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UNIVERSIDADE FUMEC FACULDADE DE CIÊNCIAS EMPRESARIAIS DOUTORADO EM ADMINISTRAÇÃO A MANIFESTAÇÃO DA IDENTIDADE NA CORRUPÇÃO ORGANIZACIONAL: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL CARLOS ROBERTO ALCÂNTARA DE REZENDE Belo Horizonte - MG 2014 1 CARLOS ROBERTO ALCÂNTARA DE REZENDE A MANIFESTAÇÃO DA IDENTIDADE NA CORRUPÇÃO ORGANIZACIONAL: UMA ABORDAGEM PSICOSSOCIAL Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Administração, da Faculdade de Ciências Em- presariais da Universidade Fumec, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Administração. Área de concentração: Gestão Estratégica de Organizações Orientador: Prof. Dr. Daniel Jardim Pardini Belo Horizonte - MG 2014 2 UNIVERSIDADE FUMEC/FACE Faculdade de Ciências Empresariais Curso de Doutorado em Administração Carlos Roberto Alcântara de Rezende. A manifestação da identidade na corrupção organizacional: uma aborda- gem psicossocial. Tese apresentada ao Curso de Doutorado em Administra- ção, da Faculdade de Ciências Empresariais da Universida- de FUMEC, na área de concentração de Gestão Estratégica de Organizações, como parte dos requisitos para a obtenção do título de Doutor em Administração, e aprovada pela banca examinadora, composta pelos seguintes professores: Prof. Dr. Daniel Jardim Pardini - Universidade FUMEC Orientador Prof. Dr. Carlos Alberto Gonçalves - Universidade FUMEC _________________________________________________________________________ Prof. Dr. Eduardo Martins de Lima - Universidade FUMEC ___________________________________________________________________________ Profa. Dra. Zélia Miranda Kilimnik - Universidade FUMEC ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Dr. Márcio Augusto Gonçalves - UFMG ___________________________________________________________________________ Prof. Dr. Tomas Aquino Guimarães – UNB 3 Prof. Dr. Jair Nascimento Santos - UEBA Prof. Dr. Cid Gonçalves Filho Coordenador dos Cursos de Mestrado e Doutorado em Administração Universidade Fumec Belo Horizonte, 11 de junho de 2014 4 Aos meus pais, Luiz Carlos e Norma (in memoriam), dedico este trabalho, inspirado nos seus valores de moral e de bondade. 5 RESUMO Esta tese objetiva o esclarecimento da manifestação da identidade na corrupção organizacio- nal, na perspectiva do interacionismo simbólico. A abordagem exploratória focalizou os atri- butos distintivos e relativamente duradouros dos diversos agentes que, de alguma forma, con- tribuem para a efetividade do ato corrupto, ou para seu controle, dentre os quais a própria or- ganização. Ficou evidenciado, do ponto de vista teórico e empírico, que as identidades são múltiplas e formadas de maneira dinâmica e interativa. Assim, os agentes se influenciam mu- tuamente e são movidos pela interpretação particular e situacional das representações, símbo- los e significados. O aprofundamento teórico conduziu à identificação de três fenômenos inte- rativos influentes na corrupção organizacional: controle (autocontrole), conflito e contágio. A aplicação empírica foi orientada pela interpretação complexa e transdisciplinar, a partir da abordagem fenomenológica. Foram investigados seis fenômenos de corrupção, em seis orga- nizações distintas, por meio de entrevistas semiestruturadas com treze agentes predominate- mente contraposionados em relação aos atos de transgressão. Por meio de sucessivas reduções eidéticas e da análise crítica dos discursos foi revelada uma ampla diversidade tipológica, identitária e interacional. O trabalho permitiu a consideração de alguns construtos microssoci- ais próprios da dinâmica interativa das identidades, distinguindo-se das abordagens prevalen- tes nos estudos organizacionais, geralmente mais funcionalistas, contingenciais e atinentes à amplitude dos sistemas políticos e macroeconômicos. Palavras-chave: Corrupção organizacional. Identidade. Interacionismo simbólico. 6 ABSTRACT This dissertation aims to inform about the manifestation of identity in organizational corrup- tion, from the perspective of symbolic interactionism. The exploratory approach focused on the distinctive and relatively enduring attributes of the various agents that somehow contrib- ute to the effectiveness of the corrupt act or for its control, among which the organization it- self .It was demonstrated, theoretically and empirically, that identities are multiple and are formed in a dynamic and interactive way. Thus, the agents influence each other and are driven by individual and situational interpretation of representations, symbols and meanings. The theoretical study led to the identification of three influential interactive phenomena in organi- zational corruption: control (self-control), conflict and contagion. The complex and cross- disciplinary interpretation guided the empirical application, from the phenomenological ap- proach. Six phenomena of corruption were investigated in six different organizations, through semi-structured interviews with thirteen predominately positioned against agents in relation to acts of transgression. Through successive eidetic and critical discourse analysis revealed a broad reductions was typological, identity and interactional diversity. The work allowed the consideration of some own micro social constructs of interactive dynamics identities, differ- ently of prevalent approaches in organizational studies generally more functionalist contin- gency and restricted to the range of political and macroeconomic systems. Keywords: Organizational Corruption. Identity. Symbolic Interactionism. 7 LISTA DE QUADROS Quadro 1 - Taxonomia das modalidades na corrupção organizacional.............27 Quadro 2 - Exemplos de corrupção de menor gravidade..................................30 Quadro 3 - Taxonomia do Controle da Corrupção............................................62 Quadro 4 - Equilíbrio de Nash..........................................................................77 Quadro 5 - Função ontológica da organização ideal.........................................83 Quadro 6 - Taxonomia da corrupção organizacional......................................109 Quadro 7 - Roteiro de entrevista.....................................................................129 Quadro 8 - Tratamento dos dados...................................................................131 Quadro 9 - Identificação dos trechos linguísticos............................................131 Quadro 10 - Síntese dos fenômenos e entrevistados.......................................134 Quadro 11 - Trechos consolidados no fenômeno 1.........................................143 Quadro 12 - Percepção das identidades no fenômeno 1..................................145 Quadro 13 - Trechos consolidados no fenômeno 2.........................................149 Quadro 14 - Percepção das identidades no fenômeno 2..................................150 Quadro 15 - Trechos consolidados no fenômeno 3.........................................157 Quadro 16 - Percepção das identidades no fenômeno 3..................................161 Quadro 17 - Trechos consolidados no fenômeno 4.........................................171 Quadro 18 - Percepção das identidades no fenômeno 4..................................174 Quadro 19 - Trechos consolidados no fenômeno 5.........................................182 Quadro 20 - Percepção das identidades no fenômeno 5..................................184 Quadro 21 - Trechos consolidados no fenômeno6.........................................189 Quadro 22 - Percepção das identidades no fenômeno 6..................................191 8 LISTA DE FIGURAS Figura 1 - Modelo de análise da construção discursiva das identidades.........................43 Figura 2 - Variáveis que afetam a escolha do indivíduo na corrupção organizacional...74 Figura 3 - Dinâmica interativa das identidades na corrupção organizacional...............113 Figura 4 - Fenômenos interativos de influência na formação das identidades.............113 9 LISTA DE SIGLAS E1...n – Entrevistado F1...n – Fenômeno investigado TR.n.n – Trecho da entrevista.número do entrevistado.ordem do trecho 10 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................................................12 1.1 PERGUNTA DE PESQUISA ................................................................................................................16 1.2 OBJETIVOS ....................................................................................................................................16 1.3 ESTRUTURA DO TRABALHO ...........................................................................................................17 2 O FENÔMENO DA CORRUPÇÃO ORGANIZACIONAL .....................................................................19 2.1 PARÂMETROS CONCEITUAIS ...........................................................................................................19 2.2 TIPOLOGIA: PROPOSTA DE UMA TAXONOMIA ..................................................................................24 2.2.1 Corrupção de menor gravidade ........................................................................................29 2.3 ANTECEDENTES E CONSEQUÊNCIAS ................................................................................................31 3 FUNDAMENTOS SOBRE A IDENTIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL ..........................36 3.1 UMA ABORDAGEM CONCEITUAL DAS IDENTIDADES .........................................................................36 3.2 A DIMENSÃO INTERATIVA E PSICOSSOCIAL NA IDENTIDADE .............................................................44 3.3 INTERACIONISMO SIMBÓLICO ........................................................................................................48 4 FENÔMENOS INTERATIVOS E MATERIAL SIMBÓLICO NA FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES 55 4.1 O AMBIENTE DE CONTROLE NA PERSPECTIVA INTERATIVA E PSICOSSOCIOLÓGICA ............................59 4.2 CONTROLE: UM AMBIENTE DE RESTRIÇÕES, INCENTIVOS E PUNIÇÕES ...............................................61 4.3 AUTOCONTROLE: O VOLUNTARISMO DO AGENTE CORRUPTO EM QUESTÃO .......................................69 4.4 CONFLITO: UMA DECEPÇÃO COM AS IDENTIDADES IDEALIZADAS .....................................................82 4.5 O CONFLITO NAS PERSPECTIVAS DE DAHRENDORF E FREUD ............................................................91 4.6 CONTÁGIO: NA CORRUPÇÃO, OS AGENTES SÃO LEVADOS E SE DEIXAM LEVAR ..................................97 4.7 IGNORÂNCIA PLURALISTA: UMA IMAGINAÇÃO EQUIVOCADA E CONTAGIANTE ................................ 