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a falha básica aspectos terapêuticos da regressão M I C H A E L BALINT M.D., PH.D., M.SC. Tradução: FRANCISCO FRANKE SETTINERI Psicólogo •i, Gwvöa Kfouri PUC/SP Biblioteca MA-PUCSP 100119050 ACDKAS Porto Alegre 1993 Obra originalmente publicada em inglês sob o título THE BASIC FAULT Therapeutic Aspects of Regression - Tavistock 1968 - Routledge 1989 (reimpressa © Enid Balint - Texto e Prefácio Capa: Mário Röhnelt Composição e Arte: LASER HOUSE — m.q.o.f. Reservados todos os direitos de publicação em língua portuguesa à EDITORA ARTES MÉDICAS SUL LTDA. Av. Jerônimo de Orneias, 670 — Fones (051) 330-3444 e 331-8244 FAX (051) 330-2378 — 90040-340 Porto Alegre, RS, Brasil LOJA-CENTRO Rua General Vitorino, 277 — Fone (051) 225-8143 90020-171 Porto Alegre, RS, Brasil editoração eletrônica Supervisão Editorial: Maria Rita Quintella IMPRESSO N O BRASIL PRINTED IN BRASIL S U M Á R I O P R E F Á C I O D A R E I M P R E S S Ã O D E 1979 P O R E N I D B A L I N T PREFÁCIO P A R T E I As Três Áreas da Mente C A P Í T U L O 1 Os Processos Terapêuticos e sua Localização C A P Í T U L O 2 Interpretação e Perlaboração C A P Í T U L O 3 O s Dois Níveis do Trabalho Analítico C A P Í T U L O 4 A Área da Falha Básica C A P Í T U L O 5 A Área da Criação C A P Í T U L O 6 Resumo P A R T E n Narcisismo Primário e Amor Primário C A P Í T U L O 7 As Três Teorias de Freud C A P Í T U L O 8 Contradições Inerentes C A P Í T U L O 9 Fatos Clínicos sobre o Narcisismo C A P Í T U L O 10 Esquizofrenia, Toxicomania e outras Condições Narcísicas C A P Í T U L O 11 Estados Pré-Natais e Pós-Natais Precoces C A P Í T U L O 12 A m o r Primário C A P Í T U L O 13 A m o r Adul to P A R T E III O Abismo e as Respostas do Analista C A P Í T U L O 14 A Regressão e a Criança dentro do Paciente C A P Í T U L O 15 O Problema da Linguagem na Educação e no Tratamento Psicanalítico C A P Í T U L O 16 A Técnica Clássica e suas Limitações C A P Í T U L O 17 O s Riscos Inerentes á Interpretação Consistente C A P Í T U L O 18 Os Riscos Inerentes ao Manejo da Regressão P A R T E IV As Formas Benignas e Malignas da Regressão C A P Í T U L O 19 Freud e a Idéia de Regressão C A P Í T U L O 20 Sintomatologia e Diagnóstico C A P Í T U L O 21 Gratificações e Relações Objetáis C A P Í T U L O 22 As Diversas Formas de Regressão Terapêutica C A P Í T U L O 23 O Desacordo entre Freud e Ferenczi e sua Repercussão P A R T E V O Paciente Regressivo e sua Análise C A P Í T U L O 24 Regressão Terapêutica, A m o r Primário e Falha Básica C A P Í T U L O 25 O Analista Não-Importuno C A P Í T U L O 26 A Travessia do Abismo B I B L I O G R A F I A B I B L I O G R A F I A E S P E C I A L I Z A D A S O B R E D E P E N D Ê N C I A O R A L E E S T A D O S A F I N S Í N D I C E R E M I S S I V O PREFÁCIO DA REIMPRESSÃO DE 1979 z l S ideias apresentadas e as questões levantadas neste l ivro há dez anos foram importantes, porém algumas delas ainda continuam mais relevantes nos dias de hoje. Estou satisfeita por ter-me sido dada a oportunidade de escrever o prefácio desta segunda edição. Michael Balint escreveu, em seu prefácio à primeira edição, em abril de 1967, que os problemas discutidos no livro o haviam preocupado durante os últimos dez anos. A m i m , parece que se preocupou com esses problemas por muito mais tempo, talvez até mesmo durante toda a sua vida profissional. Apesar disso, quando discutíamos a respeito dos assuntos abordados neste l ivro, a discussão invariavelmente se referia a problemas clínicos. Balint jamais permitiu que quaisquer ideias preconcebidas ou teorias anteriores bloqueassem suas observações e pensamentos. Permitia longos períodos de dúvida e incer- teza surgidos de suas novas observações, evitando, assim, satisfazer-se com falsas soluções com as quais poderia escapar dos problemas e do entendimento que tentava alcançar. Sua honestidade de pensamento impressionava-me tanto à época como atualmente. Talvez algumas das precisas descrições de Balint das diferentes técnicas— de u m a mítica técnica "correra" — fossem menos centrais a nosso trabalho do que o foram há uma década. Entretanto, sua descrição é u m estágio valioso e necessário do desenvolvimento de nosso pensamento. Balint, como todos os v i i i PREFÁCIO D A REIMPRESSÃO DE 1979 ix bons teóricos, mudava enquanto ia pensando, trabalhando e escrevendo. Planejamos reescrever certas partes deste livro, adicionando-lhe mais u m capítulo. A o relê-lo, fiquei satisfeita por não ter havido tempo para fazê-lo. Está bem e m sua forma atual, oferecendo ao discernimento do leitor uma forma lúcida a respeito de algumas das formas, até então não descritas, pelas quais os pacientes se relacionam com seus analistas e estes com seus pacientes, em uma relação bipessoal, criada e descrita originalmente por Freud. Essas relações devem continuar a ser observadas e redefinidas para elucidar não só os problemas dos psicanalistas, mas os de todos aqueles interessados pelo estudo das relações humanas. A b r i l de 1 9 7 9 ENID BALINT P R E F Á C I O (^)s problemas discutidos neste livro preocuparam-me durante os últimos dez anos, mais ou menos. E m várias ocasiões, nesse período, escrevi e publiquei uma ou outra parte que julgava suficientemente amadurecida, destacando-se "The Three Areas of the M i n d " (1957), "Primary Narcissism and Primary Love" (I960), "The Regressed Patient and his Analyst"(1960) e "The Benign and the Malignant Forms of Regression" (1965). Todas estas publicações esparsas precisaram ser reorganizadas, algumas reescritas, para incluir neste l ivro, sendo que "The Regressed Patient and his Analyst" foi uma das mais alteradas; sua primeira metade transformou-se na Parte III, enquanto a segunda tornou-se o núcleo da Parte V . Agradeço a cortesia dos editores do International Journal of Psycho-Analysis, do Psychoanalytic Quarterly, do Psychiatry: Journal for the Study of Interpersonal Processes, bem como Gruñe & Stratton, N o v a Iorque, por me haverem permitido utilizar o material por eles já publicado. C o m o em qualquer outro de meus livros, neste também quero assinalar minha dívida para com minha esposa, sem cujo auxílio a compilação deste volume teria demorado ainda mais. E m mais de u m momento, quando hesitava desanimado, era o diálogo com ela que me permitia superar o obstáculo e continuar o trabalho. PREFÁCIO x i Agradeço à minha amiga e colega M a r y Hare, a A n n Hutchinson, secretária da Biblioteca no Instituto de Psicanálise, pela leitura das provas e valiosos comentários, e a Hutchinson, pela preparação do índice remissivo. A b r i l de 1967 MICHAEL BALINT PARTE I AS TRÊS ÁREAS DA MENTE C A P Í T U L O 1 Os Processos Terapêuticos e sua Localização U A S E toda a Parte I deste livro consiste de capítulos autónomos, o que não auxilia no acompanhamento do argumento principal. Precisamos adotar tal estrutura porque em vários momentos se fazia necessário esclarecer algumas formas já estabelecidas de ver e pensar a respeito de observações clínicas bastante conhecidas, antes de poder iniciar a fase seguinte de nossa sequência de ideias. Antes de iniciar nossa jornada, devemos concordar que todos nós, leitores e escritor, somos analistas relativamente seguros, que não cometem erros elementares, isto é, fornecemos interpretações bastante correras em momentos bastante sensíveis e perlaboramos, tanto quanto possível, o material produzido por nossos pacientes em vários níveis, tanto genital como pré-genital, tanto na transferência como na realidade. Tendo concordado neste ponto, talvez também devêssemos admitir que todos, ocasionalmente, temos pacientes difíceis, diante dos quais nos sentimos perplexos e incertos e que — de acordo com rumores que circulam em todos os ramos de nossa Associação Internacional— mesmo os mais experimentados e capacitados analistas ocasionalmente também fracassam. Como isso acontece e qual é a explicação para tão desagradável fato? E m suma, as razões das dificuldades e fracassos podem ser agrupadas sob três títulos. Podem ser devidas à nossa técnica inadequada, às dificuldades inerentes 4 M I C H A E L BALINT à personalidade ou doença do paciente e a u m mau "ajustamento" entre nossa capacidade técnica, em geral adequada, e as qualidades intrínsecas, de outra forma curáveis, do caso. A primeira pergunta com a qual precisamos lidar é por que alguns pacientes são mais difíceis de tratar do que outros ou por que algumas análises são menos gratificantes para o analista — e para seus pacientes — do que outras. Vamos formular a mesma pergunta de uma forma diferente, que talvez facilite a sua resolução. O que são os processos terapêuticos, em que parte da mente eles ocorrem e o que neles é responsável pelas várias dificuldades experimentadas pelos analistas? Depois de mais de 60 anos de pesquisa, ainda não são totalmente conhecidas as partes do aparelho mental acessíveis à psicanálise e em que extensão ou, usando nossa formulação, em que partes da mente ocorrem os processos terapêuticos. Mesmo que estas duas formulações não descrevam exatamente o mesmo proble- ma, elas se sobrepõem de forma considerável. E m geral, há uma concordância que uma das metas desejáveis da terapia, na verdade, é influenciar o superego. Até mesmo temos alguma ideia a respeito do que ocorre nessa parte da mente, isto é, ideias a respeito dos processos terapêuticos envolvidos e as mudanças provocadas. Sabemos, por exemplo, que o superego foi construído principalmente por introjeções, sendo suas principais fontes os estimulantes, mas nunca totalmente satisfatórios objetos sexuais da primeira infância, da infância e da puberdade; poderíamos dizer que, de alguma forma, o superego é a soma das cicatrizes mentais deixadas por tais objetos. Por outro lado, o superego pode ser modificado por novas introjeções, mesmo na idade madura; uma ocasião convincente dessa mudança