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ECONOMIA CRIATIVA E EMPREENDEDORISMO FEMININO

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ECONOMIA CRIATIVA E EMPREENDEDORISMO FEMININO: UMA 
PROPOSTA DIALÓGICA DE GESTÃO CULTURAL 
 
Luana Busanello Rosback 1
luanarosback@gmail.com 
 
RESUMO 
O presente artigo, Economia criativa e empreendedorismo feminino: uma proposta 
dialógica de gestão cultural, trabalha a dinâmica comunicacional conectando mulheres 
empreendedoras da Região Administrativa de Samambaia–DF, partindo da 
identificação de suas habilidades, e professoras e estudantes da Universidade Católica 
de Brasília, exercendo a práxis da pesquisa e extensão universitária. Utilizamos como 
aporte teórico-metodológico o pensamento complexo de Edgar Morin, as 
metodologias feministas apresentadas por Martha Giudice Narvaz e Sílvia Helena 
Koller, e a perspectiva cartográfica de Virgínia Kastrup. Assim, partindo da interação 
entre comunidade, universidade e trabalho feminino, apresentamos como resultado 
parcial de pesquisa a criação do Sempreviva, coletivo empreendedor feminino. 
 
Palavras-chave 
1.Comunicação 2.Economia criativa 3.Empreendedorismo feminino 4.Práxis 
 
INTRODUÇÃO 
 
O estudo aqui apresentado busca uma alternativa à dinâmica comunicacional 
entre saberes acadêmicos e saberes do cotidiano, tendo como foco a expressão do 
feminino e suas diversas formas de produtividade. Diante da histórica desvalorização 
do trabalho realizado por mulheres em vários campos e contextos socioculturais, 
objetiva-se com essa proposta contribuir para a valorização dos fazeres femininos e 
para a desierarquização do conhecimento , incentivando o diálogo entre mulheres com 
diferentes habilidades (artísticas, científicas, empresariais, comunicacionais). Para 
tanto, a pesquisa move-se em torno da investigação sobre outros sentidos para o 
empreendedorismo, sentidos esses que estejam centrados nas trocas afetivas e no 
espírito colaborativo. 
A divisão sexual do trabalho, extremamente marcada no Brasil, coloca os 
trabalhos de cuidados como sendo exclusivamente femininos. Esses trabalhos são de 
extrema importância dentro de qualquer dinâmica social, pois garantem seu 
1 ​ ​Graduada em comunicação social - publicidade e propaganda pela Universidade Católica de Brasília 
 
 
 
funcionamento e são indispensáveis para a sobrevivência da espécie, mas vem sendo 
desvalorizados através dos séculos: 
 
[...] a diferença de poder entre mulheres e homens e o ocultamento do 
trabalho não remunerado das mulheres por trás do disfarce da inferioridade 
natural permitiu ao capitalismo ampliar imensamente ‘a parte não 
remunerada do dia de trabalho’ e usar o salário (masculino) para acumular 
trabalho feminino. (FREDERICI, 2004, p. 213-214) 
 
Somamos a isso uma ausência de políticas conciliatórias entre família e 
trabalho e as demandas da sociedade moderna sobre a mulher - precisam ser boas 
profissionais, boas mães, cuidar bem da casa, dos relacionamentos e delas mesmas. 
Exigências impossíveis de serem realizadas. Se a economia formal é o local da 
produção de bens e serviços, as pessoas que produzem tais coisas se produzem a si 
mesmas fora do âmbito da economia formal a um custo muito baixo para o capital 
(BHATTACHARYA, 2019). 
No caso das mulheres periféricas, o impacto no desenvolvimento econômico e 
social é ainda mais significativo. A falta de políticas públicas que consigam dar suporte 
para que não precisem desempenhar vários papéis é um forte agravante da 
feminização da pobreza, pois faz com que mais mulheres trabalhem em tempo parcial 
ou em regime temporário, aumenta a discriminação salarial, gera uma concentração 
de mulheres em ocupações que exigem menor qualificação - para os quais os salários 
são baixos - e uma maior participação na economia informal. 
 
