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Livro_Contadoresde_Historias

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Rio de Janeiro
Prieto Produções Artísticas
2011
1ª edição 
organização
Benita Prieto
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© 2011 Organizadora Benita Prieto
© Direitos de publicação
 prieto produções artísticas
 www.benitaprieto.com.br
Coordenação editorial: Benita Prieto
Assistente editorial: Priscila da Cruz Vieira
Revisão: Ana Letícia Leal
Design de capa e projeto gráfico: Marcos Corrêa
CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
BIBLIOTECÁRIA RESPONSÁVEL-LÚCIA FIDALGO-CRB7/4439
C759 Contadores de Histórias: um exercício para muitas vozes/
 Organização Benita Prieto. - Rio de Janeiro: s. ed, 2011. 
 240p. 
 ISBN 978-85-65126-00-7 
 1. A arte de Contar Histórias. 2. Contadores de Histórias. 
 I. Prieto, Benita, org. II. Título 
 CDD: 808.068543 
 22. ed.
Assim definido, o narrador figura entre os mestres e os sábios. 
Ele sabe dar conselhos: não para alguns casos, como o provér-
bio, mas para muitos casos, como o sábio. Pois pode recorrer ao 
acervo de toda uma vida (uma vida que não inclui apenas a 
própria experiência, mas em grande parte a experiência alheia. 
O narrador assimila à sua substância mais íntima aquilo que 
sabe por ouvir dizer). Seu dom é poder contar sua vida; sua dig-
nidade é contá-la inteira. O narrador é o homem que poderia 
deixar a luz tênue de sua narração consumir completamente a 
mecha de sua vida. 
O Narrador. Walter Benjamin.
“
”
prosas
 ....................................................................prosa de abertura
13 Contação de estória: vida e realidade
 Affonso Romano de Sant’Anna 
 ............................................................................................) 
19 Contar histórias é alimentar a humanidade da humanidade
 Carlos Aldemir Farias
25 Contos indígenas: uma experiência com narrativas dos primeiros povos brasileiros
 Daniele Ramalho
31 Negras histórias (a valorização da cultura oral afro-brasileira)
 Rogério Andrade Barbosa
37 DeusNumDé: dom da visão
 Edmilson Santini
 ............................................................................................(
45 Vozes, corpos e textos nos vãos da cidade
 Júlio Diniz
49 Muitas vidas, muitas vozes, muitas histórias
 Júlio Diniz & Morandubetá 
59 Impressões de uma contadora de histórias – meu encontro com a arte narrativa
 Bia Bedran
67 A terceira margem da cena
 José Mauro Brant
73 A voz quente do coração do rádio
 Gilka Girardello
79 Contando na telinha
 Augusto Pessôa 
85 Cinema: um griot cuja argila é o tempo e a estátua são os atores na fogueira da 
sala escura
 Paulo Siqueira
95 Blog, uma janela para o mundo
 Marcio Allemand
101 Paiquerê Piquiri Fiietó, um experimento com as linguagens
 Cléo Busatto
105 Duas histórias contadas nos múltiplos caminhos dos Role-Playing Games (RPG)
 Carlos Eduardo Klimick Pereira & Eliane Bettocchi Godinho
115 Como as histórias foram entrando na minha vida...
 Ana Luísa Lacombe 
121 Da boca da noite para a acolhida na escola
 Almir Mota 
127 Bibliotecas: vozes silenciadas?
 Nanci Gonçalves da Nóbrega
137 A contação de histórias vivenciada no chão da universidade: um quase relato 
de experiência
 Edvânia Braz Teixeira Rodrigues
143 Por onde passo, levo comigo os contadores de histórias
 Maria Helena Ribeiro
151 Narrativas na empresa
 Fernando Goldman 
157 Fagulhas habitam multidões
 Célia Linhares
163 Nos caminhos da Maré
 Lene Nunes
169 Entre hospitais gerais e psiquiátricos: histórias humanas e literárias como um rio de 
caudaloso fio, tecendo redes de encontros na diversidade de afluências do viver saudável
 Kika Freyre
177 Contos na prisão: um espaço chamado liberdade
 Rosana Mont’Alverne 
185 Histórias em sinais
 Lodenir Karnopp
191 Palavras táteis
 AnaLu Palma
 ............................................................................................*
196 E eles foram felizes para sempre.
 Regina Machado
 
203 O ofício de viver contando histórias
 Cristiano Mota Mendes 
209 O paciente como contador de sua própria história: o olhar de um médico homeopata
 Conrado Mariano
 ...............................................................................prosa final
215 As águas da memória e os guardadores da corrente de histórias
 Maria de Lourdes Soares
 ............................................................................................& 
225 De quem são essas vozes
:prosa de abertura
oContação de estória: 
vida e realidade
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ou arriscar uma definição.
Mais uma. 
Já tentaram de várias maneiras dizer o que é que define essencialmente o ser humano. 
Uns dizem, “homo faber”, porque ele sabe produzir instrumentos industriais de 
trabalho ou de guerra; 
outros dizem – “homo economicus”, porque conseguimos estabelecer uma socie-
dade baseada na economia, na qual viramos objeto de consumo; 
outros dizem – “homo ludens”, como Huizinga, e assim estudam o “jogo” pre-
sente na guerra, na poesia, no direito, etc. 
E assim continuam as intermináveis classificações que vêm desde o “homo sapi-
ens” até aquilo que levou Cassirer a dizer que o homem é “animal simbólico” (“homo 
simbolicus”), ou seja, nossa habilidade em forjar símbolos exprime nossas perplexi-
dades e faz nossa história. 
Outro dia li um texto que falava do “homo academicus”, referindo-se a esses indi-
víduos com a cabeça ilhada dentro das universidades, falando um “trobar clus” moderno.
Todas essas características são verdadeiras. E cada uma é uma maneira de entrar 
no mistério da natureza humana. Penso se nessa sequência se poderia introduzir um 
outro traço que nos caracteriza e que não é desprezível. Não vou mais usar a seródia 
palavra “homo”, isto já prescreveu depois que o feminismo botou por terra muitos 
preconceitos. Não dá para repetir aquela frase que, dizem, é de Monteiro Lobato: “um 
país se faz com homens e livros”. Bota mulher nisto.
[Affonso Romano de Sant’Anna]
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Portanto, falemos de pessoas e de indivíduos incluindo aí necessariamente as mulheres. 
Então, digo: somos seres que contam e ouvem histórias. E nisto as mulheres, até mais que 
os homens, são as grandes contadoras de história: mães, babás, tias, avós, madrinhas...
Podemos avançar um pouco mais e dizer: o ser humano é não apenas um ser que 
conta histórias e ouve histórias, mas sobretudo é um ser que faz história. Fazer história 
é a suprema audácia dos humanos. Os romancistas, os cineastas e os líderes sociais, 
por exemplo, operam isto mais claramente. Não se contentam em ser atores, querem 
também ser autores, protagonistas de seu tempo.
Portanto, somos seres irremediavelmente históricos. 
Digo isto e penso: eis uma observação banal. Qualquer pessoa sabe disto, não é 
necessário ser um erudito para chegar a essa conclusão. Aliás, até os analfabetos, que 
alimentam seu imaginário de contações de estórias, sabem disto. Então, por que fazer 
essa observação?
Primeiro por uma razão, digamos pleonasticamente, “histórica”. Ou seja, a contação 
de estórias passou a ser revalorizada de maneira notável nas últimas décadas, sobretudo 
a partir dos anos 1980. Uma diversificada bibliografia que permeia diversos ramos do 
conhecimento nos dá conta de uma verdadeira redescoberta da arte de contar histórias. 
Isto está até mesmo nos consultórios psicanalíticos, que utilizam a “narratividade”
dos 
clientes como estratégia de tratamento, aperfeiçoando o que Freud há uns cem anos 
já praticara quando adotou “a cura pela palavra”, revalorizando assim a palavra falada 
capaz de destravar neuroses e traumas.
E isto se tornou tão visível e notável que as universidades se voltaram para este fenô-
meno estudando o renascimento da contação de estórias em nossa cultura. Cursos de 
contadores de história se espalham por todas as partes, ao mesmo tempo em que, parale-
lamente, cursos sobre leitura, casas de leitura, secretarias de leitura e até mesmo Cátedras 
de Leitura (a exemplo da PUC–Rio) começam a ser criados nas universidades.
Quer dizer, a leitura e a contação de estórias não apenas estão na moda, mas estão 
irremediavelmente geminadas.
E isto, surpreendentemente, ocorre dentro de uma sociedade televisiva altamente 
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tecnológica, em que o cinema, a TV, a internet e os novos suportes ocupam espaços 
imensos no nosso cotidiano. Isto sucede numa sociedade que, segundo alguns, reju-
bilando-se de cultuar a imagem, desprezaria a oralidade como se ela fosse um suporte 
primitivo e ultrapassado. Nesse sentido, assim como nos últimos cem anos alardearam 
tantas mortes em nossa cultura – morte do autor, morte da arte, morte do homem, etc. 
– seria de se esperar que tivesse ocorrido a “morte” da arte de contar estórias.
Não ocorreu. Ocorreu o contrário.
Anotemos que uma das falácias de nosso tempo, seduzido pela visualidade, foi 
dizer que uma imagem vale mais que mil palavras. Será? Ou se poderia dizer o con-
trário: uma metáfora, um hai-kai, uma estória valem mais que mil imagens? De qual-
quer forma, são afirmativas radicais que não ajudam muito a entender a riqueza do 
nosso contexto cultural.
Penso, para efeito de raciocínio, nuns exemplos concretos, dentro da própria arte da 
visualidade: o cinema, por exemplo. Poderia citar o caso de um filme nacional, Narra-
dores de Javé, de Eliane Caffé: aí toda uma comunidade recorre à narração para salvar-se 
do naufrágio no tempo e espaço, quando uma projetada represa expandisse suas águas 
sobre as casas da comunidade. A estória, a narratividade e a memória passaram a ser 
a barragem imaginária contra a destruição, a ilha de salvação do imaginário humano.
