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UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS PIBIC/CNPQ A Máscara Teatral como Instrumento Pedagógico: da confecção à cena Relatório número 2 Período a que se refere: agosto de 2018 a julho de 2019 Bolsista: João Pedro Martins Speckart Orientação: Dr. Eduardo Okamoto Co-orientação: Drª. Beatriz Maria Vianna Rosa Local de execução: Departamento de Artes Cênicas Campinas, agosto de 2019 Resumo O projeto ao qual este relatório final se refere é uma pesquisa prático-teórica com o intuito de investigar a importância da máscara teatral no processo de formação de atores. Para isso, um grupo de atores estudantes do curso de Artes Cênicas da Unicamp foi reunido para estudar a máscara sob três principais perspectivas: como objeto (confecção), ferramenta pedagógica (treinamento técnico com máscara neutra) e caráter-tipo (pela experimentação cênica com meias-máscaras expressivas). Os principais referenciais que guiaram o estudo sobre a construção material de máscaras foram: os mascareiros Heloisa Cardoso, Amleto e Donato Sartori; sobre a pedagogia para atores, do ator e professor Jacques Lecoq e do grupo Barracão Teatro, de Campinas/SP. Além disto, incluiu-se a minha própria formação teatral no curso de Artes Cênicas na Unicamp e em cursos e oficinas, inclusive, aulas com Tiche Vianna e Eduardo Okamoto - respectivamente, co-orientadora e orientador deste trabalho. O processo, de agosto de 2018 a junho de 2019, foi documentado pelos participantes através de diários de bordo e entrevistas. A partir da experiência, reflito acerca da máscara como instrumento de pedagogia teatral. 1. Introdução Espalhada por culturas de todo o mundo, a máscara tem um poder incrível de síntese. Um simples “objeto feito em couro, papel, látex ou qualquer material passível de fixar ou de acentuar uma forma, que serve para ser colocado sobre um rosto” (VIANNA, 2017, p. 40) pode compreender semblantes múltiplos, arquetípicos, ícones históricos, traços animais e até tradições místicas. No Ocidente, a máscara tem raízes históricas que surgem tão cedo quanto a representação, no teatro clássico grego, que se desenrolam até os dias de hoje com inúmeras técnicas e usos contemporâneos. Meu primeiro contato pessoal com máscaras teatrais foi no curso de graduação em Artes Cênicas da Unicamp, em 2016, quando em um mesmo semestre eu tive a oportunidade, em processos relativos a disciplinas, de confeccionar máscaras nas aulas da Profa. Heloisa Cardoso, de treinar expressividade corporal com máscara neutra nas aulas do Prof. Dr. Eduardo Okamoto e atuar com uma máscara de 1 minha própria autoria numa montagem dirigida pelo Prof. Wanderley Martins. Pareceu-me que algo havia mudado na minha compreensão do ofício teatral após esse semestre e, a partir dele e baseado nessas experiências, comecei a aprofundar meus estudos sobre a máscara teatral. Passei a frequentar o espaço teatral do grupo Barracão Teatro, onde assisti Diário Baldio, Zabobrim, o Rei Vagabundo e O Ponto Alto da Festa (todos dirigido por Tiche Vianna), entre outros espetáculos em que a qualidade da construção expressiva do corpo dos atores, que usavam máscaras, me chamou atenção. Buscando as fontes das minhas experiências me deparei com a obra de alguns artistas que se tornaram as maiores referências para este projeto de pesquisa: Amleto Sartori (1915-1962), Donato Sartori (1939-2016), Jacques Lecoq (1921-1999) e Tiche Vianna (1963). Amleto Sartori foi um poeta, escultor e mascareiro conhecido principalmente pelo resgate da tradição da máscara teatral e pela da escultura do primeiro e mais difundido modelo da máscara neutra. Como afirma BELTRAME (2010, p. 190): “Amleto passa os últimos 15 anos de vida recuperando antigas técnicas de confecção de máscaras de personagens da Commedia dell'Arte, que estavam há muito esquecidas.” Donato Sartori (1939-2016), seu filho, foi seu discípulo e continuou a tradição de artesania da máscara. Juntamente com Paola Piizzi e Paolo Trombetta fundou o Centro Máscaras e Estruturas Gestuais, em 1979, onde estudou o uso das máscaras teatrais e se tornou um verdadeiro especialista. Donato trabalhou confeccionando máscaras e adereços em espetáculos de grandes nomes do teatro como 1 A máscara neutra é aquela que tem o objetivo de anular a expressão facial do rosto do ator a fim de se verificar e estimular a expressividade do corpo como um todo. Essa máscara propõe