Assim, as críticas feministas de, por exemplo, assédio sexual, tráfico sexual e 
desigualdade salarial, que pareciam revolucionárias não faz muito tempo, 
são princípios amplamente apoiados hoje; contudo esta mudança drástica 
de comportamento no nível das atitudes não tem de forma alguma 
eliminado essas práticas (FRASER, 2009, p.13) 
 
Esse recorte também inclui as questões de raça, uma vez que a maioria dessas 
mulheres é negra e, conforme a fala de Angela Davis (2016) a respeito da falta de 
legitimação do feminismo negro pelas mulheres brancas, “como se existisse um 
fenômeno como a feminilidade abstrata, que sofre o sexismo de maneira abstrata e 
que luta contra ele em um contexto histórico abstrato” (DAVIS, 2016, p. 26). 
Portanto, tendo como ponto de partida estas questões, a pesquisa aqui 
abordada materializou-se em uma parceria entre a Universidade Católica de Brasília - 
com o objetivo de exercer a práxis, que é a retroalimentação da teoria pela prática e 
 
 
 
da prática pela teoria -, e a Associação Imaginário Cultural - espaço de diversidade 
artística, localizado em Samambaia, região periférica do Distrito Federal. O espaço 
tornou-se um marco de perpetuação da cultura e é um ambiente criativo comandado 
por mulheres. 
Por intermédio dos contatos realizados pela Associação Imaginário Cultural, a 
proposta inicial foi construída por professoras e estudantes da Universidade Católica 
de Brasília, juntamente com a comunidade de mulheres criativas e empreendedoras 
residentes em Samambaia. Através da observação participante e do método 
cartográfico, apresentado por Virgínia Kastrup, nos inserimos no grupo e deixamos o 
fluxo dos acontecimentos guiar-nos, com a atenção flutuante proporcionada pelo 
método cartográfico deixamos a intuição mostrar quando e onde deveríamos focar ou 
agir. 
Como resultado desse processo de imersão, decidiu-se, em março de 2019, 
pela criação de um coletivo feminista que foi nomeado Sempreviva. O coletivo 
constitui uma rede de apoio para que as mulheres que o integram enriqueçam seus 
projetos. O objetivo é promover a autonomia socioeconômica das mulheres, por meio 
da circulação de saberes e fazeres femininos dentro da perspectiva da economia 
criativa e solidária, além de fomentar a discussão e a conscientização sobre as 
diferentes formas de opressão feminina. 
As contribuições parciais da pesquisa, que permanece em andamento, 
envolvem a realização de atividades tais como palestras, vivências, sessões 
audiovisuais, oficinas, cursos e eventos voltados para o feminino e o 
empreendedorismo. Envolvem, também, o desenvolvimento de uma plataforma online 
colaborativa que facilite e democratize a comercialização e troca de serviços e 
produtos entre as mulheres, e a produção de uma websérie sobre o coletivo, 
protagonizada por suas integrantes. 
 
1. METODOLOGIA 
 
Para o desenvolvimento da pesquisa, foi utilizada como base 
teórico-metodológica o pensamento complexo de Edgar Morin, proporcionando um 
olhar amplo no qual percebemos o indivíduo como uno e múltiplo. O ser é, ao mesmo 
tempo, singular e universal. Essa percepção nos leva a definição de seres 
 
 
 
auto-eco-organizadores. Para Morin, “toda a realidade conhecida, desde o átomo até a 
galáxia [...], pode ser concebida como sistema, isto é, associação combinatória de 
elementos diferentes” (MORIN, 2005). Esse sistema pode ser aberto – precisa de uma 
constantetroca com o meio externo para se manter em equilíbrio, o que caracteriza 
um sistema vivo – ou fechado – está em estado de equilíbrio sem trocas com o meio 
externo. O sistema vivo necessita de uma organização viva, ou seja, uma 
auto-organização 
 