102 4.7.1 As causas da Ignorância Pluralista para Halbesleben, Wheeler e Buckley....................... 105 4.8 TEORIA DA JANELA QUEBRADA: A DESORDEM COMO ANTECEDENTE CONTAGIANTE ....................... 107 5 DESCRIÇÃO DE UMA TAXONOMIA E UM MODELO TEÓRICO POSSÍVEL ............................... 109 6 METODOLOGIA ..................................................................................................................................... 115 6.1 REFLETINDO SOBRE A TRANSDISCIPLINARIEDADE DO PRESENTE ESTUDO ....................................... 115 6.2 NATUREZA METODOLÓGICA DA PESQUISA .................................................................................... 119 6.3 ESTRATÉGIA DE COLETA DE DADOS .............................................................................................. 125 6.4 TRATAMENTO DE DADOS ............................................................................................................. 129 7 ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS RESULTADOS .................................................................................... 133 7.1 FENÔMENO 1 – EMPRESA FAMILIAR ................................................................................ 136 7.2 FENÔMENO 2 – ORGANIZAÇÃO PÚBLICA .......................................................................... 146 11 7.3 FENÔMENO 3 – ORGANIZAÇÃO PÚBLICA EM INTERAÇÃO COM AGENTE EXTERNO ............... 151 7.4 FENÔMENO 4 – COOPERATIVA EM INTERAÇÃO COM ORGANIZAÇÃO PÚBLICA .................... 163 7.5 FENÔMENO 5 – EMPRESA PÚBLICA EM INTERAÇÃO COM EMPRESA PRIVADA ...................... 176 7.6 FENÔMENO 6 – COOPERATIVA ........................................................................................ 185 7.7 DISCUSSÃO SOBRE O CONJUNTO DOS FENÔMENOS ............................................................ 192 8 CONCLUSÃO .......................................................................................................................................... 208 REFERÊNCIAS .......................................................................................................................................... 216 ANEXO A – ROTEIRO DE ENTREVISTA............................................................................................... 231 ANEXO B – COMPREENSÃO DOS TRECHOS SIGNIFICATIVOS DAS ENTREVISTAS....................232 ANEXO C – COMPREENSÃO DAS ESSÊNCIAS IDENTITÁRIAS............................................................304 12 1 INTRODUÇÃO Esta tese objetiva analisar a manifestação da identidade na corrupção organizacional, na perspectiva do interacionismo simbólico, buscando ampliar a abrangência política, econô- mica e institucional, predominante em estudos anteriores. Focaliza a interação complexa entre o indivíduo e a organização, assim como as representações que se constroem nesse relacio- namento, como antecedentes e consequências da corrupção. A relevância do estudo da corrupção organizacional se evidencia na gravidade das suas consequências e na expressiva reação das organizações prejudicadas, por meio de mecanismos de governança, controles burocráticos, punições e incentivos. Além disso, no mundo, existem diversas organizações dedicadas à investigação e ao combate à corrupção, dentre as quais a International Transparency, a Contas Abertas e a Transparência Brasil. A existência desse fenômeno, como transgressão ética universal, produz impactos indesejáveis, em especial, econômicos. A Organização das Nações Unidas (ONU) estima que os recursos desviados correspondam ao expressivo valor de 5% do produto interno bruto mundial, de acordo com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD, 2013). Este estudo parte da premissa de que a corrupção é prejudicial às organizações, constituindo um mal amplo, grave e estrutural da sociedade, uma perturbação e uma anormalidade que demanda ações de repressão e controle. Por outro lado, propaga-se em uma cultura de impunidade, encorajando os transgressores e solapando o funcionamento das instituições (PEREIRA, 2002; ZINNBAUER et al., 2009). Ao longo dos últimos anos, a ques- tão da corrupção tem atraído o interesse nos estudos organizacionais. Hoje, a prevenção da corrupção é reconhecida como um fator-chave para o desenvolvimento em grandes áreas do mundo e, consequentemente, uma vasta gama de projetos e ferramentas foi desenvolvida para lutar eficazmente contra esse fenômeno e construir um sistema organizacional mais imune à corrupção (STACHOWICZ-STANUSCH; SUTKOWSKI, 2010). Esse fenômeno tem sido relatado em diversos períodos históricos, sistemas sociais, econômicos e políticos, em praticamente todos os paísese tipos de organização, sendo que as primeiras referências datam de quatro séculos antes de Cristo (AIDT, 2003; ALENCAR; GICO JR., 2011). A corrupção não se restringe às maiores economias, constituindo-se de forma sistêmica e persistente também nas economias subdesenvolvidas e em desenvolvimento, solapando recursos nos bastidores subterrâneos das organizações (MISANGYI et al., 2008; MOISÉS, 2009). Também não é restrita apenas ao capitalismo, 13 revelando-se como um problema nas autodenominadas repúblicas socialistas e comunistas (PUERTA, 2004; MARTINS, 2008). As afirmações de Kaminski e Kaminski (2001, p. 1), de que “a corrupção não respeita fronteiras nem culturas”, e de Lange, (2008, p. 727), quando utiliza o termo “prevalência perpétua”, para se referir ao caráter persistente da corrupção, expressam essa abrangência geográfica e temporal. Essas assertivas evidenciam a oportunidade de investigação sobre os fatores intervenientes que resistem às circunstâncias históricas e à diversidade cultural. Essencialmente, a corrupção organizacional expressa uma ação de descumprimento de regras institucionalizadas, compreendidas em uma estrutura delineada, legitimada e restritiva, denominada como ambiente normativo da organização. Seus agentes, o indivíduo, grupo ou organização, buscam auferir ganhos particulares em detrimento de terceiros, por meio de es- tratégias e modalidades diversas que corroem os valores da identidade organizacional (HOU- AISS, 2001; COUTRIM et al., 2005; SOARES, 2008; LANGE, 2008, MISANGYI et al., 2008, PINTO et al., 2008). Considerando os danos para a coletividade e para as instituições que sustentam as normas descumpridas, a corrupção ocorre de forma escusa, pois, assim, os agentes corruptos buscam escapar da reação dos entes prejudicados por seus atos. Embora a corrupção seja reconhecida como um fenômeno típico da organização públi- ca, também ocorre na organização privada e na articulação desta com a organização pública, de forma ativa ou passiva, numa extensa tipologia, considerando os modos de operação, perfil dos envolvidos, organizações, beneficiários e vítimas (AMUNDSEN, 1999; MYINT, 2000; MARTINS, 2002; PEREIRA, 2002; JUNIOR, 2011; PARDINI et al., 2011). Em alguns tipos de corrupção, a organização prejudicada não é aquela de que o indiví- duo corrupto integra e de que participa. Em certos casos, inclusive, pode ocorrer em nome dessa organização, numa modalidade informalmente institucionalizada. Há, no entanto, em todos os tipos de corrupção organizacional, alguma organização guardiã dos parâmetros nor- mativos, representando a parte lesada (KLITGAARD, 1991). Os estudos sobre a corrupção são ainda incipientes no meio acadêmico (PINTO et al., 2008; BORINI; FILGUEIRAS, 2008; GRIZI, 2009). Geralmente, os pesquisadores priorizam as análises empíricas circunstanciais, em que os aspectos ontológicos são tratados secundari- amente, em relação às contingências políticas, gerenciais, econômicas e culturais. Svensson (2005) considera que as teorias sobre os determinantes da corrupção enfatizam o papel da economia e da estruturação política e institucional, o que se confirma nas publicações de Nye (1967), Heidenheimer (1970), Chaia e Teixeira (2001), Silva (2001), Pereira (2002), Coutrim 14 et al. (2005), Glaeser e Goldin (2006), Ballouk Filho e Kuntz (2008), Misangyi et al. (2008), Pinto et al. (2008), Taylor (2009) e Zinnbauer et al. (2009). Algumas pesquisas são referenciadas em amplos limites geográficos. Nesses estudos, o recorte predominante, denominado cross country, é demasiadamente extenso. Isso dificulta o esclarecimento sobre os motivos da existência de variações significativas de ocorrência da corrupção, em organizações sob a influência de contextos macroambientais semelhantes (ANDVIG; FJELDSTAD, 2001; ROSE-ACKERMAN, 2006). Pinto et al. (2008) afirmam que as pesquisas, geralmente, focalizam os reflexos da cor- rupção para as organizações e são restritas aos aspectos éticos e gerenciais. O autor, no entan- to, admite que, mais recentemente, a corrupção e suas variantes foram estudadas em nível mundial, através de disciplinas como a psicologia e a sociologia. A questão de aprofundamen- to, nesta pesquisa, surge