A filmografia sobre o valor das estórias orais tornou-se mais rica nos últimos tem-
pos. E isto é sintomático do que estou dizendo. Penso num outro filme: Balzac e a cos-
tureirinha chinesa, tirado do romance homônimo de Dai Sigie. De novo estão o cinema 
e o romance nos dizendo da importância da narrativa oral. Mais do que isto, dentro 
deste filme/romance há algo fascinante: uma personagem confessa gostar mais da nar-
rativa de um determinado filme do que do filme propriamente dito. Eis o cinema pres-
tando homenagem à contação de estórias como uma predecessora da arte de narrar. E 
assim poderíamos lembrar mais um filme, A camareira do Titanic, película que repousa 
sobre a inventiva capacidade de um personagem de ir incrementando sua estória falsa 
& verdadeira e assim aumentando cada vez mais sua plateia até transformar a sua 
estória num espetáculo à parte.
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Anteriormente à modernidade, foram os românticos os responsáveis pela revalori-
zação da memória oral das comunidades. Os romances foram uma recriação das nar-
rativas orais. Por outro lado, os irmãos Grimm na Alemanha, o dinamarquês Hans 
Christian Andersen e os romancistas, como Alexandre Dumas, Walter Scott e José de 
Alencar, foram buscar nas lendas, na história, no folclore, o imaginário coletivo. 
E, na modernidade, ocorrem insólitas revalorizações da palavra. A arte contem-
porânea, depois de ter chegado ao abstracionismo, deu uma meia-volta em direção à 
palavra e institucionalizou a “arte conceitual” como uma das mais nítidas tendências 
do século XX. E isto se deu de tal forma que o “discurso” sobre os quadros ou obras 
passou a ser mais relevante que as próprias obras e a terem em relação a elas certa 
independência. (Tratei disto no livro O enigma vazio, editado pela Rocco).
A indústria das novelas de televisão, o cinema, o teatro, as estórias em quadrinho e 
os romances continuam mais fortes que nunca. A publicidade tornou-se uma forma de 
narrar e de seduzir. Uma cidade é um livro, cheia de letras, como para o índio é a floresta.
Disto tudo sobressai a palavra – narratividade. Narramos sem saber que narramos 
e somos lidos até sem nos darmos conta de que nos estão lendo. Mais do que nunca 
torna-se urgente que as pessoas tenham consciência de que ler o mundo é uma tarefa 
contínua, desafiadora e propiciadora do sucesso pessoal e social.
Somos estórias em movimento. Parábolas vivas. E quem conta estórias vive várias 
vidas numa só.
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oContar histórias é alimentar a 
humanidade da humanidade
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e o ato de sonhar não é uma exclusividade dos humanos, contar histórias é 
uma arte milenar exclusiva das sociedades humanas. Foi graças à tradição oral que 
muitas histórias se perpetuaram, sendo transmitidas de uma geração para outra. Tudo 
começou em uma caverna, quando os primeiros caçadores e coletores se reuniram em 
volta das chamas da fogueira para contar histórias uns aos outros, sobre suas aventu-
ras na luta pela sobrevivência, para dar voz à percepção fenomenológica dos eventos 
naturais e sobrenaturais, e, assim, entrar em conformidade com a ordem social e 
cósmica. Algumas dessas histórias ficaram registradas nas paredes das cavernas e ainda 
resistem às intempéries acontecidas durante os milhares de anos.
As conquistas de uns povos por outros, a passagem da caça à agricultura, as migra-
ções e as guerras foram difundindo e transformando as histórias das diferentes tradições 
culturais em elementos reconhecidos pelo corpo social, no qual o contador de histórias 
exercia o papel de guardião da memória e as narrativas formavam a enciclopédia do 
saber coletivo das sociedades.
Até hoje, em diferentes grupos sociais espalhados pelo planeta, por exemplo, indí-
genas, comunidades rurais, ribeirinhas e remanescentes de quilombos, predominam 
as formas orais de comunicação; a cultura é transmitida por meio da oralidade. Essas 
sociedades têm um conhecimento espetacular, pois desenvolveram um tipo de dis-
curso argumentativo por meio das narrativas.
No decurso do processo histórico, as histórias ancestrais, somadas a tantas outras, 
foram recriadas em função das circunstâncias e passaram a ser contadas pelas amas, 
[Carlos Aldemir Farias]
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pelos avôs e pais, no calor da família. Séculos depois, a invenção da imprensa salvou 
do esquecimento muitas dessas histórias tradicionais que continuam sendo reconta-
das em diferentes espaços sociais, como escolas, universidades, teatros e encontros de 
contadores. Outras se perderam, talvez para sempre ou, quem sabe, as carreguemos 
adormecidas dentro de nós sem saber.
Narrar uma história é um modo de estruturar o mundo em função das nossas 
ações individuais. Implica um trabalho de organização da memória individual, feito a 
partir da acumulação e organização de dados de uma experiência não necessariamente 
vivida, visto que a memória é uma reorganização de ideias, impressões, subjetividades, 
afetos e conhecimentos adquiridos no vivido, na leitura, no imaginado.
O ato de narrar requer um domínio do tempo narrativo, que corresponde a 
uma enunciação verbal do passado. Todos os contadores mantêm, por meio de suas 
histórias, um elo entre passado e presente, real e sobrenatural, possível e impossível, 
razão e imaginação.
Por que é importante
contar e ouvir histórias? Porque quando fazemos isso alimenta-
mos duas das mais importantes características dos seres humanos: a imaginação criativa 
e a oratória. Somente os humanos dizem era uma vez... Somente nós fazemos isso: con-
tamos a nossa história, a dos outros, escrevemos histórias, acrescentamos detalhes, cria-
mos situações que não aconteceram de fato, imaginamos outros mundos, outros seres, 
outras paisagens, outras formas de ver e viver neste e em outros mundos imaginados.
Os outros animais vivem e experimentam alegrias e dores, mas não sabem contar 
o que sentem. Não criam nem imaginam situações, não contam para os outros o seu 
passado. O mais fascinante é que usamos o recurso do antropomorfismo, ou seja, 
atribuímos formas e características humanas aos entes naturais e sobrenaturais. Nesse 
mundo mágico, as plantas, os animais e os humanos dialogam; as fábulas são bons 
exemplos disso.
Mas há, também, outras razões para ouvir e contar histórias. A primeira é que, 
quando as ouvimos, despertamos para situações que não tínhamos pensado antes. 
Dessa forma, ampliamos nossos conhecimentos, o que nos permite rever e reelaborar 
21
alguns valores. A segunda é que as histórias mantêm sempre aceso o farol da imagina-
ção, da criatividade, da curiosidade, da ludicidade. Elas despertam o espírito juvenil 
que existe em qualquer pessoa, seja criança ou adulto. Quem sabe muitas histórias, 
certamente é porque ouviu, leu ou contou. Assim, dispõe de mais conhecimentos 
para enfrentar situações novas durante o seu percurso de vida, uma vez que, ao con-
trário da maioria das formulações científicas, as histórias rejeitam verdades unívocas 
e permitem soluções múltiplas.
É bom lembrar que, embora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias 
conseguem, pois enquanto restar uma única pessoa que saiba contá-las, elas não mor-
rerão. Na condição de animais gregários, atualizamos dia após dia o ato de narrar. 
Talvez para entender quem somos ou para tomar consciência de que existimos. Para 
Clarissa Pinkola Estés, “as histórias que as pessoas contam entre si criam um tecido 
forte que pode aquecer as noites espirituais e emocionais mais frias”1. Somente elas 
revelam a aptidão peculiar e preciosa que os humanos possuem em obter êxito nas 
tarefas mais árduas. Fornecem, também, as instruções essenciais que precisamos para 
ter uma vida útil, necessária, irrestrita, significativa.
Segundo Joseph Campbell, contamos histórias para entrar em acordo com o mun-
do, para harmonizar nossas vidas com a realidade2. Sempre que me perguntam porque 
gosto tanto de histórias, costumo afirmar que o meu interesse por essas narrativas 
ancestrais nasceu na infância, pois cresci à sombra dessa tradição dos meus antepas-
sados no litoral sul do estado do Rio Grande do Norte, nordeste do Brasil. Desde cedo 
fui marcado na alma por uma heráldica narrativa que permanece até hoje. As histórias 
sempre estiveram presentes na minha vida, seja por meio dos contos narrados pelos 
contadores tradicionais do lugar onde nasci ou pelos vários livros de literatura lidos e 
relidos por mim ao longo dos anos.
Hoje, nos momentos em que olho para trás, relembro o quanto as histórias 
permaneceram na minha memória, alimentaram a minha imaginação de emoções 
extraordinárias e tiveram uma ressonância na minha formação pessoal e profissional. 
Na minha tenra idade nunca achei necessário dizer obrigado por aquelas porções de 
1. O dom da história: uma fábula sobre o que é suficiente. Rio de Janeiro: Rocco, 1998, p. 38-39.
2. O poder do mito. Palas Athena, 1998 
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afetos literários emanados dos sábios contadores, que dedicaram parte de seu precio-
so tempo às crianças. Considero um privilégio ouvir histórias, essa sensação de mara-
vilhamento diante do espetáculo da imaginação humana. Para mim não existe um 
afeto poético maior. Se pudesse voltar no tempo não teria palavras para agradecer por 
aqueles momentos mágicos. Sou grato a todos os contadores que, com suas legiões de 
personagens, iluminaram a minha vida.
oContos indígenas:
uma experiência com narrativas 
dos primeiros povos brasileiros
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Ninguém respeita aquilo que não conhece.1
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o ano de 1500 os europeus chegaram ao território que hoje chamamos de 
Brasil. Havia aqui cerca de mil povos indígenas cuja população foi drasticamente 
reduzida e que hoje se concentra em cerca de 280 etnias, que falam 160 línguas – um 
Brasil que certamente precisamos conhecer. 