Mas, ao mesmo tempo que o sistema auto-organizador se destaca do meio 
ambiente e dele se distingue por sua autonomia e sua individualidade, ele se 
liga ainda mais a este pelo aumento da abertura e da troca que acompanha 
todo o progresso de complexidade: ele é auto-eco-organizador [...] o 
sistema auto-eco-organizador tem sua própria individualidade ligada a 
relações com o meio ambiente muito ricas, portanto dependentes [...] O 
meio ambiente está de repente no interior dele e, como veremos, joga um 
papel de coorganizador. O sistema auto-eco-organizador não pode, pois, 
bastar-se a si mesmo, ele só pode ser totalmente lógico ao abarcar em si o 
ambiente externo. Ele não pode se concluir, se fechar, ser autossuficiente. 
(MORIN, 2005, p.33) 
 
 Ainda com base no pensamento complexo, nos deparamos com o paradoxo 
sujeito-objeto, o qual entendemos se tratar de elementos indissociáveis (MORIN, 
2005) uma vez que é impossível negar o sujeito para que se alcance um olhar puro do 
objeto; 
 
De fato, a ciência ocidental fundamentou-se na eliminação positivista do 
sujeito a partir da ideia de que os objetos, existindo independentemente do 
sujeito, podiam ser observados e explicados enquanto tais. A ideia de um 
universo de fatos objetivos, purgados de qualquer sentimento de valor, de 
toda deformação subjetiva, graças ao método experimental e aos 
procedimentos de verificação, permitiu o desenvolvimento prodigioso da 
ciência moderna. De fato, como definiu muito bem Jacques Monod, trata-se 
aí de um postulado, isto é, de um desafio sobre a natureza do real e do 
conhecimento. (MORIN, 2005, p.39) 
 
De acordo com os conceitos já citados, percebemos a subjetividade de todos os 
envolvidos como parte formadora do processo e buscamos metodologias mais fluidas, 
que nos permitissem estar abertas ao acaso e lidar com a ordem e a desordem, que se 
ampliam no seio de uma organização que se complexifica (MORIN, 2005). 
 
 
 
 Para alcançar esse objetivo, utilizamos metodologias e epistemologias 
feministas, que “abrem-se para um campo multidisciplinar e defendem a pluralidade 
metodológica. A ciência, na perspectiva das epistemologias feministas, têm gênero, 
havendo diferentes maneiras de produzir conhecimento” (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 
648). De acordo com a visão das epistemologias feministas, esses pensamentos 
positivistas, criticados por Morin, que buscam por uma racionalidade e uma 
objetividade pura, são relacionados à masculinidade, que entende como importante o 
distanciamento do objeto de pesquisa para uma análise imparcial. Ao contrário, a 
maneira de produzir conhecimento ligada à feminilidade não busca uma dissociação 
entre razão e emoção, pois não entende o elemento emocional como prejudicial para 
que se alcance um resultado válido. Na realidade, como apresentado acima, essa ideia 
de separação entre sujeito e objeto é ilusória, dessa forma é mais interessante uma 
compreensão profunda de que tanto sujeito quanto objeto são múltiplos. Entendemos 
que as metodologias feministas referem-se menos à adoção de técnicas específicas de 
coleta de dados que à inclusão dos aspectos de gênero e de poder na construção do 
conhecimento (NARVAZ; KOLLER, 2006). 
 
As epistemologias feministas entendem que o conhecimento é sempre 
situado, posicionando-se contra a objetividade e a neutralidade 
características da ciência positivista androcêntrica (Keller, 1985; Harding, 
1986) e resgatando o papel da emoção e da experiência feminina na 
produção do conhecimento científico. (NARVAZ; KOLLER, 2006, p. 651) 
 
 Seguindo essa perspectiva de comprometimento com a mudança social, 
optamos pelo exercício da práxis na pesquisa. Aqui estamos nos baseando no conceito 
Marxista de práxis, que, sendo reflexão e ação, verdadeiramente transformadora da 
realidade, é fonte de conhecimento reflexivo e criação (FREIRE, 1987). Utilizamos a 
práxis durante a pesquisa no sentido de promover o desenvolvimento da consciência e 
de uma postura crítica na comunidade de atuação, principalmente no que diz respeito 
a própria realidade das participantes e, consequentemente, transformando a nós 
mesmas no processo. 
 