no curso dessa tendência, com o objetivo de oferecer esclarecimentos sobre a ontologia da corrupção organizacional, buscando ampliar o espectro predominante- mente macrocontingencial. Portanto, foram investigados alguns fatores essenciais da corrup- ção organizacional: aquilo que se pode definir como indissociável do fenômeno, como ante- cedente, consequência e modus operandi, independentemente do contexto político, econômico e cultural, ou seja, o componente essencial do fenômeno, cuja falta comprometeria a sua exis- tência (BRUYNE; HERMAN; SCHOUTHEETE, 1991). Nesse sentido, buscar a essência da corrupção, neste estudo, significou ir além da circunstância que favorece o seu acontecimento, mas que, ausente, não seria suficiente para causar a sua inexistência. Possivelmente, essa essência se encontre na interação dos diversos agentes envolvidos e nos fenômenos interativos que influenciam a formação da identidade desses agentes, em uma perspectiva microssocial e organizacional. Nesse espaço de abordagem, a organização se apresenta com a sua identidade ontologicamente heterônoma, pois se move e se desenvolve sustentada em um arcabouço normativo em favor da sua própria integridade. A ausência de regras (anomia) corresponderia ao fim dessa identidade. Em contraposição, o indivíduo, agen- te da corrupção, assume o perfil transgressor, desviando-se da heteronomia para obter vanta- gens indevidas, entre outras razões, porque as representações normativas que ele burla não mobilizam o seu adequado investimento afetivo. O que parece estar em jogo, e que sustenta o conceito de corrupção, é a integridade dos significados organizacionais materializados nos estatutos, regimentos e leis, que descrevem a razão de ser de cada organização, e que corres- pondem à identidade organizacional idealizada. Tal idealização não se constitui como um mero capricho individual, mas como uma representação de significados, que unifica o desejo coletivo da institucionalização. Por isso, as 15 organizações reagem à corrupção por meio de ações de controle, compreendidas por Lange (2008, p. 715) em quatro dimensões: (a) controles burocráticos, referentes à estrutura burocrática e aos processos formais que regulam e monitoram o comportamento funcional; e ”concertive controls”, envolvendo a pactuação de procedimentos entre o indivíduo e a organização; (b) punições e incentivos, referentes às consequências; (c) sanções ambientais, referentes ao posicionamento dos demais integrantes da organização (interno) e da sociedade em geral (externo), envolvendo sansões informais; (d) autocontrole e vigilância, considerados como controles intrínsecos, em que o indivíduo se identifica com as normas, valores e princípios e, pelo mesmo motivo, atua como vigilante em relação aos colegas. Em síntese, o que se pretende com a burocracia, punições, incentivos, sanções e vigilância, naquilo que é gerenciável, é promover o alinhamento do indivíduo com os limites normativos, que, em última instância, correspondem à harmonização das diversas identidades com a organização, em defesa da integridade. Esse esforço de controle encontra, na complexidade humana, um enorme desafio, em especial quando o indivíduo é considerado apenas como objeto e recurso da organização, e não como essência intersubjetiva do fenômeno organizacional. Do ponto de vista da psicossociologia, não há uma dicotomia entre esses dois entes, pois há tanto do indivíduo na organização, e tanto da organização no indivíduo, que não se pode precisar onde termina um e onde começa o outro, no fenômeno social (ANDRADE, 1972). Essa perspectiva coincide com a fenomenologia, expressa na obrade Merleau-Ponty (1945), quando defende a ideia de que homem é mundo e o mundo é homem. No contexto deste estudo, significa considerar que in- divíduo é grupo e organização, tal como, organização é grupo e indivíduo. O indivíduo corrupto e os demais agentes que empreendem a cena organizacional, movidos pela complexidade psíquica, não existem fora da dinâmica coletiva. Suas identidades se desenvolvem sob a influência direta ou indireta de grupos, desde os menos numerosos, até os habitantes de um país. Mesmo aquele que age sozinho pode se sentir pertencente e influen- ciado por alguma coletividade, quando, por exemplo, o agente corrupto tem a ilusão da impu- nidade ou é contagiado em um ambiente culturalmente corrompido. A organização, por sua vez, reflete a individualidade dos seus integrantes, nas escolhas que determinam o seu destino institucional e a sua cultura interna. Esse caminho de investigação conduziu ao esclarecimento sobre alguns fenômenos in- terativos, como o controle (autocontrole), conflito e contágio, que intervêm na dinâmica de formação das identidades e são influenciados por representações, significados e símbolos. Essa abordagem favoreceu a compreensão da essência interativa e simbólica do ambiente em 16 que a corrupção se constitui como tal e se diferencia das demais transgressões na organização. Do ponto de vista epistemológico, o caminho de investigação foi percorrido de forma trans- disciplinar e interpretativa, em que os diversos construtos teóricos e a referência empírica foram pensados dialogicamente, a partir da pergunta e dos objetivos da pesquisa, indicando novas possibilidades para a compreensão científica da corrupção organizacional. No curso do trabalho de campo, houve um esforço na diversificação dos tipos de cor- rupção investigados, assim como das organizações. Dessa forma, foi possível entrevistar al- guns agentes diretamente envolvidos em fenômenos tais como fraude, peculato, prevaricação, suborno, desfalque e favorecimento, acontecidos em dois órgãos de governo, uma empresa pública, duas cooperativas e uma empresa privada. Em alguns desses fenômenos, a corrupção se desenvolveu em articulação com agentes externos, enquanto que, em outros, as interações importantes se deram internamente. Alguns profissionais foram convidados a participar, mas se negaram ou impuseram dificuldades burocráticas e protelatórias que inviabilizaram a reali- zação das entrevistas em tempo hábil. No entanto, algumas afirmações desses convidados, em diálogo informal com o pesquisador, foram consideradas no tratamento dos dados. Em todos os casos, em atendimento à legislação vigente, e por solicitação de alguns entrevistados, o anonimato dos participantes e organizações foi assegurado (BRASIL, 2011). 1.1 Pergunta de pesquisa De que maneira as identidades se manifestam na corrupção organizacional? 1.2 Objetivos O objetivo deste estudo é esclarecer a manifestação da identidade na corrupção orga- nizacional. De maneira mais específica, significa: a) Descrever as representações e significados que influenciam na interação entre os diversos agentes, participantes do contexto em que a corrupção organizacional se desenvolve; b) Descrever os fenômenos interativos que influenciam na formação das identidades desses indivíduos, grupos e organizações; 17 c) Descrever a dinâmica de formação das identidades como antecedente e consequên- cia da corrupção organizacional; d) Identificar fatores situacionais associados à formação das identidades e recorrentes nos diversos contextos e modalidades da corrupção organizacional. 1.3 Estrutura do Trabalho Além desta introdução, a fundamentação teórica foi organizada em quatro capítulos. O primeiro objetiva a discussão sobre as questões conceituais, tipológicas, assim como os ante- cedentes e as consequências do fenômeno da corrupção organizacional. Embora os conceitos predominantes sejam mais restritos ao contexto de exploração da organização pública para fins privados, vários autores discutem esse conceito com maior complexidade, admitindo, inclusive, a corrupção na organização privada, sem a participação direta do Estado. O capítulo se encerra com a discussão sobre os antecedentes e consequências desse fenômeno, com des- taque para a peculiaridade de que a corrupção se alimenta de si própria. Neste tópico, fica evidente a predominância do enfoque macrossocial, entre os autores pesquisados, dificultando o esclarecimento sobre as razões que levam o indivíduo, grupo ou organização, a atuar como agente corrupto em uma organização, e não em outra, em um mesmo ambiente macrossocial. O segundo capítulo visa a introduzir o tema da identidade no contexto organizacional, a partir de assertivas referenciadas em fontes epistemológicas distintas e até conflitantes do ponto de vista paradigmático. Curiosamente, os diversos autores coincidem na afirmação de que as identidades são dinâmicas e indissociáveis da interatividade que determina a sua for- mação. Nesse sentido, a identidade organizacional corresponde à identidade dos seus stake- holders e vice-versa, pois a interação é simbólica e bidirecional. Neste capítulo, o construto da identidade é abordado a partir de duas perspectivas complementares: a psicossociologia, re- presentando uma corrente epistemológica, e o interacionismo simbólico, como um recurso metodológico da fenomenologia e da hermenêutica. O terceiro capítulo, alusivo ao referencial teórico, tem relevância central neste trabalho de investigação científica, na medida em que propõe a análise dos fenômenos interativos e do material simbólico que influenciam a formação das identidades na corrupção organizacional, em uma tentativa de resposta à pergunta de pesquisa. No início do capítulo, coube a análise dos conceitos de representação, significado e símbolo, como construtos essenciais para a 18 compreensão sobre o material simbólico. Em seguida, o construto do controle foi identificado como o primeiro fenômeno interativo. Nesse tópico, em especial, ficou evidenciada a aborda- gem transdisciplinar e dialética, considerando, de um lado, uma perspectiva mais racional, funcionalista e