é o tratamento analítico, durante o qual o analista é parcial ou mesmo totalmente introjetado. Gostaríamos de estabelecer distinção entre introjeção e u m outro processo—o mais importante na construção do superego—,a identificação, que poderia ser considerada como u m passo secundário, posterior à introjeção: o indivíduo não só se apropria do objeto sexual estimulante, porém frustrante, mas passa a considerá-lo como parte integrante de si mesmo. Algumas vezes, a identificação é precedida ou está intimamente associada à idealização; por outro lado, u m alto grau de idealização poderá se tornar u m grande obstáculo à identificação com o objeto introjetado. Tudo isto é bastante conhecido, mas dificilmente se conhece alguma coisa sobre os processos necessários para desfazer a introjeção, a idealização ou a identificação. E m suma, temos alguma ideia dos processos que levam a novas introjeções e identificações, mas quase nada sabemos sobre os meios para desfazer uma introjeção ou identificação já estabelecida. Isto é lamentável, pois seria muito importante para nossa eficiência técnica sabermos como ajudar o paciente a livrar-se de parte de seu superego. Concordamos também que, em geral, a terapia analítica tem como finalidade o fortalecimento do ego, embora nossas ideias a respeito da exata A F A L H A BÁSICA 5 natureza desse reforço e das técnicas para sua obtenção ainda sejam bastante vagas. O que sabemos desse aspecto de nossa terapia resume-se no seguinte: deve ser reforçada a parte de ego em contato mais íntimo com o id . Referimo- nos à parte do ego que pode gozar de gratificações pulsionais, suportar u m considerável aumento de tensões, ser capaz de preocupação e consideração, contendo e tolerando, tanto desejos insatisfeitos como ódio, procurando aceitá- los, testando as realidades tanto internas como externas. Embora essa parte do ego não possa e não se atreva a gozar de uma gratificação pulsional intensa, precisa defender-se contra qualquer aumento da tensão emocional, através da recusa da realidade, da inibição e da inversão da pulsão em seu contrário ou por meio de formações reativas — isto é, não se deve reforçar a parte que está adaptada à realidade externa e às demandas do superego às custas da realidade interna; pelo contrário, seu papel deve tornar-se menos dominante. A i n d a não foi esclarecido ou discutido adequadamente se o reforço do ego e as modificações do superego antes abordados são apenas dois aspectos de u m mesmo processo ou dois processos mais ou menos independentes. A fórmula mais utilizada afirma que o ego é o mediador, sob o comando do superego, entre as demandas da realidade externa e o id . Ainda é uma questão aberta o mediador ter ou não qualquer poder próprio para influir no compromisso e, além disso, quais são os processos terapêuticos com algum efeito sobre este poder. A i n d a há grande incerteza a respeito da possibilidade e dos meios de influenciar o i d . Temos poucas ideias sobre a possibilidade disso ser feito e, se possível, a maneira de fazê-lo. Os que aceitam a existência da pulsão primária de morte e com ela o sadismo primário, o narcisismo primário e a destrutividade concluem forçosamente que com nossa terapia também se pode modificar o i d . Já foi descrito por Freud, em "Análise terminável e interminável" (1937), u m aspecto dessa possível mudança como a "submissão das pulsões". N o caso particular do sadismo primário, significa que a intensidade dos impulsos destrutivos — algumas vezes chamados de destrudo — deve ser mitigada durante o tratamento analítico — ou educada — seja por sua transformação na origem, isto é, no i d , ou, de alguma forma, por sua "fusão" com mais libido. Como os dois conceitos teóricos de "fusão" e "desfusão" são muito vagos, é quase impossível situá-los confiavelmente no id ou no ego; além de , exceto pelos nomes, termos sido capazes de formar alguma ideia sobre os processos e mecanismos neles envolvidos. Talvez a única sugestão seja a de que, provavel- mente, a desfusão e a frustração estejam ligadas de uma forma bastante íntima; é bastante incerto se o mesmo seria verdade para sua contraparte, tão impor- tante tecnicamente, a gratificação e a fusão. E m tais circunstâncias, é pouco provável que alguém tenha sido capaz de descrever métodos confiáveis para influir nesses dois processos. Se a "fusão" e a "desfusão" podem ser influenciadas pela análise, só o que podemos afirmar com segurança é que essa influência se dá pela transferência, isto é, essencial- 6 M I C H A E L BALINT mente através de uma relação objetal. Inversamente, significa que os processos iniciados na situação analítica devem ser concebidos como suficientemente poderosos ou intensos para penetrar nas camadas profundas da mente, nelas realizando as modificações fundamentais. Como isso acontece e que tipo de relação objetal, de que intensidade, realizará esta tarefa ainda não foi adequa- damente discutido em nossa literatura. Assim, chegamos à resposta para o quebra-cabeça com o qual iniciamos nossa jornada: por que mesmo os mais experientes entre nós têm casos difíceis e fracassos ocasionais? Temos algumas concepções teóricas a respeito dos prováveis processos mentais durante a terapia psicanalítica, mas ainda não existe nenhuma ligação direta, com suficiente credibilidade, entre essas concep- ções teóricas e nossa habilidade técnica. E m outras palavras, com base em nossas concepções teóricas sobre os processos terapêuticos e suas localizações, ainda não estamos em condições de afirmar qual a técnica recomendável e quais as medidas técnicas a serem evitadas. Esse fato é a raison d'être para a coexistência de várias escolas analíticas, cada uma com sua própria técnica, sendo conside- ravelmente diferentes umas das outras, mas aceitando todas as mesmas ideias básicas a respeito da estruturada mente. E importante acrescentar que o analistas de todas as escolas — sem exceção — têm seus sucessos, seus casos difíceis e sua cota de fracassos. E muito provável que os protagonistas das diferentes escolas alcancem sucesso — ou fracasso—com diferentes pacientes; além do mais, o modo de sucesso — ou de fracasso — pode ser diferente com as distintas técnicas. Portanto, u m estudo crítico, mas imparcial, dessa área, será muito revelador para nossa teoria de técnica. Infelizmente, inexiste esse tipo de revisão independente; a história da tentativa de revisão estatística, feita pela American Psychoanalytic Association — tentativa cuidadosa e mesmo excessiva- mente cautelosa —, que precisou ser abandonada, bem demonstra quanta angústia e resistência pode provocar uma pesquisa desse tipo. C A P Í T U L O 2 Interpretação e Perlaboração C \ ^ O M O procuramos demonstrar, o ponto de vista tópico não parece oferecer muito auxílio no sentido de favorecer uma melhor compreensão de nossas dificuldades técnicas e, em particular, não nos fornece critérios suficientemente confiáveis para decidir se u m determinado passo terapêutico é correto ou não, em certas circunstancias. Contudo, isso era de se esperar. Não devemos esquecer que a última revisão de nossa teoria das instâncias e localizações mentais foi feita por Freud, no início da década de 20. Desde então, não foi apresentada, essencialmente, nenhuma ideia a respeito do aparelho mental (apesar das novas psicologias do ego de Fairbairn, Hartmann e Winnicott). Por outro lado, é inquestionável que, desde aquele tempo, nosso potencial técnico, nossa habilidade atual e com eles nossos problemas técnicos aumentaram consideravelmente. Revisamos esses novos desenvolvimentos em u m trabalho apresentado ao Congresso de Zurique (1949), no qual procuramos mostrar que a técnica de Freud e suas concepções teóricas eram interdependentes. O próprio Freud afirmou, em suas duas grandes monografias, O ego e o id (1923) e Inibições, sintomas e angústia (1926), que ele, nas experiências clínicas realizadas com pacientes obsessivos e melancólicos, baseava-se tanto em sua técnica como em sua teoria, porque — de acordo com suas próprias palavras —, nesses pacientes, tanto os processos mentais como os conflitos estavam consi- deravelmente "internalizados" (verinnerlicht). Isso significa que, em tais pacien- 7 8 M I C H A E L BALINT tes, os conflitos originais, assim como os mecanismos e processos defensivos mobilizados para lidar com eles, tinham se tornado — e amplamente permane- cido — como eventos internos. Inversamente, os objetos externos são muito pouco investidos por eles. Portanto, à primeira abordagem, todos os eventos importantes com tais pacientes, tanto patológicos como terapêuticos, podem ser considerados como ocorrendo quase que exclusivamente internamente. Foi essa condição que permitiu a Freud descrever as modificações terapêuticas de uma forma mais simples. Se os eventos e objetos externos forem inconsistente- mente investidos, a influência de tal variação, de u m analista para outro, desde que util izem uma técnica analítica "sensível", será ainda menor, na verdade praticamente negligenciável. Esquecendo de que isso só é verdade nesse caso- limite e somente à primeira abordagem, alguns analistas chegaram à ideia da "técnica correra", isto é, de uma que é correta para todos os pacientes e analistas, independentemente de sua individualidade. Se nossa maneira de pensar tiver validade, "a técnica correta" é uma quimera, uma fantástica compilação de fragmentos incompatíveis da realidade. U m a importante pré-condição para a internalização é uma estrutura suficientemente boa do ego para suportar e conter as tensões causadas pela internalização, sem desmoronar ou recorrer a u m tipo diferente de defesa — que pode ser chamado de externalização — como, por exemplo, o acting-out, a projeção, a confusão, a recusa ou a despersonalização. C o m pacientes capazes de uma internalização sustentada, o famoso símile utilizado por Freud oferece uma boa descrição daquilo