um estado de “calma, sem uma expressão particular, em estado de equilíbrio” (LECOQ, 1997, p. 69), não tem feições específicas e nem história. os diretores Giorgio Strehler (1921-1997), Ariane Mnouchkine (1939), Eugenio Barba (1936) e o ator Dario Fo (1926-2016). Em 2005, fundou em Abano Terme (Itália) o Museu Internacional da Máscara Amleto e Donato Sartori, que organizou, em 2013, o livro “A Arte Mágica de Amleto e Donato Sartori” (traduzido no Brasil por Beti Rabetti, editora É Relizações, 2013). Fez diversas visitas ao Brasil e, em uma delas, em 2015, chegou a realizar uma oficina durante as aulas da disciplina “Máscara: Elementos Técnicos de Artes Visuais I” da UNICAMP, ministrada pela professora Heloisa Cardoso, que já havia sido sua aluna. Nesta vinda ao Brasil, também houve um encontro com o grupo Barracão Teatro. Jacque Lecoq foi um ator, diretor, mímico e professor de teatro francês e sua trajetória começou pela Educação Física, como atleta. Estudou na Escola de Educação Física de Bagatelle, onde conheceu Jean-Marie Conty (1904-1999), que esteve no começo da L’Education Par le Jeu Dramatique, escola de teatro fundada por Jean-Louis Barrault. Lecoq descobre o teatro graças a Conty, que se interessava pelas relações entre o esporte e o teatro, tema sobre o qual Lecoq, mais tarde, tornou-se uma das maiores referências. Foi aluno de teatro na associação Travail et Culture e depois integrou os grupos Arouchs, Les compagnons de la Saint-Jean e Les Comédiens de Grenoble, onde trabalhou com Jean Dasté (1904-1994), que apresentou a Lecoq a atuação com máscara. Em um espetáculo, os atores usavam o que era chamado de “máscara nobre”, que mais tarde Lecoq usou como inspiração, em conjunto com Amleto Sartori, para criarem a máscara neutra. Em 1948, Lecoq foi convidado a lecionar na Universidade de Pádua, na Itália, e lá permaneceu por oito anos. Conheceu a Commedia dell'Arte e foi apresentado a Amleto Sartori. A convite de Giorgio Strehler e Paolo Grassi, trabalhou no Piccolo Teatro, em Milão, em espetáculos que exploravam as linguagens da Commedia dell'Arte e da tragédia grega. Voltou à França e, em 1956, fundou a Escola Internacional de Teatro Jacques Lecoq em Paris, onde desenvolveu uma pedagogia focada na movimentação do ator. A escola funciona até hoje e oferece um curso de dois anos, que começa na máscara neutra e aprofunda-se na ação do ator em diversas linguagens. Beatriz Maria (Tiche) Vianna Rosa, é atriz formada no curso técnico da Escola de Artes Dramáticas (EAD) da Escola de Comunicação e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP), onde conheceu a Commedia dell'Arte, em 1985, como diretor italiano Francesco Zigrino, convidado a dirigir um espetáculo durante o segundo ano de seu curso. Mudou-se, em 1988, para Firenze, Itália, para aprender no Alice Atelier a confecção das máscaras teatrais. Depois mudou-se para Bolonha em 1989 e cursou algumas disciplinas na Universidade de Bolonha. Em 1990, voltou ao Brasil. Foi professora na Escola Livre de Teatro de Santo André (SP) e na EAD – USP, onde conhece Esio Magalhães que, depois, se torna seu parceiro no Barracão Teatro. Além da EAD, também foi professora do Departamento de Artes Cênicas da UNICAMP. O Barracão Teatro é um grupo de teatro fundado pela diretora Tiche Vianna e pelo ator Esio Magalhães, em 1998, na cidade de Campinas. O grupo trabalha com teatro popular, aprofundando-se nas máscaras teatrais, especialmente da Commedia dell'Arte e do palhaço, e conta com dez espetáculos em seu repertório atual. Anualmente, oferece cursos de verão sobre a Atuação com Máscara, Commedia dell'Arte e Palhaço, além de Orientação Artística. O Barracão Teatro desenvolveu seu próprio procedimento de pesquisa e investigação teatral em torno do teatro popular e da utilização das máscaras teatrais e confecciona grande parte da suas máscaras, construindo suas dramaturgias a partir do “jogo” entre elas. Tiche doutorou-se na UNICAMP com a tese “Para Além da Commedia dell'Arte – A Máscara e Sua Pedagogia” (2017), na qual escreve uma cartografia de seu trabalho artístico no Barracão Teatro e detalha sua metodologia de trabalho com máscaras. Nesse projeto, juntamente com o estudo de metodologias de trabalho teatral com máscaras, foi realizado um laboratório prático de pesquisa em três etapas. O processo de criação da família Sartori foi referência para a criação e confecção de máscaras de estudo e o trabalho de Jacques Lecoq, para uso da máscara como elemento técnico e estratégia de formação do artista da cena. O Barracão Teatro foi referência nos procedimentos de criação, já que o grupo encontrou modos próprios de criar, treinar e formar artistas para a linguagem das máscaras. Assim, partindo do estudo das obras dos artistas citados, o laboratório consistiu na reunião de um grupo de alunos do Depto. de Artes Cênicas da UNICAMP a fim de se verificar a contribuição da máscara para o seu processo de formação, compreendendo: a confecção; o uso da máscara neutra; e a criação de cenas com máscaras expressivas. 