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INSURGÊNCIA CRIMINOLÓGICA (AFRO)EPISTÊMICA - Luciano Goes

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INSURGÊNCIA “CRIMINOLÓGICA” (AFRO)EPISTÊMICA: UMA PERSPECTIVA 
MARGINAL PARA UMA SOCIOLOGIA DO CONTROLE RACIAL/SOCIAL 
BRASILEIRO.1 
 
Luciano Góes2 
 
 
“A nossa escrevivência não pode ser lida como 'canções para ninar os da casa 
grande', mas sim para incomodá-los em seus sonhos injustos”. 
(Conceição Evaristo). 
 
 
INTRODUÇÃO 
 
Na década de 1980, travou-se uma importante discussão sobre a (des)orientação 
epistemológica da criminologia latino-americana envolvendo, principalmente, Eduardo Novoa 
Monreal (“¿Desorientacion epistemológica em La criminologia critica?” e “Lo que hay al 
lado no es um jardim: mi réplica a L. Aniyar”), e Lola Aniyar de Castro (“‘El jardin de al 
lado’, o repondiendo a Novoa sobre la criminologia critica”).3 
O debate girou em torno da “síndrome de identidade” do saber criminológico, 
que, de base positivista inaugural, restou tragada pelo direito penal que a alocou como sua 
auxiliar, cabendo ao direito penal a exclusividade em definir o que é crime, restando à 
criminologia positivista definir o criminoso, o que acabaria por consolidar com Von Liszt a 
integração entre as duas e a política criminal com subsídios fornecidos por ambas. 
Com as teorias centrais fornecidas pela mudança paradigmática (do positivismo à 
reação social), o horizonte da criminologia passou para macrossociológico, marcadamente 
interdisciplinar, ampliando seu objeto de estudo e misturando os objetivos científicos com luta 
social, passou a estudar não apenas o crime, mas o poder punitivo como um todo, 
 
1 Publicado em: BIZAWU, Kiwonghi; MATOS, Pedro; SOARES, Lívia; CAMATTA, Adriana. (Orgs.) Política 
e poder: textura racial e condição humana. Belo Horizonte: 3i Editora, 2018. 
2 Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina - UFSC (2015) e graduado em Direito pela 
Universidade do Sul de Santa Catarina - UNISUL (2012). Professor do Centro Universitário Estácio de Santa 
Catarina e coordenador do núcleo jurídico do projeto de extensão Vicente do Espírito Santo - S.O.S Racismo. 
Professor de Direitos Humanos e Direito Penal do curso Pós-Graduação Lato Sensu em Direito Penal e 
Processual Penal, do Centro Universitário Católica de Santa Catarina. Professor/bolsista do Programa Pesquisa 
Produtividade do Centro Universitário Estácio de Santa Catarina. 2º lugar, na categoria “Direito”, do 59º Prêmio 
Jabuti (2017). 
3 Tal discussão envolveu outros nomes importantes, como: Roberto Bergalli (“Una intervencion equidistante, 
pero en favor de la sociologia del control penal” e “Uma sociología del control penal para América Latina: La 
superacíon de la criminología”), Rosa del Olmo (“Criminologia y derecho penal: Aspectos gnoseologicos de 
uma relacion necesaria em la America Latina actual”), Eugenio Raúl Zaffaroni (“Las necessidades del saber 
penal latinoamericano”), e Carlos A. Tozzini (“Criminología: El indebido choque de los paralelas”). 
 
 
 
dissolvendo, assim, as fronteiras científicas delimitadas pelo modelo de ensino europeu, cuja 
colonização apresenta enraizamento profundo em solo periférico. 
Ou seja, o controle social em suas diversas espécies (formais e informais) e em 
suas mais variadas agências, apesar de ser ainda o direito penal como o meio mais poderoso e 
coercitivo da criminalização, no marco definido por Alessandro Baratta (2011) em sua 
“Criminologia crítica e crítica do direito penal”, que influenciou o saber criminológico em 
toda América Latina a partir da base materialista. 
A discussão sugestionou que o próprio nome “criminologia” fosse substituído, 
tendo em vista sua caracterização latina que procurou orientar o saber de acordo com as 
especificidades gerais e específicas de cada região. 
Lola Aniyar de Castro (2005), defendendo epistemologias periféricas, estabeleceu 
que a Criminologia se refere, tão somente, a um movimento pelo qual o Estado legitimou seu 
controle e dominação, e assim, a manutenção da nomenclatura seria um instrumento de 
combate para manter território e aumentá-lo, não abandonando o campo que o inimigo 
construiu, não deixando-o sozinho, em paz na mesma tarefa de eternizar e manipular seus 
mitos e funções. Pelo seu injusto impacto social, o espaço construído por ela existe e deve ser 
ocupado pelo estudo do controle social, e para isso adotar o nome de criminologia é uma 
estratégia política, mas imprescindível à produção de outras epistemologias marcadamente 
marginais. 
É nesse sentido que Vera Andrade (2012) defende uma Sociologia do Controle 
Social, fincando as bases para a construção de uma Criminologia brasileira, superando a 
Criminologia concebida no Brasil que mantém como limite (quase) intransponível os conflitos 
originários nas classes sociais. Tal premissa aponta a imprescindível “escutatória” de vozes 
que sempre foram silenciadas, permitindo o afloramento de outras criminologias fundadas em 
recortes de gênero e raça, eis que tais ideologias são, indiscutivelmente, nossos “ismos” 
basilares. 
A questão racial é radical no Brasil, fundada em pactos inaugurados muito antes 
do nosso “descobrimento”, seguidos de diversas legitimações que estabeleceram a supremacia 
branca como “natural” a partir do racismo, ideologia que, após a farsa da abolição da 
escravidão em 1888, restou negada principalmente pela academia, que, ao sustentar a política 
brasileira de negação do racismo, mantém intacta os lugares raciais pré-definidos em nossa 
dicotomia espacial mais básica: Casa Grande vs. Senzala, lócus que determina, ainda, a 
inumanização negra sob a branquidade e os infindáveis privilégios insculpidos na 
branquitude. 
 