que realmente ocorre durante o tratamento analí- tico. N a maior parte do tempo, o analista é, de fato, u m "espelho bem pol ido" , que meramente reflete o que o paciente transmite. Ademais, como é demons- trado em todos os casos clínicos publicados por Freud, o material transmitido ao analista, nesse tipo de trabalho analítico, consiste quase que exclusivamente de palavras, sendo de palavras que se utiliza para devolver o material ao paciente. Durante todo o processo de transmissão e devolução, cada u m dos parceiros — paciente e analista — compreende quase no mesmo sentido o que o outro diz. N a verdade, encontram-se resistências, que, algumas vezes, podem ser mesmo muito intensas, mas sempre se pode contar com u m ego confiável e inteligente, capaz de aceitar as palavras, permitindo que elas o influenciem, isto é, o ego é capaz de realizar aquilo que Freud chamou de "perlaboração". Essa sequência de ideias leva à segunda resposta de nosso problema. Primeiramente, a recém-fornecida descrição de nossa técnica pressupõe que as interpretações sejam experimentadas, tanto pelo paciente como pelo analista, como interpretações e nada mais. Isso poderia parecer mais como uma afirmativa do óbvio, mas esperamos, mais tarde, demonstrar que é importante enfatizar tal fato de maneira explícita. A terapia psicanalítica, mesmo no sentido clássico de u m "espelho bem pol ido" , é essencialmente uma relação objetal; todos os eventos, que finalmente A F A L H A BÁSICA 9 conduzem a modificações terapêuticas na mente do paciente, são iniciados por eventos ocorridos em uma relação bipessoal, isto é, acontecem essencialmente entre duas pessoas e não apenas em uma delas. Esse fato fundamental só pode ser negligenciado enquanto os principais objetos de estudo forem pacientes que util izem, sobretudo, a internalização, isto é, pacientes com uma estrutura do ego bastante forte. Essas pessoas podem "aceitar" aquilo que seu analista oferece, bem como o que elas próprias experimentam na situação analítica e podem experimentar com seu novo conhecimento. Seu ego é suficientemente forte para tolerar — durante u m certo tempo — as tensões então criadas. As tensões e forças provocadas pelas interpretações podem algumas vezes ser intensas, mas tais pacientes ainda podem suportá-las. De certa forma, este é o quadro que recebemos das publicações dos casos clínicos de Freud. Assim, chegamos à segunda causa provável de dificuldades e fracassos na análise. Nossa técnica foi desenvolvida para pacientes que sentem a interpre- tação do analista como interpretação e cujo ego é suficientemente forte para permitir "aceitá-las" e realizar o que Freud chamou de processo de "perlaboração". Sabemos que nem todos os pacientes são capazes dessa tarefa, e é justamente com eles que encontramos dificuldades. C A P Í T U L O 3 Os Dois Níveis do Trabalho Analítico IEm geral, para descrever a atmosfera característica do nível do trabalho terapêutico clássico, a literatura psicanalítica utiliza os termos "nível edípico ou genital" em contraste com "pré-edípico, pré-genital ou pré-verbal". E m nossa opinião, estes últimos termos já possuem u m significado carregado e propomos u m termo novo, inequívoco, que parece estar livre de certos vieses latentes. Porém, antes de fazê-lo, examinemos o real significado desses termos. O complexo de Édipo foi uma das maiores descobertas de Freud, que o descreveu como sendo o complexo nuclear de todo o desenvolvimento humano — d e saúde e doença, religião e arte, civilização e lei, etc. Apesar de o complexo de Édipo ser característico de uma fase bastante precoce do desenvolvimento, Freud não hesitou em descrever as experiências mentais, emoções e sentimentos infantis dessa fase em linguagem de adultos. (Como queremos deixar claro o principal problema de cronologia, deixamos deliberadamente em aberto a definiçãodaquilo que é considerado uma idade muito precoce.) De fato, a hipótese de Freud foi uma audaciosa projeção, uma ousada extrapolação. Formulou tacitamente a hipótese, sem maiores provas, de que as emoções, sentimentos, desejos, medos, moções pulsionais, satisfações e frustrações da criança muito pequena são não apenas muito semelhantes aos dos adultos, mas também possuem entre si relação de reciprocidade. Sem essas duas hipóteses, seria totalmente injustificável a utilização da linguagem adulta para descrever tais eventos. 10 A F A L H A BÁSICA 11 Reiteramos que essa hipótese constituiu-se n u m passo audacioso, mas, posteriormente, seus resultados foram completamente validados, tanto pelas observações de crianças normais como pelas experiências clínicas durante a análise daquelas neuróticas. Ademais, é preciso enfatizar que, embora tenha começado com a análise do Pequeno Hans (1909), a validação completa da mesma ocorreu na mesma época de sua última revisão de nossos conceitos teóricos a respeito do aparelho mental, ou seja, na década de 20. Para evitar algum mal-entendido, devemos acrescentar que enquanto trabalha sobre o nível edípico, o analista evidentemente não ignora ou negligen- cia o material pré-genital, mas o trabalha com linguagem adulta, isto é, elevado ao nível edípico ou "verbal". Este é u m ponto importante de nossa técnica, pois logo levanta-se o problema de o que o analista deve fazer em u m caso no qual for ininteligível ou inaceitável para o paciente a expressão do material pré- genital em palavras adultas, isto é, em u m caso no qual aparentemente inexista, para o paciente, u m caminho direto do pré-verbal para o edípico. Desde os anos 20, nossa técnica progrediu muito, podendo-se dizer que, atualmente, é possível tratar pacientes que antes eram considerados não- tratáveis e que, certamente, podemos entender melhor o paciente médio, em maior profundidade e com mais exatidão do que nossos colegas de quarenta anos atrás. Durante esse desenvolvimento, procedemos a uma rica colheita de observações clínicas e de problemas intricados, todos pertencentes a eventos ocorridos e observados em situação psicanalítica. A primeira abordagem, esses eventos podem ser descritos em termos de conflito edípico, utilizando a linguagem adulta. Entretanto, pari passu com o aumento de nossa experiência e o aperfeiçoamento de nossos poderes de observação, temos encontrado u m grupo de eventos que provoca consideráveis dificuldades, tanto em nossas descrições teóricas como em nossa habilidade técnica. Por exemplo, aprendemos que há certos pacientes que têm grande dificuldade em "aceitar" qualquer coisa que aumente a pressão sobre eles, enquanto que há outros que aceitam tudo, porque, aparentemente, seu seZ/mais íntimo é muito pouco influenciado. Como dissemos, esses dois tipos criam grandes dificuldades técnicas e teóricas, talvez porque sua relação com o analista seja muito diferente da que costumamos encontrar no nível edípico. Os dois tipos que acabamos de mencionar constituem apenas uma pequena amostra dos muitos pacientes que geralmente são descritos como "profundamente perturbados", "profundamente div ididos" , "seriamente esquizoides", "com u m ego demasiado débil ou imaturo", "altamente narcisis- tas", ou com "profunda ferida narcísica", etc., indicando, portanto, que a raiz de sua doença é mais distante e profunda do que o conflito edípico. A esse respeito, em termos de problema teórico muitas vezes discutido, é irrelevante se eles surgiram originalmente no período edípico já enfermo ou se eventos traumá- ticos mais tardios tornaram ineficazes os mecanismos defensivos pertencentes 12 M I C H A E L BALINT a esse período, forçando-os a uma regressão ou desvio para antes do nível edípico. N o contexto atual, o importante é reconhecer os dois diferentes níveis de trabalho analítico. Para ilustrar o tipo de problema encontrado nesse outro nível, desejamos citar u m eterno exemplo fora de nossa área. E m nossos seminários de pesquisa sobre prática clínica geral (Balint, M . , 1964), algumas vezes os médicos costuma- vam relatar que tinham explicado a u m paciente muito claramente quais eram as implicações de uma enfermidade; posteriormente, quando os verdadeiros resultados da explicação eram comparados com os pretendidos, surpreenden- temente algumas vezes parecia que a explicação só havia sido clara para o médico; para o paciente, permanecia obscura, parecendo, algumas vezes, nem ter sido uma explicação. Assim, sempre que u m médico diz que explicou algo muito claramente, a pergunta habitual é: "Claramente para quem?". O motivo dessa discrepância entre intenção e resultado é que as mesmas palavras possuem u m significado completamente diferente para u m médico interessado mas não envolvido e para u m paciente profundamente envolvido. Muitas vezes, os analistas se defrontam com a mesma experiência. Damos a nosso paciente uma interpretação clara, concisa, bem fundamentada e no momento exato — algumas vezes para nossa surpresa, espanto, irritação e desapontamento — a qual não teve nenhum efeito sobre ele ou teve u m efeito muito diferente do pretendido. E m outras palavras, nossa interpretação não foi nem u m pouco clara ou, mesmo, sequer experimentada como uma interpreta- ção. Geralmente, os analistas procuram explicar esses desapontamentos, uti l i - zando três linhas de raciocínio autotranqüilizadoras. O analista pode se criticar por não haver conseguido interpretar a principal angústia da situação — isto é, ter sido enganado por algo de uma importância apenas secundária; sua autocrítica geralmente é seguida por esforços ingentes para adivinhar que fantasias do paciente barraram o caminho para o entendimento das interpre- tações do analista. O u o analista reativa, em si mesmo, a eterna controvérsia a respeito dos méritos e desvantagens relativos das interpretações de conteúdo, de defesa ou de transferência, que pode continuar interminavelmente. E, por f im, tranqüiliza-se dizendo que, no momento operativo, a resistência do paciente