2. Materiais e procedimentos 2.1 Laboratório prático de pesquisa e diários de bordo Por ter sido monitor, no primeiro semestre de 2018, da disciplina Máscara : Elementos Técnicos Artes Visuais I (ministrada pela Prof.a Heloisa Cardoso), ajudei os alunos do primeiro ano nos trabalhos de confecção e experimentação cênica e, assim, uma interessante relação de criação foi construída. Tendo em vista essa relação, ao formar um grupo que participaria do laboratório prático, direcionei o meu convite a alunos dessa turma. Tratamos dos termos de participação do laboratório em reunião e logo, no dia 3 de agosto, o grupo começou suas atividades. No primeiro semestre dessa pesquisa, nossos encontros aconteciam duas vezes por semana: as segundas-feiras eram reservadas para o estudo da máscara pela construção do artefato e, nas quintas-feiras, para a atuação com máscara. O foco da prática no primeiro semestre foi a confecção de meias-máscaras expressivas e o treinamento com máscara neutra, em paralelo. O do segundo semestre foi o jogo das meias-máscaras 2 expressivas. Estudamos a Commedia dell'Arte, sua história, estrutura e os tipos nela presentes e, uma vez que as nossas próprias máscaras estavam prontas, passamos a experimentá-las. Em 15 de maio, um experimento na rua foi feito, a fim de colocar as máscaras em jogo com o espaço e o público. A partir do nosso repertório, criamos uma cena que foi apresentada unicamente a Tiche Vianna, mas o objetivo traçado a priori, de apresentá-la publicamente, não foi cumprido por considerarmos que estava em estado prematuro e inapta para ser mostrada ao público externo. Em ambos os semestres guiei e participei dos exercícios, tentando não configurar relação professor-aluno. Em ambos os semestres da pesquisa houve dificuldades de conciliar o laboratório com as atividades curriculares, paralisações estudantis e manifestações políticas, às quais o grupo aderiu como um todo. Estas afetaram a periodicidade dos nossos encontros e causaram hiatos. Sempre que podíamos, voltávamos à ativa o quanto antes. Duas atrizes e três atores (Lígia Ribeiro e Jaqueline Giannini, Pedro Ribeiro, Lucas Metropolo e Vinícius Custódio) se retiraram ao longo do projeto por questões pessoais, mas nenhum problema ao projeto foi criado. Os atores que permaneceram até o final foram: Everson G. R. dos Santos, Larissa F. Blanco, Lucas Caparrós e eu. Como o processo pedagógico foi o foco da pesquisa, o que escrevo sobre o laboratório é a minha percepção do processo dos atores que trabalharam comigo nesses dois semestres, e a quem agradeço imensamente. O conhecimento aqui presente é sobreposição do que estudei e observei sozinho, do que discutimos coletivamente ao final de cada prática e do que cada um registrou em seu diário de bordo individual. O diário de bordo foi um procedimento utilizado para registrar subjetividades sobre um processo continuado. Tratou-se de um caderno no qual escrevemos ao final de todos os nossos encontros em um momento determinado. A ideia não foi fazer uma lista dos fatos, mas um relato pessoal de como a experiência foi apreendida pelo indivíduo. 2.2 A confecção das máscaras Nos encontros dedicados ao estudo da máscara enquanto objeto, começamos por leituras, exercícios plásticos e elaborações de projetos de máscaras. Dois dos experimentos plásticos foram 3 baseados no propostos por VIANNA (2017, p. 72-73): no primeiro, observamos o rosto dos colegas e os 2 O jogo cênico é a relação que atores estabelecem em cena em favor da encenação. O jogo há de haver regras estabelecidas e compreendidas pelos atores que o desenvolvem, assim promovendo o divertimento dos atores e da plateia no fenômeno teatral. 