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Hip-Hop e Direitos Civis

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Violência e Resistência 
problematizações estéticas 
 
 
 
1ª Edição 
 
 
 
 
Rosani Umbach 
Carla Lavorati 
Adriana Yokoyama 
(Organizadoras) 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
Mares Editores 
2016 
 
 
Copyright © da editora, 2016. 
 
Capa e Editoração 
Mares Editores 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação (CIP) 
 
Violência e resistência: problematizações 
estéticas/ Rosani Úrsula Ketzer Umbach; Carla 
Lavorati; Adriana Yokoyama – Rio de Janeiro: 
Mares, 2016. 
501 p. 
ISBN 978-85-5927-017-4 
1. Análise e crítica literária. 2. Violência. 3. 
Estéticas I. Título. 
 
CDD 801.95 
CDU 82 
 
 
 
2016 
Todos os direitos desta edição reservados à 
Mares Editores 
Contato: mareseditores@gmail.com 
 
 
 
Sumário 
 
Apresentação ................................................................................................ 9 
Violencia y resistencia en Os Sertões de Euclides Da Cunha ....................... 21 
Literatura negro-brasileira e resistência na produção ensaística e ficcional 
de Cuti ......................................................................................................... 44 
Resistência e ética em W. G Sebald ............................................................. 73 
Persépolis, de Marjane Satrapi: Identidade e Alteridade; Violência e 
Resistência .................................................................................................. 95 
Hip hop e educação: sobre resistência e ruptura na arte das periferias 
urbanas ..................................................................................................... 120 
Resistência ao genocídio nas composições do Racionais MC´S: criminologia e 
violência urbana ........................................................................................ 157 
Representações literárias da Guerra do Paraguai em Joaquim Manuel de 
Macedo e Machado de Assis ..................................................................... 196 
A ditadura militar e a importância de expressões culturais como arma “anti-
esquecimento” .......................................................................................... 231 
Sob (re) o Tropical Sol (o) brasileiro: a escrita da perda em Ana Maria 
Machado ................................................................................................... 258 
Os discursos do poder em Mineirinho de Clarice Lispector ....................... 278 
 
 
O devir horribilis e a violência na modernidade kafkiana: ecos de uma 
literatura de terror .................................................................................... 314 
Hip-Hop e Direitos Civis: o reflexo da cultura de resistência estadunidense na 
representatividade do negro brasileiro. .................................................... 346 
“A escrita tomou as ruas!”: a tática black bloc como crítica da linguagem
 .................................................................................................................. 380 
Êxodos: O corpo, a memória e a tarefa persistente ................................... 411 
A figuração da Ditadura Militar em três obras literárias posteriores à época: 
uma reflexão ............................................................................................. 440 
Marcas de violência na literatura clariceana ............................................. 462 
Sobre os autores ........................................................................................ 493 
 
 
- 346 - 
Hip-Hop e Direitos Civis: o reflexo da cultura de resistência 
estadunidense na representatividade do negro brasileiro. 
 
Leonardo José de Araújo Ribeiro111 
Thaís Budoia de Almeida Prado112 
 
 
Introdução 
O presente trabalho se propõe a compor obra que mostra 
relação entre a sociedade, política e arte, tendo esta última como 
lugar de resistência da primeira. As artes representadas como 
resistência neste texto são as provenientes da cultura hip-hop. 
Esse movimento cultural nasce nos Estados Unidos da 
América em uma época marcada por sucessivas lutas do povo negro, 
pelos movimentos dos direitos civis, mortes de líderes e promoção de 
políticas meramente aparentes. Influenciada pela música negra e 
levantando contestações à manutenção de poder e diferenças 
econômicas e sociais, o hip-hop destaca-se como movimento cultural 
da população negra. 
 
111 Mestrando em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana 
Mackenzie. Advogado, com atuação cível e empresarial. 
112 Pós-graduanda em Liderança e Desenvolvimento Humano pela Universidade 
Presbiteriana Mackenzie. 
- 347 - 
A origem dessa cultura é representada, atualmente, pela série 
The Get Down, que narra o que seria a biografia de um dos 
fundadores do hip-hop, o DJ Grandmaster Flash. Esse expoente, 
juntamente com outros, possui grande influência na cultura jovem e 
urbana atual por todo o mundo. 
O Brasil, portanto, não estaria alheio à essa influência. Mesmo 
com uma cultura rica e diversificada, o país é influenciado cultural e 
economicamente em toda a sua história. Assim, como maior 
representante do poder econômico mundial, os Estados Unidos da 
América também influenciam a cultura brasileira. 
A influência do hip-hop no país foi, contudo, benéfica, pois 
pôde ajudar criar, intensificar, consolidar e ampliar um 
reconhecimento e autoafirmação (empoderamento) histórico, social 
e cultural do negro no Brasil. O país incorporou referida cultura e 
apresentou diversas fases dos gêneros musicais do hip-hop (funk 
brasileiro e rap). 
Contemporaneamente, os artistas representantes de tais 
gêneros musicais são amparados pelo poder econômico, o que faz 
surgir novos modos de expressar a cultura. Não esquecendo, 
contudo, da origem do hip-hop brasileiro – e com ela dialogando –, o 
cenário atual do rap nacional permite que um de seus expoentes 
presencie a pré-estreia da série supramencionada; oportunidade na 
- 348 - 
qual é ressaltada a semelhança entre as origens étnicas e sociais 
entre os povos que criaram a cultura hip-hop em ambos os países. 
Contextualizar a identidade histórica e social de um povo, 
como faz o hip-hop é garantir a resistência a um povo que sofre 
demasiadamente com diversas violências. O rap pode, então, ajudar 
a emergir uma conscientização que conteste tanto a manutenção do 
status quo, quanto a maneira que o povo negro e sua história são 
apresentados. 
De igual ou maior importância, apresenta-se a participação 
das mulheres no hip-hop. Ao se autorrepresentarem, além de 
garantir maior visibilidade – o que é raro na mídia tradicional –, elas 
demonstram que sua história é baseada em resistência, superação e 
força, ao contrário da mistificação e da objetificação a elas 
outorgada. 
 