tinha sido forte demais e que, portanto, precisaria de algum tempo para "perlaborar" a interpretação. Esta última fórmula é mais tranquilizadora, já tendo sido utilizada antes por Freud. Infel izmente, nesses casos, tais fórmulas e maneiras de pensar tranquilizadoras têm relevância, pois todas pertencem ao nível edípico, isto é, pressupõe-se que as interpretações do analista sejam vivenciadas pelo paciente como interpretações. Foi apenas para essa situação que Freud cunhou o termo "perlaboração". Evidentemente, a perlaboração só é possível se o paciente puder aceitar a interpretação, experimentando-a como uma interpretação e permitindo que ela influencie sua mente. C o m o tipo de pacientes "profun- A F A L H A BÁSICA 13 damente perturbados" isso pode ou não ocorrer. Mas se o paciente não experimen- tar a interpretação do analista como uma interpretação, isto é, uma sentença que consiste de palavras com significados concordantes, não ocorrerá perlaboração. A perlaboração só pode entrar em operação se nossas palavras tiverem aproximada- mente o mesmo significado, tanto para nossos pacientes como para nós. N o nível edípico, esse problema não existe. O paciente e o analista certamente falam na mesma linguagem; as mesmas palavras significam a mesma coisa para ambos. N a verdade, o paciente pode rejeitar uma interpre- tação, pode se incomodar, se assustar ou magoar-se com ela, mas não há dúvida de que foi uma interpretação. O estabelecimento de dois níveis diferentes fornece uma terceira resposta à nossa pergunta original, mas, ao mesmo tempo, levanta outros problemas interessantes. Porém, antes, vamos examinar nosso trajeto até o momento. Começamos com o achado — ou truísmo — de que mesmo os mais experimen- tados entre nós encontram, ocasionalmente, alguns pacientes difíceis ou mesmo muito difíceis. Depois, perguntamos onde se desenvolvem os processos terapêuticos,em que parte da mente eles ocorrem, o que seria responsável pelas dificuldades e, afinal mas não menos importante, que meios técnicos temos para influenciá-los. Mais tarde, revisamos a teoria de nossa técnica, constatando que a abordagem topológica não nos oferece muita ajuda. Indo mais adiante, compreendemos que todas as descrições do que ocorria na mente do paciente, durante a terapia, baseava-se no estudo acurado de pacientes — iniciado pelo próprio Freud no começo da década de 20 — que aceitam e "recebem" as interpretações do analista como interpretações e que são capazes de "perlaborá- las". Finalmente, constatamos que há pelo menos dois níveis de trabalho analítico; portanto, é muito provável que existam dois níveis de processos terapêuticos e, ademais, que u m dos aspectos dessa distinção resida nas diferentes utilidades da linguagem adulta nos dois níveis. Essa grande diferença em relação à linguagem, que pode criar u m abismo entre o paciente e o analista, impedindo o progresso do tratamento, foi descrita primeiramente por Ferenczi, particularmente em seu último trabalho para o congresso (1932) e em suas "Notes and Fragments", publicadas postumamente. Chamou-a de "The Confusion of Tongues between the C h i l d (singular!) e the Adults (plural!)". Desde então — embora geralmente sem mencionar seu trabalho pioneiro — têm sido feitas inúmeras tentativas por vários pesquisado- res para descrever o mesmo fenómeno. Assim, a conclusão chegada no capítulo anterior é apenas uma reformulação de algo bem conhecido, a saber: que o trabalho analítico ocorre em pelo menos dois diferentes níveis, u m familiar e menos problemático, chamado de nível edípico, e outro para cuja descrição são utilizados termos como pré-edípico, pré-genital e pré-verbal. Propomos a conservação dos termos "nível", "período", "conflito" ou "complexo edípico", pois representam os aspectos mais importantes do nível ao 14 M I C H A E L BALINT qual estão relacionados. Há várias características que distinguem clinicamente os fenómenos pertencentes a esse nível dos pertencentes ao outro. Primeira- mente, todas as coisas no nível edípico — mesmo quando relacionadas a experiências genitais ou pré-genitais — ocorrem em uma relação triangular, o que significa que, além do sujeito, existem sempre, pelo menos, dois objetos paralelos envolvidos. Ambos podem ser duas pessoas, como na situação edípica, ou uma pessoa e algum objeto, como na esfera do erotismo anal, e quase certamente na do oral. N o inicial, o segundo objeto é representado pelas fezes e seus diversos derivados, enquanto que, no final, pelo menos em seus últimos estágios, além da fonte ou fornecedor de alimentos, sempre está presente, como objeto, o próprio alimento. Embora essas duas esferas sejam, por definição, pré- genitais, a estrutura da relação relevante — certamente, na fase anal e nos últimos estágios da fase oral —, que consiste no sujeito e pelo menos dois objetos paralelos, coloca-os na área edípica, elevando-os a esse nível. A segunda característica importante da área edípica é sua inseparabilidade do conflito. Exceto em alguns poucos casos, ainda não bem estudados, o conflito é causado pela ambivalência originada das complexidades da relação entre o indivíduo e seus dois objetos paralelos. Embora tal conflito seja inerente à situação, pode ser resolvido ou, de alguma forma, consideravelmente ajustado. O exemplo mais estudado de conflito talvez seja aquele no qual uma autoridade — externa ou interna — recomenda ou proíbe determinada forma de gratifica- ção. Eventualmente, esse tipo de conflito pode levar a uma fixação, pois certa quantidade de libido fica presa em uma luta inútil, criando uma tensão contínua. O tratamento analítico tem, nesse caso, por tarefa, mobilizar e libertar essas quantidades de libido, através da interpretação ou dando oportunidades ao paciente, na transferência, de regredir, a f im de encontrar uma solução melhor. Mesmo que inexista uma solução ideal, todas elas provocando alguma tensão, quase sempre se pode encontrar uma que a reduza bastante. A terceira característica importante desse nível é que nele a linguagem adulta é u m meio de comunicação confiável e adequado—pois, como sabemos, Édipo era u m homem adulto. Se fosse necessário criar u m novo termo para esse nível, proporia chamá-lo de nível de concordância, convencional ou de l ingua- gem adulta. N a ciência, pode algumas vezes ocorrer que uma denominação inapropriada provoque mal-entendidos ou prejuízos ao correto estudo do problema. Para evitá-los, os dois níveis mentais devem ser chamados por termos que não dependam u m do outro. Assim como o nível edípico foi nomeado a partir de uma de suas principais características, o outro nível deve ter o seu, não devendo ser chamado de "pré-alguma coisa" — certamente não pré-edípico, pois, até onde foi nossa experiência clínica, pode coexistir com o nível edípico. De momento, queremos deixar em aberto a existência ou não de períodos nos quais a mente conhece apenas u m dos níveis. Por outro lado, é preciso enfatizar A F A L H A BÁSICA 1 5 que esse outro nível é definitivamente mais simples, mais primitivo do que o edípico. Propomos chamá-lo de nível da falha básica, e gostaria de acentuar que é descrito como uma falha e não como uma situação, posição, conflito ou complexo. Mais tarde explicaremos o por quê. As principais características do nível da falha básica são: a) todos os eventos que nele ocorrem pertencem a uma relação exclusivamente bipessoal — não existe uma terceira pessoa: b) essa relação bipessoal é de uma natureza particular, completamente diferente das bem conhecidas relações do nível edípico: c) a natureza da força dinâmica que opera nesse nível não é a de u m conflito e d) muitas vezes a linguagem adulta pode ser inútil ou enganadora para descrever eventos nesse nível, pois nem sempre as palavras estão de acordo com seu significado convencional. Embora algumas dessas características só fiquem claras durante a discus- são dos últimos capítulos, podemos agora dizer algo sobre as demais. Primei- ramente, a respeito da natureza da relação bipessoal primitiva nesse nível. Assim, na primeira abordagem, ela pode ser considerada como uma instância da relação objetal primária ou de amor primário, que várias vezes já descreve- mos (Balint, M . , 1932, 1934, 1937, 1959 e capítulo 12 deste livro). Qualquer terceiro que interfira nessa relação é sentido como u m pesado encargo o u uma força intolerável. Outra importante qualidade dessa relação é a imensa diferen- ça de intensidade entre os fenómenos de satisfação e frustração. Enquanto a satisfação — a "adaptação" do objeto ao sujeito — traz uma sensação de bem- estar, que só pode ser observada com muita dificuldade, pois é natural e suave, a frustração — a falta de "adaptação" do objeto — provoca sintomas muito intensos e tumultuosos (ver também capítulo 16). Mais tarde, no capítulo 4, voltaremos a discutir a natureza das forças que operam no nível da falha básica, mas, de momento, queremos ilustrar a curiosa imprecisão de linguagem obtida nesse nível, o que se origina do feixe de associações que ainda envolve cada palavra no uso adulto. N o entanto, no nível da falha básica, cada membro do feixe pode ter praticamente o mesmo direito de posse da palavra. Isto não se limita ao nível da falha básica, como é demonstrado pela impossibilidade prática de encontrar definições exaras, especialmente em ciência psicológica. Para determinar a definição exata, deve- se despir a palavra de quaisquer associações indesejáveis. A experiência mostra que isso raramente é possível, pois as pessoas obstinadamente pensam ou, mesmo, provam que as palavras utilizadas implicam outros significados que não o pretendido pelo inventor da definição. (Este problema será discutido com mais detalhes no capítulo 20.) C A P Í T U L O 4 A Area da Falha Básica A x A - C E I T A N D O teoricamente a existênciado nível da falha básica, devemos indagar que tipos de eventos devem ser