 
Tal condição impõe um espistemicídio sistêmico, não permitindo que vozes 
marginais, que sempre se insurgiram contra a violência racial, sejam ouvidas e reconhecidas 
desde seu lugar de fala, que pressupõe uma narrativa direta, sem “tradutores”, que desmascara 
violências e violações que passam “despercebidas”. 
Outrossim, o presente trabalho se inscreve no marco de uma sociologia crítica em 
relação à complexidade e profundidade das relações raciais que emanam violências 
(in)tangíveis petrificantes das hierarquias oriundas de construções que estruturam o sistema de 
controle racial/social brasileiro, uma Sociologia do controle racial/social fundada na direção 
apontada na encruzilhada na qual Decolonialidade, Teoria Crítica da Raça (ZUBERI, 2016), e 
Afrocentricidade se encontram, propondo superação do racismo epistemológico4, resultado do 
racismo academicista que é manipulado de várias formas. 
Este, produz teorias que legitimam o racismo, utiliza autora(e)s racistas como 
referências (muitas vezes etiquetada(o)s como “clássic(a)os”), nega a existência do racismo e 
das violências perpetradas pela ideologia racial (reforçando a política brasileira de “combate 
ao racismo”), nega que autora(e)s sejam racistas (produzindo uma armadura refratária às 
críticas e mantendo-a(o)s como referências básicas pela “importância”), utiliza, unicamente, 
autora(e)s centrais (pressupondo superioridade e universalidade, mantendo o modelo 
“educacional” mantenedor da dependência marginal), questiona (e até problematiza) o 
racismo, mas legitima como “porta-vozes” autora(e)s branca(o)s, dentre outras. 
Nesse último caso, temos o lugar de fala (i)legítimo do(a)s intérpretes e 
tradutore(a)s dos subalternos que são silenciados, obrigados apenas a ouvir (SPIVAK, 2010), 
guardiões responsáveis pela manutenção de nossa estrutura (e dependência) colonial através 
da secular colonialidade, porta-vozes da “colonialidade do saber”: a herança epistemológica 
 
4 “O racismo epistêmico considera os conhecimentos não-ocidentais como inferiores aos conhecimentos 
ocidentais. Se observarmos o conjunto de pensadores que se valem das disciplinas acadêmicas, vemos que todas 
as disciplinas, sem exceção, privilegiam os pensadores e teorias ocidentais, sobretudo aquelas dos homens 
europeus e/ou euro-norte-americanos. Essas identitypolitics hegemônicas são tão poderosas e tão normalizadas 
sob o discurso de objetividade e “neutralidade” da “ego-política do conhecimento” das ciências humanas que 
quando se pensa em identity politics se assume imediatamente como “senso comum” que se trata das minorias 
discriminadas. De fato, sem negar a existência de identity politics entre setores das minorias discriminadas, as 
identity politics hegemônicas – do discurso eurocêntrico – utilizam esse discurso identitário racista para descartar 
toda intervenção crítica proveniente de epistemologias “outras”. O mito que entretanto subjaz à academia é o 
discurso cientificista da “objetividade” e “neutralidade” que esconde o “locus de enuciação”, ou seja, quem fala 
e a partir de qual corpo e espaço epistêmico nas relações de poder se fala Sob o mito da “ego-política do 
conhecimento” (que na realidade sempre fala a partir de um corpo masculino branco e uma geopolítica do 
conhecimento eurocentrada) se desautorizam as vozes críticas provenientes dos pensadores de grupos 
subalternos inferiorizados pelo racismo epistêmico hegemônico. Se a epistemologia tem cor, como bem destaca 
o filósofo africano Emmanuel Chukwudi Eze, então a epistemologia eurocentrada dominante nas ciências sociais 
também tem.” (GROSFOGUEL, 2007, p. 32). 
 
 
central que impede a compreensão e construção do mundo marginal a partir de suas próprias 
raízes e epistemes (LANDER, 2015). 
As construções críticas construídas no Brasil, em sua grande maioria, continuam a 
“traduzir” teorias centrais mantendo a velha tradição oitocentista não conseguindo, por 
diversas razões, ultrapassar o obstáculo racial, renegando sua radicalidade e fortalecendo 
nosso racismo na medida em que o ignora. Dogma quase intransponível pelo enraizamento 
profundo em território fertilizado por sangue negro de onde brotam incomensuráveis 
manifestações racistas naturalizadas. 
Provocar fissuras críticas no solo (ainda que “crítico”) brasileiro, para se pensar a 
brasilidade, é o objetivo destas linhas, incitando a construção dolorosa da negritude como 
força-motriz de uma resistência vinda desde África, enquanto desafia a desconstrução da 
branquitude, para que esta não se intitule protagonista de um novo projeto de domínio e 
opressão racial, tal qual a farsa da abolição escravocrata que sedimentou o conto infantil do 
“país das maravilhas raciais”. 
 
1 – O RACISMO ENQUANTO PROGRAMADOR DO CONTROLE 
RACIAL/SOCIAL 
 
“Assumimos uma luta que nos vincula aos abolicionistas que se opuseram à 
escravidão. As instituições da prisão e da pena de morte são os exemplos mais 
óbvios de como a escravidão continua a assombrar nossa sociedade.” 
(Angela Davis). 
 
