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13 1 INTRODUÇÃO O presente estudo tem como tema o desencarceramento. O sujeito central é o homem que, após ter cumprido pena judicial, deixa, oficialmente, o sistema prisional, mais especificamente as penitenciárias, ou seja, homens que foram julgados e condenados pela justiça brasileira, cumpriram pena em regime fechado35 nas prisões do estado de São Paulo, Brasil, e que saíram legalmente da prisão. Parto do pressuposto de que o desencarceramento estabelece uma limiaridade: os sujeitos ex-presos oscilam entre o que se fixou neles a partir da experiência prisional e o que pretendem ser após essa experiência no sentido de superá-la. Essa oscilação estabelece uma fronteira entre o que se foi e o que se pretende ser, e acarreta em várias possibilidades que podem se concretizar, a depender da força exercida no sujeito por um lado ou por outro dessa fronteira. À objetividade do encarceramento, a partir do cumprimento de uma pena judicial no sistema prisional, foram acrescidos, para fins de análise, os aspectos simbólicos do regime disciplinar de sujeição estabelecidos nas prisões, visando a avaliar seus efeitos nos sujeitos libertos. O conceito de desencarceramento, aqui usado em lugar de liberdade, deve ser entendido como um processo, em etapas não propriamente previsíveis, mas dependentes das ressignificações, dos vínculos e das condições objetivas de vida que os sujeitos mantêm após o cárcere, capazes de auxiliá-los na superação ou no reforço da fixação, se houver, da experiência carcerária. O objetivo principal desse estudo é analisar o desencarceramento como um processo que apenas se inicia a partir da abertura dos portões da prisão, mas que não se efetiva integralmente nesse momento. Supus previamente a fixação nos sujeitos – que saem das prisões – de alguns elementos das técnicas disciplinares do cárcere e do código de ética estabelecido entre os presos. Essa fixação foi investigada no sentido de perceber como se dá e o seu impacto nas relações e nas tentativas de emancipação desses sujeitos ao saírem da prisão. Especificamente esse estudo visa a analisar, a partir da ocorrência de elementos da experiência prisional nos sujeitos, a readaptação na família e no meio social mais próximo; a 35 A Lei de Execução Penal – LEP – estabelece e conceitua os estabelecimentos prisionais por tipo de regime de execução da pena: O regime fechado (art. 87) é caracterizado por uma maior limitação das atividades dos presos e maior controle e vigilância sobre os mesmos, o que conduz a classificação do regime penitenciário; o regime semi-aberto e o aberto são aqueles cujas penas são cumpridas, respectivamente, parcialmente e totalmente fora das penitenciárias. Apesar de três regimes, os ex-presos entrevistados são homens oriundos do sistema fechado, mesmo que, posteriormente, tenham passado ao semi-aberto para obterem a liberdade, entretanto, nenhum deles foi condenado diretamente ao regime semi-aberto ou ao aberto. 14 presença de aspectos referentes ao isolamento, à vigilância e ao controle exercido pelas prisões, no comportamento dos sujeitos; a mediação desses aspectos nas relações sociais que mantêm após o aprisionamento. Por fim, visa também a compreender o processo de estigmatização do ponto de vista do sujeito estigmatizado e as suas tentativas de superação. Defendo a tese de que o mais drástico na saída da prisão é a vivência pelos sujeitos da oscilação entre o passado e o presente, isto é, entre os papéis sociais e seus respectivos códigos de ética de coexistência mútua, quais sejam: valores e padrões de comportamento particulares da identidade do preso, oriundos das técnicas disciplinares a que foram sujeitados e os valores e os padrões sociais, morais e éticos estabelecidos pela sociedade em geral que encontraram ao saírem. Os sujeitos que saem das prisões, com todas as dificuldades que tal coexistência impõe, muito mais do que a sociedade conhece a credita, tentam e iniciam processos de reestruturação identitária em que buscam se reconstruir a partir da re- significação, ou do controle daquilo que trazem da prisão. A idéia de que há possibilidades de emancipação após a superação das seqüelas do cárcere e de que essas possibilidades podem ser aproveitadas por políticas de apoio aos ex- presos, emergiu da minha comunicação por carta, com vários presos, alguns em fase de saída do encarceramento, ocasião em que expunham seus planos e seus projetos. Ao mesmo tempo em que projetam um futuro, esses sujeitos expõem seus receios quanto às dificuldades a serem vividas no mundo externo à prisão. Esses planos e projetos parecem dependentes diretos da capacidade de reconstruir vínculos e de se readaptar ao meio social externo à prisão, entretanto, a superação da experiência carcerária não é um elemento facilitador para a vida fora da prisão. Alguns dos sujeitos com os quais me correspondi já acusavam uma certa despotencialização para ações que os levassem à emancipação da condição de criminoso, prevendo o estigma sobre a sua futura condição de ex-presidiário. Este estigma, as dificuldades com a família, o difícil retorno ao mesmo meio de onde saíram para prisão, eram aspectos citados como possíveis dificultadores dos planos de futuro. Ainda que tais dificuldades fossem previstas pelos próprios presos, não abrangiam a totalidade da presença do cárcere em suas vidas, o que já se fazia notar nas cartas quando demonstravam modos de conduta, juízos e valores eminentemente oriundos do cárcere, provenientes do isolamento sofrido, da vigilância exacerbada, do controle contínuo ou do código de ética relacional dos presos. Alguns desses planos de futuro eram influenciados por essa forma de conduta carcerária: a megalomania, a urgência na obtenção de resultados financeiros e de poder na consecução dos planos, o autoritarismo nos procedimentos previstos, a desconfiança dos 15 possíveis parceiros, as preferências por empreendimentos solitários, as intransigências quanto às regras que estabeleceriam para o alcance do que planejavam, foram alguns dos aspectos notados coletivamente que refletiam a influência da conduta carcerária. A partir da observação da forte influência do cárcere nos planos de futuro, defini o problema de pesquisa partindo da seguinte indagação: Quando o ex-preso deixará de ser ex- preso?. Essa questão nasceu a partir das considerações de Foucault (1989) de que o fracasso do sistema penitenciário na redução da criminalidade foi substituído pelo sucesso de produzir a delinqüência. Ainda com base nos pressupostos de Foucault (1989;1990) passamos a indagar sobre a identidade de ex-preso como sendo aquela também influenciada e, portanto, conseqüente do poder disciplinar exercido nas prisões. As técnicas de isolamento, de vigilância e de controle contínuo das ações, e o código relacional entre os presos são elementos que se fixam no sujeito como um saber instituído, capaz de mediar as relações do ex-preso com o mundo externo à prisão. Segundo Foucault (1989; 1990), nas instituições punitivas são aplicadas técnicas de vigilância e sanções reguladoras e normatizadoras das condutas sobre os corpos com base no poder disciplinar, instituído também a partir da organização panóptica das prisões. O condenado submete-se a uma complexa tecnologia disciplinar com intuito de requalificá-lo. A requalificação articula-se com o judiciário, mas não se esgota nele, pois se constitui de outros recursos e de técnicas embasadas em um saber penitenciário pelo qual define-se e qualifica-se o delinqüente. Dessa forma, a condenação é um ato dentro dos autos e a prisão é uma vida para o réu. A margem pela qual a prisão excede a detenção é preenchida de fato por técnicas do tipo disciplinar. E esse suplemento disciplinar em relação ao jurídico, é o que se chama “penitenciário”(1989, p.221). Assim, a prisão, para Focault, “não é elemento endógeno no sistema penal” (1989, p.226)., é a expressão do poder disciplinar moderno. O penitenciário, construído e instituído em simultaneidade com a prisão, transforma, através do seu poder disciplinar, o infrator que recebeu das mãos da justiça em delinqüente. O aparelho penitenciário devolve à justiça o delinqüente concreto e pensado, acrescido dos critérios de sua definição e classificação e a justiça fica “agradecida por isso”. Ainda para Foucault: Mas isso implica em que o aparelho penitenciário, com todo o programa tecnológico de que é acompanhado, efetue na curiosa substituição: das mãos da justiça ele recebe um condenado; mas aquilo sobre que ele deve ser aplicado, não é a infração, é claro, nem mesmo exatamente o infrator, mas o objeto um pouco diferente, e definido por variáveis que pelo menos no inicio não foram levadas em conta na sentença, pois só eram pertinentes para uma tecnologia corretiva. Esse outro personagem que o aparelho penitenciário coloca no lugar do infrator condenado é o delinqüente. (1989, p. 223). 