A realidade social, objetiva, que não existe por acaso, mas como produto da 
ação dos homens, também não se transforma por acaso. Se os homens são 
os produtores dessa realidade e se esta, na “invasão da práxis”, se volta 
 
 
 
sobre eles e os condiciona, transformar a realidade opressora é tarefa 
histórica, é tarefa dos homens. (FREIRE, 1987, p. 20) 
 
O pensamento dialógico traz a ideia de comunicação e troca em interação. Esse 
processo também acontece em uma retroalimentação constante. No diálogo não se 
tem uma busca por dominação, mas sim um desejo de libertação. Não se tem um 
diálogo verdadeiro sem humildade, com arrogância. Para que o diálogo aconteça é 
preciso estar aberto para as contribuições dos participantes³. Com diálogo se 
constroem relações horizontais. “Finalmente, não há o diálogo se não há nos seus 
sujeitos um pensar verdadeiro. Pensar crítico. Pensar que, não aceitando a dicotomia 
mundo-homens, reconhece entre eles uma inquebrável solidariedade.” (FREIRE,1987, 
p. 47) 
Então, abraçando nossas demandas e nossa proposta de metodologias fluidas, 
foi escolhido como método de observação e coleta de dados a cartografia, criado por 
G. Deleuze e F. Guattari e tratado por Virgínia Kastrup (2007). Este método tem como 
foco central o próprio processo de pesquisa ao invés de um resultado específico. O 
importante para a cartografia é a utilização da atenção como ferramenta de análise 
para que se consiga detectar, através do acompanhamento e contato com o campo, 
aquilo que o pesquisador entende que deve ser investigado de forma ampliada. Onde 
sua atenção pousa. 
 
De saída, a ideia de desenvolver o método cartográfico para utilização em 
pesquisas de campo no estudo da subjetividade se afasta do objetivo de 
definir um conjunto de regras abstratas para serem aplicadas. Não se busca 
estabelecer um caminho linear para atingir um fim. (KASTRUP, 2007, p. 15) 
 
 
 No método cartográfico tanto a busca quanto o problema em si não precisam 
estar completamente delimitados, como em um sistema fechado. Ao contrário, são 
flexíveis, abertos. O caminho vai sendo construído através do acolhimento, nesse 
ponto a atenção flutuante é de extrema importância. 
 
As experiências vão então ocorrendo, muitas vezes fragmentadas e sem 
sentido imediato. Pontas de presente, movimentos emergentes, signos que 
indicam que algo acontece, que há uma processualidade em curso. Algumas 
concorrem para modular o próprio problema, tornando-o mais concreto e 
bem colocado. Assim, surge um encaminhamento de solução ou uma 
resposta ao problema. (KASTRUP, 2007, p. 18) 
 
 
 
 
 ​ Comométodo de investigação qualitativa, a observação participante, que busca 
um entendimento integral e natural do campo de pesquisa, desempenha um 
importante papel no processo de investigação, uma vez que o processo é o mais 
significativo para a proposta. A observação participante proporcionou abertura para 
que fosse possível nos concentrar na expressão de significados que encontramos nas 
vivências através da atenção flutuante. Assim, a falta de delimitação do que estávamos 
procurando causou uma insegurança inicial, pois estamos acostumadas a seguir 
métodos tradicionais onde temos uma sensação de controle muito grande. Mas, essa 
liberdade foi essencial para a construção do coletivo de forma orgânica, para o 
envolvimento completo das integrantes e para que conseguíssemos de fato deixar que 
o fluxo das experiências nos guiasse. Através dessa abertura para os acontecimentos 
espontâneos fomos estabelecendo atividades de interesse mútuo, dinâmicas que 
possibilitaram uma conexão maior entre as mulheres e temas que agregam 
conhecimento para todas as envolvidas. Além de planejar em comunhão as atividades 
práticas desenvolvidas pelo coletivo. 
 
