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ECONOMIA CRIATIVA E EMPREENDEDORISMO FEMININO: UMA PROPOSTA DIALÓGICA DE GESTÃO CULTURAL Luana Busanello Rosback 1 luanarosback@gmail.com RESUMO O presente artigo, Economia criativa e empreendedorismo feminino: uma proposta dialógica de gestão cultural, trabalha a dinâmica comunicacional conectando mulheres empreendedoras da Região Administrativa de Samambaia–DF, partindo da identificação de suas habilidades, e professoras e estudantes da Universidade Católica de Brasília, exercendo a práxis da pesquisa e extensão universitária. Utilizamos como aporte teórico-metodológico o pensamento complexo de Edgar Morin, as metodologias feministas apresentadas por Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena Koller, e a perspectiva cartográfica de Virgínia Kastrup. Assim, partindo da interação entre comunidade, universidade e trabalho feminino, apresentamos como resultado parcial de pesquisa a criação do Sempreviva, coletivo empreendedor feminino. Palavras-chave 1.Comunicação 2.Economia criativa 3.Empreendedorismo feminino 4.Práxis INTRODUÇÃO O estudo aqui apresentado busca uma alternativa à dinâmica comunicacional entre saberes acadêmicos e saberes do cotidiano, tendo como foco a expressão do feminino e suas diversas formas de produtividade. Diante da histórica desvalorização do trabalho realizado por mulheres em vários campos e contextos socioculturais, objetiva-se com essa proposta contribuir para a valorização dos fazeres femininos e para a desierarquização do conhecimento , incentivando o diálogo entre mulheres com diferentes habilidades (artísticas, científicas, empresariais, comunicacionais). Para tanto, a pesquisa move-se em torno da investigação sobre outros sentidos para o empreendedorismo, sentidos esses que estejam centrados nas trocas afetivas e no espírito colaborativo. A divisão sexual do trabalho, extremamente marcada no Brasil, coloca os trabalhos de cuidados como sendo exclusivamente femininos. Esses trabalhos são de extrema importância dentro de qualquer dinâmica social, pois garantem seu 1 Graduada em comunicação social - publicidade e propaganda pela Universidade Católica de Brasília funcionamento e são indispensáveis para a sobrevivência da espécie, mas vem sendo desvalorizados através dos séculos: [...] a diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do trabalho não remunerado das mulheres por trás do disfarce da inferioridade natural permitiu ao capitalismo ampliar imensamente ‘a parte não remunerada do dia de trabalho’ e usar o salário (masculino) para acumular trabalho feminino. (FREDERICI, 2004, p. 213-214) Somamos a isso uma ausência de políticas conciliatórias entre família e trabalho e as demandas da sociedade moderna sobre a mulher - precisam ser boas profissionais, boas mães, cuidar bem da casa, dos relacionamentos e delas mesmas. Exigências impossíveis de serem realizadas. Se a economia formal é o local da produção de bens e serviços, as pessoas que produzem tais coisas se produzem a si mesmas fora do âmbito da economia formal a um custo muito baixo para o capital (BHATTACHARYA, 2019). No caso das mulheres periféricas, o impacto no desenvolvimento econômico e social é ainda mais significativo. A falta de políticas públicas que consigam dar suporte para que não precisem desempenhar vários papéis é um forte agravante da feminização da pobreza, pois faz com que mais mulheres trabalhem em tempo parcial ou em regime temporário, aumenta a discriminação salarial, gera uma concentração de mulheres em ocupações que exigem menor qualificação - para os quais os salários são baixos - e uma maior participação na economia informal. Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma eliminado essas práticas (FRASER, 2009, p.13) Esse recorte também inclui as questões de raça, uma vez que a maioria dessas mulheres é negra e, conforme a fala de Angela Davis (2016) a respeito da falta de legitimação do feminismo negro pelas mulheres brancas, “como se existisse um fenômeno como a feminilidade abstrata, que sofre o sexismo de maneira abstrata e que luta contra ele em um contexto histórico abstrato” (DAVIS, 2016, p. 26). Portanto, tendo como ponto de partida estas questões, a pesquisa aqui abordada materializou-se em uma parceria entre a Universidade Católica de Brasília - com o objetivo de exercer a práxis, que é a retroalimentação da teoria pela prática e da prática pela teoria -, e a Associação Imaginário Cultural - espaço de diversidade artística, localizado em Samambaia, região periférica do Distrito Federal. O espaço tornou-se um marco de perpetuação da cultura e é um ambiente criativo comandado por mulheres. Por intermédio dos contatos realizados pela Associação Imaginário Cultural, a proposta inicial foi construída por professoras e estudantes da Universidade Católica de Brasília, juntamente com a comunidade de mulheres criativas e empreendedoras residentes em Samambaia. Através da observação participante e do método cartográfico, apresentado por Virgínia Kastrup, nos inserimos no grupo e deixamos o fluxo dos acontecimentos guiar-nos, com a atenção flutuante proporcionada pelo método cartográfico deixamos a intuição mostrar quando e onde deveríamos focar ou agir. Como resultado desse processo de imersão, decidiu-se, em março de 2019, pela criação de um coletivo feminista que foi nomeado Sempreviva. O coletivo constitui uma rede de apoio para que as mulheres que o integram enriqueçam seus projetos. O objetivo é promover a autonomia socioeconômica das mulheres, por meio da circulação de saberes e fazeres femininos dentro da perspectiva da economia criativa e solidária, além de fomentar a discussão e a conscientização sobre as diferentes formas de opressão feminina. As contribuições parciais da pesquisa, que permanece em andamento, envolvem a realização de atividades tais como palestras, vivências, sessões audiovisuais, oficinas, cursos e eventos voltados para o feminino e o empreendedorismo. Envolvem, também, o desenvolvimento de uma plataforma online colaborativa que facilite e democratize a comercialização e troca de serviços e produtos entre as mulheres, e a produção de uma websérie sobre o coletivo, protagonizada por suas integrantes. 1. METODOLOGIA Para o desenvolvimento da pesquisa, foi utilizada como base teórico-metodológica o pensamento complexo de Edgar Morin, proporcionando um olhar amplo no qual percebemos o indivíduo como uno e múltiplo. O ser é, ao mesmo tempo, singular e universal. Essa percepção nos leva a definição de seres auto-eco-organizadores. Para Morin, “toda a realidade conhecida, desde o átomo até a galáxia [...], pode ser concebida como sistema, isto é, associação combinatória de elementos diferentes” (MORIN, 2005). Esse sistema pode ser aberto – precisa de uma constantetroca com o meio externo para se manter em equilíbrio, o que caracteriza um sistema vivo – ou fechado – está em estado de equilíbrio sem trocas com o meio externo. O sistema vivo necessita de uma organização viva, ou seja, uma auto-organização Mas, ao mesmo tempo que o sistema auto-organizador se destaca do meio ambiente e dele se distingue por sua autonomia e sua individualidade, ele se liga ainda mais a este pelo aumento da abertura e da troca que acompanha todo o progresso de complexidade: ele é auto-eco-organizador [...] o sistema auto-eco-organizador tem sua própria individualidade ligada a relações com o meio ambiente muito ricas, portanto dependentes [...] O meio ambiente está de repente no interior dele e, como veremos, joga um papel de coorganizador. O sistema auto-eco-organizador não pode, pois, bastar-se a si mesmo, ele só pode ser totalmente lógico ao abarcar em si o ambiente externo. Ele não pode se concluir, se fechar, ser autossuficiente. (MORIN, 2005, p.33) Ainda com base no pensamento complexo, nos deparamos com o paradoxo sujeito-objeto, o qual entendemos se tratar de elementos indissociáveis (MORIN, 2005) uma vez que é impossível negar o sujeito para que se alcance um olhar puro do objeto; De fato, a ciência ocidental