expressão estava frequentemente apreensiva e distante,
mas hoje, seus olhos tinham um indício de compaixão. Ele deve ter
notado o quão estranha e insegura ela se sentia num cavalo.
— Incline-se para trás — ele aconselhou, enquanto o cavalo
caminhava por um declive para cruzar um córrego raso.
Vanessa agarrou a sela e arfou à medida que a gravidade a
puxava para frente. Ela fez o que ele instruiu, com medo de tombar
sobre a cabeça do cavalo. Chegaram à parte de baixo e Flora
chapinhou para chegar ao outro lado.
— Isso mesmo — ele cavalgou ao seu lado. — A senhorita vai
pegar o jeito bem rápido.
Assim que subiram na margem oposta, havia um caminho
nivelado. Aliviada, a confiança de que Flora sabia o que fazer
quando ela não sabia, aumentou. Não havia sinal de Blythe à frente
deles. Ele foi adiante até o próximo retorno no caminho e voltou.
Flora se arrastava. Vanessa podia sentir a impaciência do seu
patrão crescendo. Ela esperava que não fosse com ela, mas se
fosse, havia pouco que pudesse fazer.
Finalmente, ele falou: — É melhor eu checar onde Blythe foi.
Ele cavalgou com facilidade em seu belo garanhão árabe da cor
de mel. Vanessa o observou partir. A ansiedade por ser deixada
sozinha para sair dali apertou seu peito. Apesar do sentimento de
abandono, ela não podia deixar de admirar o elegante triângulo
formado por seus ombros largos terminando na cintura e quadris
estreitos. Ele estava bonito na sela, subindo e descendo no mesmo
ritmo do galope do cavalo. Isso a fez se sentir ainda pior.
 
Flora continuou trotando com um passo tranquilo, e como o
cavalo não dava sinais de querer acelerar, a confiança de Vanessa
aumentou. Ela começou a se divertir. O sol aquecia suas costas. O
ar com cheiro de pinho era agradável, e a fileira de rododendros
possuía uma relva de um tom desbotado de carmesim e flores roxas
em suas bases. Pássaros piavam nas árvores.
O caminho bifurcava e não havia uma sinalização clara sobre
qual trilha os outros dois cavaleiros tinham seguido.
— Opa! Espere, moça — Flora ignorou suas súplicas e
continuou pelo caminho da direita.
Através de uma passagem entre as árvores, o outro caminho
parecia desviar para um prado. Vanessa deu de ombros; talvez
Flora soubesse mais do que ela. Deixou o cavalo fazer do seu jeito.
Cinco minutos se transformaram em dez, e ela se viu nos
bosques sem qualquer sinal do lorde ou de Blythe. Certamente iriam
cavalgar de volta para encontrá-la.
O amontoado de árvores bloqueava o céu e os arbustos
estreitavam o caminho. Normalmente ela gostava de estar no
bosque, mas talvez por causa do que havia acontecido ali, mal
podia esperar para sair. Era de um silêncio tenebroso. Ela
estremeceu.
— Este não pode ser o caminho, Flora — ela puxou as rédeas.
Flora a ignorou. Levantando a voz, ela puxou mais uma vez, usando
mais força. — Pare, moça. Nós temos que voltar.
Um tiro ricocheteou nas árvores, assustando um bando de
pombos-torcazes. Eles levantaram voo como um só e se
dispersaram no céu.
Flora ergueu as orelhas e disparou num galope. Vanessa quase
escorregou da sela. Fez um grande esforço para segurar as rédeas
com a mão esquerda e a sela com a direita. Era uma posição
desconfortável e ela sabia que não poderia mantê-la por muito
tempo.
— Opa, opa, menina!
Ofegante e em perigo, com as coxas e costas doloridas,
Vanessa finalmente conseguiu puxar Flora. Enquanto pensava no
que faria em seguida, seu chicote

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