16 A prisão é o espaço disciplinar combinado e desigual do homem moderno. Para Focault (1989, p.244), o processo disciplinar desenvolvido no espaço prisional é um fracasso desde a sua origem, entretanto, esse fracasso é, ao mesmo tempo, o seu sucesso. Concordo com uma hipótese recorrente na literatura que indica que “respostas institucionais a comportamentos desviantes resultam na elaboração de identidades e carreiras criminosas”36. Uma outra hipótese que se configura com base em Foucault (1989) é que nas penitenciárias as penas serão moduladas temporalmente a ponto de controlar o penitenciário no decorrer do seu processo de aprisionamento. O crime praticado perde intensidade diante da pena a ser cumprida e esta assume caráter de utilidade pública, uma vez que simboliza a recuperação imposta pela sociedade e pela lei, passando a ser um resíduo moral da punição. Assim, segundo Foucault (1990), a pena visa a atingir não só o corpo, mas a mente do condenado. Esse entendimento estabelece uma relação com o processo de desencarceramento à medida que se considera um processo que pode levar a uma (re) construção identitária a partir da (re) constituição da condição humana, desestruturada pelo aprisionamento e que propiciou a identidade de preso. A reconstrução identitária se estabelece no espaço social e privado, mediadas pela experiência prisional que a faz oscilar em uma balança aonde se é o que se foi antes de ser preso, mas também se é ainda encarcerado. Sendo assim, parto do pressuposto de Foucault de que o encarceramento torna-se competente para revelar ao corpo social quem será o criminoso habitual, não só pelo estigma da passagem pela prisão, mas pela incorporação nos sujeitos dos seus valores e códigos normativos. Norteou esse estudo a compreensão de que os homens subordinados a regimes que intervêm na condição humana passam por um processo de produção de cadáveres vivos, por serem despojados da sua própria individualidade, tornando-se, assim, homens completamente supérfluos. Ainda assim, acredito na superação de tal situação pelo possível resgate da condição humana desses sujeitos, ou seja, pela possibilidade de eles se reintegrarem à ordem social mais ampla a partir da ressignificação da sua experiência. A fala sobre o vivido pode ser o caminho para simbolizar e criticar reflexivamente a experiência prisional e a partir disso superá-la. É necessário que os sujeitos reconheçam o que o aprisionamento fixou nas suas identidades para que possam reestruturá-las. O primeiro passo desse processo será a vivência de uma zona de fronteira entre o cárcere e o mundo fora da prisão no que tange à total despotencialização do primeiro, diante da necessária potencialização de ação do segundo espaço. As possibilidades emancipatórias 36 ADORNO, Sérgio. A prisão sobre a ótica dos seus protagonistas: itinerário de uma pesquisa. In: Revista de Sociologia da USP, São Paulo, n. 3, v. 1-2, p.7-40, 1991. 17 dos sujeitos, após a experiência do cárcere, dão-se após os ex-encarcerados transporem essa fronteira. Dessa forma, constituiu o problema dessa pesquisa indagar sobre as possibilidades emancipatórias após a experiência do encarceramento, partindo do princípio de que emancipação nesse sentido seria a superação da condição de ex-preso, mesmo que tal emancipação dê-se a partir dessa experiência ou da consideração de tal vivência. Importante salientar que um fator primordial na análise das possibilidades emancipatórias diz respeito à forma como esses homens se percebem e percebem as heranças que trazem do cárcere. Já na primeira fase de prospecção, para definição do problema de pesquisa, constato que alguns, mesmo após o cárcere, estabelecem seus vínculos a partir dele, reforçando o que trazem de singular da experiência carcerária: o chamar um ao outro de ladrão, por exemplo, como forma de tratamento comum, o uso das gírias do cárcere e de alguns princípios do código de ética carcerário. Vivem na fronteira da coexistência entre dois papéis, o de preso e de homem livre, mas com sua liberdade mediada pelas heranças dos hábitos, dos costumes e dos traumas da experiência prisional ou pelo aspecto negativo e estigmatizante que tal experiência representa para a sociedade em geral. Os ex-presos singularizam-se de outros homens pobres livres? Penso que sim, por considerar como sua singularidade apresentarem um código de ética, valores e formas de compreensão de mundo, próprios da criminalidade, acentuados no cárcere e difusos na situação de fronteira estabelecida na saída do cárcere. Isto significa uma situação através da qual esses homens transitam entre duas áreas de sociabilidade, cada uma com padrões distintos de comportamento e de ação: a prisão e o mundo fora dela, não exatamente o seu meio social apenas. O peso da sociabilidade carcerária, hipoteticamente nesse estudo, é trazido para fora do cárcere, o que pode afetar a reconstituição de relações formais de trabalho, de lazer, de família, de amizades, etc., vínculos necessários para potencializar a emancipação. Julgamos necessário cercar alguns aspectos do fenômeno de desencarceramento para a melhor promoção da sua análise. Em primeiro lugar, partimos da opção de tratarmos desse processo a partir de conceitos de liberdade como possibilidades e não como autodeterminação ou autocausalidade, portanto, com a ausência de condições e de limites. A liberdade é entendida como possibilidade, limitada e condicionada, um problema aberto, “determinada a medida, a condição ou a modalidade de escolha que garanti-la”. Livre é quem possui determinadas possibilidades. Essa escolha é limitada em um sentido pelas possibilidades objetivas, pelas condições materiais de vida. Segundo Abbagnano: 18 Hoje, assim como nos tempos em que a noção de mundo moderno foi formulada pela primeira vez, a liberdade é uma questão de medida, de condições e de limites; e isso em qualquer campo, desde o metafísico e psicológico, até o econômico e o político. Hoje se destaca o fato de que a liberdade humana é situada e enquadrada no real, uma liberdade sob condição, uma liberdade relativa [...] Expressa-se por vezes esse conceito dizendo que a liberdade não é uma escolha, mas uma possibilidade de escolha, ou seja uma escolha que se feita, poderá ser sempre repetida em determinada situação [...]. Portanto os problemas da liberdade no mundo moderno não podem ser resolvidos por fórmulas simples ou totalitárias [...], mas pelo estudo dos limites e das condições que, num campo e numa situação determinada podem tornar efetiva e eficaz a possibilidade de escolha do homem. (1998, p. 612).A liberdade, portanto, não se constitui simplesmente na abertura dos portões das prisões, mas é um processo, uma luta a ser travada no decorrer do desencarceramento, uma luta intersubjetiva e político-social. Pressuponho que o sistema e o regime penitenciário promovem a estigmatização dos seus tutelados, o que de certa forma promove a manutenção do sistema, criando, assim, uma improdutividade produtiva que impacta na real liberdade dos sujeitos que saem das prisões. O ex-preso deveria ser considerado pela sociedade como sujeito regenerado, ou seja, aquele que foi capaz de reproduzir-se positivamente a partir da consideração de uma forma anterior, negativa e ofensiva a sociedade em geral. Tal reprodução positiva, regenerativa, deveria, por sua vez, ser a contribuição do objetivo social das instituições prisionais à sociedade em geral, a partir do uso, pelas mesmas, de técnicas disciplinares de correção e sujeição. Ao termo “regeneração” associam-se outros como correção, reabilitação, ressocialização. A regeneração seria o processo esperado do degenerado, do corrompido, daquele que perdeu qualidades e, portanto, se estragou. Entretanto, o significado do termo37 também considera a regeneração como deformação, o que seria uma regeneração negativa, uma correção às avessas. A regeneração negativa (que de fato é a imagem passada a sociedade pela pedagogia prisional) é também responsável pelo sentimento de medo e de insegurança demonstrados em relação aos homens que saem das prisões. Na saída, esses sujeitos sofrem estigmatização social mais pela punição sofrida do que mesmo pela natureza dos seus atos, esses últimos quase sempre pressupostos a partir da punição. Assim, ao se considerar a falência do sistema prisional no Brasil, principalmente divulgada pela mídia, a sociedade desconfia da regeneração ou da ressocialização promovida pela instituição prisional, estigmatiza os ex-presos pela condição de ex-integrante de um sistema punitivo que reforça 37 MICHAELIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998. p. 1802. 19 um comportamento criminoso, reconhecida pelos próprios presos como a “faculdade do crime”. Segundo Dubar (2005, p.120), a socialização pode ser entendida remetendo-se a Alfred Shutz, “antes de tudo pela imersão dos indivíduos no que ele denomina de ‘mundo vivido’ que é ao mesmo tempo um ‘universo simbólico e cultural’ e um saber sobre esse mundo” . Nesse sentido posso considerar, ainda, com base na interpretação de Dubar que, os ex-presidiários absorvem o mundo social da prisão “não como um universo possível, entre outros, mas como o mundo, o único mundo existente e concebível, o mundo tout court”. Relativizei, na análise de Dubar sobre a socialização, o entendimento do mundo vivido não como único no caso dos presos, mas como o de mais forte referência durante a prisão e depois dela. Pode estar aí o sucesso/fracasso das instituições prisionais, visto que, ao punirem o sujeito, essas instituições fazem com que internalizem hábitos e comportamentos que os leva a se sentirem inadequados para a sociedade em geral. A assimilação da realidade prisional pelos encarcerados e, conseqüentemente, a manutenção desse universo simbólico e cultural pelos que saem das prisões pode ser pressuposta, também, a partir da consideração de que as técnicas disciplinares do isolamento, da vigilância e do controle, além do código de convivência entre os presos, molda essa realidade prisional nos sujeitos. Essa plasticidade na assimilação dos códigos prisionais pelos presos e, conseqüentemente, pelos ex-presos não pode ser explicada apenas pela maleabilidade natural dos sujeitos, mas também por razão do poder disciplinar estruturar um saber e incorporá-lo no sujeito. Temos que considerar que a permanência desses sujeitos na prisão depende, fundamentalmente, do grau de tolerância e do pertencimento àquela sociedade. A