considerados, durante o tratamento analítico, como sinais de que se atingiu esse nível. Tomando u m caso bastante normal, suponhamos que o tratamento tenha evoluído brandamente durante algum tempo, paciente e analista compreendendo-se mutuamente, enquanto que as forças e demandas de cada u m deles, em particular sobre o analista, foram apenas razoáveis e, sobretudo, sempre inteligíveis. Então, em certo momento, súbita ou insidiosamente, a atmosfera da situação analítica modifica-se profun- damente. C o m alguns pacientes isso pode ocorrer após u m período muito curto ou , mesmo, desde o começo. Há vários aspectos do que chamamos de profunda modificação da atmosfera, entre os quais se destacam, como foi apresentado no capítulo anterior, as interpretações fornecidas pelo analista não são mais experimenta- das pelo paciente como interpretações. E m vez disso, passa a senti-las como u m ataque, demanda, insinuação, grosseria ou insulto injustificado, tratamento incorreto, injustiça ou pelo menos uma completa desconsideração. Por outro lado, também é possível que as interpretações do analista sejam experimentadas como algo muito prazeroso e gratificante, excitante ou confortante, ou, mesmo, como uma sedução; em geral, como u m irrefutável sinal de consideração, afeição e amor. Também pode ocorrer que as palavras comuns, que até então 1 6 A F A L H A BÁSICA 17 haviam tido u m significado convencional de "adulto" e podiam ser utilizadas sem maiores consequências, tornem-se imensamente importantes e poderosas, tanto no bom como no mau sentido. De fato, nesses momentos, qualquer observação casual do analista, qualquer gesto ou movimento, pode significar muito, assumindo uma importância muito além de qualquer coisa que realmen- te se tivesse pretendido. A d e m a i s — e isso não é tão fácil de admitir — o paciente de alguma forma parece capaz de saber o que está se passando com o analista. Começa a saber cada vez mais a respeito dele. Esse aumento do conhecimento não tem sua origem numa fonte de informações externa, mas aparentemente deriva de u m talento misterioso, que permite ao paciente "compreender" os motivos do analista e "interpretar" sua conduta. Algumas vezes, esse talento misterioso pode dar a impressão de telepatia ou clarividência (ver Balint, M . , "Notes on Parapsychology and Parapsychological Heal ing" , 1955). O analista sente o fenómeno como se o paciente pudesse vê-lo por dentro, retirando daí coisas a seu respeito. O que é assim encontrado sempre é altamente pessoal, de algum modo sempre em relação ao paciente e, em geral, absolutamente correta e verdadeira e, ao mesmo tempo, totalmente desproporcionada e, por isso, falsa — pelo menos é assim que o analista a sente. Se nesse momento o analista não estiver "ligado", isto é, não responder do modo como o paciente espera que o faça, não surgirá, na transferência, como seria de esperar no nível edípico, nenhuma reação de zanga, ódio, contenta- mento ou crítica. Somente pode ser observado u m sentimento de vazio, de perda, morte e futilidade, associado a uma aceitação aparentemente sem vida de tudo o que lhe está sendo oferecido. De fato, tudo é aceito sem muita resistência, mas nada faz qualquer sentido. Outra reação à incapacidade do analista de "ligar-se" pode ter o aspecto de angústias persecutórias. Mesmo que tais estados de angústia—em sua forma clínica comum—sejam em geral muito discretas e difíceis de perceber, qualquer frustração passa a ser sentida por esses pacientes como se lhes tivesse sido intencionalmente infligida. Não conseguem aceitar que haja qualquer outra causa para a frustração de seus desejos a não ser a malícia, a má intenção ou pelo menos uma negligência criminosa. As coisas boas ocorrem por acaso, mas as frustrações constituem testemunhos incontes- táveis dos sentimentos maus e hostis de seu entorno. Espantosamente, tudo isso é aceito como u m fato doloroso, sendo ainda mais surpreendente como mobiliza pouca aversão e ainda menos a disposição de lutar. Causa ainda mais surpresa que dificilmente desenvolva-se u m senti- mento de desespero. Parece que o desespero e o desânimo pertencem ao nível edípico. Provavelmente, são pós-depressivos. Embora a sensação de vazio e de morte (cf. Balint, E., 1963) possa ser muito intensa, atrás dela geralmente existe uma forte determinação sincera e calma de ver através das coisas. Essa estranha mistura de sofrimento profundo, falta da menor vontade de luta e uma 1 8 M I C H A E L BALINT inabalável determinação de avançar, torna tais pacientes realmente atraentes— u m importante sinal diagnóstico de que o trabalho atingiu o nível da falha básica. A reação do analista também é característica, completamente diferente da reação à resistência do nível edípico. Voltaremos a isso nas partes III, IV e V deste l ivro, mas, de momento, basta dizermos que todas as coisas o tocam muito mais mtimamente, encontrando alguma dificuldade para manter sua atitude habi- tual de passividade simpática e objetiva. De fato, está em constante perigo de u m envolvimento emocional subjetivo. Alguns analistas permitem ou, mesmo, optam por serem levados por essa corrente poderosa, modificando suas técnicas de acordo com isso. Outros, com prudência, engatilham suas experi- mentadas armas e, de forma consistente, evitam qualquer risco de envolvimen- to. Também há os que, diante da ameaça, adotam — também como formação reativa contra isso — uma atitude de confiança u m tanto onipotente, constan- temente tranqüilizando-se de que sua técnica de interpretação é capaz de lidar com qualquer situação. Outro importante grupo de fenómenos está situado em torno do que se poderia chamar de apreciação ou gratidão pelo trabalho do analista. N o nível edípico, desde que o trabalho do analista tenha obedecido aos padrões profis- sionais, estes dois sentimentos—apreciação e gratidão—são poderosos aliados que podem auxiliar muito, em especial durante os períodos áridos. N o nível da falha básica não se pode ter certeza de se o paciente irá lembrar, e ainda menos se irá considerar, que seu analista foi habilidoso e compreensivo no passado, seja remoto ou recente. U m dos motivos dessa profunda modificação é que, nesse nível, os pacientes sentem que lhe dão o que estão precisando. A i n d a voltaremos a este importante aspecto. Assim, se o analista fornecer o necessário, isso é dado como certo, perdendo todo o valor como prova de capacidade profissional, dádiva excep- cional ou favor, originando a produção de mais e mais demandas. N a literatura analítica atual, essa síndrome é chamada de "voracidade" ou, mesmo, de "avidez oral". Não temos nenhuma objeção em chamá-la de "avidez", mas as temos — e fortes — em chamá-la de "oral" , pois é incorreto. É irrelevante a relação com o componente pulsão oral para a compreensão dessa síndrome, mas o fato de que se origina em uma relação bipessoal que pode ou não ser "oral". Citando a categoria das toxicomanias, na qual a "voracidade" é o aspecto mais importante, há muitas e inquestionáveis toxicomanias "orais", entre as quais a nicotina e o álcool. Mas há muitas outras que não são orais, como o morfinismo, a cocaína, não esquecendo das várias formas de coceira, como no prurido. N o nível edípico, o analista quase nunca é tentado a sair de sua passivi- dade simpática. N o nível da falha básica, se abandonar a passividade, poderá iniciar uma perigosa espiral de toxicomania — devido à peculiar falta de gratidão ou presença da avidez; se permanecer inflexível, o tratamento poderá A F A L H A BÁSICA 1 9 ser interrompido pelo paciente como inútil ou, após uma longa e solitária luta, o paciente será obrigado a identíficar-se com o agressor, como está sentindo o analista, isto é, como foi descrito em u m de nossos seminários — o paciente parece ter u m eterno disco L P interno. N o capítulo 17, voltaremos a tãoimportante problema técnico. Todos esses eventos pertencem essencialmente à área da psicologia bipessoal, sendo mais elementares do que os do nível edípico, com três pessoas. Ademais, não apresentam a estrutura de u m conflito. Este é u m dos motivos pelos quais propusemos chamá-los de "básicos". Mas por que falha? E m primeiro lugar, porque é exatamente a palavra empregada por muitos pacientes para descrevê-lo. O paciente diz que sente que existe uma falha dentro de si, uma falha que precisa ser corrigida. E sentida como uma falha, não u m complexo, conflito ou situação. E m segundo lugar, há u m sentimento de que essa falha foi provocada porque alguém falhou ou descuidou-se dele. E m terceiro, essa área é invariavelmente cercada de uma grande angústia, geral- mente expressa como uma demanda desesperada de que agora o analista não pode — de fato não lhe deve — falhar. O termo "falha" tem sido utilizado em algumas ciências exatas para indicar condições que lembram o que estamos discutindo. Assim, por exemplo, em geologia e cristalografia, a palavra "falha" é utilizada para descrever uma súbita irregularidade na estrutura total, uma irregularidade que, em circunstân- cias normais, estaria escondida, mas, se houver pressões ou forças, pode levar a uma ruptura, alterando profundamente a estrutura total. Estamos habituados a pensar que toda força dinâmica que opera na mente tem a forma de uma pulsão biológica ou de u m conflito. Embora altamente dinâmica, a força que se origina da falha básica não assume a forma nem de uma pulsão, nem de u m conflito. E uma falha, algo errado na mente, uma espécie de deficiência que precisa ser corrigida. Não é algo represado para o qual deve ser encontrada a melhor saída, mas algo que está faltando agora ou talvez por quase toda a vida do paciente. U m a necessidade pulsional pode ser satisfeita, u m conflito pode ser resolvido, mas uma falha básica talvez possa apenas ser preenchida, desde que os ingredientes que estão faltando possam ser encontra- dos e, mesmo assim, apenas em