fundamentou-se na eliminação positivista do sujeito a partir da ideia de que os objetos, existindo independentemente do sujeito, podiam ser observados e explicados enquanto tais. A ideia de um universo de fatos objetivos, purgados de qualquer sentimento de valor, de toda deformação subjetiva, graças ao método experimental e aos procedimentos de verificação, permitiu o desenvolvimento prodigioso da ciência moderna. De fato, como definiu muito bem Jacques Monod, trata-se aí de um postulado, isto é, de um desafio sobre a natureza do real e do conhecimento. (MORIN, 2005, p.39) De acordo com os conceitos já citados, percebemos a subjetividade de todos os envolvidos como parte formadora do processo e buscamos metodologias mais fluidas, que nos permitissem estar abertas ao acaso e lidar com a ordem e a desordem, que se ampliam no seio de uma organização que se complexifica (MORIN, 2005). Para alcançar esse objetivo, utilizamos metodologias e epistemologias feministas, que “abrem-se para um campo multidisciplinar e defendem a pluralidade metodológica. A ciência, na perspectiva das epistemologias feministas, têm gênero, havendo diferentes maneiras de produzir conhecimento” (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 648). De acordo com a visão das epistemologias feministas, esses pensamentos positivistas, criticados por Morin, que buscam por uma racionalidade e uma objetividade pura, são relacionados à masculinidade, que entende como importante o distanciamento do objeto de pesquisa para uma análise imparcial. Ao contrário, a maneira de produzir conhecimento ligada à feminilidade não busca uma dissociação entre razão e emoção, pois não entende o elemento emocional como prejudicial para que se alcance um resultado válido. Na realidade, como apresentado acima, essa ideia de separação entre sujeito e objeto é ilusória, dessa forma é mais interessante uma compreensão profunda de que tanto sujeito quanto objeto são múltiplos. Entendemos que as metodologias feministas referem-se menos à adoção de técnicas específicas de coleta de dados que à inclusão dos aspectos de gênero e de poder na construção do conhecimento (NARVAZ; KOLLER, 2006). As epistemologias feministas entendem que o conhecimento é sempre situado, posicionando-se contra a objetividade e a neutralidade características da ciência positivista androcêntrica (Keller, 1985; Harding, 1986) e resgatando o papel da emoção e da experiência feminina na produção do conhecimento científico. (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 651) Seguindo essa perspectiva de comprometimento com a mudança social, optamos pelo exercício da práxis na pesquisa. Aqui estamos nos baseando no conceito Marxista de práxis, que, sendo reflexão e ação, verdadeiramente transformadora da realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação (FREIRE, 1987). Utilizamos a práxis durante a pesquisa no sentido de promover o desenvolvimento da consciência e de uma postura crítica na comunidade de atuação, principalmente no que diz respeito a própria realidade das participantes e, consequentemente, transformando a nós mesmas no processo. A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são os produtores dessa realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa histórica, é tarefa dos homens. (FREIRE, 1987, p. 20) O pensamento dialógico traz a ideia de comunicação e troca em interação. Esse processo também acontece em uma retroalimentação constante. No diálogo não se tem uma busca por dominação, mas sim um desejo de libertação. Não se tem um diálogo verdadeiro sem humildade, com arrogância. Para que o diálogo aconteça é preciso estar aberto para as contribuições dos participantes³. Com diálogo se constroem relações horizontais. “Finalmente, não há o diálogo se não há nos seus sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrável solidariedade.” (FREIRE,1987, p. 47) Então, abraçando nossas demandas e nossa proposta de metodologias fluidas, foi escolhido como método de observação e coleta de dados a