demonstração da aprendizagem sobre as regras dos jogos ali instituídos leva a tal pertencimento. A prisão exprime sua realidade punitiva, disciplinar, regulatória, por intermédio dos indivíduos que viveram tal experiência. Tal qual o poder disciplinar que regula o tradicional mundo do trabalho da família, da escola e da igreja, a disciplina prisional punitiva torna o sujeito dócil-útil. Mais do que as demais instituições citadas, que progrediram para outras esferas de articulação do poder e da disciplina, o arcaísmo das instituições prisionais, no Brasil e no mundo, ainda atuam sobre a disciplina que sujeita o corpo e a mente dos sujeitos com base em técnicas tradicionais, pouco articuladas com o mundo da informação, da virtualidade, da participação. Também a disciplina prisional tem como peculiaridade imprimir nos sujeitos valores, idéias e juízos que embasam um código de ética próprio, um modo de agir e de pensar daqueles que atuam na contramão da ordem, no mundo do crime. Assim, 20 entendo estruturar-se um sujeito acostumado a pensar a relação com o outro pela dualidade própria do processo punitivo carcerário: o bem contra o mal, o valorizado e o punido, o merecedor da vida e o da morte. O pertencimento ao universo prisional e, conseqüentemente, a incorporação de aspectos da sua realidade pode tornar instável o pertencimento dos sujeitos que saem das prisões na realidade social externa ao cárcere. Essa zona de fronteira pode acarretar o que Dubar (2005, p.135) considera “A divisão interna da identidade”, que, para o autor, estabelece uma dualidade: “identidade para si e identidade para o outro são ao mesmo tempo inseparáveis e ligadas de maneira problemática.” Um aspecto fundamental para esse estudo na discussão de Dubar sobre ressocialização diz respeito à consideração de que se conta com as comunicações existentes para informar sobre a identidade que o outro nos atribui, o que referenda a necessidade da audição dos sujeitos como forma de, mais do que entender as suas trajetórias, fazê-los entender e interpretar. Segundo Becker (1971, p.36), não é somente a transgressão, mas também, e sobretudo, a rotulação pelos outros que constitui o desvio. A identidade de ex-presidiário, considerado como um delinqüente habitual a partir da sua experiência prisional, é resultado das atribuições estigmatizantes e reforçada pela subcultura do grupo desviante. Desse ponto de vista, Becker e Foucault se aproximam no sentido de entenderem que do desvio cometido pelo infrator e da sua conseqüente prisão, nasce o seu status principal de delinqüente. Esse status é aquele pelo qual o sujeito é definido, e pior, pelo qual ele próprio, muitas vezes, se define ativamente, ou seja, esse status que lhe é conferido pode se estabelecer no seu modo de pensar e de agir, fazendo com que seja um destino irrefutável à condição de ex-presidiário. A transformação do infrator em criminoso habitual pela prisão tem como causa certos padrões de comportamento das instituições de controle e de repressão da criminalidade contra esses sujeitos. Mingardi (1992), Paixão (1983) e Benevides (1983) demonstram, por exemplo, os preconceitos da polícia contra o ex-preso, o que faz com que, na maioria dos casos, a ação policial parta do criminoso para o crime. Assumo como verdade que a instituição prisional atribui uma identidade de delinqüente ao sujeito preso, entretanto, a mecânica interna dessa atribuição identitária interessa apenas indiretamente a esse estudo. O foco é a saída da prisão, tentando entender como os sujeitos, mesmo libertos fisicamente, ainda estão imbricados no sistema de ação prisional. Com referência a como se processa a mecânica do sistema de ação e a formação identitária dos presos dentro das prisões, Ramalho (1983) e Coelho (1987), entre outros, tratam da assimilação do código prisional pelos presos como fator determinante paraque a 21 pena seja cumprida sem grandes entraves. Assim sendo, o código de ética prisional teria a função de criar um padrão de comportamento desejável na prisão. Pesquisas nos anos setenta já haviam tratado exaustivamente a questão do cárcere através do diálogo com as teorias de Foucault. Descrições densas sobre o cárcere foram encontradas durante a expedição bibliográfica feita com base no intento da pesquisa. Nos levantamentos bibliográficos, ficou notório que, a partir dos depoimentos dos sujeitos aprisionados, foi tratada cientificamente a organização do sistema prisional brasileiro. Também nas pesquisas dos anos setenta, a partir de depoimentos de sujeitos encarcerados, tratou-se de conceitos fundamentais como controle, violência, disciplina, entre outros aspectos, pertinentes à organização carcerária. Tentando entender a extensão desse código de ética diante da situação de encarceramento, Sykes (1971) faz a diferença desses códigos a partir da distinção entre o ato de custodiar homens e a forma de aprisioná-los em uma penitenciária. Essa distinção entre o código de homens custodiados temporariamente e aqueles julgados e condenados a penas em regime fechado em penitenciárias é realizada com base em Foucault pelas características fundantes do ato punitivo nas penitenciárias. Já o trabalho de Bouro (1998) trata do papel dos familiares dos presos durante o aprisionamento, ressaltando o seu lugar também de vítimas nesse processo e observando suas ambigüidades no que tange à lida entre o universo da ordem e da desordem, essa última representada pela prisão e suas contravenções. As famílias atribuem aos seus entes presos o papel de “cabeças fracas” como justificativa para os atos criminosos praticados. A justiça brasileira também é vista como elitista, como indica Faria (1992), já que pune com privação da liberdade especialmente os mais pobres e negros, marcando, assim, o aspecto político do aprisionamento. Para Sá (1996), essa lógica transforma as prisões no Brasil em prisões dos excluídos. Também Sá (1996) discute a prisão do ponto de vista dos principais teóricos das ciências sociais e analisa as técnicas de controle, concluindo que o delinqüente é requalificado pelo envolvimento com os valores e os princípios próprios da delinqüência, constituídas nas relações sociais ocorridas nas prisões. A exclusão citada por Sá (1996) foi constatada na tese de Paschoal (1994) sobre loucura e crime do ponto de vista das instituições sociais, discutindo as precariedades da prisão, inclusive impactando ainda mais negativamente a condição de ex-presidiário. Para Paschoal, o problema está nas prisões manterem inalterados os seus princípios básicos e não diferenciarem os tratamentos estabelecidos. 22 A identidade assumida na prisão pode ser considerada, pelos termos de Goffman (1988), como sendo uma identidade social virtual pertencente à instituição. Ainda assim, com a saída da prisão há uma regulagem de parte da vida dos ex-presos pelo código de ética prisional, seja por eles próprios ou por terceiros como já citei. Considero que na saída da prisão os indivíduos passam a tentar uma reconstrução identitária que supere aquela que lhe foi atribuída pelo aprisionamento, atrelada à totalidade da sua trajetória de vida, de modo geral, o que Goffman (1988) considera identidade social real. O peso, ou melhor, a referência da identidade prisional no conjunto da trajetória de vida do sujeito depende da forma como os sujeitos ressignificam essa experiência, sendo essa ressignificação a responsável pelo sucesso ou pelo fracasso das suas tentativas de emancipação, aqui considerada como uma tentativa de reconstrução de uma identidade real, onde a identidade prisional é apenas uma parte. Acredito que os sujeitos que saem das prisões são capazes de criar estratégias objetivas que visem ao reprocessamento da experiência carcerária, superando a identidade de ex-preso. Considerei que essas tentativas de superação dão-se em etapas, como em uma seqüência de ritos de passagem. Sobre ritos de passagem foi consultado o trabalho de Azevedo (2000), que trata dos ritos em frente dos valores e das normas sociais. No que tange aos ritos de passagem, inclui a teoria de Field (1995) sobre elaboração de roteiros de cinema, tomando emprestado a concepção de pontos de virada (Plot Point). Da saída do estabelecimento penal à chegada em casa, o reencontro com a família, especialmente com a companheira, a rearticulação com o meio social mais próximo, o embate com o preconceito, a reincorporação das referências da cidade, os convites para reincidir, a reincidência em alguns casos, as tentativas de gerir planos e projetos e a percepção das mudanças, no comportamento cotidiano e no corpo, oriundas da prisão, fazem parte das etapas do rito de desencarceramento e se processam como pontos de virada: picos no desenrolar de uma ação dramática. Com base nesses pontos de virada foi analisado o trabalho de Brandão (1999) sobre Memória e projetos de vida, e o trabalho de Carelli (1997), intitulado Porões da memória, visando a contemplar a discussão de memória, já desenvolvida a partir de Michael Pollak (1992). O desencarceramento como processo que estabelece uma zona de fronteira entre o cárcere e o mundo externo à prisão pode culminar em possibilidades emancipatórias, portanto, é um processo que surge da dialética entre o indivíduo e a sociedade (BERGER; LUCKMAN, 1999). A dialética entre o indivíduo e a sociedade refere-se ao que Salem (1981, p.54) denomina de um processo contínuo de interiorização e exteriorização que caracteriza o indivíduo com o seu entorno. Pode também ser entendido pela noção que o Munné (1998, 23 p.91) tem de construção, “tanto um fenômeno objetivo, como subjetivo [...] um processo psicológico e social”. Na zona de fronteira, entre a saída da prisão e a total