3 Propostas de desenhos a partir de uma ou mais diretrizes a fim de compreender determinado princípio. desenhamos esquematicamente, sem nos preocuparmos com qualidades realistas, mas sim com a tradução de traços marcantes de caráter; o segundo foi desenhar um rosto bem marcado de uma personagem, uma máscara, e, em seguida, imitá-lo, partindo da face e deixando que esse caráter tomasse forma nos corpos. 4 Com esses exercícios pretendi introduzir o grupo no ato de criar tipos através máscaras e vesti-los. Vianna descreve o segundo exercício da seguinte maneira: Caso queira, pode tentar imitar o rosto que você desenhou ou um destes postos aqui, mexendo a musculatura de sua própria face. Comece pelo rosto, deixe o corpo relaxado. À medida que mexe a musculatura da face, tentando expressar a sensação provocada pelo caráter que você observa no desenho, é possível perceber que sua coluna, pescoço, braços e até a sua voz querem participar ativamentedeste jogo? Se isso estiver acontecendo, significa que seu corpo está respondendo ao impulso provocado por aquilo que seus olhos enxergam - como meus olhos ensinaram minhas mãos, lembra? (VIANNA, T. 2017. p. 73.) Propus que desenhassem projetos de máscaras, e que utilizassem uma versão simplificada do sistema de tabelas proposto por H. Cardoso (CARDOSO in BELTRAME, 2010. p. 196), procedimento que vem da tradição da família Sartori usado em projetos de máscaras teatrais. Ali, deve-se elencar uma série de elementos qualitativos inspiradores à máscara a ser projetada, para atribuir concretude ao que está sendo imaginado. A definição dessas qualidades serve para traçar objetivos sensoriais que nortearão a execução do projeto. Algumas das qualidades sugeridas são muito objetivas e racionais, tais como cor e material do objeto e até mesmo a idade do caráter-tipo. Outras, no entanto, (como sentimento, sensação tátil, animal, ou som) são mais subjetivas e devem ser traduzidas durante a confecção através de signos visuais mais ou menos sutis, a fim de provocar sensações no observador do objeto. A objetivação e organização das ideias, por mais simbólicas que sejam, é necessária para que a máscara, na sua função de meio de comunicação, se torne mais eficiente. A comunicação entre mascareiro e observador, quando é clara, fornece material imaginativo que é tão útil ao ator que utiliza a máscara quanto ao espectador que vê o corpo-máscara em ação. Eu pedi que os atores tivessem em mente um animal, um elemento da natureza (água/fogo/terra/ar), um tipo de caráter e a função social ao desenhar o projeto. 5 (CARDOSO in BELTRAME e ANDRADE, 2010 p.196) Houve dificuldades com desenho, mas nunca foram exigidas tais habilidades. Dentro dos limites da minha competência técnica, ofereci ajuda e expliquei diferenças de se desenhar em duas dimensões e fazer o projeto de uma escultura tridimensional. Depois de alguns projetos, todos escolheram um dos que elaboraram para seguir na próxima etapa que foi a de esculpi-las em argila. Dividindo os custos, providenciamos os materiais, começamos e aqui, de novo houveram dificuldades em questão a 4 Imagens 1, 2, 3, 4 e 5 dos anexos são relativas às experiências descritas nesta página. 5 Tabela 1 dos anexos é a tabela de criação das máscara seguindo o método Sartori descrito por Cardoso. habilidades manuais, mas igualmente ajudei-os dentro de minhas competências. A contra-máscara foi um tema de muito mistério entre nós. Em Vianna, podemos ver um comentário sobre o conceito: Digo o que também ouvi de outros artesãos, que a boa máscara possui uma contra-máscara capaz de mostrar o oposto de sua característica principal. Mais uma vez é preciso dizer que não temos fórmulas: não é esta ou aquela forma geométrica que irá determinar a contra-máscara de uma máscara. Durante sua construção, o olho tem que enxergá-la a ponto de realizar esta composição. (VIANNA, T. 2017. p. 45) Sendo algo sem definição precisa, a contra-máscara não foi facilmente compreendido em termos de confecção, afinal nenhum de nós tinha ampla experiência na mascararia. A grande questão é que a escultura das máscaras teatrais não devem, idealmente, ser “chapadas” em um só estado ou sentimento, ou seja, devem ter traços que, ao olhar em diferentes ângulos, permitam a expressões distintas. Por exemplo, uma mesma máscara que, ao olhar para cima, transforma um olhar austero em surpreso e vulnerável. É questão de possibilitar o movimento afetivo ao caráter-tipo, ao invés de fazê-lo com formas marcadas demais que sugiram eternamente um sentimento ou uma emoção específica. Com isso, busca-se o refinamento na expressão