2. A SABEDORIA FEMININA E O EMPREENDEDORISMO 
 
Desde a colonização, as mulheres no Brasil frequentemente se veem em 
situações onde precisam encontrar uma forma de sustentar a família. De acordo com 
Mary Del Priore (2009), sabe-se que o perfil do cenário familiar no Brasil colônia era 
composto por muitos maridos ausentes, companheiros ambulantes, mulheres 
chefiando seus lares e crianças sendo criadas por vizinhas, comadres e familiares. Isso 
se dava porque as mulheres foram socialmente responsabilizadas pelos filhos e pela 
casa. Essa situação da mulher brasileira não surgiu por acaso. O quadro da mulher 
bela, recatada e do lar veio importado da metrópole e foi implantado através de duas 
principais frentes: a Igreja Católica e a medicina. Através de discursos e sermões 
moralistas, exclusão social e o convencimento de que a função natural da mulher era a 
procriação (DEL PRIORE, 2009). A Igreja também se empenhou em acabar com a 
costumeira cooperação feminina, principalmente no que dizia respeito à criação dos 
filhos, por meio da instituição do sagrado matrimónio, separando as mulheres entre 
mães sagradas ou profanas, de acordo com o estado civil. 
 
 
 
 
A fabricação da imagem de uma mulher ideal, sonhada e desejada, acabou 
por sobrepor-se a história de vida femininas complexas, confusas, 
perpassadas de paixões e preconceitos. Importante é que um rótulo moral 
mascarava desigualdades raciais, sociais e econômicas, e a implantação do 
projeto de mãe ideal fazia-se a serviço de um padrão cultural que procurava 
integrar todas as mulheres às necessidades específicas de modernas 
instituições de poder, como o Estado e a Igreja (DEL PRIORE, 2009, p. 108). 
 
Apesar desse padrão moral ainda ser o dominante para as mulheres, no país 
grande parte das famílias é composta por mães-solo , que se submetem a trabalhos 2
informais, desqualificados e desvalorizados, por falta de políticas públicas que supram 
as demandas dessas famílias. As mulheres negras, que desde a escravidão são vistas 
como “quem pode trabalhar tanto quanto um homem”- conforme o discurso de 
Sojourner Truth proferido como uma intervenção na Women’s Rights Convention em 
Akron, Ohio, Estados Unidos, em 1851 - sempre são as mais prejudicadas nessa regular 
conjuntura. Depois da escravidão, seguiram cumprindo as funções de empregadas, 
babás, cozinheiras, etc; e normalmente servindo à famílias brancas. 
 
Por muito tempo mulheres afro-americanas participaram dos segredos mais 
íntimos da sociedade branca. Inúmeras mulheres negras iam de ônibus para 
a casa de suas “famílias” brancas, onde elas não apenas cozinhavam, 
limpavam e desempenhavam outras tarefas domésticas, mas também 
cuidavam de suas “outras crianças”, ofereciam importantes conselhos aos 
seus empregadores e, frequentemente, tornavam-se membros honorários 
de suas “famílias” brancas. (HILL COLLINS, 2016, p. 99) 
 
 Para que as mulheres brancas pudessem se livrar das amarras do lar e sair para 
disputar o mercado de trabalho com os homens, as mulheres negras cuidaram e ainda 
cuidam dos filhos e das casas das famílias brancas. Enquanto quem está cuidando de 
suas casas normalmente são suas filhas. Esse ciclo é um dos principais fatores para a 
feminização da pobreza e para a perpetuação da desigualdade racial. São justamente 
esses trabalhos de cuidados, tanto dos mais vulneráveis quanto da casa e da 
alimentação que dão condições para que a sociedade consiga continuar funcionando. 
 
A ordem de gênero capitalista, assim, é estruturalmente fundada não em 
um patriarcado trans-histórico ou um modo de produção doméstico 
separado, mas na articulação entre o modo de produção capitalista e as 
famílias da classe trabalhadora, que são fundamentais para a produção e 
reprodução da força de trabalho (FERGUSON; MCNALLY , 2017, p. 37). 
 
2 ​ ​Dados retirados do Censo 2010. 
 