quantidade suficiente para preencher o defeito, como uma simples e indolor cicatriz. O adjetivo "básica", em nosso novo termo, significa não apenas que está relacionado com condições mais simples do que as que caracterizam o complexo de Édipo, mas também que sua influência se estende amplamente, provavel- mente por toda a estrutura psicobiológica do indivíduo, envolvendo em diferentes graus tanto a mente quanto o corpo. Assim, o conceito de falha básica nos permite compreender não só as diversas neuroses (talvez também as psicoses), transtorno de caráter, doenças psicossomáticas, etc, como sintomas de uma mesma entidade' etiológica, mas também — como as experiências de 20 M I C H A E L BALINT nossa pesquisa na clínica geral demonstraram — u m grande número de doenças "clínicas" comuns (Balint, M . , 1957; Balint, M . & Balint, E., 1961; Lask, 1966; Greco and Pittenger, 1966). C o m isso queremos dizer que, por influência de diversas experiências emocionais, entre elas o tratamento clínico, uma doença "clínica" pode desaparecer, dando origem a u m distúrbio psicológico específico e vice-versa. E m nossa opinião, a origem da falha básica pode ser identificada com uma considerável discrepância nas fases formativas precoces do indivíduo, entre suas necessidades biopsicológicas e o cuidado material e psicológico, e a afeição disponível em momentos relevantes. Isso cria u m estado de deficiência cujas consequências e efeitos posteriores parecem ser apenas parcialmente reversí- veis. A causa de tal discrepância precoce pode ser congénita, isto é, as grandes necessidades biopsicológicas infantis (existem crianças não viáveis e condições congénitas progressivas, como a ataxia de Friedreich ou os rins policísticos), ou ambientais, como u m cuidado insuficiente, deficiente, aleatório, excessivamen- te angustiado, superprotetor, severo, rígido, muito inconsistente, inoportuno, superestimulante ou apenas sem compreensão ou indiferente. Como pode ser observado a partir de nossa descrição, enfatizamos a falta de "adaptação" entre a criança e as pessoas que representam seu entorno. Incidentalmente, começamos com uma falta semelhante de "adaptação" — entre o analista com uma técnica de outra forma correta e determinadas necessidades do paciente, o que, muito provavelmente, pode ser uma importante causa de dificuldade ou mesmo de fracassos experimentados pelos analistas em sua prática. Esse assunto será discutido com maiores detalhes na Parte V . Voltando ao nosso tema principal, desejamos que o leitor esteja atento ao nosso ponto de vista pessoal, por cuja influência nossa descrição do processo, que eventualmente pode resultar em alguma falha básica, é expressa em termos de relação objetal. E m nossa opinião, todos esses processos ocorrem em uma relação objetal muito primitiva e peculiar, fundamentalmente diferente daque- las em geral observadas entre adultos. Definitivamente, é uma relação bipessoal na qual, entretanto, apenas u m dos parceiros interessa; seus desejos e necessi- dades são os únicos que contam e precisam ser atendidos; o outro parceiro, embora pareça ser muito poderoso, interessa apenas enquanto pode gratificar ou decidir frustrar as necessidades e desejos do primeiro. Ademais, seus interesses, necessidades, desejos, etc. simplesmente não existem. N o capítulo 12, propomos numa discussão mais pormenorizada dessa relação essencial- mente bipessoal, distinguindo-a da que chamamos de amor objetal primário ou relação objetal primária. f I C A P Í T U L O 5 s A Area da Criação A - L \ T E o momento, discutimos dois possíveis níveis ou áreas da mente: o do conflito edípico e o da falha básica. Para complementar o quadro devemos mencionar sutilmente a terceira área, antes de expor a relevância de nossas ideias sobre a psicologia da mente humana. Enquanto a área do conflito de Édipo caracteriza-se pela presença de pelo menos dois objetos, exceto o sujeito, e a área da falha básica por u m tipo de relação muito peculiar, exclusivamente bipessoal, a terceira área é caracteriza- da pelo fato de que nela não está presente o objeto externo. O sujeito está por sua conta e sua principal preocupação é produzir algo por si mesmo, que pode ser u m objeto, embora nem sempre o seja. Propomos chamá-lo de "nível" ou "área de criação". O exemplo mais conhecido é, evidentemente, o da criação artística, mas outros fenómenos também pertencem ao mesmo grupo, entre os quais a Matemática e a Filosofia, a obtenção de discernimento, a compreensão de algo, e, finalmente, porém não menos importante, dois fenómenos: as primeiras fases de ficar — física ou mentalmente — "doente" e a recuperação espontânea da "doença". Apesar de várias tentativas, na verdade pouco sabemos sobre tais processos. U m motivo óbvio dessa escassez deve-se ao fato de que, em toda essa área, não se encontra u m objeto externo, e por isso não se pode desenvolver uma relação transferencial. Onde não há transferência, nossos 21 22 M I C H A E L BALINT métodos analíticos perdem seu poder, deixando-nos limitados a inferências a partir de observações obtidas depois que o indivíduo abandonou os limites dessa área. Logo que entra em cena u m objeto externo, como u m trabalho artístico completo, uma tese matemática ou filosófica, uma peça de cliscernimento ou compreensão, que possa ser expresso em palavras, ou logo que a doença atinge o estágio no qual o indivíduo pode se queixar a respeito dela a alguém, existe u m objeto externo que podemos utilizar no trabalho com nossos métodos analíticos. A falta de transferência também explica como nossas tentativas para compre- ender esses importantes estados mentais ainda continuam engatinhando. A maior parte das teorias analíticas relativas a tais estados — de acordo com o exemplo da linguagem — considera o indivíduo como uma espécie de procriador. Todas as linguagens, tanto como nos é dadoconhecer, descrevem esses estados por palavras derivadas de concepção, gestação e parto. O indivíduo concebe uma ideia, engravida, sente as dores do parto e dá à luz ou aborta alguma coisa. Talvez seja pela mesma falta de transferência que é comparativamente pobre nossa psicologia da gestação e do parto. E m tais situações, também procuramos transformar uma situação evidentemente unipessoal em uma relação bipessoal, que permita utilizar nossos comprovados métodos e formas de pensar habituais. Neste caso, novamente encontramos as dificuldades criadas pela nossa linguagem adulta e convencional. Sabemos que não existem "objetos" na área de criação, mas também sabemos que nela, na maior parte do tempo, o sujeito não está completamente sozinho. O problema é que nossa linguagem não tem palavras para descrever ou até mesmo indicar os "algos" que estão presentes, quando o sujeito não está completamente só; para poder falar a seu respeito, propomos utilizar o termo "pré-objeto"; pois "embrião de objeto" seria muito definitivo; em alemão, Objekt-Anlage poderia ser u m termo adequado. Se compreendemos Bion (1962 e 1963), ele encontrou a mesma dificuldade; sua proposta, neste caso em especial, foi chamar os elementos de alfa e beta, e a função de alfa. Tudo isso demonstra que os "pré-objetos" existentes na área da criação devem ser tão primitivos que não podem ser considerados "organizados" ou " u m todo". Somente depois de o trabalho de criação ter conseguido torná-los "organi- zados" ou " u m todo" é que poderá ocorrer uma adequada interação "verbal" ou "edípica" entre eles e os objetos externos. É provável que sempre estejam ocorrendo interações mais primitivas — adequadas aos níveis da falha básica e da criação; interações, no entanto, difíceis de observar e ainda mais de descrever de uma forma adequada (Balint, M . , 1959, em particular capítulos 8 e 11). A única que sabemos é que o processo de criação, a transformação do "pré- objeto" no próprio objeto, é imprevisível. Não sabemos por que, em alguns casos, é bem-sucedido, enquanto fracassa em outros, nem tampouco por que demora tanto em alguns e ocorre como u m relâmpago em outros. A história da criação científica e artística nos fornece inúmeros relatos interessantes, mas isso é tudo. Sabemos, por exemplo, que os problemas de Fausto ocuparam Goethe durante A F A L H A BÁSICA 23 toda a sua vida, o Urfaust foi iniciado quando ele tinha 21 anos, e ainda trabalhava em sua Segunda Parte, até sua morte, em 1832. A produção habitual de Flaubert era de uma a duas páginas por dia, tendo necessitado de sete anos para concluir Madame Bovary. Vermeer e Giorgione foram trabalhadores muito lentos, bem como Beethoven. Leonardo trabalhou durante 15 anos em " L a Gioconda" — para mencionar apenas alguns. Por outro lado, Mozart foi u m trabalhador rápido (1) (o exemplo mais famoso é a "Ouverture" de Don Giovanni), como também o foram H a y d n e Bach. Balzac era u m escritor rápido, assim como Simenon, cuja produção habitual, durante certo tempo, foi de uma novela por noite. U m a parte bastante grande da oeuvre de Van Gogh foi pintada em dois anos. Parece que conflitos intensos no nível edípico podem acelerar ou inibir a velocidade do processo criativo, mas que também, além e acima desses conflitos, o que realmente interessa é a configuração mental do indivíduo, a estrutura de sua área de criação. Tudo isso é muito pouco, especialmente quando comparado com nosso conhecimento dos processos e mecanismos inconscientes que operam sob pressão de conflitos. Isso ainda é mais notável quando os analistas têm a oportunidade única de observar as pessoas enquanto absorvidas na área de criação. O que temos em mente é o paciente silencioso, u m problema enigmático para nossa técnica. A atitude analítica habitual é considerar o silêncio meramente u m sintoma de resistência a alguns materiais inconscientes, originados no passado do paciente ou de uma situação transferencial atual. Podemos acrescentar que tal interpretação quase sempre está