No ano de 2000 comecei a contar histórias indígenas. Havia alguns anos da pri-
meira visita ao Museu do Índio do Rio de Janeiro. Ficava admirada com a riqueza 
da cultura daqueles que foram os primeiros habitantes de nossa terra e perplexa com 
nosso desconhecimento sobre sua realidade – apesar de terem se passado mais de 
quinhentos anos do primeiro contato. 
Yawanawá, Xavante, Enawenê-Nawê, Fulni-ô, Apurinã, Kuikuro, Mehinaku. 
Pesquisei diversas histórias e escolhi para estarem em “Contos indígenas” – aquele 
que seria meu primeiro espetáculo com este tema – narrativas das etnias bororo 
(“Subida para o céu”), kaxinawá (“A lenda da lua cheia”) e nambikwara (“O menino 
e a flauta”). A primeira conta a origem dos animais e das estrelas, a segunda mostra a 
origem da lua e da menstruação das mulheres e a terceira narra a origem dos alimen-
tos e da flauta sagrada Wairu, que só pode ser vista pelos homens.
As perguntas eram muitas: – Por que contar histórias indígenas em nossa socie-
dade? Como colaborar para difundir a tradição destes povos? Como utilizar versões 
dos mitos tradicionais e fazer com que alguns de seus símbolos possam ser apreendi-
dos por pessoas de outra formação cultural? Como abordar temas como sexualidade e 
morte, que para nossa sociedade são tabus, e que nas histórias indígenas são tratadas 
com naturalidade? De que modo eu deveria contá-las? 
1. Frase que norteia o trabalho do Instituto das Tradições Indígenas, para o qual trabalhei no projeto Rito de Passagem.
[Daniele Ramalho]
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Divido com você “que me escuta” algumas reflexões após 11 anos de trabalho com 
a cultura indígena brasileira.
Meu primeiro passo foi perceber que não há uma cultura indígena no Brasil, mas 
muitas, já que há grandes diferenças entre o modo de vida das etnias encontradas 
em nosso território. Como sugeriu Lévi-Strauss, para que haja uma compreensão dos 
mitos indígenas o melhor é entendê-los em seus próprios termos, ou seja, compreen-
dendo o pensamento de quem os produz2. 
Fui buscar então maiores informações sobre as etnias e mitos que escolhi. Procu-
rei referências que indicassem a que rituais se referiam, a que se destinavam e com 
que finalidade. Dois deles preparavam os jovens para a iniciação ritual que marcava 
sua passagem para a vida adulta. Esta pesquisa foi fundamental para guiar algumas 
escolhas na construção do trabalho.
Citarei um exemplo. No mito kaxinawá “O menino e a flauta” conto a origem da 
flauta wairu, que apenas aos homens é permitido ver. Como na historia o menino e 
seu pai escutam o som da flauta, poderia ter sido o meu primeiro impulso usar uma 
flauta durante a narração. Com a pesquisa compreendi que, se a história trata exata-
mente da flauta wairu como um tabu para as mulheres, nada mais coerente do que eu, 
como mulher, não usar o instrumento na contação. Resolvi a questão reproduzindo 
o som da música ritual com minha voz. Mais que preciosismo, para mim este é um 
exemplo claro de como a pesquisa é importante no respeito às tradições do povo cuja 
história desejamos apresentar. 
Durante o longo período em que coletei versões dos mitos, encontrei muitas dife-
renças nas adaptações. Achei preciosidades como a coleção
Morená, da escritora e 
ilustradora Ciça Fittipaldi, cujas versões uso no espetáculo.
As narrativas dos mitos nos chegam normalmente em livros de antropólogos, escri-
tores e pesquisadores que conviveram com povos indígenas. Há casos em que são nar-
radas em português pelos indígenas – onde costumam se perder detalhes importantes 
em função das histórias não serem recolhidas na língua de origem do narrador. Há 
casos também em que os mitos são gravados ou escritos na língua indígena, e, posteri-
2. Claude Lévi-Strauss revolucionou a antropologia através do estruturalismo, com importantes estudos sobre a análise 
de ritos e mitos
27
ormente, traduzidos – o que costuma apresentar melhores resultados. 
A importância de encontrar várias versões de uma mesma história é a possibili-
dade de perceber o quanto foi preservado da essência daquela narrativa e o quanto 
há de adaptação do autor, que muitas vezes “adultera” ou “corrige” o conteúdo do 
mito para que o seu teor “primitivo” não entre em atrito com as normas sociais de 
conduta de nossa cultura.
Após o contato de nossa sociedade com os povos indígenas, foram criados proje-
tos que visam registrar sua história mítica como, por exemplo, nas publicações utiliza-
das nas escolas indígenas ou em livros publicados por escritores indígenas – que, em 
diversos estilos literários, revelam a tradição ancestral. É a palavra dos antigos – que 
fala do tempo em que o mundo foi criado – apresentada pela nova geração, que 
mesmo após incorporar à sua cultura inovações como o uso da internet, luta para 
manter vivo o pensamento e o modo de vida harmônico de seu povo. Assim, apesar 
de terem sofrido mudanças significativas em seu imaginário, eles encontram meios de 
manter a sua identidade e reverenciar a sabedoria ancestral.
Voltando a “Contos indígenas”: optei por trabalhar no espetáculo com a corpo-
ralidade como um meio de contar as histórias. Sempre me saltava aos olhos a maneira 
como os indígenas narram seus mitos. Um exemplo: na época em que trabalhei no 
projeto Rito de Passagem, do Instituto das Tradições Indígenas /IDETI, durante uma 
conversa com “Seu” Joaquim Yawanawá, ouvi-o narrando em pano (sua língua de 
origem) o trecho de uma história. Eu não entendia o significado do que ele dizia, 
mas era impressionante o vigor e intensidade com que me contava os fatos; os gestos 
que fazia. Era como se revivesse na frente de sua ouvinte cada personagem e acon-
tecimento. Sei que há outras possibilidades, mas neste trabalho optei por uma forte 
presença da corporalidade para, de algum modo, trazer ao imaginário do público um 
encantamento e uma espécie de sentido ritual que considero bastante adequados para 
uma narração mítica.
Como abordava três etnias diferentes, acabei optando por uma pesquisa mais 
genérica sobre referências corporais dos povos, encontrando uma corporalidade 
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única, que permeasse todo o espetáculo. No começo da construção do espetáculo 
“Contos indígenas”, eu e André Masseno, diretor do trabalho, utilizamos fotogra-
fias de pessoas dos povos abordados em ações físicas cotidianas. Reproduzimos estas 
ações num treinamento corporal, codificadas em partituras físicas, que depois foram 
devidamente esquecidas. Posteriormente, na composição das narrativas propriamente 
ditas, os gestos e movimentos foram reaparecendo. E o corpo encontrado se refletiu 
também na sonoridade. Aprendi palavras e cantos das etnias cujas histórias escolhi 
em sua língua original, aprendi sons que os indígenas fazem em seu cotidiano – e, aos 
poucos, codifiquei um modo diferenciado de abordar o som nas narrativas. 
 E qual é a importância de contar mitos indígenas hoje? Sabemos que as narrativas 
míticas ajudam a compreender uma sociedade, trazendo sua visão sobre a ordem do 
mundo, suas regras de convívio – o que não só fortalece seu sentido de grupo, como 
carrega a sua memória. As histórias também preparam os indígenas para rituais de 
passagem. Trazem a conexão entre mundo material e espiritual e falam de um encan-
tamento que pode nos conectar novamente com a magia da vida gerando uma nova 
compreensão de nossa existência através de uma ancestralidade viva. Gosto muito de 
Joseph Campbell quando ele diz que os mitos “...ensinam a se voltar para dentro...” e 
“...nos permitem uma leitura das mensagens que o mundo nos emite”. As narrativas 
indígenas podem, portanto, nos conectar para “além da internet” e gerar uma real 
ligação com o outro e com a sociedade. 
Sabemos que os mitos se referem a questões arquetípicas, tratando de símbolos 
que acessam emoções e imagens simbólicas que constituem a condição humana – o 
que nos leva a pensar que somos todos iguais! O africano Amadou Hampátê Bâ disse 
– referindo-se à tradição dos mitos de iniciação peuls – que “Um conto é um espelho 
onde qualquer um pode descobrir a sua própria imagem.”3 
Por outro lado, o mito traz um caráter específico da cultura a que pertence – ou 
seja, trata da identidade de um povo; aquilo que o faz único – o que sugere que somos 
todos diferentes! Acredito que esta dicotomia presente nas narrativas míticas é que 
pode gerar reflexões que nos levem a ter maior tolerância com a diversidade cultural e 
3. Amadou Hampátê Ba foi escritor, historiador, poeta e contador de histórias nascido no Mali; um grande defensor da 
tradição oral africana.
29
fazer com que encontremos modos de convívio mais harmônicos com outras pessoas 
e culturas na grande aldeia global em que nos encontramos. É preciso, então, ver a 
oralidade como uma atitude diante da realidade, ligada a uma visão de mundo e à 
vontade de comunicação com o outro.
Espero, de verdade, que possamos dar voz à tradição indígena de nosso país; 
que as histórias destes povos possam gerar respeito à riqueza da diversidade cultural 
brasileira e que elas sejam, cada vez mais, contadas e escutadas por todos e para todos, 
gerando mais compreensão e interação entre os povos.
Leituras Inspiradoras
u O poder do mito. Joseph Campbell. Pallas Athena, 1990.
u Subida pro céu. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.
u O menino e a flauta. Ciça Fittipaldi. Melhoramentos, 1986.
u Memória e construção de identidades. Maria Teresa Toríbio Brittes Lemos e Nilson 
Alves de Moraes (Orgs.). 7 Letras, 2000.
u Mito e significado. Lévi-Strauss. Edições 70, 1985.
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oNegras histórias
 (a valorização da cultura 
oral afro-brasileira)
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u me lembro muito bem... Tanto o meu pai quanto a minha mãe me contavam 
histórias antes de eu dormir. As narrativas de meu pai, que era escritor, tinham 
um sabor especial, pois eram em capítulos inventados por ele mesmo, recheados de 
aventuras mirabolantes, que se sucediam a cada noite. Foi assim que iniciei meus 
primeiros passos pelo fantástico mundo da contação de histórias.