Países estruturados no racismo demandam um sistema de controle racial/social 
como condição da sua manutenção e existência, programando, racialmente, seus instrumentos 
de domínio, opressão e violência. Estes são direcionados a corpos objetificados, em plena 
conformidade com o racismo fundado a partir do olhar, auto-intitulado como “superior”, que 
atravessou o negro sem vê-lo, ignorando sua humanidade, estabelecendo sua inferioridade por 
quem deixou de sê-lo, por conta da alteração fenotípica resultante de fatores geográficos, 
climáticos e biológicos, dentre outros, muito antes da criação da Europa (MOORE, 2007) e, 
negando sua ascendência mais remota: o branco. 
O sistema de controle no Brasil, assim, foi esboçado antes mesmo de seu 
“descobrimento”, no final do século VX na Península Ibérica, onde a humanidade do índio foi 
reconhecida (vinculando-os aos brancos a partir do termo “mestiço”, que não denota uma 
concepção pejorativa em si), e a animalidade do negro determinada a partir do termo “mulato” 
 
 
(POLIAKOV, 1974, p. 110), descendente de “mula”.5 Ali, o marginal (“extra-europeu”) foi 
construído politicamente como a imagem mal refletida no espelho central que via o negro 
como sua faceta mais degenerada. 
Esse movimento demarca a ascensão e emancipação da razão científica sobre a 
origem, desigualdade e diferenciação humana6, construindo a era da “antropologia das 
Luzes”, caracterizada pela atribuição dos caracteres humanos mais negativos aos negros. 
Naquela região, desenhada como trampolim civilizatório: 
 
[...] foram igualmente forjados e onde difundiram as grandes palavras-chave como 
“mestiço”, “mulato”, “negro”, “índio”, “casta”, e também, com toda probabilidade, o 
termo “raça”. Foi também nesta península que se desenrolou, a partir do 
Renascimento, outro debate, rico em ensinamento sobre a maneira como, graças a 
certas conjunturas, as sociedades elaboram suas hierarquias e forjam seus conceitos. 
A unificação religiosa da Espanha desde 1492 fizera surgir o problema dos 
convertidos respectivamente “mouriscos” e “marranos”, isto é, descendentes dos 
muçulmanos e dos judeus mais ou menos bem batizados no decorrer do século XV. 
Os espanhóis de todas as camadas invocaram então sua origem mais autenticamente 
“cristã”, proclamaram-se “Velhos cristãos”, impuseram, contra os malfadados 
“Novos cristãos”, uma legislação discriminatória – os “estatutos de pureza de 
sangue” – que colocava estes últimos embaixo da escala social. (POLIAKOV, 1974, 
p. 111-112). 
 
 
A inumanização racista logo foi ratificada pela Igreja católica, legitimando a 
invasão e escravidão em África e inaugurando a diáspora objetificante, base do colonialismo 
que transformou, segundo Achille Mbembe, a ideologia racial em política genocida 
imprescindível à inauguração da ordem mundial ocidental: a necro-política, ideário que 
sustenta a soberania como poder, direito e gestão inquestionável sobre a vida e a morte. Um 
poder que não é unicamente estatal, se (re)legitimando e se reforçando no discurso da criação 
de urgências (potencializadas pela manipulação do medo e necessidade sempre crescente de 
segurança), construção de Outros como inimigos, e criação de exceções (MBEMBE, 2011). 
Assim, as margens (latina e africana) se consolidaram não apenas como 
“gigantescas instituições de seqüestro” (ZAFFARONI, 1991, p. 75), mas onde o genocídio 
negro é condição primária de edificação e manutenção do mundo branco, no qual as estruturas 
centrais, racialmente hierarquizadas, foram herdadas através de técnicas jurídico-
 
5 Animal híbrido originário do cruzamento entre cavalo e asno. Como regra geral, é estéril e muito resistente, 
fator pelo qual foi amplamente utilizado no Brasil como animal de carga, substituindo o cavalo. Uma das 
utilizações do termo “mulata” vem exatamente nesse sentido, a única utilidade das escravas negras era carregar o 
“peso”, o filho do sinhô gerado após o estupro legitimado pela propriedade. 
6 Em matéria antropológica, a questão humana, situada entre o centro e a margem, foi tratada como diferença, 
que pressupõe uma hierarquização racial demarcada pela ontologia, sendo as diferenças raciais definitivas e 
irreparáveis. (SCHWARCZ, 1993, p. 81). 
 
 
administrativas de legitimação, eixo central da naturalização da violência inscrita no corpo 
negro, meio pelo qual a ordem e a disciplina são mantidas. 
A colonização compartimentou o mundo, definido em espaços dicotomizados e 
mantidos em segurança pela opressão racial, pois, como leciona Frantz Fanon (1968, p. 29): 
 
[...] este mundo cindido em dois, é habitado por espécies diferentes. A originalidade 
do contexto colonial reside em que as realidades econômicas, as desigualdades, a 
enorme diferença dos modos de vida não logram nunca em mascarar as realidades 
humanas. Quando se observa em sua imediatidade o contexto colonial, verifica-se 
que o que retalha o mundo é antes de mais nada o fato de pertencer ou não a tal 
espécie, a tal raça. 
 