adaptação ao meio social externo a ela, o ex-presidiário pode estar vivendo um processo que Dubar, com base em Becker e em Goffman, chama de: [...] negociação identitária [...] um processo comunicativo complexo, irredutível a uma ‘rotulagem’ autoritária das identidades predefinidas com base nas trajetórias individuais. Ela implica em fazer da qualidade das relações com o outro um critério e um elemento importante da dinâmica das identidades. (2005, p.141). As pesquisas realizadas nos anos setenta e oitenta fixavam-se no cárcere. Nos anos noventa algumas já trazem elementos da saída da prisão com base em análises sobre exclusão social e preconceito. Não foi encontrado nenhum estudo que tratasse dos impactos do encarceramento na reconstrução das vidas dos sujeitos que saem das prisões. No decorrer desse estudo encontrei pesquisadores em campo com intuitos semelhantes. Essa pesquisa foi realizada entre 2002 e 2004 na cidade de São Paulo, por este estado ter a maior significância quantitativa de homens encarcerados em todo o Brasil. O tema pesquisado surgiu a partir de um projeto de apoio a ex-presos da Pastoral Carcerária de Salvador, Bahia, de cuja concepção e escrita participei como voluntário. Passei a avaliar as necessidades dos ex-encarcerados, tendo em vista não apenas assisti-los, como também potencializar, em primeiro lugar, a emancipação da condição identitária de criminoso e depois a condição de vítima do sistema prisional. Avaliando os projetos de apoio a ex-presos existentes no Brasil, percebi que se repetiam ações assistencialistas ou promotoras de ocupação e que acreditavam no efeito redentor do trabalho, seja ele qual fosse. Em nenhum deles foi encontrada preocupação com o resgate da autonomia dos sujeitos a partir de avaliação dos impactos gerados pelo encarceramento penal. O termo egresso38, quando aplicado à realidade prisional, pode ser entendido como aquele que deixou o estabelecimento criminal onde cumpriu a sua sentença, assim deixade ser um reeducando, termo usado pelas instituições penitenciárias e passa a ser um homem comum, livre. O uso desse termo é problemático por finalizar na saída aquilo que se foi. Outra questão complicada para o uso indistinto do termo egresso é denominar, uniformemente, todos aqueles que saem oficialmente das prisões, podendo ser considerados egressos, 38 O termo egresso pode ser encontrado em MICHAELLIS: moderno dicionário da língua portuguesa. São Paulo: Melhoramentos, 1998. p.766. 24 conforme a Lei de Execução Penal (1997, p.32) o liberado definitivo a contar de um ano a partir da saída do estabelecimento e o liberado condicional, durante o período da prova. Cabe ressaltar que, por mais que reste um tempo de pena a cumprir, podemos considerar também egressos aqueles que saem em Livramento Condicional, uma vez que esses sujeitos deixaram os estabelecimentos criminais e voltaram ao convívio social mais amplo, muito embora ainda tenham parte da suas penas a cumprir, o que deverá ser feito, conforme as regras e as normas previamente estabelecidas pela lei, sob o risco de imputação do retorno ao estabelecimento criminal em regime fechado, caso haja o descumprimento das normas legais. Já a liberdade definitiva é atribuída ao preso após o cumprimento do regime fechado, se for o caso, ou do semi-aberto, representando, portanto, a finalização da pena. Mesmo que esta seja a situação mais favorável no sentido do pleno cumprimento da pena, os casos de liberdade definitiva, obtidos diretamente do regime fechado, não são tão constantes quanto àqueles que saem migrando do regime fechado para o regime de liberdade condicional ou para o regime de prisão albergue domiciliar. Nem o termo egresso citado nos dicionários da língua portuguesa nem o utilizado no Código de Execução Penal satisfaz essa pesquisa. O primeiro por considerar a saída como desvínculo de uma situação anterior, e o segundo por considerar um prazo definido para ser egresso da prisão. Preferi optar por usar o termo “ex-preso”39, mais adequado para tratar de processo de desencarceramento que não se finaliza na abertura dos portões de saída e nem tão pouco tem prazo estipulado para terminar. Também preferi unificar a linguagem tratando das penitenciárias simplesmente como prisões, mas ressaltando que das prisões estão exclusas as delegacias, desde quando tratamos de presos julgados e condenados ao regime fechado, cumprido em penitenciárias. A metodologia utilizada foi a pesquisa qualitativa, através do método etnográfico, discutido mais amplamente no primeiro capítulo desse estudo. A partir das hipóteses iniciais, estruturei um roteiro de entrevistas e considerei como informantes homens, acima dos dezoito anos de idade, nascidos ou residentes no estado de São Paulo, processados criminalmente por práticas entendidas como delituosas à luz do direito penal do Estado, em qualquer tipologia criminal, privados de liberdade para cumprimento de pena via encarceramento em detenções40 e/ou em penitenciárias e em liberdade no momento de realização da pesquisa, dado o cumprimento parcial ou total das penas a que foram submetidos, por isso sem retorno 39 Grifo nosso. 40 Considero ex-presos de Detenções ou Centro de Detenção Provisória por ter encontrado muitos que, embora condenados judicialmente, cumpriram quase toda a sua pena em Casas de Detenção, local onde os presos deveriam ficar enquanto aguardassem julgamento. Essa realidade foi verificada em outros estados do Brasil. 25 oficialmente previsto para o sistema prisional, como regulam os benefícios da Legislação Penal. Excluíram-se deste estudo: presos em delegacias, presos em regime semi-aberto, homens acusados, mas ainda não sentenciados, menores de idade e mulheres em qualquer das situações acima mencionadas. Os entrevistados tinham em comum o fato de terem saído do encarceramento penal, através de Liberdade Definitiva, Liberdade Condicional – LC – ou Prisão Albergue Domiciliar – PAD, portanto, homens liberados formalmente pela justiça após cumprimento de penas em penitenciárias do Estado de São Paulo. A escolha de homens e não de mulheres deu-se por dois motivos, sendo o primeiro: os homens compõem a maioria do conjunto de presos do sistema penitenciário brasileiro e paulista, chegando a mais de noventa por cento dos presos em penitenciárias. O segundo motivo é que às mulheres presas, em sua maioria, são levadas ao cárcere por motivos diferentes daqueles que penalizam os homens: participações indiretas nos delitos, quase sempre associados à execução de seus companheiros, o que é comprovado por uma frase emblemática em quase todas nas prisões femininas: “o meu mal foi ter amado o homem errado”. Sendo assim, a articulação entre elas no cárcere tangencia a criminalidade de uma forma diferente da imposta pelo encarceramento masculino e isso supostamente gera efeitos diferenciados na saída. Ressalto também que o interesse desse estudo não era desenvolver uma análise comparativa entre o desencarceramento masculino e o feminino. O desencarceramento feminino deve gerar estudos específicos ou até comparativos com o dos homens. A partir da minha experiência de trabalho no cárcere, percebo a priori algumas singularidades do desencarceramento das mulheres, tais como: o resgate da tutela dos filhos, a forma peculiar de preconceito associado a condição de “mulher bandida”, o abandono dos companheiros desde a prisão, as possibilidades de emprego doméstico, a freqüência de casos de companheiros também presos, a ida à prisão mais como coadjuvante do que como protagonista da ação criminal, como já citado, além da dissociação de partidos e facções na prisão, entre outros aspectos que inibem a reincidência entre as mulheres ex-presas. Considerei também como informantes os homens que, mesmo ainda presos, informaram dos seus planos de futuro através de cartas, ex-presos de instituições de apoio, familiares, psicólogos, assistentes sociais entre outras pessoas envolvidas com a causa. Ao todo foram entrevistados setenta e dois ex-presos e mais vinte profissionais envolvidos com projetos de apoio, diretores de prisão, juízes, além de familiares de ex-presos. Desses, após as transcrições das fitas, alguns foram classificados como casos nucleares a depender do tema abordado. Dentre os ex-presos entrevistados encontramos a seguinte condição jurídica de 26 liberdade: homens em liberdade definitiva; em liberdade condicional e em Prisão Albergue Domiciliar (ver quadro Anexo A). Convém ressaltar que também foram entrevistados presos de outros estados, tendo em vista a estruturação de um grupo de controle comparativo entre as suas narrativas e as dos presos paulistas, tentando avaliar variações dos modos de vida depois do cárcere em cada local, o que seria ingrediente para uma outra pesquisa. Entrevistei um ex-preso da Região Sul, um da Região Nordeste, um da Região Norte e um da Região Centro Oeste. Avaliei que o processo de desencarceramento é extremamente semelhante, excetuando-se as acessibilidades ou as possibilidades de cada realidade local. Além das entrevistas com os ex-presos, também foram consultados seus processos criminais nas respectivas Varas de Execução Penal. A iniciativa de pesquisar os processos deu-se no sentido de ter acesso aos laudos de saída emitidos por psicólogos e por assistentes sociais. Também entrevistei os responsáveis por projetos de apoio a ex-presos do sistema prisional em São Paulo e no estado do Paraná, considerados projetos modelos. As instituições e projetos cujos responsáveis e profissionais técnicos entrevistados em São Paulo foram: • Pastoral Carcerária do Estado de São Paulo – CNBB Sul 1; • Projeto Clareou; • Fundação de Amparo ao Preso – FUNAP; • Secretariade Administração