 
 
O que nós buscamos é conseguir transformar a realidade que se dá por conta 
dessa forma de reprodução social do trabalho existente, sendo considerado trabalho 3
somente aquilo que tem valor de troca, ou seja, “o trabalho no lar não é 
mercantilizado, ele produz valores de uso, não mercadorias cuja venda realiza 
mais-valor para o capitalista” (FERGUSON; MCNALLY, 2017). Além disso, os trabalhos 
que são melhor remunerados normalmente exigem uma grande dedicação. 
Logicamente, só conseguem obter esses cargos quem tem outras pessoas (na maioria 
dos casos outras mulheres) que ficam encarregadas das tarefas básicas para a 
sobrevivência. A partir disso, se desenvolve uma forma de viver ditada por essas 
estruturas sociais que designam comportamentos e espaços a partir de uma visão de 
mundo masculina, tóxica, que enxerga o mundo através da dominação dos que têm 
menor poder aquisitivo pelos que têm maior poder aquisitivo. 
Hoje, a realidade onde a feminização do mercado de trabalho acontece ainda é 
machista e traz para mulheres pesos opressores e limitantes. Por serem responsáveis 
pela reprodução social elas acabam sendo penalizadas no mercado de trabalho. A 
maternidade nunca é bem-vinda, a licença-maternidade é considerada um gasto 
desnecessário para os empregadores. As mulheres normalmente recebem, em média, 
30% a menos que os homens em cargos iguais por causa desse possível “prejuízo” para 
a empresa. A opressão acontece antes mesmo da contratação. É comum perguntar às 
mulheres em entrevistas se elas têm filhos, o que não acontece com os homens, e se a 
resposta for positiva a possibilidade de contratação é quase nula, pois qualquer 
problema que acontecer com a criança entende-se que será ela quem deixará de ir ao 
trabalho. Também temos as várias formas de prática de assédio no trabalho, 
extremamente comum na realidade das mulheres brasileira. 
 
Não é biologia ​per se que dita a opressão às mulheres, mas, em vez disso, a 
dependência do capital dos processos biológicos específicos dasmulheres – 
gravidez, parto, lactação – para garantir a reprodução da classe 
trabalhadora. É isso que induz o capital e seu Estado a controlar e regular a 
reprodução feminina e o que os impele a reforçar uma ordem de gênero de 
dominância masculina. E este fato social, ligado à diferença biológica, 
compreende a fundação sobre a qual a opressão às mulheres é organizada 
na sociedade capitalista (FERGUSON; MCNALLY, 2017, p. 40) 
 
3 ​Segundo Cinzia Arruzza (2016), a reprodução social refere-se ao domínio mais especíco da renovação 
e da manutenção da vida e das instituições e o trabalho necessário aí envolvido. 
 
 
 
Assim, diante de todos esses desafios que a participação feminina encontra no 
mercado de trabalho, vem crescendo a participação empreendedora das brasileiras. 
Infelizmente, nem sempre ela está associada a uma ação profissional formalizada e 
ainda pode ter pouca ou nenhuma orientação de gestão, prejudicando a possibilidade 
do empoderamento. Mas, por outro lado, vemos que o empreendedorismo feminino é 
um terreno fértil que mostra a disposição das mulheres para conquistar seu espaço na 
cidade, além de ser uma maneira das mulheres transformarem os seus saberes e 
fazeres em uma atividade econômica remunerada. 
As redes de apoio entre mulheres são de suma importância para uma evolução 
de sua autonomia socioeconômica. As mulheres que optam pelo empreendedorismo 
almejam tanto a realização profissional quanto pessoal. Dentro da organização social 
dada, para tornar essa realidade possível precisamos contar umas com as outras. 
 
3. COLETIVO SEMPRE-VIVA​ ​ 
 
Sempre-viva trata-se de uma flor, pequena, mas chamativa e extremamente 
resistente. Esta flor representa a nós, mulheres, e que quando trabalhamos em 
conjunto florescemos, nos tornamos mais fortes e geramos sementes produtivas. 
Assim, inspiradas no poder simbólico da flor, o Coletivo Sempre-Viva visa a 
circulação de saberes e fazeres femininos, estimulando a produção de ativos 
econômicos e dinamizando a economia local. Busca também a troca e transferência de 
conhecimentos entre o comunitário e o acadêmico, já que trabalha a dinâmica 
comunicacional de forma a conectar mulheres empreendedoras na cultura regional, 
detentoras de saberes comunitários, e professoras e estudantes da Universidade 
Católica de Brasília, pessoas detentoras de saberes comunicacionais e tecnológicos 
exercendo a práxis na pesquisa universitária. 
Paulo Freire (1987), em seu livro ​Pedagogia do oprimido​, se refere a palavra 
verdadeira como aquela que tem o real objetivo de modificar o mundo, como práxis. 
Isso significa que a palavra não é privilégio de alguns poucos e nem posse de alguém. 
Para a palavra ser verdadeira ela contém duas dimensões: ação e reflexão. Por isso, 
não se pode fazê-lo sozinho, apenas em comunhão. Essa definição da educação 
contida em Paulo Freire podemos estender para toda a ação que, como diz Karl Marx 
 