 
O racismo radical interiorizou em cada colonizado o sonho senhorial, fruto do 
paradigma objetificante, de obter o poder “absoluto” sobre o corpo negro coisificado, a 
condição basilar do reconhecimento social na periferia. Instrumentalizandotoda a violência 
aprendida em sua vivência, cada colonizado torna-se a “quintessência do mal” (Ibid., p. 39), 
se projetando em uma aproximação a um Deus e invocando seu poder natural de decisão 
sobre o destino alheio. Transmutado em sinhô, toda e qualquer manipulação sobre (e a partir 
do) objeto negro é autorizada, sua vida, morte ou morte em vida, é um ato que prescinde de 
qualquer justificativa, uma espécie de ato sacrificial cuja obrigação de dar uma resposta é 
inexistente (MBEMBE, 2014, p. 70). 
A “abolição da escravatura” finda, após quase quatro séculos, a legalidade do 
sistema de controle racial brasileiro, abalando os pilares da ordem racial e com ela, a 
hegemonia e exclusividades da raça branca. Nesse contexto, a Criminologia positivista, 
fundada com o paradigma racista-etiológico lombrosiano, transformado após a “tradução”, 
processo complexo que determina uma verdadeira metamorfose tendo em vista sua 
funcionalidade (SOZZO, 2014) em rodrigueano, foi a legitimação que mantive o status quo 
hierárquico-racial, senão em termos de políticas públicas para a formalização do apartheid 
brasileiro, em concretização prática de um controle racial segregacionista que permitiu a 
ininterruptibilidade do genocídio negro (GÓES, 2016). 
 O medo branco de uma nova revolta negra, após os levantes pretos de Palmares 
(1580-1716), Haiti (1791-1804), Malês (1835), Sabinada (1837-1838), Cabanagem (1835-
1840), Balaiada (1838-1841), Farrapos (1835-18457), apenas para citar algumas, foi 
 
7 O maior conflito interno enfrentado pelo Império brasileiro contou, dentre os farroupilhas, com grande número 
de escravos. Em certos momentos do período, os lanceiros negros representaram metade do exército rio-
grandense. Como de costume na história nacional, a participação e importância negra é ocultada, assim como a 
“entrega” dos lanceiros negros ao exército imperial, conforme acordo prévio para a assinatura do tratado de paz, 
 
 
responsável pela criminalização de toda e qualquer manifestação que permitisse a reunião dos 
negros, pois esses “ajuntamentos” poderiam ser o germe da temida revolução. 
Assim foi inaugurado o “encarceramento em massa” brasileiro, ou melhor, da 
massa negra, um projeto político demarcatório dos lugares raciais com a adoção da prisão 
como “única” resposta estatal face ao crime (substituindo às senzalas), e o trabalho 
obrigatório como instrumento disciplinador8, característica do sistema de controle social 
central que vinculou prisão e fábrica (MELOSSI; PAVARINI, 2010; FOUCAULT, 2009), 
explicitando o objetivo de remontar o sistema escravagista sob novos fundamentos, pois, a 
criminalização dos “novos cidadãos” estava estabelecida em crimes definidos especificamente 
para os “ex-escravos”: vadiagem (que incluía o samba), capoeira, curandeirismo (a “magia 
negra” exercida por mães e pais de santos), etc. 
O racismo, “modernizado” sob véu cientifizado criminológico oitocentista, foi o 
salva-guarda da estrutura racial brasileira mesmo em solo “democrático”, mantendo seguras a 
branquidade9, a “supremacia” e a dominação pela legitimação inquestionável da metamorfose 
do escravo recém liberto, em (sub)cidadãos, estes em criminosos e, logo, escravos estatais 
pela criminalização e encarceramento negro, cuja periculosidade ontológica enraizada em sua 
ancestralidade primata, ordenava sua neutralização acauteladora por intermédio do extermínio 
ou do cárcere, mantendo a secular política de extração da força vital dos corpos negros, 
aprisionados em selas que mantiveram o cativeiro e a violência corporal. 
Angela Davis (2009, p. 13) nos mostra como o direito penal, com imprescindível 
fundamentação criminológica/racista através das “leis dos negros”, alteraram, 
automaticamente, a prisão da escravidão em escravidão da prisão no sul daquele país, 
desfazendo a ilusão democrática que, para os negros: 
 
Fora contida no mesmo momento em que fora prometida: na abolição da escravidão. 
Com a abolição da escravidão, os negros deixaram de ser escravos, mas 
imediatamente se tornaram criminosos – e, como criminosos, tornaram-se escravos 
do Estado. 
 
 
denunciada pela Carta de Porongos. Findado o conflito, a ameaça negra forjada na e para a batalha teria que ser 
exterminada. 
8 Código Penal de 1890, art. 45: “A pena de prisão cellular será cumprida em estabelecimento especial com 
isolamento cellular e trabalho obrigatorio, observadas as seguintes regras: a) si não exceder de um anno, com 
isolamento cellular pela quinta parte de sua duração; b) si exceder desse prazo, por um periodo igual a 4ª parte da 
duração da pena e que não poderá exceder de dous annos; e nos periodos sucessivos, com trabalho em commum, 
segregação nocturna e silencio durante o dia.” [sic]. 
9 De modo resumido, pode ser entendida como práticas naturalizadas pela identidade branca consolidada pela 
normatividade, historicamente apontada como padrão universal e ideal, que são utilizadas com nítido caráter 
racista conservador face à conquista de pequenos “direitos” pela raça negra, significando redução da branquitude 
(privilégios). 
 