Depois vieram os livros que despertaram em mim, desde cedo, a vontade de via-
jar. Mais tarde, trabalhei durante dois anos como professor-voluntário a serviço das 
Nações Unidas na Guiné-Bissau, África. Ali, me encantei com as apresentações dos 
griots e com a diversidade dos contos tradicionais africanos, tema de inspiração para 
muitos de meus livros.
Essa experiência foi também importante para minha atuação como contador de 
histórias e pesquisador da cultura oral afro-brasileira e africana.
Nos últimos anos, graças aos movimentos organizados e, sobretudo, depois da 
lei 10.639/2003, que torna obrigatório o ensino da história e cultura africanas e 
afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, público e particular, a 
literatura de raízes negras, nem sempre valorizada anteriormente, tem sido destaque 
em nosso panorama editorial.
Também, pudera! Nós, brasileiros, somos frutos da união entre diversos povos e 
crescemos convivendo com uma rica pluralidade de culturas.
Os versos da canção de um violeiro das barrancas do Rio São Francisco, em Minas 
Gerais, resumem a questão:
[Rogério Andrade Barbosa]
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Sou índio, sou branco, sou negro.
Eu sou brasileiro.
Portanto, as diferenças culturais devem ser reconhecidas e, não, ignoradas, ou 
alvo de discriminação. 
O negro brasileiro, cujos ancestrais foram trazidos a ferro e fogo do continente 
africano, amontoados nos porões dos navios tumbeiros, trouxeram com eles um de 
seus bens mais preciosos, que ninguém lhes tiraria: as suas histórias. 
E nesse “baú fabuloso” vieram os contos, lendas e fábulas transmitidas de pais 
para filhos, há várias gerações. 
Um dos aspectos mais relevantes da cultura oral africana talvez seja a maneira 
como os contadores interpretam as histórias usando apenas o corpo, os gestos e a voz 
para cativar os ouvintes. Esses mestres da palavra, verdadeiras “bibliotecas vivas”, que 
mantêm um elo entre o presente e o passado, persistem até hoje.
A presença de personagens negras contadoras de histórias é marcante na obra 
de vários escritores brasileiros. José Lins do Rego em Menino de engenho, descreve em 
detalhes uma delas, que nunca se apagou de sua memória:
A velha Totonha de quando em vez batia no engenho. E era um acontecimento para a meni-
nada. Ela vivia de contar histórias... Que talento ela possuía para contar suas histórias, com 
um jeito admirável de falar em nome de todos os personagens! Sem nem um dente na boca, e 
com uma voz que dava todos os tons às palavras.... A velha Totonha era uma grande artista 
para dramatizar.... Tinha uma memória de prodígio”
 Já Viriato Corrêa, em Cazuza, evoca outra dessas contadoras geniais:
Vovó Candinha é outra figura que nunca se apagou de minha recordação.... É que ninguém 
no mundo contava melhor histórias de fadas do que ela. Devia ter seus setenta anos: rija, 
gorda, preta, bem preta e a cabeça branca como algodão em pasta... Não sei se é impressão 
de meninice, mas a verdade é que, até hoje, não encontrei ninguém que tivesse mais jeito 
para contar histórias infantis...
Monteiro Lobato, em Histórias de Tia Nastácia, emprega a voz de Pedrinho para 
exaltar uma de suas personagens mais conhecidas e que tem sido alvo de tantas 
polêmicas e releituras:
33
... Tia Nastácia é o povo. Tudo que o povo sabe e vai contando de um para outro, ela deve 
saber.... – As negras velhas – disse Pedrinho – são sempre muito sabidas. Mamãe conta de 
uma que era um verdadeiro dicionário de histórias folclóricas... Todas as noites ela sentava-
se na varanda e desfiava histórias e mais histórias. Quem sabe se Tia Nastácia não é uma 
segunda tia Esmeréria?
Já em O Saci, Tio Barnabé, outra das inúmeras criações de Monteiro Lobato, é o 
típico Pai João: “Negro de mais de 80 anos, descalço...” 
Embora estereotipado, ele é o grande conhecedor dos segredos da mata que 
envolve o sítio do Picapau Amarelo. A sua longevidade, no melhor estilo africano, é 
a fonte de sua sabedoria. É a ele que Pedrinho vai recorrer quando quer saber se Saci 
existe mesmo: “– Como não hei de saber tudo, menino, se já tenho mais de 80 anos? Quem muito 
veve, muito sabe...” 
Contadores e contadoras de histórias tradicionais ainda são encontrados, prin-
cipalmente em comunidades afastadas dos grandes centros urbanos. Em 2008, em 
minhas andanças pelo Brasil, tive a oportunidade de entrevistar uma senhora negra 
de 93 anos na ilha de Itaparica, Bahia, dona de memória invejável, que me contou 
histórias do seu tempo de criança, cantando e imitando as vozes de diferentes perso-
nagens de uma forma emocionante.
Nossas histórias, danças, canções e saberes tradicionais têm uma grande influên-
cia da Mãe-África. Nesse aspecto, os livros destinados aos mais jovens têm um papel 
fundamental: o de contribuir para que a criança sinta-se orgulhosa de pertencer a 
uma cultura, seja ela qual for, e de aprender a respeitar às diferenças, contribuições e 
valores de sua própria comunidade e também de outros povos. 
A valorização passa pelo reconhecimento. As palavras e as ilustrações de um livro 
são como um espelho. E se a pessoa não vê a sua imagem refletida, pode se sentir 
desinteressada e desmotivada. A sua autoestima é afetada.
Aos autores de livros para crianças e jovens, aos contadores de histórias e aos 
educadores cabe preservar, valorizar e divulgar as tradições orais. As histórias são 
importante fator de enriquecimento e afirmação de identidade social, especialmente 
em um país plural como o nosso. 
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E não se esqueçam: as histórias foram feitas para serem contadas e recontadas.
Leituras Inspiradoras
u Cazuza. Viriato Corrêa. Companhia Editora Nacional, 1976.
u Histórias de Tia Nastácia. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1947.
u Viagem ao céu e O Saci. Monteiro Lobato. Brasiliense, 1960.
u Menino de engenho. José Lins do Rego. José Olympio, 1960.
oDeusNumDé:
dom da visão
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is que a cadência da roda, no compasso da ciranda, dava o tom de todas as vozes, 
que em coro cantavam: “Até pro ano, se eu vivo for”. Era o encerramento do Circui-
to Estadual das Artes, realizado numa das praças da cidade de Caxias-RJ. Fazendo jus à 
tradição que, desde séculos aos dias atuais, acompanha a trajetória de artistas populares, 
em praças, ruas... o chapéu logo é mostrado... Feito pedra de anel, de mão em mão é 
passado, quando vê, está enriquecido em notas e moedas. O que não significa que ali 
está a paga pela função apresentada ao respeitável público. No andar das contações de 
histórias – vozes das praças – rodar o chapéu, no desfecho de cada função, é hábito que 
se mantém mais como um complemento brincante, eu diria. Dito isso, a presença de 
espírito, em carne, osso e voz, do contador de história, perante a sociedade atual (lou-
camente urbanizada, até certo ponto) se dá como proposta de lazer, educação, cultura... 
aos ouvidos de um público volante (sempre passando), personagem carente de um pou-
co de poesia nos fins-de-tarde-cair-da-noite de seus dias, em grande parte estressantes.
Caía de vez a noite sobre o viaduto, quando os participantes do recém-encerra-
do espetáculo foram deixando a Praça, cada qual pegando seus adereços de cena e 
rumando em destino ao Lar, Doce Lar. Eu, apesar de já ter tomado parte em inúmeras 
apresentações de rua, com semelhante dimensão humana povoando a roda, vi ali um 
dos mais iluminados Pontos de Encontro Marcado com a Poética do Circo, por meio 
dos Pernas-de-Pau, que encenavam Ditos Populares, do Homem que fazia fogo jorrar 
por sua Boca de Palhaço... Enfim, tantas foram as provas do Poder Poético nas Vozes 
e Voos daquela Praça que, ao sair de lá, no intento de ir também pra casa, no meio 
[Edmilson Santini] 
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do caminho dei com Outra Praça, e dá-lhe gente em volta de uma figura que cantava, 
ao meu ver, de forma encantadora. Eu poderia muito bem fazer “ouvidos-de-tô-com-
pressa”, passar, literalmente, ao largo da dita praça, mas, em vez disso, me vi atraído 
de tal maneira pelo entoo da Cantiga (era uma Cantiga de Roda em tom de peditório, 
acreditem), que pra lá fui levado a correr.
 Quando me dei conta, estava de cabeça, juízo e tudo, enfiado no meio daquela 
plateia que, mesmo compacta, me parecia uma imensidão humana, tamanha a simbo-
logia do acontecido no meio daquele círculo de expressões atentas: Um Cego-Trova-
dor. No impulso de quem tem a vivência de “rodar o chapéu, a cada função, perante o 
respeitável público (no meu caso, rodo sempre o Folheto de Literatura de Cordel), fiz 
zunir uma moeda no ar, que tilintou no miolo de um chapéu, que figurava no Centro 
da Roda. No boca
a boca de todos ali presentes, ouvi um “Viva! Viva a moeda da 
sorte, que de longe acertou a boca do ganha-pão...”. Num gesto-meio-passe-de-mágica, 
o cego fez calar o vozerio e suspendeu a cantoria. Cada um ali em volta fazia vez de 
quem tinha uma história pra contar. Vendo no Cego uma História Viva em Pessoa, 
não hesitei em dimensionar a importância do que ali chamei – lá entre meus botões 
e pensamento – Teatro de Circunstância: aconteceu, virou diálogo. E um diálogo 
comecei – meio prosa, meio verso –, perguntando como o Cego se chamava:
“Deusnumdé”! Respondeu ele. “Deus num quê”!? Saiu a exclamação, num coro 
de muitas vozes. “Deus num deu olhos pra ver, mas deu o dom da visão”. O Cego 
assim respondeu, em tom de improvisação. Em torno ouviu-se o estalar de mãos, 
como se a praça inteira o aplaudisse de pé. No Centro da Roda – boca para o céu vira-
da – o chapéu num instante havia multiplicado os valores. Levado por certo encanta-
mento, no Cego quase me encostei. Olhando em seus olhos, vi que o Cego “me via 
por dentro”. Situação de um sonho enriquecedor, da qual eu dou testemunho: ele era 
eu, eu era ele e a Roda já era Outra. Um Mar de Encantaria fez vulto em meu pensa-
mento. E na Cadência do Verso de DeusNumDé tive a prova: o danado do Cego em 
seu Universo Popular, nos abre os olhos para o lugar que ocupa, muitas vezes invisível, 
nesta Ciranda de Histórias, no dia a dia a rodar... 