voluntarista, até mesmo em relação ao autocontrole das identidades, e, de ou- tro, uma perspectiva mais interpretativa, subjetiva, que admite a existência de lacunas intangí- veis ao controle e ao autocontrole. A partir dos conteúdos discutidos, foi então possível propor uma taxonomia e um mo- delo teórico para a análise empírica do fenômeno, apresentado em um quadro e duas figuras, no quarto capítulo. Na primeira figura, os principais agentes participantes do contexto, em que o ato corrupto pode se desenvolver, são dispostos em um mosaico de interações, que podem resultar na corrupção ou na integridade organizacional. A segunda figura objetiva a identifica- ção dos principais construtos associados ao controle (autocontrole), conflito e contágio, con- siderados como fenômenos interativos influentes na formação das identidades. O quinto capítulo trata da metodologia, iniciando com uma reflexão sobre a transdis- ciplinariedade do estudo e a sua posição mais central no contexto paradigmático. Ressalta-se a opção pelo caminho interpretativo e a consideração de correntes distintas, fundadas na teoria crítica, teoria da complexidade, psicossociologia e no interacionismo simbólico. Esse primeiro tópico busca evidenciar a possibilidade dialógica entre a sociologia, psicologia, antropologia, em uma perspectiva metodológica. O segundo tópico se refere à natureza metodológica da pesquisa, fenomenológica, exploratória e qualitativa. O terceiro trata da coleta de dados, alea- tória e estratificada, na tentativa de uma maior abrangência, por meio de entrevistas semies- truturadas. O último tópico se refere ao tratamento dos dados, com ênfase no procedimento de redução eidética, sob a óticada fenomenologia e do método de análise do discurso. Final- mente, nos dois últimos capítulos, os resultados da pesquisa empírica são discutidos e con- frontados, de maneira interpretativa, com o referencial teórico, com a apresentação de algu- mas considerações e inferências. 19 2 O FENÔMENO DA CORRUPÇÃO ORGANIZACIONAL 2.1 Parâmetros conceituais A corrupção organizacional se constitui como transgressão escusa de determinadas regras organizacionais, em benefício de um ou mais agentes, e em prejuízo da sociedade em geral, conforme critérios distintos de percepção. Constitui um fenômeno recorrente nas organizações, em contraposição às normas e modos de comportamento ético, sob a inspiração do bem-estar e da vontade coletiva, considerando o princípio de que “a conformidade com as regras é uma condição necessária para a sobrevivência de uma determinada ordem social” (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001, p. 2-3). Esse fenômeno consiste, fundamentalmente, no rompimento desse padrão de conformidade, por meio da ação de um indivíduo, de um grupo de indivíduos, ou mesmo de uma organização, interessados na obtenção de benefícios particulares, via de regra, em detrimento do coletivo (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001). A corrupção decorre, basicamente, do indivíduo que atua como agente transgressor, visando a alcançar benefícios próprios, de forma súbita ou gradativa (COUTRIM et al., 2005). O corruptor assume o comportamento sedutor, na busca de romper os regulamentos e obrigações morais nos campos financeiro, político, policial ou judiciário em que opera (SOARES, 2008). Nas diversas conceituações, o termo corrupção denota o sentido de ir contra, de transgredir dispositivos estabelecidos em regulamentos, contratos ou leis (HOUAISS, 2001). A palavra deriva do termo latino corruptionis, que é resultado da conjugação de dois termos cum e rumpo (do verbo rumpere), e significa romper totalmente, quebrar o todo, quebrar completamente. Para Ferreira (1986), o que se rompe é o código de conduta moral ou social. O autor associa a corrupção à degeneração, ao desprezível, à perversão e ao suborno. Alguns autores, dentre os quais Blundo e Sardan (2000), Abramo (2005), Pinto et al. (2008) e Rabl (2011), enfatizaram o aspecto subterrâneo da corrupção, cujo segredo é indis- pensável à efetividade e à diminuição dos riscos de punição, em especial, porque as conse- quências geralmente motivam a reação de terceiros, indivíduos, grupos, organizações e da sociedade em geral, por se sentirem prejudicados. Para Khan (2006), Larmour e Wolanin (2006), a corrupção não constitui resultado de algum feito, mas o meio para se chegar a algum resultado, tal como uma técnica, um proces- 20 so. A partir dessa compreensão, os atos de corrupção se caracterizam como tal, independen- temente da efetividade pretendida pelos seus agentes, desde que os ingredientes processuais se materializem. Porém, a caracterização desse ou daquele ato, como corrupto, depende de quem observa, percebe e julga, como também do contexto em que o ato e a caracterização se desen- volvem (ANDVIG; FJELDSTAD, 2001). Para Larmour e Wolanin (2006), a corrupção existe se o comportamento corrupto é testemunhado ou detectado e se a conduta é rotulada como tal. Ferreira (1986) e Andvig e Fjeldstad (2001) afirmam que não há consenso sobre os padrões de conduta e sobre quem define esses padrões. Nem mesmo há consenso sobre a denominação de um ato como corrupto, pois isso depende do modo de percepção e do acesso às informações de quem avalia, dentre outras circunstâncias. Os padrões de moralidade são diferentes entre os países e grupos de indivíduos, cuja cultura, entre outras coisas, institucionaliza a normalidade e a anormalidade (KHAN, 2006). A qualificação de um ato como corrupto fica mais dificultada nos casos de corrupção de menor gravidade, em que as consequências são percebidas com mais tolerância (ALMEI- DA, 2012). Em certos casos, o sujeito tolerante é a própria organização, quando também ob- tém alguma vantagem, ou quando o balanço entre o prejuízo e os custos da estrutura de con- trole é economicamente negativo para a organização, como será discutido mais a seguir. Kahn (2006) considerou que os economistas e cientistas sociais geralmente definem a corrupção de forma estreita, restringindo, no contexto, a presença de agentes públicos lesando o Estado, muitas vezes em associação com agentes privados. Seria, segundo Amundsen (1999), um modo particular de relação do indivíduo com as estruturas públicas, ou seja: [...] de um lado, o Estado, ou seja, os funcionários públicos, burocratas e políticos, qualquer um que tenha uma posição de autoridade sobre a atribuição de direitos so- bre os recursos públicos (escassos) em nome do Estado ou do governo. A corrupção é quando essas pessoas, que estão fazendo mau uso do poder público, são agraciadas com o benefício privado. O ato corrupto é quando esta pessoa responsável aceita di- nheiro ou alguma outra forma de recompensa, e então começa a abusar de seus po- deres oficiais, retornando favores indevidos (AMUNDSEN, 1999, p. 7). Kahn (2006) considera que essa definição tem uma vantagem, porque não envolve julgamentos morais e não depende dos diversos padrões morais das diferentes pessoas. Por exemplo, um funcionário público, que dá um emprego para um sobrinho, em troca de manter sua influência política sobre seu clã, não pode ser considerado como corrupto por alguém que pensou que seria um dever moral dele junto à família. Porém, nesse caso, ainda que o nepotismo seja tomado como uma transgressão da lei em vários países, há que se considerar o nepotismo nas grandes corporações privadas e, também, o nepotismo cruzado ou indireto. 21 Mas, enfim, essa definição afasta relativamente o debate sobre a moralidade, embora as pessoas façam julgamentos morais no uso diário. Outro argumento do autor (2006) é que a corrupção se constitui como um processo e não como um resultado. Senão, quaisquer atos prejudiciais à organização, do ponto de vista do interesse público, seriam corruptos. Além disso, a corrupção pode ocorrer onde os funcionários públicos não estão envolvidos, pode se referir a um comportamento condenável por qualquer pessoa, incluindo interações exclusivamente entre indivíduos ou agentes privados. No caso de roubo, cabe considerar que o Estado está implicado como protetor dos direitos de propriedade e mesmo o nepotismo, na empresa privada, pode afrontar o sentimento público, ou seja, o foco da análise seria a corrupção no funcionamento do Estado e o interesse público. Qualquer que seja a raiz do problema, a ocorrência de corrupção sempre indica fra- queza na institucionalização da esfera pública. Em uma perspectiva dialética, no entanto, é possível focalizar a natureza privada da corrupção, a partir da sua natureza íntima e clandesti- na, que existe no lócus público em que ela se desenvolve. A ilegalidade e a imoralidade da corrupção exigem um conluio ou conspiração entre os indivíduos, ou, pelo menos, certa int i- midade e confidencialidade. Além disso, a corrupção resulta em benefício particular para o agente corrupto ou para pessoas do seu interesse, sendo esse benefício procurado e usufruído. Esse interesse privado pode também ser coletivo, na medida em que a corrupção pode ter efei- to econômico significativo, em termos agregados, e beneficiar um grupo maior (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001). A consideração de que a corrupção pode ser tolerada pela organização, ou mesmo se constituir como um meio para potencializar o seu desempenho, posiciona a organização como sujeito que empreende o ato, restando a uma terceira organização a qualificação de prejudica- da. Klitgaard (1991) distingue esses dois atores essenciais para a corrupção, respectivamente, como Agente e Principal. Geralmente, quando a corrupção é institucionalizada na organização privada,as organizações públicas se constituem como o principal. Aliás, predomina na litera- tura a visão de que o Estado, como guardião do interesse comum, é