Penitenciária do Estado de São Paulo; • Coordenadoria de Estudos sobre o Sistema Penitenciário – COESP – já extinto; • Conselho Penitenciário de São Paulo. Foram também colhidas informações no Sistema de Ressocialização de Presos do Estado do Paraná, considerado modelo nacional, e já implantado em Londrina (com parceria com a Universidade Federal) e Maringá, além de Curitiba. Fora de São Paulo, foram as seguintes as instituições visitadas: • Conselho Penitenciário do Estado do Paraná; • Conselho Penitenciário de Londrina – PR; • Conselho Penitenciário de Maringá – PR. Ainda foram entrevistadas duas psicólogas da Funap; três assistentes sociais da extinta Coesp; uma voluntária que atuou por vinte anos na Casa de Detenção Flamínio Fávero, conhecida popularmente por Casa de Detenção do Carandiru; e dois responsáveis por uma cooperativa de trabalho para ex-presos. Além desses, entrevistei três diretores de 27 penitenciárias; o diretor geral e o diretor de disciplina da Penitenciária do Estado de São Paulo e o diretor de ressocialização da Penitenciária de Serra Azul – SP, localizada no município de Serra Azul – SP, e um estabelecimento inicialmente voltado a tutela de presos acima de cinqüenta anos de idade. Também foi entrevistada uma juíza de execução penal do estado de São Paulo. Sendo este um trabalho etnográfico, manteve-se uma aproximação com o campo, embasada na descoberta, tentando, assim, entender as atividades e o comportamento dos atores pesquisados, sem estratificações prévias. A preocupação básica foi interpretar a condição de vida dos sujeitos, depois do cárcere, avaliando como essa vida era vivida, sentida e experienciada. O campo trabalhado dividiu-se em três etapas complementares e sucessivas: a aproximação, o conhecimento e a exploração. Em primeiro lugar aproximei-me dos sujeitos; em segundo lugar fiz-me conhecido por meio do trabalho pastoral ou por meio das indicações em rede; em terceiro lugar passei a manter certa freqüência de relacionamento, a princípio por telefone e depois indo ao encontro de cada um deles em seus locais de moradia, quando obtive os dados de forma mais estruturada. As entrevistas foram realizadas na Pastoral Carcerária de São Paulo, nas casas dos ex-presos, nas ruas ou locais de circulação onde se dispuseram a me encontrar. Além dos entrevistados, outros contatados por telefone não participaram da pesquisa por motivos diversos: alguns não foram encontrados por terem mudado de endereço após a saída da prisão, outros ficaram de pensar na possibilidade de falar da sua experiência após a saída da prisão e não retornaram o contato ou negaram a participação. Também houve casos de demonstrarem desconfiança para com os interesses do estudo, além dos casos em que os contatados retornaram para a prisão, por motivo de reincidência, antes mesmo de concederem a entrevista. Em apenas um caso houve negativa agressiva e ameaçadora caso o contato fosse retomado. Dois já haviam morrido. As narrativas depois de transcritas sofreram um processo de categorização. Essas categorias foram agrupadas em macro categorias assim denominadas: a primeira, o campo – agregando valor às formas de chegada até esses sujeitos e suas compreensões sobre a pesquisa. Dentro dessa macro categoria, subdividimos algumas menores: a forma de encontro com o entrevistado, a acessibilidade, as condições ambientais, a receptividade, a fala e a escuta. A segunda macro categoria diz respeito à saída da prisão e à chegada em casa: aí se incluem as micro categorias relativas ao ritual de saída, a primeira impressão da rua, ao ritual de chegada em casa, ao apoio ou a falta de apoio das famílias e, finalmente, à relação com o meio social mais próximo. A terceira macro categoria diz respeito às heranças prisionais no 28 sujeito, compostas pelo segredo, pela linguagem, pelo vocabulário, pelas lembranças e sonhos, pelas marcas no corpo e pelos comportamentos. A quarta macro categoria diz respeito à estigmatização, composta por micro categorias quais sejam: o preconceito, o embate com a polícia, os convites para reincidência, a reincidência propriamente dita, a ressignificação da prisão e do crime praticado. A quinta e última macro categorização diz respeito aos planos e projetos de futuro, composta por: os planos que faziam ainda na prisão, a procura pelo trabalho formal ao saírem, as tentativas de emancipação pela arte e pela ação empreendedora. As narrativas foram analisadas através do diálogo com Pollak no sentido metodológico, e com Foucault no sentido da compreensão sobre as conseqüências do regime disciplinar para os homens que saem das prisões. A idéia da transformação do infrator em delinqüente pelo sistema penitenciário foi fundamental nesse estudo. Como método de interpretação foram utilizadas as teorias que tratam da memória, mas precisamente a que Pollak (1992) chama de memória construída, aqui denominada de ressignificação. Esse estudo se estrutura em cinco capítulos teses, além desta introdução, das referências e dos apêndices. No primeiro trato da contextualização do sistema penitenciário utilizando dados do último Censo Penitenciário do Estado de São Paulo, realizado em 2002 e das peculiaridades do campo de pesquisa. Os dados quantitativos referendam o volume do problema mencionado em número de homens envolvidos com ele e a importância de se ter mais estudos sobre a área prisional. A descrição do campo permite identificar como se deu a relação entre o pesquisador e os pesquisados, considerando-se o difícil acesso a esses sujeitos. A partir das considerações específicas do processo da pesquisa de campo já se pode avaliar o que denomino ao longo desse texto introdutório de presença do cárcere nos sujeitos e principalmente como se ordenaram as narrativas. No segundo capítulo trato das narrativas sobre a saída da prisão e sobre os primeiros estranhamentos e resgates, seja em casa, na família, com a mulher ou no seu meio social, entre amigos e vizinhos. Nesse capítulo discuto que a zona de fronteira entre o cárcere e a rua, estabelecida na saída da prisão, pode impactar as relações sociais dos ex-presos e assim a reestruturação da sua identidade após o cárcere. No terceiro capítulo descrevo aspectos da herança prisional presentes nos sujeitos e influenciadores das suas relações com os outros de maneira geral, também analisando a presença das conseqüências das técnicas disciplinares do aprisionamento no comportamento dos sujeitos. No quarto capítulo trato do embate dos sujeitos com as estigmatizações e, por fim, no quinto e último abordo os planos e projetos tangenciados ou não pelo cárcere e seus resultados, tendo em vista avaliar como se dá a reconstrução identitária através do trabalho. O 29 conjunto de todos os capítulos permite na conclusão encaminhar a resposta sobre: Quando o ex-preso deixará de ser ex-preso?. 30 2 CONTEXTO DA INVESTIGAÇÃO Atualmente há uma difusão de informações relativamente extensiva a vários segmentos da sociedade quanto às precárias condições do sistema penitenciário em todo o Brasil. Essas informações, na maioria das vezes, acentuam os problemas das instituições penais. Assim, o conhecimento acerca da ineficiência do sistema penitenciário já chega a vários outros segmentos da sociedade e não mais se reduz a círculos restritos: aqueles que estudam ou vivem direta ou indiretamente o sistema, como os familiares de presos e as instituições que têm os presos como beneficiários de suas ações. As informações sobre as condições do aprisionamento carcerário no Brasil chegam à sociedade brasileira, atualmente, através de diversas fontes, o que garante uma multiplicidade de interpretações sobre o universo carcerário. Os meios de comunicaçãode massa, principalmente a mídia eletrônica, regularmente informam sobre as rebeliões e as corrupções no sistema penitenciário, reforçando a representação social negativa, historicamente determinada41, que se tem sobre a prisão e sobre os presos. O reducionismo e o sensacionalismo, muitas vezes presentes no tratamento que a mídia atribui às notícias oriundas da prisão, acarretam alguns pleitos simplistas, como o maior endurecimento das condições de aprisionamento. Vulgariza-se a complexidade do problema carcerário quando se atribui ao preso, quase que integralmente, a maior responsabilidade pelo esfacelamento do sistema prisional. Em menor escala, infelizmente, a divulgação de produções científicas sobre a prisão também tem contribuído para a maior informação sobre o sistema prisional. As informações científicas têm a particularidade de atribuir maior densidade ao debate sobre o aprisionamento e a criminalidade, entretanto, ainda carecem de divulgação. Um outro viés de informação sobre prisão explode nos anos noventa: a importante e a surpreendente produção editorial de livros autobiográficos que relatam as experiências de homens que estiveram presos. Memórias de um sobrevivente42, de Luis Alberto Mendes, ou Diário de um detento43, de Jocenir, ex-presos do sistema penitenciário, são exemplos de livros que interpretam a prisão pela ótica do homem que está ou esteve preso. São narrativas ora densamente descritivas ora ficcionais, corajosas e recheadas de possibilidades interpretativas. 41 SALLA, Fernando. As prisões em São Paulo: estudo histórico social sobre as prisões em São Paulo. São Paulo: Annablume, 1999. 42 MENDES, Luis Alberto. Memórias de um sobrevivente. São Paulo: Companhia das Letras, 2001. 43 JOCENIR. Diário de um detento. São Paulo: Labortexto, 2001. 