 
Ao citar W. E. B. Du Bois (“Black Reconstruction”, 1935), fica exposta a 
vinculação visceral entre o sistema criminal estadunidense e o escravismo, contendo a 
animalidade negra com o aprisionamento pelo trabalho forçado e locação aos seus ex-
senhores. A “tradução”, em solo estadunidense, do paradigma racista/etiológico lombrosiano 
estabeleceu o marco fundacional para o encarceramento negro em massa, iniciado em 1876, 
tendo em vista sua criminalidade que impulsionou, sem o cometimento de crimes violentos, 
sentenças desproporcionais ou multas, as quais eram obrigados a trabalhar para pagá-las. 
Lastreado pelo racismo, nosso sistema punitivista de viés doméstico (BATISTA, 
N., 2002), ultrapassou os limites fazendários seguindo os passos dos ex-escravos (tática dos 
capitães do mato), com fins de manter a ordem e a estrutura intacta em meio ao caos racial 
provocado pela ruptura do sistema de controle legal escravagista. Outrossim, as características 
desumanizantes foram escamoteadas, mantendo intacto nosso modelo de disciplinamento: a 
inscrição da violência sobre o corpo coisificado de uma “quase gente”, cujo único “direito” é 
(ainda) ser violentada. 
O recrudescimento cautelar do nosso sistema de controle refletiu os objetivos e 
ideais de uma sociedade racista que tinha como problema maior a questão negra, cuja solução 
estava calcada no genocídio como manutenção da branquitude (SCHUCMAN, 2014), o 
branqueamento se transforma em política de Estado.10 Contexto que impôs uma cisão em 
nosso Direito penal: ao lado do Direito penal declarado11 para os cidadãos, alicerçado no 
Direito Penal do fato construído às luzes do Classicismo, o Direito penal paralelo12 para os 
“sub-cidadãos”, legitimado no Direito Penal do autor consolidado pela tradução marginal do 
paradigma racial-etiológico, que por sua vez, situa seu fundamento na periculosidade que 
exala dos corpos negros, um sistema outrora identificado por Lola Aniyar de Castro (2005, p. 
96) como “subterrâneo” que aqui jamais se ocultou, sendo operacionado sob os olhos de quem 
quiser enxergar. 
 
2 – O ATUAL SISTEMA DE CONTROLE RACIAL/SOCIAL BRASILEIRO 
 
Hoje, a programação racista de nosso sistema de controle racial/social é 
demonstrada, no Direito penal declarado (caracterizado pela seletividade racial), pelos dados 
 
10 A CRFB de 1934, em seu artigo 138, estabelecia: “Incumbe à União, aos Estados e aos Municípios, nos 
termos das leis respectivas: [...] b) estimular a educação eugênica.” 
11 Caracterizado pela sistematização de ações organizadas das agências criminalizantes (Polícias, Ministério 
Público e Poder Judiciário) de acordo com direitos e garantias, constitucionais e legais. 
12 Operacionalizado por agências responsáveis pela Segurança Pública, principalmente pelas Polícias, e 
caracterizado pela ignorância aos direitose garantias decorrentes da cidadania. 
 
 
oficiais do que expõem a “clientela” da 3ª maior população encarcerada do mundo, 
identificada racialmente de antemão enquanto o racismo permanece inominável e “sem 
relação” alguma com o encarceramento (negro) em massa: pretos e pardos representam 64% 
da população encarcerada13, o que significa que dois em cada três presos são negros, 
porcentagem que se mantém no encarceramento feminino. 
O aprisionamento massivo de corpos negros, chamado de “encarceramento em 
massa”, não é um fato sem razão de ser, é resultado positivo da política histórica nacional de 
exclusão negra que modernizou as senzalas e transformou o cárcere no segundo lugar do 
negro. Essa massificação antecipa a privatização do sistema carcerário brasileiro como 
pagamento de promessa dos legisladores eleitos com financiamentos de empresários donos de 
construtoras e administradoras de estabelecimentos prisionais, projetando um aumento 
exponencial, em breve período, da população carcerária com projetos que reduzem, 
sistematicamente, a maioridade penal, recrudescem penas, ampliam o rol dos crimes 
hediondos, etc., alterações direcionadas para a “clientela” penal. 
Em nosso Direito Penal Paralelo, limitado apenas em termos territoriais 
favelizados, construídos com o primeiro lugar do negro (SANTOS, 2010), suas práticas 
recortam todo e qualquer quadro teórico, com estribo constitucional, tornando-o um dos mais 
mortíferos do mundo pela postura policial responsável, em 2016, pela morte de 4.424 pessoas, 
76,2% das vítimas eram negros, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, vítimas do 
racismo institucional(izado) que continua (des)velado. 
Assim “legitimado”, o Estado brasileiro extermina os jovens negros antes que 
estes representem qualquer risco à estrutura estatal, manipulando o genocídio com viés 
neutralizante/acautelatório de quem mais tem motivos para desconstruí-lo, culminando com o 
assassinato de um jovem negro a cada 23 minutos14, a cada 100 pessoas assassinadas no 
Brasil, 71 são negras, muitas, alvejadas pelas balas (nunca) perdidas que sempre acertam seu 
alvo (quase) exclusivo. 
Engendrando nesse “Direito Penal” e escamoteado nos discursos de um 
“Ornitorrinco punitivo” (ANDRADE, 2012, p. 111), a continuidade da política pública de 
desnegrecimento do país foi assegurada pela declaração de “guerra às drogas” anunciada na 
pós-abolição (ao contrário do que induz a ideia de “coligação” à política de guerra 
estadunidense), pelo combate ao “comércio” e uso do “fumo de negro” (maconha), que na 
 
13 Considerando a política histórica brasileira de manipular dados para montar um quadro “mais claro” do país, 
ou seja, mais branco, aliada ao problema do não preenchimento completo/correto dos dados cadastrais, ou da não 
identificação do negro pelos agentes responsáveis pelo cadastro dos presos, os dados reais são bem maiores. 
14 Relatório final da Comissão Parlamentar de Inquérito do Assassinato de Jovens do Senado Federal de 2016. 
 