quase sempre prejudicado, mesmo que não seja em curto prazo (SILVA, 2001; GLAESER; GOLDIN, 2006; PINTO et al., 2008; RABL, 2011; PRAÇA, 2011). De forma mais radical, Bowles (2009) afirma que a corrupção concorre para a demolição e destruição das instituições públicas. Segundo Schleifer e Vishny (1993), o que ocorre é a venda privada do bem que é público. Na perspectiva da administração das organizações, a corrupção contraria o sentido virtuoso que permeia as diversas teorias voltadas para assegurar o melhor desempenho organizacional, norteadas pela coerência ética, desde os primórdios da administração 22 científica, a partir das propostas de Taylor, Fayol, Ford, Mayo, estendendo-se até a atualidade. A organização, como um sistema coletivo complexo, submetido às regras de ordenamento e hierarquias, deve gerenciar recursos com efetividade, virtuosidade e ética (ENRIQUEZ, 1997; PUGH; HICKSON, 2004; AZEVEDO; GRAVE, 2008). Além disso, mesmo nas circunstâncias em que os atores agem em nome de, em vez de contra a organização, é possível que a corrupção leve à desorientação interna de recursos ou à perversão das rotinas instituídas, impedindo a organização de realizar seu propósito legítimo, e ameaçando a sua própria sobrevivência (LANGE, 2008). Uma característica da corrupção, que parece unificar os autores, é o abuso do poder político para fins privados. Essa concepção se coloca, inclusive, em alinhamento com o con- ceito difundido pelo Banco Mundial e pela International Transparency. Os sistemas de gover- no, ideias, atitudes, normas e processos, institucionalidades e formas de conduta humana, co- mo determinantes da autoridade exercida, são circunstancialmente definidos à luz de determi- nados interesses, supostamente públicos (PEREIRA, 2002). O conceito de corrupção organizacional dependeria, então, da objetivação do interesse público, dificultada pela relatividade dos interesses corporativos e políticos, na medida em que a cultura e a institucionalidade nem sempre se posicionam em alinhamento com os padrões éticos universais. Segundo Feres Junior (2012), o termo interesse público surgiu com o Iluminismo e sua circunstancialidade dificulta a precisão conceitual. Por outro lado, a noção de interesse comum é mais antiga e ontológica, significando as vantagens e utilidades que caracterizam o termo interesse, consideradas do ponto de vista da comunidade. Esse espaço comunitário pode ser denominado como esfera pública, em que um conjunto maior de pessoas se manifesta na interação política, sob a égide da demarcação normativa, numa dinâmica em que o “visível e partilhável” é posto em contraste com o “invisível e não partilhável”. Trata-se de um ambiente de pluralidade racial, de gênero e cultural, representando um conjunto de atores sociais diver- sos. Na corrupção, essa condição humana de pluralidade é corrompida, naquilo que é visível e partilhável (AVRITZER, 2012, p. 112, 114). Na perspectiva do presente estudo, importa o que é partilhável no universo organizacional, formalizado e estruturado sob a égide do inte- resse público. Desse prisma, a organização privada também interessa ao público em geral, razão pela qual existe e funciona, sob a regulamentação do Estado. Um indicador contemporâneo, de que a esfera pública alcança o espaço da organização privada, é o fato de que essas organizações são fiscalizadas pelo Estado, que assim busca assegurar a integridade dos fins e modos de comportamento que interessam à cidadania. Parte desses significados que 23 compõem a identidade das organizações pode ser conhecida objetivamente, pois são formalizados nos estatutos, regimentos e leis que descrevem publicamente a identidade de cada organização. Mas, o que se corrompe na organização? Para Minerbo (2012, p. 163), é o sistema simbólico que os atores sociais representam entre si. Ao se deixar corromper, por exemplo, o magistrado rompe o vínculo entre juíz e justiça. Assim, [...] as palavras ligadas a esse sistema simbólico (réu, julgamento, sentença, lei, transgressão, pena) continuam existindo, porém vazias de significado; elas deixam de ter lastro afetivo, de modo que a subjetividade aí constituída já não crê na justiça. Dessa forma, as palavras que dão significado à existência da organização e às funções do indivíduo têm o sentido alterado para o indivíduo corrupto. Essa deterioração simbólica, por sua vez, corresponde à corrosão e à distorção da identidade organizacional. Cabe considerar, aqui, que a formalização dos significados idealizados resulta de processos sociais e políticos diversos, nem sempre harmonizados com o interesse comunitário, em especial nos sistemas políticos autoritários ou com pouca efetividade democrática. Porém, neste estudo, esses significados servirão como representações para tornar substantiva a virtuosidade corrompida, mesmo que essa referência seja circunstancial e sujeita à pluralidade perceptiva. Afinal, para se chegar à essência do fenômeno investigado, será preciso considerar as configurações nas quais os sujeitos produzam, interpretativamente, formas reconhecíveis e inteligíveis que eles tratem como reais, em um determinado contexto (SCHUTZ, 1970). Um conceito inequívoco da corrupção, para este estudo, deveria ser capaz de distinguir esse fenômeno, descritivamente, dos crimes e infrações que ocorrem no universo organizacional, como o assédio moral ou sexual, por exemplo. Trata-se de uma tarefa complexa, diante da diversidade semântica e ideacional que o termo enseja. Além disso, embora nem todos o sejam, muitos atos de corrupção são criminosos e infracionais. Na tentativa de minimizar essa tênue distinção conceitual, cabe focalizar a atenção nos aspectos corrosivos que afetam o tecido integrador da estrutura organizacional, expresso nas valores institucionalizados e assegurados pelo sistema normativo. Outra estratégia, que imprime maior especificidade ao conceito, reside em distinguir o fenômeno por meio da sua tipologia. Nesse sentido, considera-se, como corrupção organizacional, a conduta desviante e escusa, empreendida por indivíduos, em grupos ou organizações, envolvendo agentes do público interno e, ou, externo, capaz de corroer o tecido integrador de uma determinada 24 estrutura organizacional, contida no universo do interesse público. A corrupção organizacional consiste na apropriação particular e indevida de algum benefício ou recurso partilhado coletivamente, por meio do rompimento de alguma lógica institucional, na forma de suborno, peculato, extorsão, desfalque, fraude, favorecimento ou prevaricação. O tópico a seguir tem, como finalidade, descrever a tipologia da corrupção organizacional, de forma complementar ao conceito proposto. 2.2 Tipologia: proposta de uma taxonomia Todo ato de corrupção é empreendido por algum tipo de agente, visando ao benefício próprio, envolvendo incentivos financeiros, materiais e favores diversos (AMUNDSEN, 1999; SILVA, 2001; GLAESER; GOLDIN, 2006). Como já mencionado, esse comportamento é realizado por um ator individual, ou por dois ou por mais atores, podendo constituir-se em um grupo com uma complexa dinâmica interativa, em estruturas informais ou institucionalizadas. A quantidade de responsáveis pela atitude corrupta varia conforme a relação entre esses agentes. Os agentes também são diferenciados pelo modus operandi, como os denominados rent-seekers. Eles atuam, junto aos servidores públicos, para realizar transações que geram lucros privados, incompatíveis com a produção de bens coletivos (SIL- VA, 2001; DAMÉ, 2007; PINTO et al., 2008; BOWLES, 2009). Em geral, o ato de corrupção ocorre por meio da combinação, entre duas ou mais pes- soas, de maneira escamoteada e secreta.Em um dos tipos de transação, em que corruptor (ati- vo) e o corrupto (passivo) interagem, por exemplo, a comunicação é feita, geralmente, face a face. Nela, o corruptor explicita, gradativamente, as suas intenções, de tal forma que seja pos- sível perceber a eventual indisposição da parte cooptada, antes que a ilicitude seja configura- da. Em caso de combinação, os agentes devem cultivar a confiança mútua, na medida em que ambos têm a perder, no caso de um eventual conflito. Considerando as dificuldades e riscos para o estabelecimento dessas parcerias escusas, os agentes tendem a preservar e aprimorar os laços de corrupção consolidados (AMUNDSEN, 1999; LARMOUR; WOLANIN, 2006). Esse ambiente de colaboração mútua pode evoluir para uma forma mais estreita e consolidada, em que se formam laços afetivos entre os companheiros, laços que prolongam e solidificam a relação entre eles, até um ponto além do que é simplesmente lucrativo (FREUD, 1974b). 