Cultura Estadunidense Pós-64 
Os Estados Unidos da América foram marcadospor uma 
história escravagista com um ponto de transição no século XIX, a 
chamada Guerra de Secessão, que foi guiada por interesses 
nacionalistas e econômicos. Após tal guerra – e em razão dela –, o 
país publicou a 14ª Emenda à sua Constituição (em 9 de julho de 
1868). Tal emenda caracterizou como cidadãos todas as pessoas do 
- 349 - 
território, proibindo a existência de leis ou atos que retirassem (de 
fato ou de direito) essa conquista. A mesma emenda proibiu, 
também, qualquer forma de indenização pelo auxílio a grupos e atos 
contra o governo estadunidense ou pela perda de escravizados 
(CORNELL). 
O uso de tal emenda foi, contudo, pouco proveitoso à luta de 
emancipação dos negros anteriormente escravizados e seus 
descendentes. Embora utilizada para os fins que deveriam tê-la 
criado (quota para negros, entre outros), entre os anos de 1890 e 
1910, sua utilização em cortes judiciais foi massivamente para a 
equiparação de pessoas jurídicas aos cidadãos estadunidenses, tendo 
conseguido reconhecimento do direito à vida, liberdade e 
propriedade para as empresas (BAGNOLLI 2009, p. 40). 
Assim, deu-se maior importância ao individualismo e à 
economia de mercado até a crise ocorrida em 1929. Ainda com as 
mudanças perpetradas pela política econômica do Welfare State, 
pela economia de guerra e, posteriormente, pela Guerra Fria, as 
atenções do governo estadunidense voltaram-se à proteção do 
Estado e à sensação de bem-estar das pessoas que poderiam, de 
fato, atingir o poder econômico (brancos). 
Portanto, não há estranhamento em relação à manutenção e 
incentivo do segregacionismo em locais públicos. 
- 350 - 
A partir do ganho econômico, da ascensão social e do 
aumento da educação de alguns cidadãos ou grupos – que eram 
socialmente excluídos pelo segregacionismo ou pela condição 
econômica –, as ações segregacionistas (públicas e privadas, 
combatidas desde o século XIX) passaram a ser questionadas com 
maior veemência113. Ganham forte evidência, portanto, os líderes 
Malcolm X e Martin Luther King, com discursos radicais e 
integrativos, respectivamente, dentre outros. 
A propagação das lutas sociais contra violência, guiadas pelas 
personalidades acima, gerou holofotes a muitos grupos que 
impunham resistência às políticas segregacionistas com ações 
coordenadas e planejadas, como em diversos protestos em cafeterias 
e restaurantes – bem encenado em The Butler (O Mordomo da Casa 
Branca). 
Todos esses feitos geraram imensa pressão política à época, 
num país em que a preocupação era a Guerra Fria – e, portanto, o 
fortalecimento de pesquisa e indústria bélica e espacial não mais 
para uso iminente, tampouco havia necessidade constante de ajuda 
 
113 Lembra-se, aqui, que a luta dos negros (ex-escravizados ou não) e pelos negros, 
por representatividade e por direitos, ocorreu dentro e fora do Congresso dos 
Estados Unidos – ao qual os primeiros negros sulistas foram eleitos na década 
de 1870. Certamente, tal luta gera forte repressão de quem era abertamente 
contra ela, tal qual a Klu Klux Klan, cujos membros possuíam poder político e 
influência, além de alguns serem juízes, entre outras autoridades. Assim, diversos 
Estados da federação iniciam a legislar leis segregacionistas, conhecidas como Leis 
"Jim Crow". in COLEMAN, 2015. 
- 351 - 
aos países europeus, como nas décadas anteriores. Destarte, na 
ausência de outras preocupações mais próximas que o Estado 
estadunidense pudesse pôr em destaque, houve uma cobrança às 
lideranças governamentais para o fim do segregacionismo local e um 
posicionamento em relação ao Apartheid sul-africano (política que 
atingia a façanha de ser mais rígida e cruel que o próprio 
segregacionismo estadunidense). 
Após ampla resistência, e em momento que não seria 
politicamente viável postergar, os Estados Unidos publica o Civil 
Rights Act (Lei de Direitos Civis) em 1964, que precisou ser seguido 
pelo Voting Rights Act (Lei do Direito ao Voto), em 1965, e pelo Civil 
Rights Act (Lei dos Direitos Civis), em 1968. 
 