31 Ainda fazem parte das fontes de informações sobre a prisão e seus sujeitos, os relatos de profissionais que atuam ou atuaram no sistema penitenciário. Livros escritos por ex-diretores de penitenciária, a exemplo do livro de Luiz Volfman44, ou por ex-voluntários, atuantes no sistema penitenciário, como o médico Dráuzio Varela45, fazem descrições detalhadas sobre o cotidiano de algumas prisões paulistas. Já o livro de Maureen Bisiliat46, a partir do trabalho voluntário de Sophia Bisiliat e André Caramante na Casa de Detenção do Carandiru, traz relatos de homens que pensam a sua condição de presos e falam das suas perspectivas após o encarceramento. A produção cinematográfica brasileira também tem auxiliado na divulgação e na reflexão sobre o cárcere. Documentários e filmes de longa duração já traduzem o aprisionamento ou mesmo ficcionam sobre o tema. Documentários como "Carandiru.doc"47 e "Prisioneiros da Grade de Ferro48", ou o longa metragem "Carandiru49", são alguns dos exemplos da expressão cinematográfica sobre o tema. Alguns pretendem corresponder à curiosidade das platéias, e outros, como os documentários citados, promovem reflexões sobre o universo carcerário a partir da demonstração do seu cotidiano. Muitos outros trabalhos não citados também interpretam ou descrevem a prisão por diversas óticas. Dessa forma, o Brasil tem conhecido mais sobre as suas próprias prisões. Ainda assim, conhece-se uma parte substancialmente pequena da realidade do sistema penitenciário. Mesmo com algum conhecimento sobre a tamanha precariedade do sistema prisional brasileiro no que tange ao alcance do seu objetivo social, alguns segmentos da sociedade ou formadores de opinião clamam pela construção de maior número de estabelecimentos prisionais assentados no mesmo modelo de ineficiência. São comuns argumentos que apontam, de forma simplista, para a resolução ou minimização do problema da violência urbana, apenas através da radicalização dos regimes penais. Ao se pensar em ampliação do tempo de aprisionamento ou no endurecimento das condições de vida no cárcere, parte-se de uma falsa premissa: a da eficiência e a da conquista do objetivo social do aprisionamento nos modelos vigentes das nossas instituições prisionais. 44 VOLFMAN, Luis. O mistério das prisões. São Paulo: Labortexto, 2003. 45 VARELA, Dráuzio. Estação Carandiru. São Paulo: Brasiliense, 2000. 46 BISILLIAT, Maureen (Org.). Aqui dentro. São Paulo: Memorial da América Latina, 2003. 47 Documentário dirigido por Rita Busar. “A prisão real e a prisão fílmica. A produção do Carandiru, o filme”. 48 Documentário dirigido por Paulo Sacramento. Os presos do Carandiru filmam o seu cotidiano, após curso de vídeo. 49 Filme dirigido por Hector Babenco com base no livro Estação Carandiru. 32 Ao que parece, ainda falta muito a informar à sociedade brasileira sobre as reais condições que o sistema prisional brasileiro tem para cumprir o seu objetivo social. Talvez já seja necessário, até mesmo, refletir sobre o próprio objetivo social do sistema e sobre o regime das instituições prisionais. É inconcebível pensar a prisão como um depósito de homens e mulheres, animalizados; é fundamental dissociar o conceito de justiça do de vingança. É preciso que haja discussões, em fóruns mais amplos, sobre a objetiva aplicabilidade estratégica nos estabelecimentos prisionais, dos nebulosos conceitos de reabilitação, de reeducação, de recuperação ou de ressocialização de homens e mulheres praticantes de delitos de toda ordem. É necessário expandir as discussões e as informações sobre o sistema prisional brasileiro até as universidades, os conselhos comunitários, as associações do terceiro setor, etc., para romper a barreira do exótico, do curioso, do medo. Tais discussões devem provocar o melhor entendimento possível acerca do objetivo social do aprisionamento e desconstruir o entendimento de prisão como o local de vingança social contra o praticante de delitos. Uma vez que todas as carências das prisões brasileiras são relativamente conhecidas da sociedade, resta perguntar: o que falta saber? É preciso saber em que condições os sujeitos em situação de privação de liberdade, entendidos como “produtos” desse sistema prisional complexo e ineficiente, voltam às ruas e ao convívio social. O que esperar desses homens que saem das prisões brasileiras todos os dias? Quais as condições que têm de restabelecer vínculos primários e secundários? Atualmente, a quantidade de ex-presos é menor do que a de ingressos no sistema prisional, especialmente em São Paulo, o que assegura um tempo de permanência maior desses homens, geralmente jovens, nos estabelecimentos prisionais. 2.1 DADOS SOBRE O SISTEMA PRISIONAL BRASILEIRO Quando iniciei essa pesquisa, em abril de 2002, o estado de São Paulo tinha 102.936 pessoas presas. Do total geral de presos do Estado, 73.744 estavam cumprindo pena em penitenciárias paulistas, os demais se distribuíam por Centros de Detenção Provisória e por delegacias. Só na capital do estado eram 58.778 presos50. Segundo informações do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN, no mesmo período, havia no Brasil cerca de 284.989 pessoas presas. Ainda que seja alarmante a 50 Dados da Secretária de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo – 2002. 33 quantidade de pessoas presas no Brasil, o déficit de vagas estava na casa de 104.253. Para a administração desse contingente de presos e de prisões, o DEPEN obtém recursos de diversas fontes, tais como das custas judiciais, das loterias federais e privadas, diretamente da arrecadação do Tesouro Nacional e de renda da aplicação dos demais recursos. No ano de 2002, o recurso foi de R$ 209.859.633,55 (duzentos e nove milhões, oitocentos e cinqüenta e nove mil, seiscentos e trinta e três reais e cinqüenta e cinco centavos). Parte desses recursos foi transferidopara os estados. No acumulado entre os anos de 1995 e 2002 o estado de São Paulo foi o que mais recebeu recursos do DEPEN, totalizando R$ 239.602.108,29 (duzentos e trinta e nove milhões, seiscentos e dois mil, cento e oito reais e vinte e nove centavos), sendo o valor referente ao ano de 2002 da ordem de R$ 25.875.705,38 (vinte e cinco milhões, oitocentos e setenta e cinco mil, setecentos e cinco reais e trinta e oito centavos). Ainda segundo dados do DEPEN, do total de pessoas presas no país, 35% estavam sob a responsabilidade do sistema penitenciário fechado, semi-aberto ou aberto, nessa ordem, e 35% em delegacias, sob a responsabilidade da polícia, e mais 30% em Centros de Detenção Provisória. Dos presos condenados e localizados no sistema, em penitenciárias, 59% estavam em regime fechado, 13,26% em regime semi-aberto. Esses dados dizem respeito ao sistema que é o que se pode caracterizar por meio de números, muito embora a pesquisa trate dos efeitos do regime disciplinar de encarceramento sob os sujeitos tutelados pelo sistema prisional. A prisão, segundo Foucault (1989), pode ser classificada em duas partes: o sistema e o regime. O sistema diz respeito ao conjunto de instituições que o sujeito preso vai percorrer desde a etapa inicial do seu aprisionamento: as delegacias, os Centros de Detenção Provisória, as penitenciárias, se houver condenação. A partir da penitenciária, as progressões de regime o possibilitam ir para o semi-aberto e para o aberto. Os dados do DEPEN permitem observar que o sistema prisional em São Paulo tem uma expressividade quantitativa em todas as suas etapas, entretanto, me interessa, dentro do sistema prisional, as etapas do aprisionamento nas penitenciárias, pelo regime que impõem ao preso e no semi-aberto, por considerá-los o iniciador do rito de passagem entre o fechado e a saída. O meu interesse pelo regime penitenciário dá-se por ser a partir dele que se normatiza a vida dentro da Instituição, dado que em outras instâncias do Sistema os presos estão aguardando julgamento, portanto, o aspecto da provisoriedade atribui outras normatizações. É na penitenciária, a partir da chegada do preso após o julgamento, que são impostas as regras para o seu cotidiano institucional, as formas de tratamento e, em conseqüência de comportamento, para que possa viver ali os meses e/ou anos de privação de liberdade imposta pela pena. A introjeção pelos presos dessas regras e normas de conduta é 34 previsível nos fundamentos jurídicos e econômicos da penitenciária como local propício ao cumprimento da penitência e com finalidade de reparação e conversão, segundo Foucault (1989). Segundo a análise histórica, política e social sobre o cárcere realizada por Foucault (1989), até o século XVII não se pode falar em prisões no sentido atual do termo, sendo o termo cárcere o mais adequado para corresponder aos locais de custódia. Por cárcere entendia-se as masmorras, os subterrâneos, cuja função era abrigar temporariamente indivíduos para o cumprimento da pena imposta. No cárcere, a punição era o trabalho forçado, o degredo, o castigo corporal e a multa. Portanto, o cárcere era o espaço da estratégia corretiva. A palavra penitenciária, nos primórdios do Cristianismo, significava penitência, no sentido de voltar-se para si mesmo. Assim, o enclausuramento, e não o encarceramento, seria a oportunidade dos indivíduos reconhecerem os seus próprios erros, pecados e abominá-los propondo-se a não mais repeti-los. É, pois, a admissão da culpa em uma perspectiva cristã. A pena é uma emenda e deve ser cumprida em mosteiros, locais promotores do isolamento necessário, como pensam Sá (1996) e Muakad (1990) com base em Foucault. Além da experiência religiosa, outras duas, no campo laico, passam a influenciar na concepção de penitenciária: as casas de trabalho e as casas de força. As primeiras se amparam no incentivo ao trabalho no seu interior, em uma rotina pesada, instituída em ambiente lúgubre e inapropriado. Essas casas partiam do princípio de que a desocupação era uma falha moral, de