de um caráter através de linhas escultóricas tridimensionais que se configurem diferentes dependendo do ponto de vista, afastando-se de uma noção genérica de caráter por sentimentos, como tristeza ou raiva. Assim conferindo-lhe a capacidade de integrar-se ao corpo e criar narrativas em cena que envolvam mudanças de estado. No sistema de tabelas dos Sartori, a questão de qual animal a máscara era baseada foi a que mais foi explorada e, para elaborar as nossas máscaras de tal modo que permitissem ter contra-máscara, ajudamos uns aos outros a pensar na diversidade de situações que os animais escolhidos podiam se encontrar e como reagiriam. A partir disso tentamos imprimir ambas as reações nas esculturas. Exemplo: minha máscara baseada em coruja tem semblante severo, mas quando é inclinada para trás, perde a seriedade e mostra-se surpresa. Na elaboração delas, também passamos por algumas questões que nos instigavam individualmente. No processo de construção da máscara "Germano", quis explorar a sabedoria empírica que vem através da velhice, que às vezes falha em virtude de doenças como o mal de Alzheimer, um tipo de saber que muitas vezes é perpassado por tradições preconceituosas e que entra em conflito com a juventude. Everson, em seu primeiro projeto pretendia prestar uma homenagem ao seu avô, mas o molde desta máscara se quebrou durante o recesso de dezembro a janeiro. Lidamos com essa perda providenciando um molde de um ex-participante do projeto (Lucas Metropolo) para substituir o quebrado. Everson decidiu por subverter a ideia original e criar uma máscara que representasse a marginalização feminina, a questão travesti, a prostituição e a sagacidade que vem da vivência nessa profissão. Em "Olívia", Larissa quis explorar os sonhos, no sentido de expectativas otimistas da vida e o comportamento de rebanho, que segue fielmente figuras de autoridade. Por fim, ao fazer a máscara "Sérgio", Lucas quis representar o stress do pequeno poder, como um redator-chefe de jornal viciado em cafeína, pressionado por prazos, metas e etc. Antes de engessarmos a argila, chamei Heloisa Cardoso para nos ajudar a aprimorar as esculturas antes que as finalizássemos como moldes. Retirando o papel-machê dos moldes de gesso, finalizamos as máscaras com cortes, furos, armação de arame, elástico, pintura, e acabamento em betume e verniz. 6 Quando finalizadas as máscaras, era possível enxergar características individuais de cada ator, tanto nos traços quanto nos temas abordados. Como diz COSTA (in Móin-Móin, 2005, p.42): “A energia da máscara, não necessariamente, tem um caráter místico, porém, no processo de confecção, aquele que a constrói, imprime um pouco de si na geografia do objeto”. 6Imagens 6, 7, 8, 9, 10, 11, 12 e 13 dos anexos são fotos dos resultados finais de cada máscara. 2.3 Treinamento e máscara neutra Paralelamente ao trabalho de confecção, encontrávamo-nos nas quintas-feiras à tarde para o treinamento com máscara neutra. A máscara neutra, tal como a conhecemos no século XXI, teve o seu surgimento na primeira metade do século passado, como resultado das experiências desenvolvidas com a masque noble (máscara nobre) no Vieux Colombier. Jacques Copeau propõe desnudar o ator dos artificialismos, da mesma forma que propugnara o treteau nu para a cena. Num palco neutro, tudo que não é essencial sobressai negativamente, e torna-se excedente. Oator empobrece o seu ofício, principalmente no que diz respeito aos meios físicos de atuação, tornando-se literário, com a supremacia do intelecto e da declamação. Assim, Copeau propõe que se trabalhe inicialmente a escuta (de si e do outro), tomando como ponto de partida o silêncio e a calma. (COSTA, 2006, p. 95) Para organizar os meus procedimentos, baseei-me nas aulas que tive anteriormente com os orientadores E. Okamoto e T. Vianna, bem como no livro O Corpo Poético: uma pedagogia da criação teatral (LECOQ, 2010), no qual o autor descreve o método utilizado em sua escola, desenvolvido a partir das suas experiências teatrais e sua trajetória no esporte. Jacques Lecoq observa que no fim do século XIX e no início do século seguinte, dá-se o fenômeno da redescoberta do corpo, marco de um novo olhar sobre a corporeidade no renascimento dos exercícios físicos, na ascensão do esporte, no advento da cronofotografia (precursora do cinema), na dança, entre outros. (COSTA, 2005, p. 29) Dentre o percurso dentro da escola de Lecoq, todas as linguagens