Civil Rights Act de 1964 
Antes do Civil Rights Act de 1964, haviam sido publicados os 
Civil Rights Act de 1957 (garantindo, através de medida judicial, o 
direito de voto à população negra) e de 1960 (que cobriu algumas 
brechas do primeiro Act) (LANEY, 2008). O principal foco das duas 
primeiras leis era o voto, cujas legislações locais dos Estados 
obtiveram êxito em burlar a igualdade legal supostamente trazida 
pela 14ª Emenda à Constituição estadunidense. 
- 352 - 
A lei de 1964 possuía o intuito de efetivar ou garantir o 
sufrágio. Assim, tal lei foi elaborada com o seguinte preâmbulo: 
 
Uma lei para efetivar o direito constitucional de 
voto, dar competência às cortes distritais dos 
Estados Unidos para dar medida cautelar contra 
discriminação em locais públicos, autorizar o 
Procurador Geral a ajuizar ações para proteger 
direitos constitucionais em serviços locais e 
educação pública, para estender a Comissão de 
Direitos Civis, para evitar discriminação em 
programas assistenciais federais, para estabelecer 
a Comissão de Igualdade de Oportunidade de 
Emprego, e para outras providências.114 
 
Evidencia-se, portanto, um caráter público do Civil Rights Act 
de 1964, destacando-se as proibições de impedimento ao registro de 
voto, de discriminação na oferta de empregos115 e o segregacionismo 
em locais públicos ou de acesso ao público. 
Certamente, o objetivo da lei não foi alcançado. Não foi 
possível alterar a cultura popular (efetivar a legislação) somente com 
 
114 Tradução de: "To enforce the constitutional right to vote, to confer jurisdiction 
upon the district courts of the United States to provide injunctive relief against 
discrimination in public accommodations, to authorize the Attorney General to 
institute suits to protect constitutional rights in public facilities and education, to 
extend the Commission on Civil Rights, to prevent discrimination in federally 
assisted programs, to establish a Commission on Equal Employment Opportunity, 
and for other purposes". 
115 Pode-se discutir se haveria a mesma proibição para cargos e funções, que 
seriam uma organização do emprego dentro do ente privado. Como o Act tinha o 
escopo de eliminar o segregacionismo no âmbito público, é possível sustentar que 
em nada poderia tal lei interferir na esfera privada da companhia que fornecia o 
emprego. 
- 353 - 
um ato estatal que regulava de maneira genérica as relações sociais. 
Assim, foi necessário o Voting Rights Act de 1965 para regulamentar 
o voto nos distritos americanos – e efetivamente permitir o 
sufrágio116. 
Ainda demonstrando a ausência de efetividade [ou falta de 
eficácia plena] do Act de 1964, a história mostrou necessária a 
prolação de um novo Civil Rights Act, em 1968 – pouco menos de um 
mês antes da morte do líder popular Martin Luther King Jr.117 O Act 
de 1968 (além de tratar dos direitos indígenas) previa penas 
administrativas mais rígidas para atos discriminatórios. Porém, tal ato 
também punia (criminalmente) a desobediência civil, o que pode ser 
externado como uma repressão política aos atos do Partido dos 
Panteras Negras (parte de toda a repressão legal e política feita aos 
partidos e pessoas assumidamente comunistas). 
Pode-se verificar, então, um ambiente que se pretendia 
democraticamente amplo e aceitável, ouvindo as reivindicações das 
lideranças representativas e dos populares pertencentes às camadas 
 
116 A sensibilidade do sufrágio (direito ao voto), bem como a importância dele na 
vida política de cada cidadão, diante do impedimento prático do que seria um 
direito universal, é perfeitamente retratada no filme Selma (2014), que retrata a 
luta dos líderes populares em Alabama no ano de 1965,quando o voto já seria 
plenamente possível pelo Act de 1964. 
117 Os discursos dessa tão aclamada figura histórica não cessaram nem diminuíram 
de tom após a elaboração dos Acts, justamente porque ele tinha ciência de que a 
mudança necessária não seria trazida meramente por leis. Tal contexto é trazido, 
com perfeição artística, pelo espetáculo, internacionalizado e representado no 
Brasil por Lázaro Ramos e Taís Araujo, "O Topo da Montanha". 
- 354 - 
excluídas, elaborando diversas normas que os proteger 
teoricamente. Na realidade, as desigualdades [não formais] 
permaneceriam, bem como a repressão a determinados movimentos 
estaria legalmente permitida e, portanto, institucionalizada. 
Omi e Winant (2015, pp 14-15) afirmam que houve vitórias 
(ainda que parciais) com as lutas dos movimentos sociais na década 
de 1960, mas também mostram que 
 
Tornar ilegal a segregação de jure não preveniu 
contra a segregação de facto por outros meios. 
Derrubar as políticas de imigração imensamente 
restritivas que duraram da década de 1920 até a 
década de 1960 não preveniu contra a 
continuidade, e em verdade o crescimento, de um 
sistema draconiano de deportação e 
aprisionamento de imigrantes que continua até os 
dias autuais.118 
 
O Surgimento do Hip-Hop 
Nesse contexto conflituoso, de proteção aparente e repressão 
legal, além da exclusão social, surge um movimento cultural dos 
excluídos, trazido das ruas e dos ghettos119 estadunidenses, na forma 
 
118 Tradução de: "To outlaw de jure segregation did not prevent the preservation of 
segregation de facto by other means. To overturn the highly restrictive immigration 
policies that had lasted from the 1920s to the 1960s did not prevent the continuity, 
and indeed the increase, of a draconian system of immigrant deportation and 
imprisonment that continues to this days". 
119 Guetos, como a palavra foi importada para o português brasileiro, ou áreas 
periféricas, com uma população de renda mais baixa, chamadas de minoria, por 
vezes ocupantes de favelas. 
- 355 - 
de música (rap e disc jockeying, DJ), dança (break), arte visual 
(grafite), entre outros entretenimentos (como disputa de rimas entre 
os mestres de cerimônias, MCs). 
O Hip-Hop, nascido nos anos 70, tem grande influência da 
década de 1960, seja pela música (funk) ou pela luta pelos direitos 
civis. Por sua origem e suas mensagens, a cultura do Hip-Hop tem um 
vínculo indissociável com a resistência – majoritariamente com a 
resistência da população negra estadunidense. Ainda que muitas 
músicas pareçam puramente agressivas, nota-se tons de uma revolta, 
gerada por uma violência perpetrada por séculos e por uma aberta 
exclusão social. 
Demonstrar a origem de toda essa cultura pareceria uma 
tarefa demasiadamente pretenciosa e difícil. Porém, houve certa 
facilitação desta tarefa em razão de outra criação artística, o seriado 
The Get Down, distribuído pela Netflix em 2016. 
 