cartografia, criado por G. Deleuze e F. Guattari e tratado por Virgínia Kastrup (2007). Este método tem como foco central o próprio processo de pesquisa ao invés de um resultado específico. O importante para a cartografia é a utilização da atenção como ferramenta de análise para que se consiga detectar, através do acompanhamento e contato com o campo, aquilo que o pesquisador entende que deve ser investigado de forma ampliada. Onde sua atenção pousa. De saída, a ideia de desenvolver o método cartográfico para utilização em pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. Não se busca estabelecer um caminho linear para atingir um fim. (KASTRUP, 2007, p. 15) No método cartográfico tanto a busca quanto o problema em si não precisam estar completamente delimitados, como em um sistema fechado. Ao contrário, são flexíveis, abertos. O caminho vai sendo construído através do acolhimento, nesse ponto a atenção flutuante é de extrema importância. As experiências vão então ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem sentido imediato. Pontas de presente, movimentos emergentes, signos que indicam que algo acontece, que há uma processualidade em curso. Algumas concorrem para modular o próprio problema, tornando-o mais concreto e bem colocado. Assim, surge um encaminhamento de solução ou uma resposta ao problema. (KASTRUP, 2007, p. 18) Comométodo de investigação qualitativa, a observação participante, que busca um entendimento integral e natural do campo de pesquisa, desempenha um importante papel no processo de investigação, uma vez que o processo é o mais significativo para a proposta. A observação participante proporcionou abertura para que fosse possível nos concentrar na expressão de significados que encontramos nas vivências através da atenção flutuante. Assim, a falta de delimitação do que estávamos procurando causou uma insegurança inicial, pois estamos acostumadas a seguir métodos tradicionais onde temos uma sensação de controle muito grande. Mas, essa liberdade foi essencial para a construção do coletivo de forma orgânica, para o envolvimento completo das integrantes e para que conseguíssemos de fato deixar que o fluxo das experiências nos guiasse. Através dessa abertura para os acontecimentos espontâneos fomos estabelecendo atividades de interesse mútuo, dinâmicas que possibilitaram uma conexão maior entre as mulheres e temas que agregam conhecimento para todas as envolvidas. Além de planejar em comunhão as atividades práticas desenvolvidas pelo coletivo. 2. A SABEDORIA FEMININA E O EMPREENDEDORISMO Desde a colonização, as mulheres no Brasil frequentemente se veem em situações onde precisam encontrar uma forma de sustentar a família. De acordo com Mary Del Priore (2009), sabe-se que o perfil do cenário familiar no Brasil colônia era composto por muitos maridos ausentes, companheiros ambulantes, mulheres chefiando seus lares e crianças sendo criadas por vizinhas, comadres e familiares. Isso se dava porque as mulheres foram socialmente responsabilizadas pelos filhos e pela casa. Essa situação da mulher brasileira não surgiu por acaso. O quadro da mulher bela, recatada e do lar veio importado da metrópole e foi implantado através de duas principais frentes: a Igreja Católica e a medicina. Através de discursos e sermões moralistas, exclusão social e o convencimento de que a função natural da mulher era a procriação (DEL PRIORE, 2009). A Igreja também se empenhou em acabar com a costumeira cooperação feminina, principalmente no que dizia respeito à criação dos filhos, por meio da instituição do sagrado matrimónio, separando as mulheres entre mães sagradas ou profanas, de acordo com o estado civil. A fabricação da imagem de uma mulher ideal, sonhada e desejada, acabou por sobrepor-se a história de vida femininas complexas, confusas, perpassadas de paixões e preconceitos. Importante é que um rótulo moral mascarava desigualdades raciais, sociais e econômicas, e a implantação do projeto de mãe ideal fazia-se a serviço de um padrão cultural que procurava