correta; o paciente está fugindo de alguma coisa, geralmente de u m conflito, mas também poderá ser que ele esteja correndo para alguma coisa, isto é, está em u m estado no qual se sente relativamente seguro, podendo fazer algo a respeito do problema que o está atormentando ou preocupando. O algo, que eventualmente irá produzir e depois apresentar, é uma espécie de "criação"—nem sempre honesta, sincera, profunda ou artística — mas não menos u m produto de sua criatividade. N a verdade, não podemos estar com ele durante o trabalho de criação, mas o podemos momentos antes ou depois e, além disso, podemos observá-lo de fora, durante seu trabalho. Talvez, se modificássemos nossa aborda- gem, deixando de considerar o silêncio u m sintoma de resistência e passando a estudá-lo como uma possível fonte de informação, pudéssemos aprender algo sobre essa área da mente. N O T A 1. "Dois dias antes da première de Don Giovanni, em Praga, Mozart ainda não tinha começado a compor a abertura. Seus amigos, o diretor da Ópera e a orquestra estavam em suspense, enquanto o próprio génio despreocupadamente se divertia em uma festa. Mais tarde, durante a noite, escreveu a música sem qualquer correção posterior; ele sabia que a escrita musical inteira iria surgir-lhe, súbita e simultaneamente, de forma clara em sua mente" (Weiss, E., 1957). C A P Í T U L O 6 Resumo ^ ^ . S S I M , parece que temos pelo menos três áreas da mente, cada uma caracterizada, como primeiramente propôs Rickman (1951), por u m número. Também se podem designar essas três áreas de espaços, esferas, campos, níveis, localidades ou instâncias, ou até mesmo por outros termos. Todos esses termos possuem seus próprios feixes de associações, e, particulamente, somos cuida- dosos em nos ligarmos a qualquer u m deles, considerando-o o mais adequado. De momento, preferimos utilizar "área" ou "nível", mas devemos admitir que não sabemos o motivo pelo qual preferimos esses dois. A mais conhecida dessas três áreas caracteriza-se pelo número 3, e pode ser chamada de área do conflito de Édipo. É corretamente descrita como o complexo nuclear, pois todo o desenvolvimento humano — individual ou coletivo—precisa passar por ela, conservando para sempre a marca da solução que o indivíduo ou a civilização em questão encontrou, em sua luta com os conflitos envolvidos. A área total é caracterizada pelo fato de que tudo o que ocorre nela envolve, além do sujeito, pelo menos dois objetos paralelos. A força que opera nesse nível assume a forma de u m conflito, em geral originado da ambivalência criada pelas complexidades da relação entre o indivíduo e seus dois objetos paralelos. Esse nível é u m dos mais conhecidos. Há duas razões principais para tanto. A primeira porque a relação entre o sujeito e seus objetos é muito semelhante 2 4 A F A L H A BÁSICA 2 5 à de u m adulto, enquanto a segunda, porque a linguagem adulta é u m meio bastante adequado para descrever o que pode ser observado. A segunda área, como procuramos mostrar nesta Parte, é completamente diferente da anterior. E a área da falha básica, caracterizada pelo número 2, significando que nela estão envolvidas duas, e apenas duas, pessoas. Entretan- to, sua relação não é a encontrada entre dois adultos; é mais primitiva. U m a outra diferença entre essas duas áreas é aquela causada pela natureza da força dinâmica que atua em cada uma. N a área do complexo de Édipo, a forma da força é a de u m conflito. Embora altamente dinâmica, a força originada da falha básica não assume o aspecto de u m conflito. Como foi descrito no capítulo 4, assume o aspecto de uma falha, de algo destorcido ou que está faltando na mente, produzindo u m defeito que deve ser corrigido. Disso decorre u m certo número de problemas técnicos, que propomos discutir nas partes III-V. Talvez a maior dificuldade para tentar qualquer descrição teórica de tais fenómenos seja acomparativa inutilidade da linguagem adulta, como já mencionamos. Finalmente, temos a área de criação, que recebe o número 1, na qual não está envolvido nenhum objeto externo, não havendo, portanto, relação objetal, nem transferência. É por esse motivo que nosso conhecimento sobre esses processos são tão escassos e imprecisos. Nossos métodos analíticos não se aplicam a essa área, motivo pelo qual temos de nos apoiar em inferências pouco seguras, assim como em extrapolações. Até onde essas áreas se estendem na mente? É uma pergunta muito interessante, para a qual só temos uma resposta bastante incompleta. Certa- mente, todas as três áreas estão no ego, porém não saberíamos dizer se alcançam o superego, e a mesma incerteza é preciso admitir quanto ao i d . N o entanto, todos os recentes avanços da teoria do aparelho mental pertencem, principal ou exclusivamente, ao ego. Isso também é verdadeiro em Fairbairn, Hartmann e Winnicott, de forma que não estamos em má companhia. Antes de terminar esta parte do livro, queremos acrescentar algumas recomendações. A primeira delas refere-se à relevância de nossas observações sobre a teoria geral do desenvolvimento humano. E m geral, admite-se que os fenómenos observados clinicamente, na situação psicanalítica, podem ser considerados como exemplos representativos do desenvolvimento total do homem (Balint, M . , 1956). Embora raramente expressa de forma clara, essa ideia matiza muitas das nossas proposições teóricas. Julgamo-na completamente falsa; em primeiro lugar, nem tudo o que acontece no desenvolvimento humano repete-se na situação analítica e, em segundo, o que é repetido está profundamente distorcido, devido às condições predominantes. Foi Freud quem recomendou que o tratamento analítico deveria ser realizado em estado de abstenção, isto é, de frustração. Mesmo que essa máxima não tenha sido obedecida tão incondicionalmente como seu texto sugere, no conjunto, é verdade que o paciente deve, durante o tratamento, aceitar mais frustrações do 2 6 M I C H A E L BALINT que gratificações. É preciso verificar se a mesma desproporção ocorre durante todo o desenvolvimento humano. Até então, é mais seguro presumir que o que conseguimos observar, em nossa prática, é u m quadro consideravelmente distorcido e que isso é produzida por nossa técnica bem comprovada, que impõe frustrações ao paciente e, ao mesmo tempo, impede ou inibe as gratificações. Por negligenciar os efeitos dessa distorção, a teoria psicanalítica nos levou, inevitavelmente, a exagerar a importância, para a mente, da frustração e da ambivalência. N a verdade, os acontecimentos passados e presentes, pertencentes à área do conflito edípico, são trabalhados constantemente durante o tratamento analítico, mas isso ocorre principalmente por via indireta, através dos relatos verbais do paciente. O que observamos diretamente na situação analítica é uma relação bipessoal, e, do mesmo modo, uma parte da área da falha básica. Evidentemente, então expressamos nossas experiências em linguagem adulta, o que significa que devemos trazê-las para o nível edípico, isto é, para o nível da linguagem convencional. Se nossa forma de pensar estiver correra, isso também produz uma boa dose de distorção, que pode ser uma explicação de por que nossa teoria e técnica se distanciaram tanto, desde as últimas grandes monografias de Freud. N a Parte I, tentamos preencher essa lacuna, util izando nossas experiências clínicas para desenvolver uma nova teoria da mente e, em particular, do ego, que teria, como limite, a psicologia do ego clássica de Freud. E m segundo lugar, queremos acentuar que, no que se refere a esta Parte do l ivro, deixamos inteiramente em aberto a questão da cronologia, pois não pensamos aue nosso conhecimento atual seja suficiente para resolver tão difícil problema. E tentador, mas estamos certos de que é falso presumir que o simples, logicamente, seja necessariamente o primeiro, cronologicamente; assim, chega- mos a uma sequência: primeiro, o nível de criação, a seguir, o da falha básica e, por último, o nível do complexo de Édipo. Como sabemos da embriologia, algumas vezes acontece que, durante o desenvolvimento, uma estrutura precoce complexa gradualmente se simplifica ou mesmo se perde completa- mente, em u m estado posterior (cf. Balint, M . , 1959, capítulo 7). Portanto, podemos pensar que o nível mais precoce é o do amor primário e com ele o nível da falha básica, a partir do qual, por u m lado, desenvolve-se, por diferenciação, o conflito edípico e, por outro, por simplificação, o nível de criação. Nosso plano é adorar esta última ideia como hipótese de trabalho e examinar se poderemos chegar, sob essa base, a uma melhor compreensão de alguns de nossos intrigantes problemas teóricos e técnicos. Pelo lado teórico, temos dois problemas antigos e amplamente inter- relacionados: o narcisismo e a regressão. Embora ambos possuam conexões com a área do complexo de Édipo, pertencem fundamentalmente à área da falha básica. Como esse fato não pôde ser adequadamente avaliado, o aparecimento de aspectos narcisistas ou regressivos na situação transferencial foi considerado, A F A L H A BÁSICA 2 7 em sua totalidade, como u m sinal funesto. Nas partes II e III, devemos examinar quão justificada foi essa generalização e em que tipo de casos demonstrou ser incorrera. Após ter esclarecido nosso caminho, nas duas últimas partes do livro discutiremos suas implicações técnicas. PARTE II NARCISISMO PRIMÁRIO E AMOR PRIMÁRIO C A P Í T U L O 7 As Três Teorias de Freud ti U M fato curioso, porém de fácil verificação que, durante muitos anos, Freud tenha conservado três pontos de vista mutuamente exclusivos da relação mais primitiva do indivíduo com seu entorno. O mais antigo foi publicado em 1905, em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, tendo permane- cido imutável em todas as edições subsequentes, embora se deva notar que tanto este l ivro como A interpretação dos sonhos foram os únicos que Freud procurava manter