The Get Down 
The Get Down, da Netflix, é um seriado drama que situa sua 
história na década de 1970, no bairro do Bronx em Nova Iorque 
(Estados Unidos), narrando a vida de um grupo de jovens que 
começam a participar da origem da cultura hip-hop. 
- 356 - 
O enredo, focado no grupo de protagonistas, gira em torno de 
Gandmaster Flash – um dos DJs expoentes do ritmo dessa cultura –, 
mas a série faz menção a outros grandes nomes do gênero, tal qual 
Afrika Bambaataa. 
Sobre a importância desses expoentes para o hip-hop e vice-
versa, expõe Nelson George: 
 
Kool DJ Herc. Afrika Bambaataa. Grandmaster 
Flash. Velha Escola, você diz? Caramba, esses três 
são os fundadores da música do hip-hop – os 
progenitores da cultura jovem mundial 
dominante. Para eles, hip-hop não é uma 
gravação, um concerto, um estilo de roupa ou 
gírias. Essa é a constância da vida deles. Isso 
define o passado e afeta o a visão deles do futuro. 
Como DJs nos anos 70, esses três irmãos eram o 
núcleo do hip-hop – encontrando as gravações, 
definindo tendências, e mexendo com multidões 
de público em espaços abertos ou fechados em 
partes do Bronx e Harlem (GEORGE, p. 45)120 
 
A história se passa em um bairro pobre e periférico da capital 
financeira estadunidense, demonstrando claramente a exclusão 
social oriunda de uma violência secular contra grupos étnicos 
 
120 Tradução de: "Kool DJ Herc. Afrika Bambaataa. Grandmaster Flash. Old School, 
you say? Hell, these three are the founding fathers of hip-hop music – the 
progenitors of the world's dominant youth culture. For them, hip-hop is not a 
record, a concert, a style of dress or a slang phrase. It is the constancy of their lives. 
It defines their past and affects their view of the future. As DJs in the '70s, these 
three brothers were the nucleus of hip-hop – finding the records, defining the 
trends, and rocking massive crowds at outdoor and indoor jams in parts of the 
Bronx and Harlem". 
- 357 - 
minoritários do país. É um conto histórico que remonta uma 
população e as origens de uma parte de sua cultura, sendo um 
diferencial para a produção da indústria cinematográfica 
estadunidense, pois – como destacou a produtora da série Catherine 
Martin, alertada por um comentador – é uma "série histórica sobre a 
cultura negra que não tem escravos" (CARVALHO, 2016). 
Nas palavras da jornalista portuguesa Cláudia Lima Carvalho, a 
série mostra o hip-hop antes de ser hip-hop. O que se mostra é a 
origem plural e multicultural desse conjunto de artes. Em uma 
periferia esquecida, na maior cidade estadunidense, havia na época 
uma mistura entre negros e latinos (em sua maioria), além de outras 
etnias. Embora o hip-hop traga em sua essência a cultura negra 
estadunidense – funk, soul, jazz, blues, entre outros – não se pode 
negar que há uma influência, ainda que pessoal a cada indivíduo, das 
demais culturas presentes no local. 
A realidade de muitas famílias é representada em alguns dos 
personagens – que perderam os pais e são criados por familiares, que 
encontram em sua família-modelo uma para seguir com o talento 
musical, ou que são forçados a entrar e se manter em grupos 
criminosos por ausência de qualquer outra possibilidade real de 
modo de vida –, o que faz com que o hip-hop seja um refúgio para 
uma realidade devastada social e economicamente, bem como para 
- 358 - 
uma população historicamente oprimida e financeiramente 
explorada. 
Cláudia Carvalho, tal qual Nelson George, destaca, também, a 
importância do hip-hop para outras culturas e modas, musicais ou 
não. As afirmações desses autores são tão reais que não podemos 
mais dissociar essa influência na cultura brasileira. 
 
A Imersão Cultural Estadunidense no Brasil 
A cultura brasileira é riquíssima e diversificada. Porém, talvez 
por uma herança colonial, tende-se a importar culturas, ainda que 
não sejam plenamente aplicáveis e proveitosas. 
Como se nota na Cidade de São Paulo, o seu chamado Centro 
Velho é repleto de construções arquitetônicas à moda francesa; por 
sua vez, o seu chamado novo Centro ou Centro expandido 
(majoritariamente a região da Avenida Paulista) foi reconstruído com 
uma arquitetura aparentemente anacrônica, mas que se assemelha 
com Manhattan, em Nova Iorque (Estados Unidos). 
Em razão de existir uma forte influência econômica externa 
no país, gerando (a princípio) produtos industrializados estrangeiros 
que eram os únicos ou os de melhor qualidade no mercado nacional, 
criou-se – em algum tempo na história – o mito de que o é 
estrangeiro é melhor. 
- 359 - 
Assim, atualmente submetidos economicamente aos mandos 
estadunidenses, importamos muito dessa cultura – cinema, televisão, 
arquitetura, política, ideologia, economia, entre outros –, mas 
principalmente a música. 
Entretanto, nem tudo nessa influência pode ou deve ser 
encarado como um óbice à identidadehistórica e cultural brasileira. 
As histórias das duas nações tiveram marcas muito 
semelhantes. Certamente, a mais profunda marca em comum – e 
que gerou cicatriz até os dias presentes – foi a escravização da 
população trazida, desumanamente, do continente africano e de seus 
descendentes. 
Ambas as nações deixaram de incluir, no centro da política 
econômica e da vida social, a população negra – fosse legalmente, 
pela permissão do segregacionismo nos Estados Unidos, fosse 
sistematicamente excluindo com uma aparente inclusão através da 
mestiçagem que imobilizava anseios transformadores no Brasil121. 
Tais exclusões geraram, através da tomada de consciência, 
movimentos que se assemelhavam (pelo menos em reivindicações e 
propostas). 
Como mencionado anteriormente, o hip-hop representa a ala 
cultural da reclamação e das reivindicações da população negra 
 