trabalhadas eram não naturalistas (o melodrama, a Commedia dell'Arte, a bufonaria, a tragédia e o jogo de palhaços), exigindo dos atores energia extra-cotidiana e grande consciência dos movimentos corporais (assim como o esporte). O que me interessava nessa etapa era condicionar os corpos dos integrantes do laboratório de modo que fossem capazes de dar vida às máscaras que eles próprios confeccionavam. Todas as experiências teatrais com máscara das quais tive a oportunidade de participar e as que eu escolhi como referências para este trabalho colocam o corpo num lugar de grande importância. Não só no sentido de fortalecer músculos, mas também “treino para atenção, prontidão, escuta e movimentos/deslocamentos, na realização do pensamento e ação física” (VIANNA, 2017 p. 261). Portanto, considerei de extrema importância no começo do trabalho com o grupo de atores, reservar um espaço de treinamento físico e de algumas matrizes presentes no teatro mascarado ocidental, principalmente na Commedia dell'Arte. Nossos encontros normalmente começavam com automassagem nos pés, alongamentos e exercícios variados. Abaixo listo alguns exercícios que fizemos e conceitos que julguei importantes serem feitos abordados nesses encontros. 2.3.1 Ondulação Conduzi uma forma de treinamento com movimentos ondulatórios que aprendi nas aulas do professor Eduardo Okamoto na disciplina AC170 - Improvisação: O Silêncio I. Okamoto credita ao contato com a bailarina Yumiko Yoshioka o aprendizado da Ginástica Noguchi (criada por Mizochi Noguchi). Além desta referência, apoiei-me em descrições de Lecoq sobre as ondulações. A partir da minha experiência com estes exercícios e das minhas leituras, propus o trabalho da seguinte maneira: ● Em roda, começando pelo ponto zero , chacoalhar o corpo a partir do eixo da coluna. As 7 tensões corporais naturalmente se desmontam, a energia contida no corpo circula e adquire fluidez ao 7 O ponto zero é um estado corporal que consiste em pés paralelos, bem apoiados no chão e abertos na largura do quadril, joelhos semi-flexionados, bacia alinhada com o abdômen, braços relaxados ao longo do corpo, coluna ereta como se algo a puxasse em cada extremidade em vetores opostos e olhar no horizonte. longo do tempo dessa etapa. Como dizia Okamoto “é como se o corpo fosse um saco cheio d’água com ossos boiando”. ● A sustentação é um contraste à etapa anterior e trabalha a prontidão corporal. É como segurar o chão com todo o corpo, inclusive, um gesto com as mãos ilustrando essa metáfora é recomendado. De sopetão, deve-se sustentar o peso de todo o esqueleto, não perdendo a atenção de um osso sequer (dos maléolos, aos joelhos, aos braços, bacia e a coluna vertebral inteira) e o olhar, aberto e atento. Aqui a energia movimentada na etapa 1 é conservada e injetada na ação corporal. Até aí atingimos três estados: o ponto zero, o relaxamento e a atenção total. ● A última etapa do exercício é a ondulação, que está descrita no capítulo “Análise dos movimentos” em LECOQ, O Corpo Poético: Uma pedagogia da criação teatral (2010, p. 116-142): (LECOQ, 2010 p. 118) A ondulação é o primeiro movimento do corpo humano, o de todas as locomoções. Na água, o peixe ondula para avançar. No chão, a serpente também ondula. Uma criança engatinhando também ondula; e o homem em pé continua a ondular. [..] A ondulação apoia-se no solo e, progressivamente, transmite o esforço a todas as partes do corpo, até o ponto de aplicação. [..] A ondulação é o motor de todos os esforços físicos do corpo humano: "empurrar / puxar" e "empurrar-se / puxar-se". (LECOQ, 2010 p. 119) A ondulação foi praticada em quatro variações: simples curta (de pé), em seis apoios (mãos, joelhos e metatarsos), quatro apoios (mãos e metatarsos) e simples longa, que vai da posição de cócoras até o alongamento vertical do corpo. Assim, esperei tornar o corpo mais alongado e disponível para os eixos alterados da coluna vertebral e ações vetorizadas, muito usados no teatro mascarado. 