39
Por meio do inconsciente – ciente do encanto ali vivido – me vi inteiro tomado pelo 
zumbir sem fronteira da Tradição Oral. Logo, em vez de servir de guia, me vi guiado pela 
voz de DeusNumDé, numa Viagem, eu diria, de Retorno ao Mundo do Maravilhoso.
Bem, na real, mesmo, àquela hora, encerrado o espetáculo acima citado, eu me 
encaminhei foi direto pra casa, como o mais comum dos mortais. Foi assim que 
me vi na Concreta Travessia da Avenida Brasil, à mercê de um trânsito emperrado, 
repleto de arruídos, que meu pensamento voou, ligando o itinerário da Via Expressa 
ao imaginário poético-viajante do Cego DeusNumDé. Estou ciente de que meu teste-
munho, a essa altura, vai tomando ares de metáfora errante, mas foi por meio dessa 
errância que eu pude ver, em tempo real, por irreal que pareça, a entrada de Deus-
NumDé, agora, na Praça do Reino Encantado: Lugar dos Contos Populares. Lá vi 
DeusNumDé ser recebido ao som do Canto e Dança do Pastoril, Boi da Ressurreição, 
Maracatu do Baque Virado, com baque solto na festa. Isso me abriu uma Terceira 
Visão nos Sentidos, pois logo vi Meu Avô; que era ali um Velho Guardião de Muitas 
Vozes, mantendo em constante renovação (narrador de bom guardado), entre outras, 
as Histórias de Exemplos e Trancoso. Com DeusNumDé bem à vista, vi Meu Avô 
trancando e abrindo as feições, lá de seu rosto – sorrindo ou enfezado – conforme 
pedia o clima da história que estava contando, à beira do fogo, na Praça do Reino. 
Velho narrador de ontem, como hoje, desempenhando seu papel sagrado.
A essa altura da viagem (concreta e imaginária) me ocorre dizer que, nos dias de 
hoje, o contador de histórias, seja sua atuação por meio do verso ou da prosa, é um ser 
essencial a uma sociedade que se vê necessitada em “dar um tempo ao tempo da poesia”. 
Cruzando, enfim, um Terceiro Sinal Verde, antes de chegar em casa, vi Deus-
NumDé já transitando entre a Praça do Reino e a Praça da Pedra Medieval.
Assim que entrei em casa, liguei a televisão, direto no programa Narradores do 
Tempo – Canal da Voz do Futuro. Quem eu vejo aparecer? DeusNumDé, lá desafi-
ando Homero. Não estando eu maluco – assim espero –, juro que isso eu vi suceder. 
Coisa do mundo da tevê. 
Partindo de um plano que se fechava nos dois, a tevê foi revelando uma grande 
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arena, onde se viam de gente antiga a modernosa... Ambiente de Encontro Celebrativo. 
De repente, em plano médio, eu vi e reconheci: um Médium, ao seu lado uma 
Alma Viva do Teatro. Se não me falha a imagem, o Espírito Dionísius também vi. Vi 
um Poeta mais atrás, só pela rima do olhar. Olha quantos entes da Criação Humana... 
Logo ao lado vi um senhor que tinha pinta de palhaço. Era uma Praça povoada de 
Porta-Vozes dos Saberes Populares. Vi a tevê fechar o plano de novo em Homero e 
DeusNumDé. A peleja entre ambos alcançava seu clímax. Desenrolando o desfecho, 
Homero desfiava lá um fuminho de rolo. A figura de seu rosto agora, do meu ponto 
de vista, era, escrito, a de meu Avô. 
Tevê voltou ao plano médio, e o poeta – reconhecido por mim – emendou contan-
do um Conto dos Dias de Hoje. Aí eu tive a certeza: espaço de contador de história é 
espaço de precisão: vai onde é preciso ir. Nesse preciso momento, o cansaço se insinu-
ando, me dominou as pestanas, meus olhos foram deixando os Narradores no Ar... 
Dia seguinte, as tantas vozes de um homem davam vez ao Teatro De Bonecos: 
Era o início do Festival Nacional de Teatro, nas Ruas de Angra dos Reis, onde a Cia. 
Chegança, do Maranhão foi chegando, já cantou pra guarnicê; e em pé sobre seu 
Banquinho, entre ruas e sinais, vestido só de jornais, Dalmo Saraiva fazia vez de “O 
Homem De Papel: Coberto de Notícia, sem Ler um Terço da Missa”. Num rito de 
itinerância, prossegui ouvindo e vendo, entre tantas semelhanças de fala, as diferen-
ças na prosódia, nos sotaques... Seguindo minha abordagem, dei com a performance 
da “Mulher Que Roda e Cai”. Entre a Mulher e o Cais, outras histórias ouvi. À Beira 
do Mar de Angra, portanto a Praça do Porto, foi bonito de se ver: a Poética de Cordel 
(Teatro de Precisão, Indo Onde é Preciso Ir, como eu já disse) fez a Ponte entre o Nar-
rado, o Vivido e o Cantado. 
No rastro desse convívio da arte de contar-encenar com outras artes afins, dei 
uma espichada de pernas, fui a becos e recantos, – que pareciam invisíveis aos olhos 
programação oficial –, até me achar num picadeiro, bem na frente da igreja. Pen-
sei: Profano e Sagrado, numa alegre interação: Circo inteiro e ativo, compartilhando 
acrobacias com as preces do sacristão. Mal pensei, fui avistando, lá noutra esquina 
41
um caboclo. Vi logo que era cria do lugar: um pescador de palavras. Sua voz estava na 
praça, mas apenas sussurrava uma história-para-dois. “Quem cochicha, o rabo espi-
cha”. Pensando assim, espichei o meu pescoço, meti o nariz entre os três (narrador e 
seu público de dois): “Sou Seu Cochicha-Língua-Espicha!“ Ele a mim se apresentou. 
E continuou contando sua história agora pra três. Pensei nessa modalidade: Público-
micro em meio à macro-visão de gente. Ideia só dele ou não, foi um jeito encontrado 
de ser ouvido com atenção, valorizando, de verdade, cada palavra então falada. É nes-
sas pequenas grandes nuances, por entre ouvidos e praças, que se percebe: espaço do 
contador de histórias nos dias atuais não se mede apenas pelo volume de público à 
sua volta, mas também pelo conteúdo e boa qualidade que se imprime em seu contar.
Já em pleno pôr do sol, um céu de plasticidade: Azul, vermelho, amarelo, suave-
mente mandou a estrela-guia alumiar a cidade, pro Cortejo das Linguagens. Assim 
sendo: Do Homem de Papel ao Mímico, passando pelo Narrador-Para-Três, Mamu-
lengos, Cirandeiros... Até Mestre Vitalino, com Bonecos de Lampião e Maria Bonita, 
acrescentaram pontos diversos na interação de contadores com outras artes. Desse 
ponto de partida, ao som de tambores, cantos, danças, contos, etc. – por ruas, praças 
e beira-mar o Cortejo circulou. Sendo o Ponto-de-Chegança o mesmo de onde par-
tira: Frente à igreja: lugar do Circo Armado. Cortejo chegou, fez-se a Roda, rodou-se, 
então, o chapéu. Era o mesmo chapéu do começo dessa Jornada de Palavras.
Sem mais o que dizer, peço licença a Guimarães Rosa pra indagar: “Aqui, a 
história acabada?”. Acaba é nada! A história é dada a se verter, virar outras, conforme 
muda de voz ou de lugar. Toda história que se preza
ser contada, guarda em si outras 
versões. Falando nisso...
 Lá Não vi foi DeusNumDé,
 mas ele segue no ar,
 contando, pra quem quiser
 em seu mundo navegar
 e contar, como puder,
 a história que imaginar.
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 Meu Avô também não vi.
 Não quis ele aparecer
 em Angra, mas eu ouvi,
 – caro leitor pode ver, – 
 suas palavras, dizendo:
 “Estou escutando, estou vendo,
 em Angra a Ema Gemer”.
 Este artigo foi pedido,
 pra ser em prosa, eu sei,
 mas me vi tão dividido,
 que um jeito no fim eu dei.
 Assim, versejado eu deixo,
 registrado este desfecho
 da história que contei.
Leituras Inspiradoras
u Grande sertão: veredas. João Guimarães Rosa. Nova Fronteira.
u Cantadores. Leonardo Mota. Itatiaia.
u Zé Limeira, poeta do absurdo. Orlando Tejo. A União.
u Patativa do Assaré, a trajetória de um canto. Luiz Tadeu Feitosa. Escrituras.
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oVozes, corpos e textos 
nos vãos da cidade
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A liberdade, segundo o senso comum, é um direito inalienável de todo ser humano. Mas a luta para que ela seja valor imprescindível nas relações sociais, 
políticas e econômicas é um exercício que se perpetua na contemporaneidade. É 
impossível para o (e)leitor de nosso momento histórico conceber a arte submetida 
a regimes estéticos, mercadológicos e ideológicos autoritários. A liberdade, além de 
ser um segredo, como diz Clarice Lispector, tem uma densidade uma oitava acima de 
qualquer tom.