121 O que Florestan Fernandes chama de "O Mito da Democracia Racial". 
- 360 - 
estadunidense. A música brasileira é marcada pela cultura negra, em 
qualquer década do século XX que se eleja para demonstração; o 
cume dessa influência foi a criação da Bossa Nova, com raiz no samba 
(não muito bem visto pelas elites da época), ritmo que exportamos. 
Assim, não é novidade ver o negro ou a cultura negra 
representada nos ritmos musicais brasileiros. Mesmo existindo um 
sentido de protesto em diversas letras representados pelos ritmos 
variados, certamente não haveria um grande interesse propagandear 
letras que retomam um passado e cobram, historicamente, 
reparação. 
Os raps, tanto nos Estados Unidos da América quanto no 
Brasil, trazem – através de um ritmo pesado – revoltas e 
reivindicações. São um nicho de resistência e representatividade, 
mas, também, um memorial histórico que, ao mesmo tempo, 
reivindica melhorias reais para a população nele representada. 
A seleção por músicas mais adequadas às elites (ausentes de 
revolta, protesto e reivindicação) seria, portanto, algo impossível no 
início do rap no Brasil. 
 
O rap, nascido em meio à decadência urbana de 
Nova York, surgiu como um espaço de diversão, 
que transformou os produtos tecnológicos e o 
contexto étnico, social e econômico dos Estados 
Unidos em formas de diversão, denúncia e 
protesto. Pode-se falar que essa característica do 
- 361 - 
rap em ser contestatório faz parte do perfil de 
resistência da música negra norte-americana, que, 
desde as work songs e os spirituals, tentam 
preservar e manifestar sua cultura. 
No entanto, esse caráter de resistência 
cultural da música produzida pela população 
negra não foi exclusividade dos EUA. Podemos 
encontrar essas mesmas características na música 
dos países caribenhos, como também no Brasil, 
onde os batuques, os tambores, os choros, o 
samba são exemplos. No entanto, em decorrência 
da indústria cultural, a música negra produzida 
nos EUA, principalmente a partir do final da 
década de 1960, não demorou a causar reações 
no Brasil. Esse fato foi importante para que, 
naquele momento, camadas da juventude negra 
de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo se 
identificassem com elementos internacionais da 
cultura negra norte-americana, tendo como 
motivador central os ritmos musicais sou e funk 
(TELLA, p. 55) 
 
O Curso do Hip Hop no Brasil 
O hip-hop surge em um ambiente onde a chamada black 
music já predominada. Nos anos 70, era comum haver reuniões 
("bailes") para entretenimento com funk e soul – espelho da imersão 
cultural estadunidense na periferia brasileira –, criando um reduto de 
conscientização e afirmação, através da absorção das ideias do black 
power e do black is beautiful (oriundos dos Estados Unidos da 
América). 
A partir da década de 1980, na Cidade São Paulo, ascende 
uma prática cultural, produzida por parte da juventude negra que 
- 362 - 
habitava a periferia da cidade, "a partir da produção de 
representações, símbolos e modelos gerados pela música funk e o 
rap" (TELLA, pp. 57-58). Assim, o rap – segmento de letra e música da 
cultura hip-hop – cria uma identificação em meio ao povo negro, com 
conscientização histórica e social, colocando em evidência as 
distinções reais da sociedade, possibilitando a contestação do status 
quo, estigmas, valores e preconceitos. O imaginário idealizado 
(ausência de desigualdades) é questionado e se cria um novo 
imaginário (permeado de conflitos). 
A integração social de grupos semelhantes, seja como espaço 
de lazer ou como mobilizador social, nas rodas de danças de break na 
Estação São Bento (metrô da Cidade de São Paulo) e shows de rap, 
trouxe uma oportunidade única de formação de representantes 
brasileiros dessa nova cultura. 
 
Essa cultura inclui atividade organizadas por 
grupos de rap. breakers ou grafiteiros que sempre 
tiveram como objetivo resgatar a auto-estima, 
principalmente do jovem negro, bem como tentar 
construir identidades coletivas, mediante o 
discurso e a postura dos integrantes do 
movimento hip hop. Nas letras dos raps a 
construção de uma identidade positiva e a 
reflexão sobre os problemas do cotidiano dão a 
tônica das músicas. Por outro lado, há jovens que 
não estão envolvidos com a produção artística do 
hip hop, mas consomem discos ou CDs e/ou 
acompanham seus grupos prediletos em shows 
- 363 - 
realizados em espaços públicos, como escolas ou 
praças, em pequenos salões dos bairros 
periféricos de São Paulo. Creio que o rap 
possibilita, para quem reside na periferia da 
cidade de São Paulo, tornar o simples momento 
de escutar o rap em um disco ou show um gesto 
de concordância social. 
Dentre as artes do movimento hip hop, o 
rap ganha destaque em virtude do fato de ser um 
veículo no qual o discurso possui o papel central, e 
por intermédio dele o rapper transmite suas 
lamentações, inquietações, angústias, medos, 
revoltas, ou seja, as experiências vividas pelos 
jovens negros nos bairros periféricos de São Paulo. 
A periferia torna-se o principal cenário para toda a 
produção do discurso do rap. Todas as 
dificuldades enfrentadas por esses jovens são 
colocadas no rap. Encaradas de forma crítica, 
denunciando a violência – policial ou não -, o 
tráfico de drogas, a deficiência dos serviços 
públicos, a falta de espaços para a prática de 
esportes ou de lazer e o desemprego (TELLA, pp. 
58-59) 
 