25 Na abordagem conceitual da corrupção organizacional, discutida no tópico anterior, alguns autores consideram a definição do Banco Mundial e da International Transparency, em que o fenômeno é associado à presença da organização pública, mesmo que indireta. Por ou- tro lado, Khan (2006) refuta esse conceito, considerando que a corrupção pode se referir a um comportamento repreensível por qualquer pessoa, incluindo interações exclusivamente entre particulares. Bowles (2009) exemplifica com a situação em que um médico alia-se a um paci- ente, para lesar a empresa responsável por oferecer-lhe os serviços de saúde. Segundo o autor, esse procedimento poderia ser considerado um ato de corrupção que resulta no aumento do custo de transação para o agenciamento. Noutros casos, agentes privados poderiam realizar fraudes, nepotismo, e outros desvios, em confronto com a conduta ética determinada pela or- ganização, sem o envolvimento direto do setor público. Na recente crise econômica mundial, a instituição financeira Lehman Brothers comercializou produtos de forma inadequada, confi- gurando-se como uma ilusão de mercado, em que o bônus de um lucro questionável foi distri- buído entre os executivos que conduziram a organização à falência, como será discutido mais à frente (MCDONALD; ROBINSON, 2009). É possível pensar, no entanto, que a presença do Estado, com o papel de regulação e fiscalização, poderia ser demandada nesses casos. O agente também pode ser categorizado de duas formas distintas: a organização de in- divíduos corruptos, em que uma proporção significativa de membros da mesma organização age de forma corrupta, principalmente para seu benefício pessoal, e uma organização corrup- ta, em que um grupo comete infrações em benefício da organização. Nesse segundo tipo, a configuração pode resultar de uma contaminação do tipo top down, ou de ações originárias na base da organização, que se ampliam na perspectiva de maiores ganhos individuais, de forma ilusoriamente mais legítima. Em algum momento, a linha entre o legal e o ilegal é cruzada na organização, fazendo com que a corrupção deixe de ser um ato predominantemente individual e se constitua num ato para a, e não contra a corporação (PINTO et al., 2008). Embora os au- tores acima não apontem quais seriam os novos prejudicados, quando a organização em que o corrupto atua é a própria beneficiária, pode-se inferir que seriam os indivíduos e instituições integrantes do conjunto de stakeholders. Nesse tipo de corrupção, do ponto de vista dos agen- tes, é possível que a corrupção se justifique na degradação dos significados no ambiente ex- terno, em que o interesse público se curva à particularidade, por conta da corrosão da identi- dade do Estado. Do ponto de vista psicossocial, como será esclarecido mais à frente, a degra- dação da identidade organizacional não se constitui por meio da mão única, mas na dialética da interação social e política. 26 Noutra tipologia, a transgressão é denominada como corrupção política, que geralmen- te ocorre por meio da ascensão de um grupo dominante ao poder, de onde passa a controlar unilateralmente o Estado (AMUNDSEN, 1999). Em alguns casos, esse comportamento se encontra associado ao patrimonialismo, patronagem e patriarcalismo, como se verifica na história do Brasil. Na corrupção política, os agentes distorcem o limite entre o público e o privado, a partir das suas posições funcionais e discricionárias, com a consequente sobreposição dos interesses individuais sobre os interesses da cidadania (FILGUEIRAS, 2008). Os agentes públicos, geralmente representando a elite governante, também utilizam o Estado para corromper o mercado em benefício próprio, constituindo-se numa prática explo- ratória e neopatrimonialista. 1 Myint (2000) considera que, além dos agentes da elite, existe outro tipo de agente, identificado como aquele que empreende a corrupção, na rotina burocrá- tica de escalões inferiores da organização pública, de forma autônoma. O autor diferencia esses comportamentos, respectivamente, como de cima e de baixo. Amundsen (1999) classifi- ca esse tipo de corrupção do ponto de vista dos beneficiários, de tal forma que, quando os benefícios são apropriados exclusivamente pelos servidores e dirigentes públicos, trata-se de um modo extrativista, e quando os benefícios são repartidos com a iniciativa privada, o modo é redistributivo (LEE; PHIL, 1964; AMUNDSEN, 1999; MYINT, 2000; BOWLES, 2009). Heidenheimer et al. (1989), Rose-Ackerman (2006) e Larmour e Wolanin (2006) a- crescentam, à tipologia focalizada no ente público, a presença significativa do agente privado, em muitos casos, movido por demandas indevidas que Huntington (1968, p. 59) denomina como “demandas exógenas”. Essa afirmação coincide com Silva (2001), Amundsen (1999), Araújo (2008) e Rabl (2011), quando consideram a existência de dois agentes, o corruptor e o corrupto, sendo que o papel ativo ou passivo, nessa ação, poderia originar-se no ente público, no setor privado, ou na sociedade em geral. Para Khan (2006), o benefício do agente público na corrupção é geralmente ilegal, porém, em certas situações, esse benefício pode ser lícito para o agente privado, o que não descaracteriza a negatividade do ato. Para Amundsen (1999), essas parcerias, em quaisquer casos, representam a perversão da relação entre o Estado e o setor privado. Essa perversão parece refletir o acúmulo dos comportamentos institucionais, ao longo do tempo, fortalecendo-se como cultura, institucionalizada nas identidades organizacio- nais, arredias ao controle. Zenger (2006, p. 2) denomina esse fenômeno como uma “double 1 Neopatrimonialismo é um conceito amplamente utilizado na ciência política para denominar o comportamento dos governantes em regimes não democráticos e semidemocráticos, caracterizados pelo clientelismo e pela indis- tinção dos bens e interesses, do ponto de vista público e o privado (AMUNDSEN, 1999) 27 marginalization”, em que agentes de organizações diferentes, movidos pela ganância, se va- lem dos seus monopólios para se associar na realização de atos corruptos. Noutra tipologia, a corrupção é classificada com base na gravidade do ato. Em um extremo, se encontra a corrupção “preta”, compreendendo os atos em que a sociedade e as instituições jurídicas coincidem em reprovar; em outro extremo, quando a lei reprova o ato, mas a população é tolerante, a corrupção é classificada como “branca”; e, na corrupção “cinza”, os atores sociais avaliam determinado comportamento de forma controversa, como no caso dos produtos piratas, contrabandeados ou subfaturados (HEIDENHEIMER, 1970). Outro critério associa a legalidade do ato às consequências econômicas. Nesse caso, alguns atos de corrupção são tolerados quando o resultado da corrupção favorece o desenvolvimento econômico e beneficia a coletividade. Por outro lado, se o ato impactanegativamente no desenvolvimento econômico, é amplamente rechaçado pelos cidadãos (KAHN, 2006). A corrupção de baixa gravidade ou movida por interesse econômico estratégico do Estado, pode, no entanto, deteriorar a identidade organizacional de forma subliminar e prejudicar os próprios indivíduos e organizações coniventes. A corrupção organizacional se apresenta com características operacionais diferencia- das, classificadas como modalidades, a seguir, com base nas afirmações de Amundsen (1999), Myint (2000), Pereira (2002), Martins (2002), Junior (2002) e Pardini et al. (2011): Quadro 1 - Taxonomia das modalidades na corrupção organizacional 1. Prevaricação 1.1 Desvio de finalidade 1.2 Desvio funcional 1.3 Informação privilegiada 1.4 Privilégio burocrático 1.5 Tráfico de influência 2. Fraude 2.1 Financeira 2.2 Informativa 2.3 Documental 2.4 Contábil 3. Favorecimento 3.1 Nepotismo 3.2 Próprio 3.3 Troca de favores 4. Suborno 4.1 Financeiro 4.2 Imaterial 4.3 Material 5. Peculato/Desfaque 5.1 Financeiro 5.2 Material 5.3 Informação 6. Mercado ilegal 6.1 Concorrência 6.2 Preços 6.3 Produtos/Serviços 7. Extorsão 7.1 Público-privada 7.2 Privada-pública 7.3 Intraorganizacional Fonte: Autor. As modalidades acima elencadas nem sempre se constituem como corrupção, notada- mente nos casos em que se restringem ao universo dos desvios funcionais e crimes, insufici- entes para corroer os significados institucionais próprios da identidade organizacional. A pri- meira modalidade considerada é a prevaricação, em que o servidor público (agente) altera a 28 finalidade de aplicação de determinados recursos públicos ou realiza atividades diferenciadas das suas atribuições funcionais, de forma escusa e prejudicial para a organização. Desse mo- do, o agente negocia ou utiliza informações, de forma privilegiada, infringe a burocracia pú- blica, para fins privados, e se utiliza da sua posição para traficar influência, atropelando os critérios de transparência e igualdade de oportunidades. Segundo Houaiss (2011), a prevarica- ção é um crime cometido por funcionário público quando, indevidamente, este retarda ou dei- xa de praticar ato de ofício, ou pratica-o contra disposição legal expressa, visando a satisfazer interesse pessoal. Em muitos casos, o ato ocorre por iniciativa externa, quando o cidadão re- compensa o servidor financeiramente, ou por meio de outro tipo de incentivo, em troca de isenções fiscais, subsídios, pensões, seguro-desemprego, ou por acesso preferencial a escolas privilegiadas, assistência médica, habitação ou bens imóveis ou por participação em empresas que serão privatizadas (AMUNDSEN, 1999). A prevaricação, geralmente, está associada à modalidade do favorecimento, em que o modo de operação envolve a parcialidade no tratamento da coisa pública, em benefício de determinados indivíduos, grupos e organizações, quando buscam no Estado o acesso aos ser- viços e oportunidades, tais como, contratos, licitações, ou algum atendimento de rotina. Nesse caso, os critérios de igualdade de tratamento são negligenciados. Nessa segunda modalidade - favorecimento, o agente pode estar motivado pelas representações do ente favorecido que, em muitos casos, é um parente, amigo ou parceiro corporativo. Aqui, o nepotismo se inclui como o modo de corrupção em que o parente é tratado preferencialmente no oferecimento de em- prego, favores e regalias (SILVA, 2001; KURER, 2005; GLAESER; GOLDIN, 2006; RO- THSTEIN, 2011). Uma terceira modalidade classificada é a fraude, que envolve, entre outras coisas, a adulteração de documentos e alteração de demonstrações financeiras, em um ambiente cada vez mais difícil de monitorar, em razão do aumento do uso da digitalização (MARTINS, 2002; SÁ, 2005). Junior (2002) denomina os desvios de recursos por funcionários como fraudes puras, e as manobras, para a redução do lucro, como fraudes contábeis. As fraudes puras têm um perfil bem distinto, pois ocorrem, em geral, em esquemas montados com fornecedores ou funcionários do governo, em prejuízo do proprietário da empresa. Outra