2.3.2 Jogos com corda, bastão e bola São jogos de muito comum utilização como aquecimento e treinamento teatral. A bola e o bastão são lançados e recebidos e a corda pulada como nas brincadeiras infantis. Há muitas formas de executar essas ações e até mesmo combiná-las. São jogos de risco que colocam o corpo em estado de concentração e escuta ampliadas. Pode-se dizer que metaforizam um ator em ofício espetacular. Um exemplo é o jogo de corda Zerinho (VIANNA, 2017. p. 258-259). Quando um ator entra no espaço delimitado pela corda, entra em cena. Sua sequência de ações é clara: entrar, saltar e sair do espaço nos momentos certos. E o movimento é justo, sem ruídos, apenas o necessário. Sair da corda é tão importante quanto entrar para que o próximo a entrar execute também a sua ação sem problemas. Para que o jogo continue até chegar ao final, um grupo precisa de comprometimento, silêncio, concentração, foco, propriocepção e ritmo, assim como um espetáculo teatral. 2.3.3 O despertar da máscara neutra Este consistiu numa primeira experimentação prática com máscara durante a pesquisa. Nele, colocamo-nos deitados no chão, mascarados com meias de nylon pretas postas na cabeça, e, ao sinal de quem conduz o exercício, as máscaras “despertam” e veem o mundo pela primeira vez com curiosidade e receptividade. A máscara neutra não tem caráter e não reage a partir de pressupostos de um personagem, ela é vazia e cheia ao mesmo tempo, cheia do mundo que ela observa. Repetimos algumas vezes esse exercício antes de começarmos uma abordagem mais técnica do uso da máscara, e algumas vezes com variações, numa delas dividimos o grupo em duas partes, a que age e a que observa. Os que observaram antes do despertar das máscaras puseram objetos a fim de estimular os colegas e os que agiram se limitaram ao espaço próximo e os objetos a eles oferecidos. Durante o exercício, quem ficou de fora observou, anotou o que achou mais interessante e depois expôs em conversa, como a abstraçãoda função usual dos objeto oferecidos aliada a criação de interações incomuns com eles e a descoberta dos sons e padrões rítmicos. 2.3.4 Foco, interesse, ação Esses são matrizes corporais que estão muito presentes na atuação com máscara e que precisam de treino para que se tornem como reflexos espontâneos. O “foco” é o movimento que o ator faz em direção a algo ou alguém, apontando a ponta do nariz da máscara em tal direção. Em todas as experiências pedagógicas que tive com máscaras, em especial com o Barracão Teatro, era dito que se algo acontece em cena e a máscara não focalizou, esse algo não aconteceu, não foi relevante à cena. O movimento inteiro de cabeça e pescoço é necessário porque muitas máscaras não permitem que a plateia veja os olhos do ator e portanto mover apenas os olhos não basta para transmitir a ação do olhar. Além disso, o movimento de olhos explicita a atriz ou o ator debaixo da máscara, quando o objetivo é justamente o oposto: ao vestir a máscara, inibe-se o próprio ser em virtude da ação de um ser ficcional. O interesse revela a reação. Como a máscara reage ao que foi focalizado? Atração? Repulsa? São muitas as possibilidades, mas trabalhamos com vetores, algo que aprendi em um curso no Barracão Teatro. É como um alfabeto: pode-se combinar vetores e gerar nuances. Os vetores são: para cima (leveza), para baixo (peso), para frente (atração), para trás (repulsa), para fora (expansão) e para dentro (contração). São movimentos de corpo inteiro que geram significados. Por fim, a ação é uma tomada de decisão. O que se faz após olhar e reagir? São infinitas as possibilidades de ação em cena. Para treinar essas matrizes, pedi para que o grupo executasse essas três matrizes em ordem, ao som de minhas palmas batendo. A variação no ritmo das palmas é necessária para exercitar as diferentes urgências na qual o ator deve agir e portanto às vezes dava intervalos maiores e menores, sem aviso prévio. 2.3.5 A Viagem Elemental e os estados corporais Da seguinte maneira o exercício está descrito no livro de Lecoq: Ao nascer do dia, vocês saem do mar e descobrem, ao longe, uma floresta, para onde vão se dirigir. Vocês cruzam a areia da praia, e depois entram na floresta. Ali, em meio a árvores e outras plantas que, progressivamente, vão se tornando cada vez mais densas, vocês buscam a saída. De repente, uma surpresa: vocês saem da floresta e encontram uma montanha. Vocês "absorvem" a imagem dessa montanha, depois se põem a subi-Ia: os primeiros aclives, suaves, até os rochedos. chegando até a parede vertical, que é preciso escalar grimpando. No topo da montanha, descortina-se uma vasta paisagem: um rio que atravessa um vale, mais adiante a planície e, por fim, no fundo, o deserto. Vocês descem a montanha, atravessam a correnteza do rio, andam na planície, cruzam o deserto e, ao final, o sol se põe. (LECOQ, 2010. p. 75) É um exercício clássico de Lecoq que