Assim, com o enfoque étnico-social como centro do discurso 
produzido, a década de 1980 produz três discursos, nascidos em 
tempos subsequentes, mas sem extinguir o anterior. No início do 
movimento artístico, discursam-se mensagens de protesto, denúncia 
e revolta quanto ao que ocorre na periferia (refletindo o black 
power); segue-se um discurso de afirmação da negritude (black is 
beautiful); no final da década, leituras históricas da cultura negra 
estrangeira (religiões de matrizes africanas, datas históricas, 
- 364 - 
movimentos dos direitos civis, luta contra o apartheid) e um pouco 
das figuras históricas (recentes e distantes) brasileiras. 
Assim, forçando uma maior pesquisa para escrita da própria 
história em versos, o rap ajudou a definir identidades, além da 
criação de consciência para questões socioculturais mantidas há 
décadas. Não por outro motivo, um dos atuais expoentes do rap 
nacional brasileiro, Leandro Roque de Oliveira – o rapper Emicida – 
afirma, na letra de sua música Ubuntu Fristaili (do álbum O glorioso 
retorno de quem nunca esteve aqui, 2013), que "Eles não vão 
entender o que são riscos, e nem que os nossos livros de história 
foram discos". 
Da sua nascença e afirmação de temas na década de 1980, o 
hip-hop expande na década de 1990, passando de um 
reconhecimento regional para um reconhecimento nacional. Os 
nomes existentes desse cenário (regional) se consolidam e outras 
personalidades surgem, ganhando a mesma abrangência. Contudo, 
havia uma aversão social por parte das pessoas que consumiam a 
cultura padronizada, semcontestação social, racial ou de classe. 
Nos anos 2000, a música do hip-hop passa por uma dualidade 
– que de certa maneira permanece contemporaneamente. O rap e o 
disc jockeying continuam ganhando força em âmbito nacional, mas 
passam a ter melhor aceitação; ao mesmo tempo, surge um ritmo 
- 365 - 
novo, derivado do Miami bass (subgênero do hip-hop ligado ao eletro 
funk estadunidense), um gênero musical genuinamente brasileiro é 
criado no Rio de Janeiro: o funk (que não guarda relação direta ou 
semelhança com o funk estadunidense). 
O funk carioca (também conhecido como Brazilian funk) não é 
amplamente aceito popularmente e gera desentendimento até 
mesmo dentro dos representantes do hip-hop brasileiro. Por ter uma 
batida festiva e descontraída – e, portanto, muito distinta do rap –, 
muitos afirmam que em nada há relação entre o funk e o rap ou o 
hip-hop. De outro lado, há quem afirma que o funk é gênero musical 
do hip-hop, sendo o único hip-hop puramente brasileiro (sendo que 
rap, grafite, break e DJ foram importados). 
Na década atual – 2010 –, ambos os gêneros musicais do 
hip-hop (o rap, em conjunto com o DJ, e o funk) dialogam bastante, 
em composições ou apresentações conjuntas. A maior semelhança 
entre eles é a aceitação pelo poder econômico, ainda que haja certa 
rejeição de parte da população (com maior e mais manifesta a 
rejeição ao funk). 
A importância da aceitação pelo poder econômico reflete 
diretamente nas produções artísticas dos gêneros. Enquanto o funk, 
na década de 2010, entra na sua fase "funk ostentação" (semelhante 
ao que ocorre com o rap nos Estados Unidos na década anterior), o 
- 366 - 
rap continua se aprofundando nas temáticas de afirmação social e 
pessoal, reconhecimento histórico e empoderamento dos negros, 
mas conta com superproduções, investimentos mais rentáveis e o 
aparecimento (dentro do cenário brasileiro) de subgêneros como o 
love rap. 
Certamente, os artistas que contam com essas recentes 
vantagens econômicas (mesmo com origem humilde ou paupérrima), 
bem como os que se destacam nos subgêneros menos ligados à 
tradição do discurso de luta, são alvos de duras críticas de parte dos 
integrantes ou consumidores de vertentes mais ligadas à origem 
"fora da lei". 
Entretanto, até os dias presentes, o hip-hop brasileiro não se 
desvincula de sua origem. 
Convidado por um portal de notícias online, rapper brasileiro 
Emicida foi ao Bronx para assistir à pré-estreia da série The Get 
Down, com o elenco original, e comentou, em emocionada reação ao 
final: 
 
Achei um arregaço. Uma parada bonita. Foi foda 
porque mesmo sendo uma história original dos 
EUA, a quebrada é tudo igual. Favela é tudo igual. 
Ver como nossos pais tiravam uma onda na disco, 
ver como isso nasceu ali e depois se transformou 
no hip-hop e como isso se espalhou no mundo e 
virou essa cultura foda que deu origem a nós 
todos. 
- 367 - 
 
O músico também destacou que, num ano em que não houve 
nenhuma indicação de atriz ou ator negros ao Oscar, todos os atores 
e artistas negros estadunidenses que participaram do evento foram 
pronta e intensamente ovacionados. Infelizmente, a mídia brasileira 
– em sua maior e mais influente parte – segue a linha demonstrada 
no Oscar, ao invés da linha do público de The Get Down, e o faz 
sistemática, contínua e permanentemente. 
 