 
década de 1930 configurou nova programação e uniu nossos direitos penais para manter o 
domínio e controle sobre a população negra, atualizando genocídio negro, intra ou extramuros 
pelos quais o Brasil continua aumentar sua cifra negra. 
Uma estratégia política que ganha cores vivas do nosso racismo ao colocarmos luz 
na construção dos “campos de batalha”, dos inimigos de sempre e no fundamento real 
explicitado pela guerra racial chancelada pelo Estado. 
Se o projeto de embranquecimento (pelo extermínio direto, ou indireto pela 
mestiçagem ou assimilação), possibilitou a redenção de Cam, o Estado brasileiro substituiu 
aquela maldição pela do Conde Drácula, sob a qual a “saúde pública” necessita, diariamente, 
de sangue (negro). A lógica (in)constitucional exterminante de nossa “guerra contra às 
drogas” é endossada pelo Judiciário, que autoriza, desde a priori, a ignorância do bem 
jurídico mais valioso (?), legitimada pelo discurso do “inimigo” construído racialmente, 
demonstrando que nossa “justiça” não possui qualquer obstáculo em seu olhar apurado, 
deslocando o fiel da balança de acordo com a melaninocracia. 
Essa guerra resta, irrefutavelmente, perdida, se correlacionarmos seu fundamento 
declarado à estratégia adotada, porém, em seu objetivo latente (?) o sucesso é absoluto: o 
extermínio do “traficante”, demônio incorporado por corpos facilmente encontrados em toda e 
qualquer esquina marginal(izada). De outra face, o Judiciário, formatado pelo racismo basilar 
na subjetividade de seus membros, é o responsável pela seletividade racial secundária através 
da manipulação que define a figura do usuário de drogas como privilégio do branco 
“selecionado erroneamente”, para quem a dúvida é garantia fundamental. 
Nosso sistema de controle racial/social se embasa na periculosidade, instrumento 
racista legitimado cientificamente pela criminologia positivista que fundamenta o 
encarceramento massivo a partir da presunção que exala pelos poros dos corpos negros, e a 
pena de morte paralela, avalizada constitucionalmente. Regras de um Estado de exceção 
permanente, nas margens da margem, fantasiado pelo conto infantil “Brasil: o país das 
maravilhas raciais” que seduz grande parte de nossa “elite crítica”. 
Uma posição que fortalece nosso racismo pelo não enfrentamento, a estratégia 
política que se reflete em nossos “Direitos Penais”, expondo os efeitos sem causa “aparente” 
ao escamotear sua programação racista, enquanto possibilita o fácil reconhecimento de sua 
“clientela”, heranças marcadas a ferro em uma população desarmada politicamente. 
Raça, no Brasil, é fator criminógeno e exterminante, mantenedores da nossa 
(sempre viva) gênese escravocrata que se arvora no sistema sócio-educativo, transformando-o 
em um Sistema Penal para menores na prática, preservando suas características, ideologias, 
 
 
instrumentos e discursos, pois é incapaz de ressocializar quem nem ao menos foi socializado, 
re-educar que nunca foi educado, reintegrar quem jamais foi integrado em uma sociedade 
excludente. 
Um ideário que não pode ser compelido pelos Direitos Humanos que resta 
repelido pela animalidade tornada signo negro, imiscuída em sua construção e sinônimo de 
risco à humanidade, eis que: “o direito é [...] uma maneira de fundar juridicamente uma certa 
ideia de Humanidade enquanto estiver dividida entre uma raça de conquistadores e uma raça 
de servos. Só a raça de conquistadores é legítima para ter a qualidade humana.” (MBEMBE, 
2014, p. 111). 
 
3 – APORTES PARA UMA SOCIOLOGIA DE CONTROLE RACIAL/SOCIAL 
BRASILEIRA 
 
A arquitetura racista é mantida ao longo dos séculos pela colonialidade15, através 
da qual a colonização mantém o controle, influência e dependência das margens mesmo sem o 
pacto fundacional imposto pelas metrópoles. Relação assegurada pela subordinação, 
submissão e comprometimento do grupo minoritário/dominante de colonos em relação aos 
colonizadores, e controle, opressão e violência de ambos em relação ao grupo 
majoritário/dominado. 
Instalada, assim, em seio marginal, a derrubada das muralhas e artimanhas da 
colonialidade necessita da instrumentalização de aportes decoloniais. Todavia, a 
decolonialidade não pode ser confundida com descolonialidade, diferença substancial 
apontada por Santiago Castro-Gómez e Ramón Grosfoguel, ao salientarem que a 
“colonialidade do poder”, com seus reflexos globalizados, interrompeu a descolonização, 
obstruindo fortemente a decolonialidade: 
 
La primera descolonialización (iniciada en el siglo XIX por las colonias españolas y 
seguida en el XX por las colonias inglesas y francesas) fue incompleta, ya que se 
limitó a la independencia jurídico-política de las periferias. En cambio, la segunda 
descolonialización — a la cual nosotros aludimos con la categoria decolonialidad 
— tendrá que dirigirse a la heterarquía de las múltiples relaciones raciales, étnicas, 
sexuales,epistémicas, económicas y de gênero que la primera descolonialización 
 
15 La colonialidad es un fenómeno histórico mucho más complejo [que el colonialismo] que se extiende hasta 
nuestro presente y se refiere a un patrón de poder que opera a través de la naturalización de jerarquías 
territoriales, raciales, culturales y epistémicas, posibilitando la reproducción de relaciones de dominación; este 
patrón de poder no sólo garantiza la explotación por el capital de unos seres humanos por otros a escala mundial, 
sino también la subalternización y obliteración de los conocimientos, experiencias y formas de vida de quienes 
son así dominados y explotados.(RESTREPO; ROJAS, 2010, p. 15). 
 
 
dejó intactas. Como resultado, el mundo de comienzos del siglo XXI necesita una 
decolonialidad que complemente La descolonización llevada a cabo en los siglos 
XIX y XX. Al contrario de esa descolonialización, la decolonialidad es un proceso 
de resignifi cación a largo plazo, que no se puede reducir a un acontecimiento 
jurídico-político. (CASTRO-GÓMES; GROSFOGUEL, 2007, p. 17). 
 