 
 
(2009) em sua tese onze sobre feuerbach, não deseja apenas interpretar o mundo, 
mas também transformá-lo. 
 A importância da aplicação da práxis é conseguir encontrar e resolver 
contradições que possam existir entre o universo do estudar e do pensar o mundo e o 
universo do agir e vivenciar o mundo, fazendo com que teoria e prática não fiquem 
desconectadas e que alcancem resultados de fato transformadores. Além disso, é 
possível quebrar algumas barreiras historicamente impostas entre universidade e 
comunidade, fugindo do elitismo do conhecimento que não reconhece outras formas 
de saber. Também não caímos no erro de empregar conceitos que funcionaram em 
outros lugares e tentamos aplicá-los como uma fórmula pronta (FERNANDES, 2019). 
No que se refere especificamente às ações desenvolvidas pelo Coletivo, o 
objetivo principal é o de conscientizar sobre as construções culturais de gênero e de 
poder no âmbito privado e do trabalho, responsáveis por relegar ao feminino uma 
posição de submissão, desvalorização e dependência em relação ao masculino. 
Esses objetivos são alcançados gradualmente pelo desenvolvimento de 
atividades que envolvem: 1) a conscientização sobre a situação das mulheres e sobre 
os obstáculos a superar para que possam alcançar seu desenvolvimento integral no 
ambiente doméstico e do trabalho; 2) a realização de vivências, oficinas, sessões 
audiovisuais, narrativas femininas e eventos que estimulem a troca de conhecimento e 
de saberes entre as mulheres, assim como o aprimoramento de suas atividades 
produtivas; 3) o oferecimento de cursos, palestras e oficinas sobre empreendedorismo 
feminino, com palestrantes locais, nacionais e internacionais; 4) o desenvolvimento de 
uma plataforma online colaborativa que facilite e democratize a comercialização e 
troca de serviços e produtos entre as mulheres criativas e empreendedoras da 
periferia do Distrito Federal, aumentando também a visibilidade desses serviços em 
nível regional e nacional, para além das formas tradicionais de divulgação e comércio. 
As vivências buscam a integração e a criação de vínculos entre mulheres, tendo 
como fio condutor a arte, a literatura, a livre expressão dos sentimentos e das 
sensações corporais. As palestras, cursos e oficinas tem o propósito de ampliar os 
conhecimentos e inspirar as mulheres a continuar investindo em si mesmas, enquanto 
as narrativas femininas e as sessões audiovisuais objetivam dialogar com as temáticas 
femininas de uma forma mais sensível. Por fim, a plataforma online colaborativa visa 
 
 
 
estimular a economia feminina e a formação de redes de apoio em maior escala, 
utilizando a tecnologia para potencializar as trocas. Propõe-se também a criação de 
uma “moeda cultural” que funcione como alternativa para as trocas monetárias 
tradicionais. 
 