A Representatividade do Negro Brasileiro na Grande Mídia 
Parte-se de duas premissas: a primeira, de que não há 
possibilidade de analisar ou verificar, ainda que brevemente, a 
condição do negro brasileiro na mídia sem abordar a caracterização 
das relações raciais no Brasil; a segunda, de que tais relações atuais 
não podem ser realmente verificadas sem abordar a construção 
histórica da sociedade brasileira (OLIVEIRA, 2011, pp. 26-27). 
A exclusão do negro e das pessoas econômica e socialmente 
desfavorecidas não é mero acidente histórico, mas um projeto de 
nação gerado pelos poderes dominantes a partir do final do século 
XIX. 
O projeto de branqueamento e exaltação do homem branco 
europeu – em detrimento do povo originário das Américas ou 
trazidos à revelia da África – iniciou-se com as massivas imigrações a 
- 368 - 
partir da década de 1850 (RIBEIRO, 2006, p. 222). Tal projeto, 
compreendendo um plano estatal estruturado na sociedade 
brasileira, transformou-se em política de governo, abertamente 
declarando a necessidade de um embranquecimento da população 
para melhor qualidade dos trabalhadores industriais, obedecendo a 
um "critério étnico" (VARGAS, 2011, p. 287). 
Assim, sendo intencionalmente afastada – no imaginário 
popular – a possibilidade de negros serem expoentes intelectuais ou 
econômicos, relegam-se a eles áreas como música e esportes, além 
os trabalhos braçais (OLIVEIRA, 2011, p. 31). 
A mídia brasileira (que é controlada pelos detentores do 
poder econômico) tem o condão de reproduzir um imaginário e 
induzir comportamentos padrões que deixam de questionar os 
privilégios, a manutenção do status quo e afastam a conscientização 
histórica-social de cada grupo de indivíduos. 
Nas palavras de Denis de Oliveira 
 
A mídia hegemônica é uma etnomídia, pois 
propaga valores referenciais de uma determinada 
tipologia humana e é centrada na branquitude 
normativa. Negros, negras e seus descendentes 
são colocados na perspectiva de um desvio e, 
portanto, segregados simbolicamente em 
determinados espaços, cujas competências 
associadas à caracterização como minoria, 
sensualidade extremada e objeto de satisfação. 
Apesar de as revistas de comportamento não 
- 369 - 
negativarem sempre tais valores – nas revistas 
masculinas eróticas, a objetificação sexual 
extremada é até valorizada –, a cristalização 
destes consolida a supremacia dos valores brancos 
como referenciais de poder nas estruturas sociais. 
Concedendo um espaço insignificante 
para os afrodescendentes – inferior, até mesmo, 
ao dos EUA, país com percentual de negros três 
vezes inferior ao do Brasil –, a mídia cria uma 
paisagem estética branca, com pinceladas de 
participação negra em determinadas situações, 
nas quais o negro sempre aparece como algo 
exótico e voltado para satisfação da curiosidade 
ou do desejo sexual diferente. 
Colocada nesses termos, a sociedade de 
consumo construída pela mídia permite a 
pequena participação de negros e negras como 
objetos de consumo – sexuais ou folclóricos. 
Assim, a transfiguração de que fala Ianni (2003), 
da sociedade em mercado, não transforma o 
cidadão negro em consumidor negro – isto está 
reservado ao branco –, mas sim em objeto de 
consumo; este é o lugar do negro na sociedade 
de consumo na reconstrução social operada pela 
mídia. 
Diante disso, as pequenas concessões de 
espaço aos negros e negras nas revistas 
segmentadas não significam uma redução do 
preconceito racial, mas sim um deslocamento 
deste, com a criação de bantustões simbólicos 
formados por processos de objetificação (grifos 
não originais) (OLIVEIRA, 2011, pp. 39-40) 
 
O hip-hop, a partir de seu expansionismo nacional e de um 
aumento do poder econômico (através de alguns poucos de seus 
representantes), tem o papel da transformação real desse cenário 
- 370 - 
operado pela grande mídia. Ele [hip-hop] permite ao negro falar por 
si próprio, gerando forte empoderamento e criando nos demais 
negros – que consomem a cultura do hip-hop – conscientização sobre 
si e sobre suas origens. 
 
Emicida e África: busca por história e tradições 
Em 2015, o rapper Emicida foi ao continente africano buscar 
inspiração e gravar seu mais recente álbum, "Sobre crianças, quadris, 
pesadelos e lições de casa…", cujos temas são o preconceito racial 
velado, a exaltação da cultura negra e o reavivamento da influência 
direta do continente africado nesta cultura. 
A primeira música revelada do álbum, "Boa Esperança" – 
irônico nome de um dos maiores navios negreiros português na 
época da colônia –, trazem sua letra uma condensação perfeita da 
origem histórica, da tomada de consciência e da hipocrisia dos 
detentores do poder econômico e da grande mídia. Há uma mistura 
de referências diretas a temas debatidos contemporaneamente à 
época da música, temas recorrentes, conexões históricas com o 
presente, reivindicações e revoltas, bem como as possíveis 
consequências da repressão histórica. 
A música – tal qual seu vídeo lançado em conjunto – aborda 
questões atuais, com reflexão sobre a construção histórica, 
- 371 - 
reforçando a conscientização, autoafirmação, contestação ao sistema 
padrão, características típicas do hip-hop, mas que apresentam um 
reflexo da época em que é produzida (RABASSALLO, 2015-1). 
Atualmente, as questões – e principalmente a conscientização 
e a representatividade – sociais trazidas pelo hip-hop ainda carecem 
de intenso debate, que deve envolver um maior número de pessoas. 
 