Contar uma história, para mim, é sempre um exercício em liberdade. Não consigo 
entender como, diante dos impasses do presente, as narrativas individuais e coletivas 
possam ser controladas e/ou orientadas por forças externas a sua fundação como dis-
curso. Estar diante do outro e falar para o outro do outro que habita em si é o grande 
gesto político, artístico e ético que um contador de histórias pode fazer num mundo 
de descasos e banalizações. 
Há quem ainda acredite e perpetue a ideia de que o autor morreu. Parece que 
alguns proto-pós-modernos de plantão não leram bem ou passaram apressadamente os 
olhos pelos textos de Foucault e Barthes que discutem essa questão. Como falar de 
morte do autor num momento de histeria coletiva diante do conceito de intimidade 
e da proliferação das narrativas do eu, das autobiografias e das autoficções? 
As narrativas urbanas que moldam o corpo textual e sonoro do contador formam 
um contínuo e caudaloso rio que contempla margens e penetra territórios que vão da 
família à rua, da solidão ao encantamento, da loucura à memória. Infância, paixões, pre-
[Júlio Diniz]
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conceitos, violência, espanto, desejo e dor são tratados em liberdade por vozes que nar-
ram vozes em trânsito, corpos em suspensão, discursos entortados pela potência da vida.
Toda essa discussão nos remete a uma luta contra a liberdade aprisionante do 
espaço branco do papel, da imobilidade do corpo como máquina desejante, do silên-
cio imposto à voz. Potentes em suas articulações e no diálogo com o contemporâneo, 
os contadores de história, diluídos na polifonia urbana, irmanam forças que resultam 
num delicado jogo de tensões. 
Se o contador se dispuser a embaralhar a ordem de performatização dos textos e 
construir a sua própria escolha, encontrará no vão do sentido a possibilidade de exer-
citar seus dons de bricoleur. Esse convite à trapaça, à invenção de um outro, tem um 
forte aliado nos cenários imagéticos da cidade de nosso tempo. Imagens, textos e vozes 
em dialogia e em rotação contínua. A liberdade, antes de tudo, é um jogo de seduções.
Acredito muito na potência da figura e da ação dos contadores diante da amnésia 
imposta pelo capitalismo cognitivo para vender a memória como mercadoria. Há nos 
contadores que erram pelas cidades um desejo de trazer do subsolo das reminiscên-
cias das ruas, bairros e espaços públicos a força erótica da invenção. São griots e griotes 
que resistem na contemporaneidade ao descaso com a história dos afetos e das nar-
rativas que a liberdade nos provoca. 
Como tentar revelar as múltiplas faces da liberdade até agora? Como a contação 
de histórias pode se transformar no lugar da resistência e de afirmação da precarie-
dade humana? Como os (e)leitores de nosso tempo lidam com a vontade que poten-
cializa o sim diante do controle e da vigia que os tempos pós-utópícos nos reservam? 
Muito mais que certezas, estas questões estão impregnadas de desejos e dúvidas. Ler 
em liberdade é o dispositivo possível de sua apreensão e entendimento.
oMuitas vidas, 
muitas vozes, 
muitas histórias
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Júlio Diniz – A palavra Morandubetá, o que significa? 
Morandubetá – É uma palavra Tupi que significa “muitas histórias”. 
Júlio Diniz – Como o grupo surgiu? Qual é a formação original? Houve pessoas que 
entraram, ficaram um tempo e saíram?
Morandubetá – Em 1989 aconteceu no Rio de Janeiro um curso de contadores 
de histórias com o grupo da Venezuela “En Cuentos y Encantos”, formado pela 
venezuelana Isabel de los Ríos e o brasileiro Luiz Carlos Neves. Foram convida-
dos por Eliana Yunes que era Diretora da FNLIJ – Fundação Nacional do Livro 
Infantil e Juvenil, onde trabalhavam também Lúcia Fidalgo, Maraney Freire e Inês 
Rocha. As quatro fizeram o curso e foram a semente do futuro grupo, mas ainda 
não era o Morandubetá. Nesse meio tempo o Celso Sisto entrou para a FNLIJ, 
como especialista da área de literatura, e se juntou ao grupo. Começamos a nos 
reunir e contar histórias no Instituto Nazareth, um colégio dirigido por Regina 
Yolanda que ficava na Rua Pereira da Silva, em Laranjeiras. Eliana participava da 
equipe pedagógica e nos levou para lá. Ali nasceu o Morandubetá. Pouco depois 
a Inês foi viver na França. E o grupo ficou composto por Eliana Yunes, Celso 
Sisto, Maraney Freire e Lúcia Fidalgo. Então a Maraney saiu e chegou a Benita. 
A formação que existe até hoje – Benita Prieto, Celso Sisto, Eliana Yunes e Lúcia 
Fidalgo – começou em 1991. E o nome do grupo foi escolhido por causa do livro 
Morandubetá, de Heitor Luiz Murat, da Editora Lê, uma colheita de diversas fábu-
las indígenas. Quando vimos o nome, falamos quase que ao mesmo tempo: mas 
[Júlio Diniz & Morandubetá]
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que nome interessante, Morandubetá! Uma palavra diferente. Que remete ao que 
a gente quer... Homenagear os povos indígenas.
Júlio Diniz – Iluminar o Brasil pouco iluminado, deixá-lo vazar e brilhar, não é?
Morandubetá – Isso! É, tudo nasceu daí e assim! Foi muito... Bonito e mágico!
Júlio Diniz – E aí vocês começaram a fazer o quê em 91/92?
Morandubetá – Contávamos no projeto “Meu livro, meu companheiro”, da FNLIJ, 
que acontecia no INCA – Instituto Nacional de Câncer, onde foi montada uma 
sala com uma biblioteca chamada Bibliolândia, nome escolhido pelos frequen-
tadores. Nesse momento começamos também a viajar pelo Brasil para formar 
contadores pelo Proler.
Júlio Diniz – Qual era o repertório? Era só para pacientes, para adultos e crianças?
Morandubetá – A sala e o repertório eram voltados para a literatura infantil e 
juvenil, mas acabou virando um espaço de convivência de todos, porque nesse 
momento também nascia no INCA um grupo de voluntários que estava sendo 
formado para trabalhar com as crianças. Daí surgiu a ideia de que, além de contar, 
poderíamos ministrar um curso de contador de histórias para esse grupo que teria 
a possibilidade de difundir essa ação nas suas atividades. Nós também íamos às 
enfermarias para contar, quando o paciente não podia se deslocar.
Júlio Diniz – Podemos dizer que antes dos doutores da alegria chegarem ao Rio de 
Janeiro vocês já estavam lá e faziam esse trabalho?
Morandubetá – Sim! Com certeza! Nessa época inclusive começamos a pensar em 
fazer essa ação num trabalho voluntário, a ideia de contar histórias para os enfer-
mos. Em 1995 fomos convidados para participar do projeto da Secretaria Muni-
cipal de Cultura Teatro é Vida, que era só com atores. Quando eles perceberam 
que já havíamos feito isso no INCA, resolveram nos chamar. Então tivemos a 
ideia de criar o projeto voluntário Cesta de Histórias que foi feito com o nosso 
dinheiro em seis hospitais da rede pública. Compramos as cestas de vime, doa-
mos os livros, demos formação de contadores de histórias. Acabamos ganhando 
uma Moção de apoio da Câmara dos Vereadores do Rio de Janeiro por essa ação. 
Foi uma bela surpresa! 
51
Júlio Diniz – Como era ser um contador de histórias no início dos anos 90? Havia 
já essa importância? Esse lugar? Esse reconhecimento? Vocês tiveram que respirar 
fundo e desbravar essa floresta selvagem?
Morandubetá – A narração de histórias é algo milenar, ninguém inaugurou nada. 
O que aconteceu refere-se ao surgimento e crescimento da narração urbana, que 
efetivamente se reintroduziu na prática social do brasileiro. Começamos muito 
timidamente, com muitos cuidados. Nós não saíamos dando oficina por aí, 
não. Assumimos que contar histórias fazia parte de um programa de formação 
de leitores, que ouvir narrativas organizava a cabeça das pessoas. Então quando 
surgiu o Proler – Programa Nacional de Incentivo à Leitura, da Fundação Biblio-
teca Nacional, fomos pelo Brasil. O Proler é que disseminou o nosso trabalho, 
mas nós somos os pioneiros na contação de histórias numa perspectiva contem-
porânea. Fomos também os precursores nessa história de grupos de contadores 
de histórias e de uma série de outras coisas: começamos as oficinas de contadores 
de histórias, começamos a organizar as sessões de contos como se fosse um espetá-
culo, demos os primeiros passos para o aparecimento de encontros de contadores 
de histórias, transferimos nossas experiências da prática para livros. E tudo isso 
começou numa época em que as pessoas não sabiam direito o que faziam os con-
tadores de histórias. Em muitos lugares as pessoas achavam que os contadores de 
histórias liam histórias para crianças. Também creditamos ao Morandubetá essa 
ampliação de público, uma vez que também fomos nós que começamos a gestar 
apresentações para um público adulto, exatamente para fugirmos dessa ideia 
de que contar história é só para crianças. E podemos dizer, seguramente, que a 
experiência com o teatro do Celso e da Benita também abriu as portas para que 
outros atores descobrissem a “contação de histórias” como caminho. Abrimos, 
inclusive, a possibilidade dos contadores de histórias trabalharem em feiras de 
livros (via Bienal do Rio), que depois se espalhou para todo o país. Outra coisa: o 
Morandubetá sempre investiu em apresentações de histórias literárias, sendo pre-
cursor dessa prática de levar para a oralidade os textos escritos de vários autores, 
quando o comum era as pessoas contarem contos populares! 
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Júlio Diniz – De onde vem essa palavra, “contação”?
Morandubetá – Essa palavra é do grande contador Gregório Filho. Primeiro ficá-
vamos cheios de receios de usar, pois a palavra não existia. Mas Gregório nos 
convenceu. É melhor falar de um jeito que todo mundo entenda. A língua portu-
guesa aguenta tudo isso. Ele define assim contação, ação de contar. 