caráter, portanto, do indivíduo. Já as casas de força, ao contrário das casas de trabalho, não estavam ligadas à caridade, como as casas de trabalho que, geralmente, abrigavam desocupados e mendigos. As Casas de Força voltavam-se para as prostitutas, os ladrões, os vagabundos e os jovens envolvidos em vida considerada desonesta, todos incluídos nessas casas em resposta a uma determinação judicial punitiva. Essas duas casas influenciaram no surgimento das penitenciárias como uma instituição voltada à automização da pena privativa de liberdade. A partir delas o aprisionamento passa a ser empregado como punição em si e não como um passo intermediário entre o cometimento do crime e a sanção judicialmente imposta (FOUCAULT, 1989). A idéia de Estado como contrato social muda o significado do crime que passa a ser visto não mais como uma ofensa pessoal a um soberano, mas como um ataque a uma aliança social. Assim, a impessoalização da pena, representada pela perda da liberdade imposta aos sujeitos infratores, passa a corresponder a uma nova forma de exercício do poder. Segundo Foucault (1990) o processo de adoção da prisão como forma de punição coincide 35 com o progressivo aburguesamento da sociedade. Dessa forma, o aprisionamento e suas estratégias disciplinares têm um forte caráter político. Tal caráter é o ponto chave do trabalho de Foucault (1989; 1990) ao estudar a genealogia do poder. Foucault (1989) analisa as bases históricas e político-sociais de como se constitui a instituição penitenciária; considera que é a alma do sujeito e não apenas o corpo o objetivo do poder disciplinar. Ainda assim persistem as torturas, os açoites, as degolas e as amputações, ações não legalizadas no seu estatuto, mas provenientes de um código de ética cruel existente em paralelo ao já pesado código de ética institucional e permitido extra-oficialmente por este último, que é o código de ética do preso. A sujeição institucional associada ao código de ética dos presos que se origina como um contra-poder àquele institucional, formam uma identidade de penitenciário ao sujeito aprisionado. O poder disciplinar estabelece no homem preso características que o singularizam do homem livre e que passam a agir no seu corpo e no seu pensamento, como conseqüências do regime. Essas características se estendem aos ex-presos, como “produtos”51 que são desse modelo disciplinar e impactam as suas possibilidades emancipatórias. O infrator, criminoso comum, após o aprisionamento, torna-se um delinqüente habitual (FOUCAULT, 1989). Os dados a seguir mostram o perfil do infrator adulto, preso no Brasil52: os processos criminais indicam que o criminoso comum é o mais encontrado nas prisões brasileiras – 98,39% respondem processos na Justiça Comum, apenas 1,47% na Justiça Federal e 0,14% na Justiça Militar. Os brasileiros natos presos correspondem a 96,33% da população carcerária, frente a 3,04% de naturalizados e 0,63% de estrangeiros. Os tipos de crimes que mais freqüentemente levam à prisão, estatisticamente, distribuem-se entre nove tipologias: furto, lesão corporal, homicídio, tráfico, vandalismo, atentado violento ao pudor, estupro, porte de arma e o roubo com as suas modalidades seqüestro, seqüestro-relâmpago, assalto, entre tantas outras, além da classificação criminal das tentativas de cada um deles e de seus agravantes e atenuantes53. Estatisticamente, entre os mais expressivos estão os crimes contra o patrimônio com uso de violência (27,80%), seguido dos crimes considerados hediondos (19,46%), os crimes relativos ao tráfico de drogas (13,61%), os crimes contra a pessoa com uso de violência (11,49%) e os crimes contra ao patrimônio sem uso de violência (10,18%). Os crimes provenientes de organizações criminosas correspondem a apenas 1%,51 Grifo nosso. 52 Dados do Departamento Penitenciário Nacional – DEPEN. 53 A avaliação dos crimes, determinados por artigos e por parágrafos, em sua extensão e singularidades, constam do Código Penal Brasileiro, editado com diversas possibilidades compreensivas, desde os descritivos aos comentados. 36 abaixo do crime contra a pessoa sem uso de violência, correspondente a 5,74%. Portanto, os presos no Brasil são, em sua maioria, os praticantes de roubos ou latrocínios, geralmente pessoas de camadas pobres da população. O crime organizado, a corrupção e até mesmo o tráfico de drogas de grande vulto não estão entre os mais punidos com aprisionamento. Os dados correlacionados permitem inferir que os presos no Brasil são, em sua maioria, os praticantes de roubo em suas diversas modalidades, com ênfase no latrocínio54. Dentre os punidos com a prisão estão, geralmente, as pessoas de camadas mais pobres da população brasileira. O crime organizado, a corrupção contra o erário público e até mesmo o fornecimento de drogas de grande vulto, no atacado desse mercado informal da contravenção, não estão entre os crimes mais punidos com o aprisionamento. Estimava-se, pelo Censo Penitenciário, que destes presos, em São Paulo especificamente, 2% cumpriam pena de até um ano de prisão;, outros 2% entre 1 a 2 anos; 15% entre 2 a 4 anos; 31% cumpriam entre 4 a 8 anos de prisão, além de 18% presos e condenados entre 8 e 12 anos e 25% entre 12 e 20 anos de pena. Mais de 20 anos de pena representavam 7% da população carcerária, uma estatística semelhante a do Brasil como um todo. Todo esse universo de penitenciados estavam vinculados à Secretaria de Administração Penitenciária do Estado de São Paulo. Os dados estatísticos trabalhados aqui, reforçam a idéia de Wright (1973), para quem ao punir mais uns crimes que outros, a justiça está criminalizando determinadas parcelas da sociedade. Também dá justeza à tese de Foucault (1989): o aprisionamento é também um ato político por fazer dos aprisionados produtos da ação organizada do poder estatal, despotencializando-os como sujeitos. O aprisionamento do homem pobre no Brasil e, conseqüentemente, a constatação de que tende a ser esse homem o mais seqüelado por tal experiência duplamente estigmatizante: ser pobre e ser ex-presidiário pode ser verificado nos dados a seguir: os presos são em 95,98% homens e 4,02% mulheres, em sua maioria oriunda das regiões periféricas das grandes cidades e com famílias economicamente carentes. Outros dados estatísticos oficiais possibilitam inferir a origem dos presos como que associada a outras formas de exclusão de antes do cárcere: 41,25% dos encarcerados estudaram apenas até o ensino fundamental: 54 Roubo seguido de morte, segundo o Código Penal Brasileiro. Alguns ex-presos mais idosos indicam que o aumento do latrocínio dá-se pela associação atual, comum entre os infratores jovens, entre utilização de drogas alucinógenas com o crime, principalmente para os usuários do crack. Para os ex-presos mais velhos e mais experientes no crime, os jovens não são estrategistas, ou seja, não associam o tipo de ação a punição possível a ela, agem por impulso gerando ações mais violentas e até a morte da vítima, o que acarreta que quando presos, sejam, muitas vezes, condenados a penas longas pela prática de um único crime, o que os diferencia de presos mais velhos em idade que agiam de maneira mais estratégica, prevendo a punição, reduzindo assim o uso da violência e quando presos, obtinham penas mais extensas só quando praticantes de diversos delitos. 37 24,75% são apenas alfabetizados e 5,95% são analfabetos. Sem a escolarização, muitos não têm competitividade no mercado de trabalho capitalista onde as qualificações são medidas econômicas de valor no mercado de trabalho. Reforça a inferência anterior o fato de que 32,04% dos presos brasileiros estavam desempregados antes da prisão, mais um indicativo da exclusão econômica; outros 26,79% eram empregados informais e 19,74% eram autônomos, além de outros 19,45% que mantinham empregos formais com vínculos trabalhistas. Quando as estatísticas classificam os presos no Brasil por recortes de idade, sexo, e cor, os dados são os seguintes: entre os homens, 37,55% estão entre 18 e 25 anos de idade, seguido de 24,13% daqueles que estão entre 26 e 30 anos. A penitência prisional acomete os jovens brasileiros com baixa escolarização, e se o infrator cometeu um crime considerado hediondo poderá sair da prisão com idade que varia entre 40 e 45 anos. Esses homens são em 49,79% solteiros e 29,87% vivem em união estável; orientam-se sexualmente em 94,25% como heterossexuais, 1,60% bissexuais e 4,15% homossexuais. Entre os presos 50,46% consideram-se pardos ou negros e quanto à religião, identificam-se em 63,01% como católicos, 21,51% como evangélicos e outros 12,79% consideram-se ateus. Outro dado importante para avaliar as possíveis condições de saída quanto à presença da família e de outras referências na cidade diz respeito à origem dos sujeitos presos: dentre os homens presos em São Paulo, 12,3% tinham origem em estados nordestinos: Bahia, 5,2%, Pernambuco, 4,2% , Ceará, 1,74%, Alagoas 1,24%, eram as origens nordestinas mais expressivas. Além dos estados nordestinos, o estado de Minas Gerais correspondia a 4,5% das origens e o Paraná a 4,8%. Os presos de São Paulo, originários do próprio estado, compunham maioria absoluta – 69%. No caso específico de São Paulo, o Censo Penitenciário do Estado do ano de 2003 indicava ainda que, entre os presos, 52,7% se diziam negros e 30,8% pardos. Quanto ao estado civil 72% se diziam solteiros. Entre os presos, 59% estavam na faixa etária entre 18 e 29 anos de idade, com maioria entre 18 e 24 anos. Do total dos apenados, 436 eram inválidos. Nota-se uma semelhança com os dados nacionais, exceto maior predominância de negros aprisionados. Ressalta-se, também, um dado sobre invalidez muitas vezes provocada por confrontos