Sobre Crianças, Quadris, Pesadelos e Lições de 
Casa é, sobretudo, um disco pop, mas, nem por 
isso, abandona a mais importante premissa do 
hip-hop: contestação. O registro traz, embalados 
em uma roupagem sonora de fácil digestão, temas 
pouco discutidos no Brasil – como, por exemplo, a 
escravidão e o ranço que esse período tenebroso 
nas relações deixou nas relações sociais do país. O 
racismo velado que assola a população negra, os 
preconceitos enfrentados pelos participantes de 
religiões afro-brasileiras e as dificuldades 
enfrentadas diariamente pelos trabalhadores 
brasileiros (RABASSALLO, 2015-2) 
 
Esse álbum é um exemplo – dentre muitos – da forma como o 
hip-hop pode resgatar um orgulho histórico, mantendo seu poder de 
contestação, gerando uma representatividade do negro por si 
próprio, forçando-se dentro da grande mídia (contando a própria 
história) ou ignorando a mídia tradicional ao adentrar em outros 
meios de comunicação. 
 
- 372 - 
De Angela Davis e Lelia Gonzalez à Karol Conka e a Mulher Negra 
Brasileira na atualidade 
Ainda relacionando o reflexo do ativismo negro nos Estados 
Unidos (EEUU) no Brasil, vemos frutos do ativismo de Angela Davis 
nos EEUU e de Lélia Gonzalez no Brasil, no que se refere a 
representatividade da mulher negra na mídia brasileira, quando 
avaliamos a participação de Karol Conka na abertura das Olimpíadas 
de 2016 no Rio de Janeiro. 
Mesmo havendo majoritariamente uma população feminina 
negra no Brasil, é facilmente percebido que mídias direcionadas ao 
público feminino relega ínfimo espaço à mulher negra – o qual 
comumente é seguido de adjetivos desviando a atenção da essência 
do "belo", sendo estampada como exótica ou mais sensual que a 
mulher branca. Notamos esta restrição de espaço quando apenas em 
2011, a Revista Vogue Brasil, voltada ao público feminino da "alta 
sociedade", publica a primeira revista com uma mulher negra 
brasileira sozinha em sua capa – Emanuela de Paula – ainda assim, 
possuindo cabelos lisos (MARQUES, 2014). Anteriormente, houve 
apenas publicações de Naomi Campbell, replicando o modelo da 
revista europeu e americano. 
Em contrapartida ao lamentável percentual de participação da 
mulher negra no nicho representado acima, deve-se atentar ao ritmo 
- 373 - 
crescente na representatividade da mulher negra no hip-hop e rap 
brasileiro, direcionado ao empoderamento feminino e enaltecimento 
da cultura e fenótipo negro, reduzindo a objetificação e machismo 
iminente nas anteriores aparições de mulheres negras na música 
brasileira. 
Citamos como participantes deste movimento, possuindo tais 
prismas em comum e com maior visibilidade na veiculação de suas 
produções a própria Karol Conka anteriormente comentada, Negra Li, 
Yzalu, Ellen Oléria, Drik Barbosa, Tássia Reis, Flora Matos, Nega Gizza. 
Tal participação não só eleva a autoestima e 
representatividade da mulher negra, mas hinos de resistência e 
ativismo negro são criados. Abaixo citações que explicitam tal 
afirmação: 
 
Herdeira dos meus ancestrais, 
Cultivando a paz, que o verde me traz 
[...] 
Espalho minha mensagem e nada mais 
Você parece que esquece que eu não uso estepe 
Meu poder é black. 
Te provo tudo isso no rap 
 (CONKA 2013) 
 
A mocinha quer saber por que ainda ninguém lhe 
quer 
Se é porque a pele é preta ou se ainda não virou 
mulher 
Ela procura entender porque essa desilusão 
Pois quando alisa o seu cabelo não vê a solução 
- 374 - 
 (CONKA 2014) 
 
Alma negra, pura e verdadeira 
Luta guerrilheira, classe tão sofrida 
Discriminação 
Desumana, verbal crise, sem convite 
Me convide 
Não hesite! não hesite! 
 [...] 
Foi eu que cresci e ouvi 
Que o preto não tem vez 
 (YZALÚ) 
 
Novamente, observa-se o hip-hop como veículo auxiliar no 
ativismo e representatividade de um grupo desfavorecido pela elite 
dominante. Desta vez duplamente discriminado, pelo machismo e 
racismo, como cita a rapper Yzalú na letra de sua música Mulheres 
Negras " Enquanto mulheres convencionais lutam contra o 
machismo, as negras duelam pra vencer o machismo, o preconceito, 
o racismo". 
 
Considerações finais 
O hip-hop, por mais que represente uma influência 
estrangeira, traz consigo uma história de luta e autoafirmação. Assim, 
após sua plena integração à cultura brasileira, o hip-hop possui um 
papel essencial ao povo negro: reconhecimento de si e da sua 
história, conscientização, empoderamento e o imaginário para uma 
transformação. 
- 375 - 
Faz-se com que o próprio negro escreva e conteste sua 
realidade e sua história, buscando um futuro melhor para um imenso 
grupo de pessoas. Há importantíssima função, também, para as 
mulheres negras, especificamente, pois elas tomam grande espaço 
de representação e, por falarem por si, retiram os estigmas e 
objetificação que lhes foram impostos. 
 
- 376 - 
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