integrar todas as mulheres às necessidades específicas de modernas instituições de poder, como o Estado e a Igreja (DEL PRIORE, 2009, p. 108). Apesar desse padrão moral ainda ser o dominante para as mulheres, no país grande parte das famílias é composta por mães-solo , que se submetem a trabalhos 2 informais, desqualificados e desvalorizados, por falta de políticas públicas que supram as demandas dessas famílias. As mulheres negras, que desde a escravidão são vistas como “quem pode trabalhar tanto quanto um homem”- conforme o discurso de Sojourner Truth proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851 - sempre são as mais prejudicadas nessa regular conjuntura. Depois da escravidão, seguiram cumprindo as funções de empregadas, babás, cozinheiras, etc; e normalmente servindo à famílias brancas. Por muito tempo mulheres afro-americanas participaram dos segredos mais íntimos da sociedade branca. Inúmeras mulheres negras iam de ônibus para a casa de suas “famílias” brancas, onde elas não apenas cozinhavam, limpavam e desempenhavam outras tarefas domésticas, mas também cuidavam de suas “outras crianças”, ofereciam importantes conselhos aos seus empregadores e, frequentemente, tornavam-se membros honorários de suas “famílias” brancas. (HILL COLLINS, 2016, p. 99) Para que as mulheres brancas pudessem se livrar das amarras do lar e sair para disputar o mercado de trabalho com os homens, as mulheres negras cuidaram e ainda cuidam dos filhos e das casas das famílias brancas. Enquanto quem está cuidando de suas casas normalmente são suas filhas. Esse ciclo é um dos principais fatores para a feminização da pobreza e para a perpetuação da desigualdade racial. São justamente esses trabalhos de cuidados, tanto dos mais vulneráveis quanto da casa e da alimentação que dão condições para que a sociedade consiga continuar funcionando. A ordem de gênero capitalista, assim, é estruturalmente fundada não em um patriarcado trans-histórico ou um modo de produção doméstico separado, mas na articulação entre o modo de produção capitalista e as famílias da classe trabalhadora, que são fundamentais para a produção e reprodução da força de trabalho (FERGUSON; MCNALLY , 2017, p. 37). 2 Dados retirados do Censo 2010. O que nós buscamos é conseguir transformar a realidade que se dá por conta dessa forma de reprodução social do trabalho existente, sendo considerado trabalho 3 somente aquilo que tem valor de troca, ou seja, “o trabalho no lar não é mercantilizado, ele produz valores de uso, não mercadorias cuja venda realiza mais-valor para o capitalista” (FERGUSON; MCNALLY, 2017). Além disso, os trabalhos que são melhor remunerados normalmente exigem uma grande dedicação. Logicamente, só conseguem obter esses cargos quem tem outras pessoas (na maioria dos casos outras mulheres) que ficam encarregadas das tarefas básicas para a sobrevivência. A partir disso, se desenvolve uma forma de viver ditada por essas estruturas sociais que designam comportamentos e espaços a partir de uma visão de mundo masculina, tóxica, que enxerga o mundo através da dominação dos que têm menor poder aquisitivo pelos que têm maior poder aquisitivo. Hoje, a realidade onde a feminização do mercado de trabalho acontece ainda é machista e traz para mulheres pesos opressores e limitantes. Por serem responsáveis pela reprodução social elas acabam sendo penalizadas no mercado de trabalho. A maternidade nunca é bem-vinda, a licença-maternidade é considerada um gasto desnecessário para os empregadores. As mulheres normalmente recebem, em média, 30% a menos que os homens em cargos iguais por causa desse possível “prejuízo” para a empresa. A opressão acontece antes mesmo da contratação. É comum perguntar às mulheres em entrevistas se elas têm filhos, o que não acontece com os homens, e se a resposta for positiva a possibilidade de contratação é quase nula, pois qualquer problema que acontecer com a criança entende-se que será ela quem deixará de ir ao trabalho. Também temos as várias formas de prática de assédio no