com a polícia ou por agressões sofridas na prisão, enfim, como conseqüência da atividade delituosa, o que pode ser considerado mais um aspecto redutor das possibilidades da vida após a saída da prisão. A prisão também os ajudou a recrudescerem outras estatísticas em São Paulo: 9,35% são portadores do vírus HIV; 7,71% têm alguma doença alérgica crônica; 7,60% têm algum distúrbio mental; 10,42% sofrem de hipertensão; 13,57% têm alguma doença infecto-contagiosa e 11,51% têm doenças sexualmente transmissíveis. O mais 38 alarmante é que 21,70% têm dependência a alguma droga, muitos iniciados no vício e/ou mantendo o vício dentro da própria prisão. O perfil dos entrevistados nesse estudo correspondeu exatamente ao conjunto das características até aqui apresentadas. Algumas dessas características, como a baixa escolarização, acentuam mais profundamente a possibilidade do sujeito internalizar o saber prisional como referência de vida, ou seja, de pensamento e de ação, o que seria o mesmo que despotencializá-los como cidadãos. A partir das estatísticas pode-se inferir que o aprisionamento no Brasil tangencia questões que o país, ao longo da sua história, desconsiderou ou quis negar: a sua juventude, a pobreza, a miscigenação, os contrastes, o alto índice de pessoas fora da escola, a diversidade religiosa, os preconceitos de raça e os de ordem econômica, entre outros aspectos relevantes para a compreensão desse país como nação. Acrescem-se, às exclusões próprias da realidade social e econômica brasileira, a condição do homem oriundo de um modelo prisional ineficiente e estigmatizante. Dentro do Brasil dos excluídos, os presos, e conseqüentemente os ex-presos, são aqueles que têm contra si o ingrediente adicional da infração criminal e, a partir dela, a consideração da sua habitualidade enquanto delinqüente. Sãojulgados sobre a objetividade do direito, afeito mais às provas que aos processos que culminaram no ato, e por esses julgamentos e experiência prisional são considerados além de pobres e perigosos, supérfluos, ou seja, uma massa fragilizada por uma política prisional de liquidação simbólica e de despotencialização, estigmatizada, também, pela indignidade e pelo desrespeito socialmente atribuído à condição de preso. A partir da caracterização mais geral do estado de São Paulo quanto ao perfil do preso e, portanto, daquele que sai da prisão, o recorte dos sujeitos entrevistados foi configurado como: homens, acima dos 18 anos de idade, nascidos ou residentes no estado de São Paulo, processados e condenados criminalmente no Estado por práticas entendidas como delituosas a luz do direito penal em qualquer tipologia criminal, privados de liberdade para cumprimento de pena via encarceramento em detenções e/ou penitenciárias em regime fechado e que estivessem, no momento de realização da pesquisa, em liberdade, dado o cumprimento parcial ou total das penas a que foram submetidos. Dessa forma, sem retorno oficialmente previsto para o sistema prisional, como regulam os benefícios da Legislação Penal. Como já dito, exclui-se desse estudo àqueles que saíram diretamente das delegacias ou que não passaram pelo regime penitenciário fechado, portanto, aqueles que foram condenados diretamente ao regime semi-aberto e ainda os homens acusados, mas ainda não sentenciados, 39 ex-presos de manicômios judiciários, menores de idade e mulheres em qualquer das situações acima mencionadas. Os sujeitos entrevistados foram estratificados a partir da sua condição objetiva na saída da prisão: homens com e sem família, com ou sem ocupação, com ou sem moradia, das diversas tipologias criminais. Estas categorias foram distribuídas entre aqueles que cumpriram até dez anos de prisão, de dez anos a vinte anos de prisão, de vinte a trinta anos. A estratificação ainda se deu considerando homens recém-saídos da prisão e aqueles que saíram em até cinco anos. Foram realizadas entrevistas em profundidade, por cruzamento das três categorias citadas, totalizando cinqüenta e quatro entrevistas em profundidade, na maioria das vezes nas casas destes sujeitos. Esta estratificação não é a supremacia do quantitativo sobre o qualitativo, mas apenas uma forma de recorte para que a pesquisa possa contemplar os vários perfis de homens que deixam as prisões brasileiras. 2.2 O CAMPO A forma de aproximação com esses sujeitos já fora da prisão deu-se no campo de pesquisa. Só dessa forma pude compreender a complexidade da situação vivida por esses homens ao saírem das prisões e, a partir dessa complexidade, passei a compreender a própria complexidade do campo, medida pelas diferenças desse grupo, composto de homens que saem da prisão e das suas singularidades. O interesse da Antropologia é pela diversidade própria da espécie humana, apreendida no nível cultural. A complexidade do estudo dessa diversidade situa-se, entre outros aspectos, no entendimento de que os homens são ao mesmo tempo diversos e semelhantes. A diversidade não pode estar associada apenas à desigualdade. Cada povo, cada comunidade ou mesmo cada grupo social, respeitando as suas singularidades, tem relatos de suas experiências, inclusive da desigualdade. A partir dessas diversidades de relatos, torna-se necessário à pesquisa antropológica esclarecer quem fala, de onde fala, como falam os seus personagens. O primeiro exercício da pesquisa de campo foi a tentativa de conseguir obter os relatos sem estigmatizar o sujeito por sua condição de ex-presidiário. Entretanto, parti dessa condição para compreender sua vida após o cárcere. Outro exercício foi o de buscar compreender o que, no sujeito, era conseqüência do encarceramento. Nesse sentido, precisei compreender muito profundamente o cárcere a partir de Foucault (1989), para identificá-lo nos sujeitos quando esses mesmos não o identificavam. A minha experiência como voluntário nas prisões, nesse aspecto, foi valiosa. Também foi importante a leitura dos livros 40 autobiográficos, escritos por presos e ex-presos, além das cartas recebidas de homens presos. Caso não conhecesse profundamente os aspectos que perpassam o cárcere, dificilmente o reconheceria tão prontamente nos sujeitos. Inspirado em Pollak (1992), pude interpretar, a partir dos relatos dos ex- encarcerados, a presença da prisão na reconstrução de suas identidades após a saída. Os entrevistados falam de fora da prisão, após o encarceramento. Ressignificam a vida a partir desse momento. Nos relatos, pude compreender como esses homens atribuem sentido ao vivido, como ressignificam a experiência do cárcere, como o cárcere estava presente nos seus pensamentos, nas suas ações, como o cárcere recortava a dinâmica das suas vidas. O conjunto dessas ressignificações estrutura, a partir da memória individual, uma memória coletiva grupal. Concordo com Halbwachs (2004), para quem a memória individual é um ponto de vista pertencente ao conjunto da memória coletiva. Antes, ainda no escritório, houve um certo temor do campo. Mas que campo era temido? Em absoluto era temido o campo físico, ou o encontro físico com homens temidos pelo senso comum. Os temores vinham da constatação de que as relações sociais próprias do exercício do viver se dão no espaço determinado pela cultura, local simbólico onde nasce e se estabelece a diversidade humana. Dessa forma, a relação com o outro se estabelece com e na diversidade, o que faz assumir, em muitos aspectos, um sentido ameaçador pelo que pode representar. Para a antropologia, esse aspecto ameaçador é também um elemento de prazer e logo descobri esse prazer em mim, ao não temer de forma imobilizadora a ameaça do desconhecido, mas ao contrário, ser movido por ela. Concordo com Geertz (2001): é mesmo a antropologia uma atividade acadêmica inquietante e inquietadora. A inquietação, própria da atividade antropológica, é coerente com o entendimento de que o comportamento de um grupo na sociedade, ou de sujeitos dentro de um grupo, são apreendidos e dependentes da ótica de quem os observa, portanto, não é contínuo e freqüente como quer a estatística porque incorpora a subjetividade. Complementando o termo “inquietar”, pode ser atribuído um outro, o termo “perturbar” ou mesmo “excitar”, e ambos podem produzir o aparecimento de certa tensão. A tensão, na pesquisa antropológica, estabelece-se por suas características já citadas no parágrafo anterior. Essa tensão, entretanto, também impõe um dilema, vivido no campo de pesquisa pelo pesquisador. O que se busca? A busca de leis? A busca de macro teorias a partir do observado? Ainda que este seja um debate dentro da antropologia ou fora dela, servindo para analisá-la, partimos do entendimento de Geertz (2001) de que a finalidade da pesquisa 41 antropológica é alongar a comunicação e diante de tal princípio o que se viu ou sentiu no campo de pesquisa torna-se fundamental. No texto “Uma nova luz sobre a antropologia”, Geertz (2001) discute dois momentos do trabalho de pesquisa: o momento do campo propriamente dito e o momento do retorno do campo de pesquisa. Para a pesquisa antropológica, o método, os instrumentos que organizam o campo bem como o tempo vivido no campo singularizam a pesquisa. Portanto, é no modo como o pesquisador trabalha que reside a especificidade antropológica. Após o campo, a solidão do pesquisador situa-se sobre a interpretação do que ele viu, sentiu, observou, enfim, sobre o que traz do campo como realidade. A angústia reside no fato de que a realidade vista, talvez já não seja a mesma, ou o que foi visto pode ser apenas aquilo que foi permitido ver. Como economista, convivo com uma ciência humana que se traduz também em comprovações matemáticas, econométricas. Ao longo
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