Júlio Diniz – Quando é que vocês deram um salto, ou seja, modificaram um pouco 
o trajeto, se profissionalizaram e foram para o teatro? Já tive oportunidade de ver 
o trabalho de vocês em vários esquemas diferentes. Até no palco do CCBB – Cen-
tro Cultural Banco do Brasil – aqui no Rio
Morandubetá – Fomos evoluindo sem perceber. A gente não tinha um plano. 
Ocupávamos os espaços. Houve um fato importante que marcou o início de nossa 
trajetória – o trabalho no Museu Histórico Nacional. A revista Veja fez uma maté-
ria e aí despertamos o interesse do público, da imprensa e dos gestores de cultura. 
Passamos a ser chamados para projetos em várias instituições, nós fazíamos tudo 
ao mesmo tempo. 
Júlio Diniz – A partir daí, o que aconteceu?
Morandubetá – Naquele momento veio uma vontade de profissionalização. Decidi-
mos ter um logotipo, assessoria de imprensa, pensar em ter produtos, virar uma 
microempresa. E decidimos sair da Fundação Nacional do Livro Infantil e Juvenil, 
para não parecer que pertencíamos à FNLIJ. Despedimo-nos com uma linda carta 
que está lá nos arquivos da Fundação.
Júlio Diniz – A partir das vivências no Proler e no Leia Brasil, vocês formaram conta-
dores de história, é isso? Eu queria que vocês falassem um pouco sobre esse assunto.
Morandubetá – Percebemos que não daríamos conta de tudo, já que o Proler e o 
Leia Brasil estavam crescendo por todos os cantos do país. Nessa época também 
surge a Casa da Leitura em Laranjeiras que abre espaço para os contadores. A 
Casa começa com a gente contando histórias porque ainda não havia a formação 
continuada de grupos. Ministramos também cursos na PUC-Rio, Ler UERJ, uni-
versidades, SESC, SESI. Era tanto lugar, uma loucura saudável. 
Júlio Diniz – Vou adaptar a frase do Millôr Fernandes que é muito boa para falar 
53
desse aspecto. O Rio de Janeiro estava irreconhecivelmente inteligente naquele 
momento. É isso?
Morandubetá – É isso mesmo! No início não havia muito público. Tudo acontecia 
numa salinha. Levávamos nossos parentes e amigos para encher a sala. Depois o 
público foi crescendo, tinha disputa... Tinha senha. Às vezes fazíamos duas ses-
sões no mesmo espaço. Todo o processo foi muito lindo. Tanto no CCBB quanto 
na Casa da Leitura. 
Júlio Diniz – Vocês se tornaram multiplicadores e formadores de novos contadores 
de história e de grupos, não é mesmo? 
Morandubetá – Há vários grupos e contadores que são importantes no Brasil hoje 
que foram formados por nós. Praticamente deixamos um grupo em cada cidade 
por onde passamos. O Morandubetá possibilitou, junto com essas andanças, 
junto a esses projetos de que estamos falando, não só formar contadores como 
descobrir contadores, porque essa é a nossa missão também.
Júlio Diniz – Agora falem um pouco do repertório. 
Morandubetá – A história de repertório é a seguinte. Como as nossas sessões tinham 
sempre um tema, precisávamos pesquisar muito. Começamos com literatura infan-
til, depois passamos para literatura adulta, dentro da Biblioteca Nacional. A ideia 
foi sumamente rejeitada. As críticas eram pesadas. Alguns achavam um absurdo 
funcionários ouvindo histórias, fazendo círculo de leitura. Achavam que era lou-
cura contar histórias para gente que não sabia ler.
Júlio Diniz – O pessoal da limpeza?
Morandubetá – É, porque só sobrou o pessoal da limpeza, porque ninguém, fun-
cionário nenhum queria efetivamente participar. Quando passamos a fazer para o 
público em geral, escolhíamos histórias de acordo com a época, segundo o calen-
dário. Tivemos que literalmente caçar nossas leituras, consultar outras pessoas 
e mergulhávamos na biblioteca para ver os acervos. Foi aí que a Lúcia e o Celso 
viraram escritores. Na medida em que não encontrávamos um repertório do que 
queríamos, tínhamos que criar. Chegamos a ter um repertório de cem contos 
cada um de nós. E também nos encontrávamos para estudar. Fazíamos reuniões 
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semanais para ensaiar. Toda essa pesquisa nos deu segurança para trabalhar com 
a literatura oral e a autoral. 
Júlio Diniz – Vocês começaram localmente, depois ganharam
uma importância 
regional, projeção nacional e agora o desafio é dialogar com grupos no exterior. 
Eu gostaria que vocês falassem sobre isso.
Morandubetá – Na verdade já temos um ótimo diálogo com os contadores dos 
países de fala hispânica e portuguesa principalmente. Através dos encontros que 
participamos desde 1996 com a viagem da Benita para fora do Brasil e dos que 
produzimos por aqui desde 1999 construímos uma rede poderosa de ação. 
Júlio Diniz – Como é que vocês explicam o fato de estarem há mais de vinte anos 
juntos, sem se separarem, sem rachas, discordâncias maiores, essas coisas? O que 
une essas quatro pessoas de uma forma tão forte, além da amizade?
Morandubetá – O compromisso que temos com a promoção da leitura. Isso é um 
compromisso de vida. Não contamos por contar.
Júlio Diniz – E o plano de vocês daqui pra frente? Tem alguma coisa mais imediata? 
Fazer um livro, fazer outro espetáculo?
Morandubetá – O grupo teve que aprender a trabalhar de forma dividida. Os pro-
jetos individuais foram ganhando espaço também, junto com as atividades do 
grupo. E fomos investir na nossa formação profissional, qualificando-nos mais 
ainda. Mas o nome do Morandubetá sempre acompanha nossos trabalhos, mes-
mo os individuais. Temos muitas coisas a fazer, como divulgar a coleção Histórias 
das terras daqui e de lá, da Editora Zeus. A Lúcia fez a coordenação editorial e cada 
um de nós escreveu um livro em parceria com um contador estrangeiro. Tentar 
que o grupo se reúna duas vezes por ano para contar junto, porque a gente está 
muito disperso. Ter o nosso repertório registrado em CDs, pois gravávamos todas 
as nossas sessões de histórias, na Casa da Leitura, no início desse trajeto. Temos 
um livro pronto com contos indígenas, mas ainda sem editora. E também o No 
coração da palavra, que é um livro todo teórico e sobre nossas experiências. Que-
remos fazer um livro de contos autorais. Depois de tantos anos na estrada temos 
importantes contribuições a dar. 
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Júlio Diniz – A última pergunta para cada um de vocês. Quais são as expectativas da 
contação de histórias?
Benita Prieto – Estamos construindo uma bela história. Mas precisamos mapear o 
Brasil para ampliar as nossas bases nacionais. E solidificar as relações que mante-
mos com outros contadores no mundo construindo uma rede de cooperação que 
possibilite cada vez mais a troca de experiências e os intercâmbios. E algo que me 
aflige é a renovação. Há extrema necessidade de jovens contadores de histórias, 
para que todo esse trabalho não desapareça. Afinal e infelizmente eternas são 
somente as histórias.
Celso Sisto – A contação de histórias no Brasil de hoje está bem difundida. Mas 
falta mais, falta muito mais. Primeiro é preciso investir enormemente na forma-
ção de grupos. Eu acredito nisso. Contar histórias coletivamente tem uma força 
incalculável, e o que a gente vê com mais frequência é o surgimento de contadores 
individuais (é mais fácil contar sozinho! ser dono de tudo!). Mas sou a favor dos 
grupos, dessa experiência coletiva e socializante, inclusive como maneira de “bar-
rar” os estrelismos. O que importa é a literatura, o compromisso com as obras de 
qualidade. O que assistimos hoje é o que chamo de “pasteurização” da arte de 
contar histórias. Explico: o contador de histórias tem que se adequar à história 
que ele conta, e não o contrário. A história é quem deve determinar a forma, a 
maneira, o estilo requerido por ela, para ser contada, e não o contrário. O que 
se vê são contadores de histórias usando as histórias para ressaltarem suas quali-
dades artísticas e não “iluminarem” as histórias que contam. Toda e qualquer 
habilidade individual deve estar a serviço da história, para engrandecimento da 
história que se conta, e não do contador. 
Eliana Yunes – A contação de história sempre foi uma fórmula de abertura para 
ler o mundo. Pensando assim, como o mundo chega organizado às cabeças das 
pessoas, elas não sabem mais quais são as relações com as coisas. Que o mundo 
é o mundo da cultura, não é? As histórias fizeram esse papel. A oralidade sobre-
vive porque ela dá para organizar as sociedades, mesmo quando essas formas são 
muito sofisticadas como o caso das formas gregas. Elas prevalecem, permanecem 
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porque a oralidade dá a possibilidade de ter um sentido para a compreensão do 
mundo e das coisas. Eu acho que a gente pode ter um caminho todo da escrita 
digital, da escrita eletrônica, mas ouvir uma história de viva voz, com a respiração 
do contador, com o olhar do contador, é algo imbatível porque aproxima as pes-
soas. E as pessoas estão na verdade carentes de aproximação, de trocas pessoais. 
Penso que precisamos investir não como uma forma de institucionalizar ou de 
criar certas cerquinhas, em aspectos como a performática do contador de história, 
a questão da voz, do corpo, que não tem que se confundir com o palco, com o 
teatro. Como é que a gente transborda, transpira uma história? Isso merece um 
estudo mais sistemático. 
Lúcia Fidalgo – Há um problema hoje com a questão do repertório. A escolha dos 
textos tem que ser ampliada porque os contadores infelizmente começaram nessa 
onda de cópia, cópia, cópia, usando sempre as mesmas histórias. Devemos nos 
preocupar bastante com isso. Estamos numa sociedade da informação. A gente 
não tem que ter somente competência informacional para trabalhar com ela. 
Eu acho que temos que ter competência informacional e emocional. Creio que 
o papel do contador nisso funciona muito bem. Me preocupo muito com essa 
questão do repertório, de formar repertórios novos pra gente não ficar repetidor, 
como um papagaio. Então, só sendo leitor, não é?