trabalho, extremamente comum na realidade das mulheres brasileira. Não é biologia per se que dita a opressão às mulheres, mas, em vez disso, a dependência do capital dos processos biológicos específicos dasmulheres – gravidez, parto, lactação – para garantir a reprodução da classe trabalhadora. É isso que induz o capital e seu Estado a controlar e regular a reprodução feminina e o que os impele a reforçar uma ordem de gênero de dominância masculina. E este fato social, ligado à diferença biológica, compreende a fundação sobre a qual a opressão às mulheres é organizada na sociedade capitalista (FERGUSON; MCNALLY, 2017, p. 40) 3 Segundo Cinzia Arruzza (2016), a reprodução social refere-se ao domínio mais especíco da renovação e da manutenção da vida e das instituições e o trabalho necessário aí envolvido. Assim, diante de todos esses desafios que a participação feminina encontra no mercado de trabalho, vem crescendo a participação empreendedora das brasileiras. Infelizmente, nem sempre ela está associada a uma ação profissional formalizada e ainda pode ter pouca ou nenhuma orientação de gestão, prejudicando a possibilidade do empoderamento. Mas, por outro lado, vemos que o empreendedorismo feminino é um terreno fértil que mostra a disposição das mulheres para conquistar seu espaço na cidade, além de ser uma maneira das mulheres transformarem os seus saberes e fazeres em uma atividade econômica remunerada. As redes de apoio entre mulheres são de suma importância para uma evolução de sua autonomia socioeconômica. As mulheres que optam pelo empreendedorismo almejam tanto a realização profissional quanto pessoal. Dentro da organização social dada, para tornar essa realidade possível precisamos contar umas com as outras. 3. COLETIVO SEMPRE-VIVA Sempre-viva trata-se de uma flor, pequena, mas chamativa e extremamente resistente. Esta flor representa a nós, mulheres, e que quando trabalhamos em conjunto florescemos, nos tornamos mais fortes e geramos sementes produtivas. Assim, inspiradas no poder simbólico da flor, o Coletivo Sempre-Viva visa a circulação de saberes e fazeres femininos, estimulando a produção de ativos econômicos e dinamizando a economia local. Busca também a troca e transferência de conhecimentos entre o comunitário e o acadêmico, já que trabalha a dinâmica comunicacional de forma a conectar mulheres empreendedoras na cultura regional, detentoras de saberes comunitários, e professoras e estudantes da Universidade Católica de Brasília, pessoas detentoras de saberes comunicacionais e tecnológicos exercendo a práxis na pesquisa universitária. Paulo Freire (1987), em seu livro Pedagogia do oprimido, se refere a palavra verdadeira como aquela que tem o real objetivo de modificar o mundo, como práxis. Isso significa que a palavra não é privilégio de alguns poucos e nem posse de alguém. Para a palavra ser verdadeira ela contém duas dimensões: ação e reflexão. Por isso, não se pode fazê-lo sozinho, apenas em comunhão. Essa definição da educação contida em Paulo Freire podemos estender para toda a ação que, como diz Karl Marx (2009) em sua tese onze sobre feuerbach, não deseja apenas interpretar o mundo, mas também transformá-lo. A importância da aplicação da práxis é conseguir encontrar e resolver contradições que possam existir entre o universo do estudar e do pensar o mundo e o universo do agir e vivenciar o mundo, fazendo com que teoria e prática não fiquem desconectadas e que alcancem resultados de fato transformadores. Além disso, é possível quebrar algumas barreiras historicamente impostas entre universidade e comunidade, fugindo do elitismo do conhecimento que não reconhece outras formas de saber. Também não caímos no erro de empregar conceitos que funcionaram em outros lugares e tentamos aplicá-los como uma fórmula pronta (FERNANDES, 2019). No que se refere especificamente às ações desenvolvidas pelo Coletivo, o objetivo principal é o de conscientizar sobre as construções culturais de gênero e de poder no âmbito privado e do trabalho, responsáveis por