fraude, identificada pelo autor, caracteriza-se pela redução do lucro contábil nas empresas, para a diminuição de gastos com impostos e de dividendos. Pardini et al. (2011) consideram, entre as fraudes, a lavagem de dinheiro, em que os valores financeiros conseguidos ilegalmente tornam-se aparentemente lícitos. A fraude também ocorre na organização pública, notadamente nos processos licitatórios, em que algum agente privado é beneficiado e não se 29 resume apenas ao desvio ou roubo de ativos tangíveis, mas também de intangíveis, como segredos industriais, informações estratégicas, etc. (SILVA et al. 2004). Outra modalidade se manifesta quando o agente (corruptor) remunera o servidor pú- blico (corrupto), em troca de benefícios indevidos. Esse tipo ilegal de incentivo, denominado como suborno, pode envolver favores materiais, imateriais e financeiros (SILVA, 2001; PARDINI et al., 2011). As empresas têm um papel de destaque no pagamento de suborno a funcionários públicos, membros do governo e partidos políticos (ZINNBAUER, 2009). E- xemplos de práticas corruptas, baseadas no suborno, são os pagamentos aos fiscais para ga- rantir licenças ou serviços especiais, a sonegação de impostos, as práticas de oferta de dinhei- ro para livrar-se de multas e o pagamento de propinas para estabelecer acordos com agentes do governo (ABRAMO, 2004; NAÍM, 2006). O peculato representa a quinta modalidade classificada. Refere-se à apropriação inde- vida de bens públicos. Além dos bens financeiros e materiais, a informação surge com maior importância na atualidade, como um bem da organização, despertando o interesse dos agentes corruptos (JUNIOR, 2002). Quando a apropriação ocorre na organização privada essa moda- lidade é denominada como desfalque. A sexta modalidade identificada se refere à distorção dos princípios da justa competi- ção no mercado, assim como da responsabilidade ética das empresas junto aos clientes. En- volve mecanismos desleais e ilegais de concorrência, determinação de preços extorsivos ou predatórios, assim como a falsificação ou a comercialização de produtos e serviços inadequa- dos, de forma escusa, em relação ao cliente. Nesse caso, o Estado participa indiretamente co- mo regulador e guardião da legalidade do mercado (CARSTENSEN; LOTT, 2004; HASKER; OKTEN, 2008). Por fim, destaca-se a extorsão, que se constitui no uso da força e do poder vigente, seja ele originário do setor público ou privado, capaz de pressionar indivíduos e organizações a exercer procedimentos contra a própria vontade. Como exemplo, podem ser citados os polici- ais que chantageiam cidadãos e exigem valores financeiros para efetuar determinadas liberali- dades e, até mesmo, grupos privados que dominam grandes comunidades (MYINT, 2000). A ocorrência dessas modalidades com menor gravidade é mais tolerada pela sociedade em geral e, portanto, é mais permeável à investigação. 2.2.1 Corrupção de menor gravidade 30 Conforme tipificado por Heidenheimer (1970), a corrupção de menor gravidade se refere aos atos mais tolerados pela sociedade. Na cultura brasileira, esse tipo de comporta- mento é circunstancialmente denominado como “jeitinho”, embora seja um instrumento de burla às normas vigentes, e ocorra em prejuízo de terceiros, de forma compatível com o con- ceito de corrupção. Em alguns casos, o ato nem mesmo é escuso, situando-se numa “zona cinzenta moral”, relativamente admissível pela sociedade. Há que se considerar, no entanto, que essa tolerância pode ter repercussões importantes e negativas, pois a corrupção de menor gravidade pode funcionar como a “antessala” que precede a corrupção de maior gravidade (ALMEIDA, 2012, p. 46-48). Sobre esse tema, duas pesquisas podem ser referenciadas: a primeira, realizadapor Almeida (2012), em que a percepção dos brasileiros sobre o “favor”, “o jeitinho”, e a corrup- ção, são avaliados; a segunda, realizada pela Universidade Federal de Minas Gerais, em par- ceria com o Instituto Vox Populi, sobre a gravidade da corrupção no Brasil (CRIP, 2013). Algumas modalidades de corrupção, utilizadas nas duas pesquisas, podem similarmen- te ser identificadas no ambiente organizacional, conforme abaixo: Quadro 2 - Exemplos de corrupção de menor gravidade Modalidade Descrição do ato de menor gravidade Prevaricação Utilizar o tempo de trabalho remunerado, na organização, para fins par- ticulares; Roubo ou peculato Comercializar ou doar recursos da organização de forma escusa; Sonegação de impostos Realizar transações comerciais sem documentação para sonegar impos- tos; Favorecimento Apoiar a contratação de profissionais sem critérios de competência; Fraude Alterar ou fraudar a ordem de precedência em documentos, acesso à benefícios, pagamentos, recebimentos e processos; Mercado ilegal Desrespeitar as normas de capacidade de lotação em salões, barcos, ele- vadores, meios de transporte e equipamentos de diversão; Soborno Receber presentes ou benefícios de pessoas e organizações externas que normalmente realizam contratos com a sua organização; Fonte: Autor. Os pesquisadores concluíram que algumas transgressões são justificadas pelos entre- vistados, em razão das circunstâncias, ou nem mesmo são consideradas como corrupção. Con- 31 sideram que o indivíduo transgride para compensar as injustiças que o sistema normativo lhe impõe, ou por identificação, quando faz porque todos fazem (ALMEIDA, 2012; CRIP, 2013). Almeida (2012) afirma que a corrupção de menor gravidade é difusa e imperceptível, porque se encontra na linha divisória daquilo que é, ou deveria ser considerado errado. [...] se, por causa por causa das circunstâncias e do contexto, regras são quebradas, para que determinadas pessoas sejam beneficiadas, qual é o limite para esse proce- dimento? Por que ele não é tão errado quando se trata de passar à frente em uma fila de banco, mas muito errado quando se trata de dinheiro público? Nas duas situações, ignorou-se um princípio geral: a necessidade de se seguir regras e leis. A diferença entre ambos é de grau, mas não de conteúdo (ALMEIDA, 2012, p. 48). Predomina, entre os respondentes das duas pesquisas, o posicionamento reativo à cor- rupção como um mal a ser combatido, e com o qual não se identificam como transgressores. Numa delas, o pesquisador exemplifica a circunstância em que os respondentes, que não têm carro, consideram com mais gravidade o suborno aos policiais, para escapar das multas no trânsito, enquanto são mais tolerantes nas transgressões com as quais eles se identificam e que, eventualmente, poderiam cometer. No mesmo universo de respostas, os indivíduos se afirmam como agentes de transgressões que eles próprios reprovariam em outros, ou que não consideram corrupção, baseados na ideia de que as suas circunstâncias seriam diferentes, ou na ilusão narcísica de que as regras não se aplicariam a eles. 2.3 Antecedentes e consequências A corrupção é parte de um fenômeno típico de qualquer atividade social organizada, na medida em que a efetividade dos propósitos coletivos depende da conformidade com as regras e normas adotadas pela organização, e com os modos de comportamento prevalentes nas sociedades. Isso constitui uma condição necessária para a sobrevivência de uma ordem social, não importando se esta é uma ordem econômica regida pelo mercado, ou uma ordem política regida pelo Estado. Para conseguir essa conformidade, as organizações utilizam uma “combinação de incentivos positivos, a motivação básica e os incentivos negativos” (KA- MIKNSKI; KAMIKNSKI, 2001, p. 2). A organização geralmente percebe a corrupção como uma anormalidade e se mobiliza estrategicamente para identificar e controlar os fatores que concorrem para que o fenômeno 32 aconteça. Nesse esforço, considera fundamentalmente os antecedentes e as consequências, e ajusta os mecanismos de controle, como reação à possibilidade de que o ato de corrupção a- conteça e prejudique o desempenho organizacional. Para alguns autores, como Andvig e Fjeldstad (2001, p. 91), a corrupção alimenta-se das suas próprias consequências, tal como um fenômeno cíclico no qual as causas se confundem com os efeitos, ou seja, “a corrupção corrompe”. A má governança, por exemplo, fator recorrente na literatura, poderia representar um nexo de causalidade antecedente e posterior ao acontecimento do fenômeno; poderia se constituir em um fator potencializador, um sintoma, ou ambos, dependendo do enfoque e da interpretação do pesquisador. Possivel- mente, a dificuldade de distinção entre antecedentes e consequências se justifique na conside- ração feita por Kahn (2006) e Larmour e Wolanin (2006), de que a corrupção é um processo e não um resultado. Como ilustração dessa assertiva, Kaminski e Kaminski (2001, p. 6) consideram que, em um ambiente de maior corrupção, as regras sociais são gradativamente ajustadas para maximizar o “rent-seeking”, ou seja, operações de ganho sem produtividade, em que “a corrupção se alimenta de si mesma, gera mais corrupção e prejudica a produção”. A corrupção acontece em um universo multifacetado, repleto de fenômenos dependentes e interligados, que determinam a modalidade e a gravidade do ato, como também o modelo e a estratégia de reação da organização. Demanda, portanto, o tratamento interdisciplinar (ANDVIG; FJELDSTAD, 2001; LANGE, 2008). Em uma visão mais restrita, os fatores ambientais da corrupção são geralmente dispostos na literatura no âmbito geopolíti- co das nações, considerando a cultura, a economia, a governança pública, assim como as questões estruturais e normativas relacionadas com as leis, valores, normas e arranjos institu- cionais (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001; LARMOUR; WOLANIN, 2006). Do ponto de vista geopolítico, a corrupção é determinada, em um país, em função do desenho constitucional