Esta conversa com os participantes do grupo Morandubetá ocorreu na Cátedra 
UNESCO de Leitura da PUC-Rio. Era uma segunda-feira ensolarada, e a vontade 
de compartilhar experiências, relatos, sentimentos e lembranças nos aproximou 
naquela manhã de céu azul e luz na alma. Eu desempenhei o difícil e ao mesmo 
tempo prazeroso papel de mediador da conversa que contou com a presença de 
Benita Prieto, Lúcia Fidalgo e Eliana Yunes. Como o Celso Sisto estava no sul do 
Brasil, enviei por e-mail as questões para ele comentar. Suas observações foram 
incorporadas a este bate-papo. 
oImpressões de uma 
contadora de histórias 
– meu encontro com 
a arte narrativa
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mbora nenhum de nós vá viver para sempre, as histórias conseguem...”
Assim a autora Clarissa Pinkola Estés encerra seu livro escrito no início dos anos 
1990, O dom da história. Nesta obra ela pretende desvelar a amplitude do alcance das 
narrativas orais através dos tempos e seu efeito de longa duração. Os componentes do 
mundo mítico associados ao “feitiço libertador dos contos de fadas”, que se destina 
a provocar uma sensação de felicidade, e ao acolhimento do conselho, têm a capaci-
dade de perdurar e coexistir num mundo técnico que corre cada dia mais em busca 
do sentido para a vida. E do mesmo modo Walter Benjamin cita os elementos consti-
tutivos dos contos de fadas: “E se não morreram, vivem até hoje...”.
O estudo acerca do valor de longa duração dos contos oriundos das tradições 
orais é tema recorrente na obra de Câmara Cascudo (1898-1986) desde a década de 
1930. Especialmente em Literatura oral no Brasil, escrito entre 1945 e 1949, o autor nos 
fornece dados relevantes sobre a atmosfera sagrada que envolve a prosa do narrador 
e suas situações simbólicas apresentadas. Segundo ele, alguns segredos constituem as 
técnicas da narrativa popular:
Os velhos irlandeses têm repugnância de contar estórias de dia porque traz infelicidade. 
Os Bassutos africanos crêem que lhes cairá uma cabaça ao nariz ou a mãe do narrador 
transformar-se-á numa zebra selvagem. Os Sulcas da Nova Guiné acreditam que seriam 
fulminados
por um raio. Os Tenas, do Alasca, contam histórias de dia, mas o local deve 
estar na mais profunda obscuridade. Essa interdição é a mesma em Portugal e Espanha, 
decorrentemente para o continente americano. Quem conta estórias de dia cria rabo de 
cotia. (CASCUDO, 1984, p. 228).
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De fato, se recorrermos à memória de nossa infância, verificamos que talvez tenha 
sido dentro da noite, na penumbra de um quarto, na proximidade aconchegante da 
presença de um narrador primeiro, que grande parte das situações simbólicas em 
nossas vidas puderam se apresentar. Assim foi o meu encontro com a arte narrativa e 
o canto, entremeando o enredo dos contos. Aconteceu muito cedo, na infância ainda 
não alfabetizada, quando a forma de ler o mundo se apresentava através das histórias 
contadas e cantadas por minha mãe. A exemplo do que Câmara Cascudo mostra ser 
o que acontecia no Brasil-Colônia, com as amas contando histórias e acalentando 
as suas crianças e as das sinhás, o material que me era passado por minha mãe foi o 
meu primeiro “leite intelectual” recebido. O pesquisador trabalha com o conceito de 
literatura oral no Brasil e o estudo por ele realizado é uma eterna fonte de inspiração 
para meu próprio trabalho criativo. A partir do vasto material de sua pesquisa escrevi 
livros infantis com adaptações de temas de contos tradicionais, compus centenas de 
canções também para crianças e gravei boa parte desta obra em CDs, por acreditar 
que, na ausência de um narrador tradicional, seja possível reinstalar aqueles momen-
tos mágicos e encantadores por intermédio de suportes contemporâneos. 
Penso o quanto aquele rico e descompromissado momento proporcionado por 
minha mãe, era recheado de uma memória cultural de sua infância nos anos 1920, 
e o quanto esta memória transferiu-se para o meu imaginário, contribuindo para a 
construção do potencial imaginativo e criador que tenho hoje comigo. Logo em 1960, 
eu então com cinco anos, tive a chance e o privilégio de escutar as maravilhosas nar-
rativas da Coleção Disquinho criadas por Carlos Alberto Ferreira Braga, o Braguinha 
para os amigos, e o João de Barro, para o mundo artístico. Aquelas encantadoras 
narrações de contos populares do Brasil e também clássicos da literatura infanto-
juvenil do mundo, eram entremeadas por músicas igualmente belas que pontuavam 
os momentos das histórias e as traziam mais oníricas e lúdicas para dentro do coração. 
A partir daí, não somente minha infância se enriqueceu e se encantou com a arte 
de cantar e contar histórias, como também esta arte sinalizou o caminho profissional 
que eu seguiria posteriormente. Prossegui ouvindo e inventando histórias e canções 
61
na minha meninice e, mesmo antes de aprender a escrever, lembro-me de meus pais 
registrando poemas e músicas que eu criava e não sabia ainda colocar no papel...
Costumo dizer como se fosse um lema do meu trabalho artístico enquanto criadora 
musical e contadora de histórias para crianças, que o ato de ler e escrever histórias é fazer 
um bem; ouvi-las e contá-las, também. Assim como repito sempre: Era uma vez, era uma 
outra vez, era sempre uma vez. Ou quando canto: É bom cantar, é bom ouvir, é bom pensar, é 
bom sentir, procuro demonstrar o quão perto habitam a palavra que se canta e a palavra 
que se fala, pois elas desvelam sentidos múltiplos para cada pessoa que as recebe.
Considero o contador de histórias o detentor de uma arte não exclusiva ao mun-
do dos artistas profissionais. As narrativas orais sempre estiveram ao lado do homem 
e de suas conquistas dentro da arte de viver, então concordaremos que a arte de 
narrar faz parte de sua própria história no mundo e traz imbricados os conceitos de 
ancestralidade e contemporaneidade. Portanto sempre haverá encantamento quando 
alguém conta ou canta uma história, seja esta pessoa letrada ou não. A arte narrativa 
se manifesta tanto no contador tradicional, cujas histórias foram criadas e recriadas 
ao longo do tempo através da narração de sua experiência e de sua memória, quanto 
no contador contemporâneo, que se instrumentaliza através da pesquisa, da leitura 
e a insere na prática pedagógica. O professor contador de histórias promove em seu 
cotidiano o fazer artístico das crianças, que passam a construir obras criativas a partir 
da repercussão que as imagens poéticas das narrativas promovem dentro delas.
Um simples desenho ou uma pintura que transpõe através de formas, cores ou 
texturas o que foi percebido de um momento específico narrado do conto, pode tor-
nar-se uma experiência significativa de aprendizagem, pois ali estão expressas a leitura 
particular de cada indivíduo do mesmo fato objetivo da narrativa. A forma plástica 
escolhida, pela criança ou pelo adulto, ao desenhar uma narrativa é uma apropriação 
sua do significado objetivo do conto e sua consequente tradução subjetiva.
Esta leitura singular de cada um, expressa em desenhos tão diferentes entre si, 
nos comprova a existência daquele “cinema mental” proposto por Ítalo Calvino, 
que afirma ser impossível que os cenários imaginados pelos ouvintes de uma mesma 
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história possam ser semelhantes... E seguimos na esteira do conceito de Bachelard 
acerca da relação íntima da imagem poética com o devaneio, pois o ouvinte de uma 
história entra no estado de devaneio ao escutá-la e engendra em sua imaginação cria-
dora um mundo sonhado, que dialoga com a função do real, ao mesmo tempo que o 
liberta dela. A imaginação modifica certos aspectos da narrativa e é capaz de ampliá-los 
enquanto os assimila, portanto talvez possamos alçar que o conto ajuda a memória a 
lembrar e a imaginação a imaginar... 
Quando uma vez me perguntaram numa entrevista porque seria importante para 
as crianças entrarem em contato com qualquer forma de expressão da arte, respondi 
que preferia inverter a questão e dizer que é a arte que nos proporciona entradas no 
mundo. A arte nos dá um olhar diferenciado ao que se nos apresenta em bombardeio 
diário pelos meios de comunicação. Ela nos propicia um olhar crítico para esse mun-
do moderno impregnado das necessidades fabricadas pela sociedade de consumo e 
distantes das necessidades essenciais do indivíduo. 
Eu diria que a arte de contar histórias se faz hoje mais do que nunca necessária 
exatamente porque quando ela se dá, seja num contexto pedagógico, numa roda 
informal de contos ou mesmo no contexto do que chamamos de indústria do espetá-
culo, o maravilhoso se instala. O maravilhoso contém elementos e valores ancestrais 
que vêm caminhando ao lado da existência humana em suas mais diversas culturas e 
quando um conto é narrado, as imagens saltam diretamente para a imaginação cria-
dora do ouvinte, seja ele criança ou adulto. É nesse momento que o indivíduo realiza 
sua mais importante operação: a de significar sua relação com o mundo.
Diz Herbert Read que a arte é um contágio, e se transmite como fogo, de espírito 
para espírito. Permito-me apropriar de sua colocação e dizer que a arte de contar 
histórias é uma transmissão que contagia por ser imanente à capacidade do homem 
de intercambiar experiências e produzir sentido para a vida. Quando a criança per-
cebe que a história contada pelo professor pode continuar nela habitando, reper-
cutindo, produzindo sentidos, cores, formas, texturas, e até “recriando memória”, 
expressão cunhada por Clarissa Pinkola Esthés, ela adquire poder para enfrentar a 
63
difícil tarefa de viver e conviver. A narrativa é dirigida ao olhar do outro, é frontal. O 
contador entrega, oferece um texto oral, uma ideia, uma imagem poética, e as pessoas 
a recebem como se fosse uma bola que é devolvida com reflexão, expressão e criação. 
Os contos da tradição

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