relegar ao feminino uma posição de submissão, desvalorização e dependência em relação ao masculino. Esses objetivos são alcançados gradualmente pelo desenvolvimento de atividades que envolvem: 1) a conscientização sobre a situação das mulheres e sobre os obstáculos a superar para que possam alcançar seu desenvolvimento integral no ambiente doméstico e do trabalho; 2) a realização de vivências, oficinas, sessões audiovisuais, narrativas femininas e eventos que estimulem a troca de conhecimento e de saberes entre as mulheres, assim como o aprimoramento de suas atividades produtivas; 3) o oferecimento de cursos, palestras e oficinas sobre empreendedorismo feminino, com palestrantes locais, nacionais e internacionais; 4) o desenvolvimento de uma plataforma online colaborativa que facilite e democratize a comercialização e troca de serviços e produtos entre as mulheres criativas e empreendedoras da periferia do Distrito Federal, aumentando também a visibilidade desses serviços em nível regional e nacional, para além das formas tradicionais de divulgação e comércio. As vivências buscam a integração e a criação de vínculos entre mulheres, tendo como fio condutor a arte, a literatura, a livre expressão dos sentimentos e das sensações corporais. As palestras, cursos e oficinas tem o propósito de ampliar os conhecimentos e inspirar as mulheres a continuar investindo em si mesmas, enquanto as narrativas femininas e as sessões audiovisuais objetivam dialogar com as temáticas femininas de uma forma mais sensível. Por fim, a plataforma online colaborativa visa estimular a economia feminina e a formação de redes de apoio em maior escala, utilizando a tecnologia para potencializar as trocas. Propõe-se também a criação de uma “moeda cultural” que funcione como alternativa para as trocas monetárias tradicionais. ● CONCLUSÃO Quando traçamos um perfil histórico da trajetória feminina no que tange às questões do trabalho, observamos com clareza o apagamento e a invisibilização tanto dos protagonismos quanto do conhecimento feminino. A desvalorização da sabedoria feminina, dos papéis desempenhado pelas mulheres, do universo feminino como um todo e até mesmo da nossa condição enquanto seres racionais é um sistema estruturado desde que o patriarcado assumiu a posição de visão dominante sob a qual os seres humanos entendem o mundo; que, com o aperfeiçoamento do sistema, foi se tornando em única. Conseguir quebrar com essa mentalidade e transformar a realidade em que estamos imersos desde a colonização do país é um processo lento, turbulento e que exige muita força. Para que consigamos caminhar em direção a esse objetivo final é imprescindível ter muito claro em nossas mentes e em nossos corações que só podemos fazer isso juntas. Abraçar nossas diferenças e saber trabalhar as nossas discordâncias é desconstruir a lógica masculina de dominação e poder, onde sempre vão existir oprimidos e opressores. A lógica feminina que queremos construir necessita da sororidade, empatia, comunhão e pensamento coletivo. Desde o início do processo que deu vida ao coletivo Sempre-viva empenhamo-nosem minuciar as convergências entre as várias formas de opressão que as mulheres sofrem para poder seguir um rumo de mudança significativa. Buscamos, através da práxis, uma construção conjunta por meio de uma organização horizontal com base na igualdade. Percebemos no empreendedorismo uma forma muito rica de envolver as mulheres, onde conseguimos conciliar as necessidades imediatas de autonomia socioeconômica com a visão de mudanças gradativas que possam mexer com as profundas estruturas de opressão., envolvendo a valorização dos trabalhos considerados femininos e fomentando as redes de apoio para um desenvolvimento em conjunto. Finalmente, espera-se com o projeto gerar no Distrito Federal um modelo pioneiro de gestão para os saberes e fazeres femininos, amparado por inovação tecnológica, gerando um impacto social, com a inclusão das mulheres produtoras na vida cultural da cidade e na lógica da economia e da cultura. A produção feminina passa a ser vista como um potencial e um vetor da economia local, gerando iniciativas empreendedoras, atividade e emprego. E, por fim, o impacto acadêmico, pois espera-se que a Universidade desempenhe então seu papel de formação não apenas intra muros, mas também junto às comunidades próximas, participando ativamente no dinamismo da cidade, através da práxis que é tão importante para o desenvolvimento dos estudo acadêmicos. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BHATTACHARYA, Tithi. O que é a teoria da reprodução social? Revista Esquerda Online. 06 de Out. de 2019. Disponível em: https://esquerdaonline.com.br/tithibhattacharya. Acesso em: 22/11/2019. DEL PRIORE, Mary. Ao sul do corpo: condição feminina, maternidade e mentalidade no Brasil Colônia. São Paulo: UNESP, 2009. DAVIS, Angela. Mulheres, cultura e política. São Paulo: Boitempo, 2017. FERGUSON, Susan; MCNALLY, David. Capital, força de trabalho e relações de gênero. Revista Outubro, n. 29, novembro de 2017. FERNANDES, Sabrina. “P” de práxis. Tese Onze, 08 de Fev. de 2019. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=iwmB07LSaog. Acesso em: 18/11/2019. FRASER, Nancy. O feminismo, o capitalismo e a astúcia da história. New Left Review, n. 56, março-abril de 2009. FREDERICI, Silvia. Caliba e a bruxa: mulheres, corpo e acumulaçao primitiva. São Paulo: Elefante, 2004. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17ª ed. Rio de janeiro: Paz e terra, 1987. HILL COLLINS, Patricia. Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado - Vol 31. Nº1. Janeiro/Abril 2016. MARX, Karl; ENGELS. Friedrich. A ideologia Alemã. São Paulo: Expressão popular, 2009. MORIN, Edgar. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2005. NARVAZ, Martha; KOLLER, Sílvia. Metodologias feministas e estudos de gênero: articulando pesquisa, clínica e política. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 3, p. 647-654, set./dez. 2006. KASTRUP, Virgínia. O funcionamento da atenção no trabalho cartográfico. Psicologia & Sociedade; 19(1): 15-22, jan/abr. UFRJ, 2007. CREATIVE ECONOMY AND FEMALE ENTREPRENEURSHIP: A DIALOGICAL PROPOSAL FOR CULTURAL MANAGEMENT ABSTRACT This article, Creative Economy and Female Entrepreneurship: a dialogical proposal of cultural management, works on the communicational dynamics connecting entrepreneurial women from the Administrative Region of Samambaia-DF, starting from the identification of their skills, and professors and students from the Catholic University of Brasilia, exercising the praxis of research and university extension. We use as theoretical and methodological support the complex thinking of Edgar Morin, the feminist methodologies presented by Martha Giudice Narvaz and Silvia Helena Koller, and the cartographic perspective of Virginia Kastrup. Thus, starting from the interaction between community, university and female work, we present as a partial research result the creation of Sempreviva, female entrepreneurial collective. ECONOMÍA CREATIVA Y EMPRENDIMIENTO FEMENINO: UNA PROPUESTA DE DIÁLOGO PARA LA GESTIÓN CULTURAL RESUMEN Este artículo, Economía creativa y emprendimiento femenino: una propuesta dialógica de gestión cultural, trabaja en la dinámica comunicacional que conecta a las mujeres emprendedoras de la Región Administrativa de Samambaia-DF, a partir de la identificación de sus habilidades, y a los profesores y estudiantes de la Universidad Católica de Brasilia, haciendo ejercicio La praxis de la investigación y la extensión universitaria. Utilizamos como soporte teórico y metodológico el pensamiento complejo de Edgar Morin, las metodologías feministas presentadas por Martha Giudice Narvaz y Silvia Helena Koller, y la perspectiva cartográfica de Virginia Kastrup. Así, a partir de la interacción entre la comunidad, la universidad y el trabajo femenino, presentamos como resultado parcial de la investigación la creación de Sempreviva, colectivo empresarial femenino.
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