Tendo a decolonialidade como fim, a descolonização é meio, e Frantz Fanon 
sublinha a violência do processo, dada a violência estrutural colonial, instrumentalizada de 
inúmeras formas, iniciando pela desconstrução do próprio ser colonizado que inculcou, além 
do uso da violência como meio de resolução de conflitos, o sonho de obter o poder absoluto 
do colonizador sobre o todo apropriável, a lógica objetificante como condição de 
reconhecimento nas margens desfiguradas. 
Esse processo pressupõe a desordem mundial para reconstruí-lo a partir da 
transformação dos coadjuvantes em protagonistas de sua própria história, uma substituição da 
categoria de homem que modifica sua natureza, e assim: 
 
A descolonização jamais passa despercebida porque atinge o ser, modifica 
fundamentalmente o ser, transforma espectadores sobrecarregados de 
inessencialidade em atores privilegiados, colhidos de modo quase grandioso pela 
roda viva da história. Introduz no ser um ritmo próprio, transmitidos por homens 
novos, uma nova linguagem, uma nova humanidade. A descolonização é, em 
verdade, criação de homens novos. Mas esta criação não recebe sua legitimidade de 
nenhum poder sobrenatural; a “coisa” colonizada se faz no processo mesmo pelo 
qual se liberta. (FANON, 1968, p. 26-27). 
 
 
Conforme leciona Catherine Walsh (2009, p. 14-15), pensar decolonialmente não 
se trata apenas de joguete silábico, mas, pensar para além da impossível regressão rumo à 
desconstrução e reversão da colonização, pois: 
 
La intención, más bien, es señalar y provocar un posicionamiento — una postura y 
actitud continua — de transgredir, intervenir, in-surgir e incidir. Lo decolonial 
denota, entonces, un camino de lucha continuo en el cual podemos identificar, 
visibilizar y alentar “lugares” de exterioridad y construcciones alternativas. 
 
 
A lição decolonial é estruturada no saber racial marginal, no direito à identidade 
originária, cujos resquícios foram transmitidos geracionalmente por lutas, resistências, 
insurgências, re-existências e subversões da ordem colonial(ista), ampliando e amplificando, 
através da “memória coletiva”, tudo o que as ancestralidades deixaram como herança. Uma 
pedagogia de (sobre)vivência existencial, uma “pedagogia decolonial”, pela qual se une, e 
complementa, os mundos e os seres, de modo não excludente: 
 
 
 
Es a partir de este horizonte histórico de larga duración, que lo pedagógico y lo 
decolonial adquieren su razón y sentido político, social, cultural y existencial, como 
apuestas accionales fuertemente arraigadas a la vida misma y, por ende, a las 
memorias colectivas que los pueblos indígenas y afrodescendientes han venido 
manteniendo como parte de su existencia y ser. (WALSH, 2013). 
 
 
O processo decolonial, assim, não é nenhuma novidade (e jamais será!), uma vez 
que é continuum da luta pelo resgate da humanidade anulada pela animalidade consolidada 
pelos saberes/poderes centrais, modelados por uma “racionalidade” exclusiva embasada em 
pressupostos dicotômicos, uma sub-humanidade encarcerada em sua própria existência. 
Nestas condições, a decolonialidade da margem brasileira precisa destruir, antes, 
as barreiras raciais fortificadas pela política de não enfrentamento do racismo. É dizer que 
precisamos, antes, de uma perspectiva marginal afrocentrada como postura de confronto, não 
apenas para levante da negritude, mas como racialização da população branca, isenta de 
problematizações raciais por sua armadura “humana”, mantenedora da “superioridade 
universal”. 
A Afrocentricidade procura retomar o protagonismo negro roubado pelo racismo 
para recuperar o controle do pensamento histórico/social de matriz africana, instrumento de 
dominação monopolizado durante séculos, por pesquisadores brancos, sabedores que “a 
melhor forma de controlar um povo é controlar o que ele pensa sobre si mesmo”. 
(NASCIMENTO, 2009, p. 60). 
Para Molefi Kete Asante (2016, p. 06), Afrocentricidade é um posicionamento 
crítico em relação à violência colonial da África e seus descendentes, além de corretiva da(s) 
sua(s) história(s), no sentido de ideologia contra-hegemônica, deslocando o lugar de 
enunciação e chegada da fala, representando, assim: 
 
[...] uma possibilidade de maturidade intelectual, uma forma de ver a realidade que 
abre novas e mais excitantes portas para a comunicação humana. É uma forma de 
consciência histórica, porém mais do que isso, é uma atitude, uma localização e 
orientação. Portanto, estar centrado é ficar em algum lugar e vir de algum lugar. 
 
 
Um processo que para a população negra se estrutura, inicialmente, em 
(re)conhecer-se negra no interior do processo violento de identificação e (re)construção de sua 
negritude, na exata proporção em que emergem todos os privilégios e benesses presenteados 
pela branquitude, enquanto (re)nega a brancura que lhe foi imposta (FANON, 2008), pois, 
“tudo começa portanto por um acto de identificação: ‘Eu sou um negro’”. (MBEMBE, 2014, 
p. 255). 
 