do Estado, da cultura política da sociedade, e da maturidade da socie- dade civil (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001). Nos países democráticos, a corrupção deteriora o princípio de igualdade política, por meio do acesso desproporcional e ilegal aos benefícios que o Estado oferece. Em um ambiente assim, as políticas públicas resultam, não do debate e da disputa aberta entre projetos diferentes, mas de acordos de bastidores que favorecem inte- resses espúrios (MOISÉS, 2009). Há razões para acreditar que a corrupção paralisa o desenvolvimento político e preser- va regimes não democráticos (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001). Nos regimes autoritários, os dirigentes possuem maior poder discricionário e agem num ambiente com menos transparên- cia e controle, configurando uma oportunidade para o acontecimento da corrupção, ainda mais 33 quando esses dirigentes atuam de forma patrimonialista. Já nos regimes democráticos, a cor- rupção tende a ocorrer com menor intensidade, porque geralmente há mais transparência e controle da sociedade (CANELA; NASCIMENTO, 2009). Porém, os países em desenvolvi- mento, que seguem políticas de baixa intervenção e têm participação ativa da sociedade civil na política, tendem a ter tanto a corrupção como os países que têm mais intervenções ou têm regimes políticos autoritários (TREISMAN, 2000). As consequências e antecedentes geopolíticos da corrupção são graves porque aumen- tam os custos e a incerteza dos investidores externos, e concorrem para a redução do cresci- mento econômico (MAURO, 1995). Amundsen (1999) afirma, com maior radicalidade, que a corrupção é uma doença, um câncer que corrói o tecido cultural, político e econômico da so- ciedade, e destrói o funcionamento de órgãos vitais. Nas palavras da organização não gover- namental Transparência Internacional, citadas porAmundsen (1999, p. 6), “a corrupção é um dos maiores desafios do mundo contemporâneo. Ela mina o bom governo, fundamentalmente distorce as políticas públicas, leva à má alocação de recursos, prejudica o setor privado e o desenvolvimento do se tor privado e particular atinge os pobres”. A corrupção contribui para: a diminuição da cooperação social, o enfraquecimento da capacidade do Estado para implementar boas políticas públicas, a redução da capacidade ad- ministrativa, a perda de legitimidade e confiança pública na justiça e na imparcialidade, o desperdício de recursos do governo, as distorções de investimento, etc. (NYE, 1967; AR- LAND, 2002; PEREIRA, 2002; ARAUJO, 2008; ALENCAR; GICO JR., 2011). As transa- ções corruptas sempre têm um segundo efeito econômico, uma vez que há sempre alguma decisão pública que afeta a alocação de recursos que não teria sido feita. Algumas interven- ções, por parte de funcionários públicos corruptos, podem ter claramente consequências dano- sas para a economia. Mas esse efeito não é sempre negativo. Se a intervenção, que o agente público oferece em troca, contribui para a produtividade da economia, o efeito é positivo (KAMINSKI; KAMINSKI, 2001). Vários autores, dentre os quais Amundsen (1991), Kaminski e Kaminski (2001), Chetwynd (2003), Treisman (2007) e Moisés (2009), associam a ocorrência da corrupção ao menor desenvolvimento econômico dos Países e aos regimes políticos. Segundo eles, as difi- culdades econômicas contribuem para o aumento das demandas sociais e para a deterioração das estruturas para atendimento dessas demandas. Em outras palavras, um país com mais ricos tende a ter menos corrupção. Essa mesma lógica poderia ser pensada, por analogia, em rela- ção à organização. No entanto, estabelecer a relação de causalidade entre essas duas variáveis 34 é bastante questionável, até porque o contrário também se afirma nas pesquisas. Afinal, o au- mento de recursos, notadamente nas organizações, significa aumento de oportunidades e ten- tações. Por outro lado, “o desenvolvimento econômico anda de mãos dadas com o desenvol- vimento político, democratização e accountability”. Aqui também cabe, por analogia, pensar que o desenvolvimento econômico pode favorecer o desenvolvimento das estruturas de gestão e governança nas organizações e, assim, contribuir para o melhor controle da corrupção. No outro extremo, os instrumentos de monitoramento, controle e punição são prejudicados. O ambiente de escassez radicaliza a competição para o acesso aos recursos, evidenciando o cará- ter cíclico das consequências e antecedentes, na medida em que o empobrecimento do Estado ou da organização, como resultado da corrupção, dificulta o investimento em estruturas de controle, aumenta o conflito interno e conduz a mais corrupção (AMUNDSEN, 1999, p. 21). A corrupção na organização pública pode também influenciar negativamente o merca- do, como antecedente e consequência, por meio da distorção da concorrência, aumento dos custos e demanda de recursos, tais como lobistas e negociadores intermediários, permitindo a escassez de bens e a formação de oligopólios, com relativa liberdade de fixação de preços (HASKER; OKTEN, 2008; PINTO et al., 2008). Estados corruptos não têm como defender os interesses da maioria e apoiar o desenvolvimento econômico, porque, geralmente, falham na garantia dos direitos de propriedade. Assim, há um aumento do custo dos negócios e das tran- sações, além do ambiente de insegurança entre os empresários, por conta dos mecanismos tortuosos das negociações (CARSTENSEN; LOTT, 2004; KHAN, 2006). Algumas organizações públicas são menos vulneráveis à corrupção, em decorrência dos seus mecanismos de controle. Murray (1997) descreve algumas características, aqui agru- padas em três perspectivas organizacionais: a) Governança: regras efetivas para combater conflito de interesses; independência dos poderes; b) Burocracia: estruturas, processos e procedimentos parlamentares justos; burocracias orientadas pelos valores do serviço público; efetiva auditoria nos processos; c) Punições e incentivos: efetiva responsabilização dos dirigentes; funcionários públi- cos remunerados adequadamente. As perspectivas acima sugerem um ambiente mais restritivo no combate à corrupção. Entretanto, regulamentações excessivas não resolvem as causas mais profundas da corrupção e, muitas vezes, criam novas oportunidades para o suborno, em razão do aumento dos mono- pólios. Em geral, essas iniciativas de combate à corrupção parecem ter um pequeno impacto e, muitas vezes, servem como formas politicamente convenientes, como reação à pressão para 35 "fazer alguma coisa" sobre a corrupção, pois negligenciam as reformas mais fundamentais e mais profundas de governança (KALFMANN; BANK, 2005, p. 8). O próximo capítulo obje- tiva a discussão sobre os parâmetros conceituais associados à dinâmica interativa de formação das identidades no contexto organizacional. 36 3 FUNDAMENTOS SOBRE A IDENTIDADE NO CONTEXTO ORGANIZACIONAL 3.1 Uma abordagem conceitual das identidades A função ontológica da organização é proporcionar, aos seus membros, “um sentido de Ser ou identidade", aqui compreendida como um termo polissêmico, que remete ao caráter daquilo que permanece idêntico a si próprio e à individualização (SCHWARTZ, 2004, p. 328). Do ponto de vista organizacional, essa individualização apresenta-se como um desafio, pois “condensa uma série de significações, entre os processos de construção de si e os proces- sos de reconhecimento, que dizem respeito aos diferentes registros das relações humanas e das relações sociais” (GAULEJAC, 2005, p. 104). A identidade individual “quem sou eu”, assim como a identidade social “quem somos nós enquanto membros de um grupo”, funda- mentam os estudos sobre identidade organizacional e a busca da resposta para a pergunta “quem somos nós enquanto organização” (BELLO, 2012, p. 35, 39). Albert e Whetten (2004), pesquisadores seminais do construto da identidade aplicado às organizações, identificaram três atributos capazes de distinguir uma organização das outras: (a) central - captura a essên- cia da organização; (b) diferente - diferencia a organização de outras organizações semelhan- tes; (c) duradouro - apresenta algum grau de uniformidade ou continuidade ao logo do tempo. Para efeito desta investigação, a identidade será considerada em duas perspectivas: as representações e significados do indivíduo para si e para a organização, e as representações e significados da organização para si e para o indivíduo. Pesquisadores mais recentes conside- ram a identidade organizacional como uma criação intersubjetiva das relações sociais, cons- truída pelas cognições, emoções e, ou, apreciações estéticas daqueles que participam de sua criação, manutenção e mudança. É, ao mesmo tempo, um processo dinâmico, que se desenro- la ao longo do tempo, e uma fonte de estabilidade para aqueles que dependem dela (HATCH; SCHULTZ, 2004, p. 21, 22). O comportamento, que suporta uma marca corporativa e constrói uma reputação forte para a organização, precisa de raízes profundas: necessita descansar na identidade da organi- zação. Caso contrário, a organização torna-se um estado policial, em que os empregados e a organização fingem ser algo que não são (HATCH; SCHULTZ, 2004, p. 20). Em seu artigo "Identidade Organizacional", Stuart Albert e Davis Whetten definiram a identidade organiza- cional como aquilo que é central, distintivo e temporalmente contínuo. Além de contribuir 37 com uma definição da identidade organizacional, os autores sugerem que a identidade organi- zacional é formada, mantida e mudada por um processo de comparações internas e interorga- nizacionais, além de autorreflexões, ao longo do tempo (ALBERT; WHETTEN, 2004). A continuidade temporal, utilizada conceitualmente por esses autores, é questionada
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