atualizados, revisando-os e corrigindo-os a cada nova edição, neles incluindo todas as descobertas feitas nos anos posteriores à última edição. Estranhamente, essa passagem ocorre na última seção do terceiro e último ensaio, cujo subtítulo era, em alemão, Die Objektfindung, uma bela e concisa frase, traduzida para o inglês de uma forma u m tanto canhestra como "The F inding of an Object" (Standard Edit ion, VII, p. 222). Freud escreveu: " N u m momento em que as primeiras satisfações sexuais ainda estão ligadas à ingesta de alimentos, a pulsão sexual tem um objeto sexual fora do próprio corpo da criança, sob a forma do seio da mãe. Só mais tarde é que a pulsão perde esse objeto, talvez exatamente no momento em que a criança se torna capaz de formar uma ideia total da pessoa a quem pertence o órgão que lhe está fornecendo satisfação. Como regra, então, a pulsão sexual se torna auto- erótica, e somente após ter passado o período de latência é restaurada a relação original. Estas são, pois, boas razões do mamar da criança no seio materno 3 1 3 2 M I C H A E L BALUMT tornou-se o protótipo de toda a relação de amor. O encontro de u m objeto é de fato seu reencontro" (Os grifos são nossos.) Devemos fazer duas observações a respeito da tradução para o inglês, no restante excelente. A última sentença é, em alemão, verdadeiramente bela: "Die Objektfindung ist eigentlich eine Wierderfindung". A inglesa é uma pálida tradução da poderosa e categórica frase original. Embora não totalmente correta e u m tanto mais livre — mas parecendo-nos mais verdadeira — ,a tradução deveria ser: "Toda descoberta objetal é, de fato, uma redescoberta". Nossa segunda observação refere-se à época. N o original de Freud, é a anfänglichste Sexualbefriedigung, que é incomparavelmente mais enfática do que a de outra forma correta tradução para o inglês, the first beginnings of sexual satisfaction [os verdadeirosprimórdios da satisfação sexual]; talvez uma tradução mais fiel fosse the very first sexual satisfaction [a primeira verdadeira satisfação sexual]. C o m o já foi dito, essa passagem permaneceu imutável, mas, em 1915, Freud acrescentou uma nota de rodapé, para chamar a atenção para sua descoberta de mais um método de encontrar u m objeto, especificamente o narcísico. E fácil demonstrar que, depois da introdução da teoria psicanalítica do narcisismo, por muitos anos Freud não teve a intenção de abandonar a ideia de relação objetal primária em favor do narcisismo primário. Para provar tal assertiva, transcrevemos duas passagens de seus escritos daqueles tempos. U m a pertencente às Conferências introdutórias sobre psicanálise, que, como sabemos, foram publicadas em 1916-1917. Freud, primeiramente, destaca que certos componentes pulsionais da sexualidade, como o sadismo, a escopofilia e a curiosidade, possuem u m objeto desde o começo, continuando: "Outros, ligados mais definitivamente a determinadas zonas erógenas do corpo, possuem-no apenas no começo, enquanto ainda presos a funções não- sexuais, abandonando-os quando se separam delas", referindo-se em particular ao componente oral da pulsão, quando então afirma: " A pulsão oral torna-se auto-erótica, como o são, desde o começo, a pulsão anal e outras pulsões erógenas. U m maior desenvolvimento, para situar o assunto o mais concisa- mente possível, tem duas finalidades: primeiramente, o abandono do auto- erotismo e, mais uma vez, a substituição do próprio corpo do sujeito por u m objeto externo, e, em segundo lugar, a unificação dos vários objetos das diversas pulsões e sua substituição por u m único objeto (Standard Edit ion, XVI). A outra passagem pertence ao artigo de Freud sobre psicanálise, no l ivro de M . Marcuse Handwörterbuch der Sexualwissenschaft, valendo a pena menci- onar que a passagem ocorre na secção cujo por subtítulo é " 0 Processo de Encontrar u m Objeto". " N a primeira instância, o componente oral da pulsão encontra satisfação em se apegar à satisfação do desejo por alimento, e seu objeto é o seio da mãe. Depois desliga-se, torna-se independente e, ao mesmo tempo, auto-erótico; isto é, encontra u m objeto no próprio corpo da criança" A F A L H A BÁSICA 3 3 (Standard Edit ion, XVIII. Grifos no original). Sabemos que esse artigo foi escrito em 1922, u m pouco antes do Congresso de Berlim, o último a que Freud compareceu, no qual anunciou suas novas ideias a respeito da estrutura mental, que levaram, mais tarde, ao desenvolvimento do que é atualmente chamado de psicologia do ego. A i n d a assim, como o comprova a passagem citada, não abandonou a ideia de relação objetal primária. A s outras duas teorias, a respeito da relação mais primitiva do indivíduo com seu entorno surgiram pela primeira vez em 1914, em Sobre o narcisismo: uma introdução, embora a mais antiga delas tivesse apresentado várias precur- soras nos anos anteriores (1). Esta, a teoria mais antiga, foi iniciada, no artigo de 1914, de forma bastante categórica, sem quaisquer qualificativos. Freud indaga, na primeira secção do trabalho: " Q u a l é a relação do narcisismo, do qual estamos agora falando, com o auto-erotismo, que descrevemos como um estado precoce da libido?", do que responde assim: "Devo dizer que fomos levados a supor que não poderia existir no indivíduo, desde o começo, uma unidade comparável ao ego; o ego precisa desenvolver-se. N o entanto, as pulsões auto-eróticas estão presentes desde o começo; assim, é preciso acres- centar algo ao auto-erotismo — uma nova ação psíquica — para se chegar ao narcisismo" (Standard Edition, XIV. Grifo nosso). Sabemos, por Ernest Jones (Sigmund Freud, II), que a primeira vez que Freud uti l izou o termo "narcisismo", com o sentido acima citado, foi em 10 de novembro de 1909, em u m encontro da Sociedade Analítica de Viena. Q u a n d o afirmou: " O narcisismo não era necessariamente u m estágio intermediário na passagem do auto para o alo-erotismo". Isso está de acordo com uma passagem da análise de Schreber (Standard Edition, XII. Grifos nossos). " A s recentes pesquisas voltaram nossa atenção para u m estágio do desenvolvimento da libido, no qual ela passa do auto-erotismo ao amor objetal. Tal estágio recebeu o nome de narcisismo... Estafase, a meio caminho entre o auto-erotismo e o amor objetal, talvez seja normalmente indispensável, mas parece que muitas pessoas permanecem por demasiado tempo nessa condição, levando com elas muitos de seus aspectos para os estágios posteriores de seu desenvolvimento". Essa passagem, publicada em 1911, incidentalmente, é a terceira ocasião em que Freud util iza o termo "narcisismo", tendo ocorrido a segunda no trabalho sobre Leonardo. Voltaremos à primeira vez em que o termo foi util izado. De momento discutiremos dois pontos. E m primeiro lugar, é inequívoca a descrição de Freud nas duas passagens apresentadas. A forma mais primit iva de relação do indivíduo com seu entorno é o auto-erotismo, seguida pelo estágio narcísico, a partir do qual então se desenvolvem as relações objetáis. Evidentemente, é esse o desenvolvimento que leva ao tipo de escolha objetal que, mais tarde, no trabalho "Sobre o Narcisismo", é descrito como narcisismo. Esse desenvolvimento deveria ser considerado como uma alternativa ou como paralelo ao antes descrito — em Três ensaios e outros escritos acima citados —, 34 M I C H A E L BALINT que começa como relação objetal primária, levando a uma escolha objetal, mais tarde caracterizada por Freud como de apoio. O segundo é que, nas passagens que acabamos de citar, Freud afirma que o narcisismo é essencialmente u m fenómeno secundário — "uma fase a meio caminho". Poderia repetir aqui a sentença que destaca: "Deve-se acrescentar algo ao auto-erotismo—uma nova ação psíquica—para chegar ao narcisismo". N o t e m que não há nenhuma qualificação dessa afirmativa, o que é ainda mais surpreendente, pois a citação se origina de dois parágrafos que se seguem, de imediato, à passagem na qual Freud utiliza pela primeira vez (2) sua famosa metáfora da ameba: "Ass im, formamos a ideia de que ali existia u m investimen- to l ibidinal original do ego, a partir do qual, mais tarde, uma parte vai para os objetos, mas que fundamentalmente permanece, estando relacionado ao investimento objetal, como o corpo de uma ameba ao pseudópode que dela parte" (Standard Edit ion, XIV). Voltaremos ao assunto para discutirmos essa contradição, depois de ter descrito a terceira teoria de Freud. E de admirar que o trabalho "Sobre o Narcisismo", introdutor dessa teoria, não contenha uma descrição concisa do narcisismo primário. Entretan- to, como em geral se sabe, o narcisismo primário tornou-se a teoria-padrão para descrever a relação mais primitiva do indivíduo com seu entorno, e, muitas vezes, Freud remete a ela, em seus escritos posteriores. É bastante interessante que a teoria não tenha mudado em nada, nos restantes 25 anos de trabalho ativo de Freud. Para comprová-lo, deixem-me fazer duas citações. U m a , de u m acréscimo aos Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, por ocasião da terceira edição, em 1915: " A libido narcisista ou do ego parece ser o grande reservatório do qual os investimentos objetais são enviados e ao qual mais uma vez são recolhidos; o investimento libidinal narcísico do ego é o estado original das coisas, realizado na infância mais precoce, sendo meramente encoberto pelas posteriores extrusões da libido, mas essencialmente persistindo por trás delas (Standard Edition, VII). A outra passagem pertence ao último trabalho de Freud, não concluído, Esboço de psicanálise, escrito em 1938 e 1939, no qual, no segundo capítulo com o subtítulo " A Teoria das Pulsões", diz : "É difícil dizer algo sobre a conduta da libido no i d e no superego. Tudo o que sabemos a respeito está relacionado ao ego, no qual é primeiramente armazenada toda a cota de libido disponível.
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