 
Tal (dês)construção deve iniciar pelo próprio colonizado, do negro brasileiro que 
não se reconhece enquanto tal, bem como desconhece, ou não identifica, o racismo brasileiro 
em suas nuances, sua política de assimilação, e que, ao não ter o direito mínimo de saber suas 
origens e raízes, se projeta no impossível espelhamento da branquidade narcísica. 
A violência desse projeto é ínsita ao processo de liberdade negra, uma vez que os 
mundos, negro e branco, construídos e consolidados nas entranhas do colonialismo, são 
incompatíveis enquanto essa conjuntura outrificante persistir. As respostas e resultados de 
todas as insurreições pretas no Brasil dão conta dessa relação diametralmente oposta. 
A construção da negritude e seu reconhecimento, deságuam em um projeto 
político coletivo que se projeta ao futuro, enunciando a ancestralidade (re)negada/roubada. 
Todos os objetivos desse constructo dependem, invariavelmente, da desconstrução da 
branquitude e desmascaramento da branquidade. Nesses termos, nossa democracia é 
obstáculo ao processo decolonial, pois, conforme estabelece Achille Mbembe (2014, p. 149): 
 
Em democracia, a liberdade dos brancos só é viável se acompanhada pela 
segregação dos Negros e pelo isolamento dos Brancos na companhia dos seus 
semelhantes. Ou seja, se a democracia é verdadeiramente incapaz de resolver o 
problema racial, a questão é desde logo perceber como poderá a América livrar-se 
dos Negros. 
 
 
Um comprometimento que deve ser encampado pela Universidade em busca de 
saberes múltiplos, sem a pretensão do monopólio da verdade sob base cientifizada, uma 
imagem construída solidamente desde seus pilares comprometidos com o pensamento 
colonizado que a aponta como “lugar por excelência de produção do conhecimento”, 
construindo barreiras com as epistemes centrais, refratáriasàs cosmovisões periféricas, tendo 
sempre em vista que “las universidades han sido a la vez los talleres de la ideología y los 
templos de la fe.”( WALLERSTEIN, 2006, p. 72). 
Ramón Grosfogue estabelece um importante aspecto para a decolonialidade 
epistêmica ao apontar para exigência de se “[...] levar a sério a 
perspectiva/cosmologias/visões de pensadores críticos do Sul Global, que pensam com e a 
partir de corpos e lugares étnico-raciais/sexuais subalternizados.” (GROSFOGUEL, 2010, p. 
457). 
 
CONSIDERAÇÕES FINAIS 
 
 
 
O sistema de controle racial/social brasileiro somente se mantém pelo racismo, 
condição existencial do país. Arquitetados pelo racismo, devemos desvelá-lo como ideologia 
originária de violências e que, por suas características atemporais e aterritoriais, hoje 
prescinde de qualquer legitimação, abrindo caminho para o seu (re)conhecimento sob o risco 
de “modernizar” nosso velho sistema de controle racial/social, dotando-o de novos 
instrumentos e discursos, mantendo, novamente, intacto o apartheid brasileiro que 
(pré)determina a supremacia branca, assegurada pelo genocídio, cárcere, e toda forma de 
exclusão aos indesejados, para quem a violência estatal foi direcionada, impulsionada e 
naturalizada. 
Deslocando-nos ao centro panorâmico para a conservação da ordem racista, da 
periculosidade cientificazada emerge outro conceito fundamental: a antissocialidade negra. A 
resistência, luta por (sobre)vivência e busca por (re)conhecimento de direitos e raízes, 
contrariava e desafiava a “ordem natural” e o lugar estabelecido ao negro, a submissão, 
resignação e embranquecimento como instrumento de docilização/domestificação. O ativismo 
do negro, então, etiquetado de “antissocial” por não aceitar os padrões e condições que uma 
sociedade racista lhe impôs, foi criminalizado por suas características “primatas ontológicas” 
transmitidas geracionalmente, pelo atavismo ou pela hereditariedade. 
A ordem em sociedades racistas pressupõe a paz racial conseguida somente com o 
controle e domínio completo do mundo negro, para o qual, o mundo branco é extremamente 
hostil. A passividade dos corpos negros, sua resiliência face às violências vivenciadas todos 
os dias (sobre o passado, presente e futuro), suportam, estruturam e mantém o mundo 
monocromático (quase) perfeito da branquidade. A liberdade negra pressupõe a restrição da 
liberdade branca, ruptura dos seus meios de controle e, por fim, demolição do seu mundo. 
A luta antirracista impõe a população branca, como condição basilar, o 
reconhecimento dos presentes que possui pela branquitude, já que muitos privilégios não 
podem, por mais que se queira (e de boa vontade, o inferno, para quem acredita nele, está 
cheio!), serem renunciados, como a vida, o maior deles, já que seus corpos “alvos e belos” 
jamais serão confundidos com o do traficante, forjado nas chamas do racismo, incorporado e 
manifestado pelo fenótipo negro inferiorizado. 
É passado o momento da negritude brasileira fazer coro ao canto ancestral que 
ecoa desde África, embalando as demandas enfrentadas por Palmares e todos os demais 
levantes negros, confrontando o Estado com vistas à sua extinção, conferindo resistência 
compatível com o sistema de controle racial/social que oprime e neutraliza, a ponto de 
 
 
menosprezo, uma das maiores populações negras do mundo, que não representa qualquer 
ameaça à estrutura racista brasileira. 
A decolonialidade, pensada enquanto engajamento político de resistência e 
afirmação das raízes, elo que vincula as gerações passadas, presentes e futuras, se apresenta 
como instrumento de (re)construção de um novo modelo de sociedade, fortalecida pela 
Afrocentricidade e Teoria Crítica da Raça, que juntas, formam um potente arsenal que 
permite o estaqueamento de uma sociologia do controle racial/social brasileiro, pela qual é 
possível mapear e compreender as relação raciais em todas suas esferas que ordenam 
violências e violações, fatores básicos para manutenção da ordem racista brasileira através de 
nossos “Direitos Penais”. 
 
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