● CONCLUSÃO​ 
 
Quando traçamos um perfil histórico da trajetória feminina no que tange às 
questões do trabalho, observamos com clareza o apagamento e a invisibilização tanto 
dos protagonismos quanto do conhecimento feminino. A desvalorização da sabedoria 
feminina, dos papéis desempenhado pelas mulheres, do universo feminino como um 
todo e até mesmo da nossa condição enquanto seres racionais é um sistema 
estruturado desde que o patriarcado assumiu a posição de visão dominante sob a qual 
os seres humanos entendem o mundo; que, com o aperfeiçoamento do sistema, foi se 
tornando em única. 
Conseguir quebrar com essa mentalidade e transformar a realidade em que 
estamos imersos desde a colonização do país é um processo lento, turbulento e que 
exige muita força. Para que consigamos caminhar em direção a esse objetivo final é 
imprescindível ter muito claro em nossas mentes e em nossos corações que só 
podemos fazer isso juntas. Abraçar nossas diferenças e saber trabalhar as nossas 
discordâncias é desconstruir a lógica masculina de dominação e poder, onde sempre 
vão existir oprimidos e opressores. A lógica feminina que queremos construir necessita 
da sororidade, empatia, comunhão e pensamento coletivo. 
Desde o início do processo que deu vida ao coletivo Sempre-viva 
empenhamo-nosem minuciar as convergências entre as várias formas de opressão 
que as mulheres sofrem para poder seguir um rumo de mudança significativa. 
Buscamos, através da práxis, uma construção conjunta por meio de uma organização 
horizontal com base na igualdade. 
Percebemos no empreendedorismo uma forma muito rica de envolver as 
mulheres, onde conseguimos conciliar as necessidades imediatas de autonomia 
socioeconômica com a visão de mudanças gradativas que possam mexer com as 
profundas estruturas de opressão., envolvendo a valorização dos trabalhos 
 
 
 
considerados femininos e fomentando as redes de apoio para um desenvolvimento em 
conjunto. 
Finalmente, espera-se com o projeto gerar no Distrito Federal um modelo 
pioneiro de gestão para os saberes e fazeres femininos, amparado por inovação 
tecnológica, gerando um impacto social, com a inclusão das mulheres produtoras na 
vida cultural da cidade e na lógica da economia e da cultura. A produção feminina 
passa a ser vista como um potencial e um vetor da economia local, gerando iniciativas 
empreendedoras, atividade e emprego. E, por fim, o impacto acadêmico, pois 
espera-se que a Universidade desempenhe então seu papel de formação não apenas 
intra muros, mas também junto às comunidades próximas, participando ativamente no 
dinamismo da cidade, através da práxis que é tão importante para o desenvolvimento 
dos estudo acadêmicos. 
 
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 
 
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CREATIVE ECONOMY AND FEMALE ENTREPRENEURSHIP: A DIALOGICAL PROPOSAL 
FOR CULTURAL MANAGEMENT 
 
ABSTRACT 
 
This article, Creative Economy and Female Entrepreneurship: a dialogical proposal of 
cultural management, works on the communicational dynamics connecting 
entrepreneurial women from the Administrative Region of Samambaia-DF, starting 
from the identification of their skills, and professors and students from the Catholic 
University of Brasilia, exercising the praxis of research and university extension. We 
use as theoretical and methodological support the complex thinking of Edgar Morin, 
the feminist methodologies presented by Martha Giudice Narvaz and Silvia Helena 
Koller, and the cartographic perspective of Virginia Kastrup. Thus, starting from the 
interaction between community, university and female work, we present as a partial 
research result the creation of Sempreviva, female entrepreneurial collective. 
 
 
ECONOMÍA CREATIVA Y EMPRENDIMIENTO FEMENINO: UNA PROPUESTA DE 
DIÁLOGO PARA LA GESTIÓN CULTURAL 
 
 
RESUMEN 
 
Este artículo, Economía creativa y emprendimiento femenino: una propuesta dialógica 
de gestión cultural, trabaja en la dinámica comunicacional que conecta a las mujeres 
emprendedoras de la Región Administrativa de Samambaia-DF, a partir de la 
identificación de sus habilidades, y a los profesores y estudiantes de la Universidad 
Católica de Brasilia, haciendo ejercicio La praxis de la investigación y la extensión 
universitaria. Utilizamos como soporte teórico y metodológico el pensamiento 
complejo de Edgar Morin, las metodologías feministas presentadas por Martha Giudice 
Narvaz y Silvia Helena Koller, y la perspectiva cartográfica de Virginia Kastrup. Así, a 
partir de la interacción entre la comunidad, la universidad y el trabajo femenino, 
presentamos como resultado parcial de la investigación la creación de Sempreviva, 
colectivo empresarial femenino.

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