teve muita importância nas aulas que tive com (E. Okamoto) que introduzi na rotina de nossos encontros assim que o grupo ficou mais familiarizado com a máscara neutra. Primeiro foi de surpresa, uma improvisação, e a cada vez que o repetíamos foi se tornando notável que os atores progrediam na concretização das imagens propostas. O invisível foi se tornando visível. Após algumas semanas praticando a Viagem Elemental, pedi que eles mesmo escrevessem uma sequência de ações e lugares que configurariam uma nova viagem, uma nova jornada, visando os princípios do exercício, que eram a imaginação e a sua corporificação, e eles trouxeram como material, uma viagem de foguete à lua. Da mesma forma que o roteiro de Lecoq, também, com a repetição, a representação melhorava. Nesse exercício são postas em prática as matrizes descritas no item anterior, mas principalmente o que Vianna chama de paisagem em mim, “isto é, o corpo expressa o olhar da máscara sobre o mundo que está vendo. Ele é o reflexo desta relação.” (VIANNA, 2017, p.130). 2.3.6 Triangulação Começando uma transição para a máscara expressiva, introduzi a triangulação. A triangulação diz respeito à tradição de cenas frontais do teatro de máscaras, ou seja, a relação que se dá com a plateia é unicamente direcionada para uma frente determinada do palco. É uma comunicação intencional do ator que torna o espectador “cúmplice” da ação representada. Esta se dá por meio da troca de focos da máscara, acompanhada de movimentos que refletem a reação sobre o que acontece. O triângulo está entre a máscara que realiza a troca de focos, o público e o objeto que chama a atenção da máscara. (VIANNA, 2017, p. 135) Para iniciar o trabalho com a frontalidade cênica, conduzi improvisações de “passar a bola”: dois atores prentram em cena, de máscara neutra, um de cada vez desenvolve uma ação mantendo o foco à frente da cena, enquanto isso, o segundo ator mascarado focaliza a ação. A regra era que só um agisse de cada vez. Quando um termina, “passa a bola para” o outro (focaliza-o) e este responde. Passar a bola é um código comumente utilizado em diálogos de máscaras, é convocar a resposta de outra máscara uma vez que a ação de uma está terminada. Uma outra improvisação foi utilizada no intuito de compreender a triangulação, no qual elege-se uma só máscara que tomará o público como “cúmplice”. Nesta, um ator coloca-se à frente, focalizando e interessando-se por algo imaginário (fora de cena) e sem completar ação; o outro ator, mais atrás, praticava a triangulação, com dois pontos de interesse: o primeiro ator e o objeto imaginário. Ao focalizar cada ponto de interesse, deve surgir uma reação que será compartilhada com a plateia ao focalizá-la. 2.4 Trabalho com meias-máscaras expressivas 2.4.1 Animalização Ao voltarmos do recesso de verão, voltamos com nossas atividades no dia 07/03, em menor número, e dessa vez com um novo tema de estudo: as meias-máscaras expressivas e seu jogo cênico. O primeiro que fizemos foram práticas mais individualizadas de animalização. Dario Fo, no Manual Mínimo do Ator (2011) fala sobre a interessante relação das máscaras da Commedia dell'Arte com o reino animal: Há uma máscara resultante do casamento entre o cão perdigueiro, o mastim napolitano e o rosto de um homem. É a máscara do Capitano. Um entre tantos: Matamori, Spaventa, Draguignazzo, Cocodrillo… Assim como se torna galo, peru ou galinha a máscara de Pantalone ou do Magnifico: em consequência, o andar e a movimentação do ator que a usa precisará imitar os gestos mecânicos e esquisoides de um galo. [...] Arlecchino, junção de gato e macaco. Em certos casos, por suas evidências características, é chamada de Arlecchino-gato. O ator que vestia essa máscara dava saltos e pulinhos, articulando braços e pernas com suavidade e, de tempos em tempos, desfechava um grande salto enérgico. [...] a maioria das máscaras, inclusive as da Commedia dell'Arte, remetem ao mundo animal, ou seja, são zoomórficas [...] Podemos ainda citar o Brighella, metade cão e metade gato, alémdo porco, que é o Dottore. (FO, 2011, p. 38.) Lecoq também nos alerta sobre a utilidade do estudo de animais ao compor personagens: Alguns animais oferecem ritmos lentos excepcionais, entre eles, o camaleão. Ele se desloca sem que sua cabeça nunca receba o mínimo choque vindo das patas. Situação ideal para espionagem! Também a passagem da descontração ao alerta é um elemento particular da dinâmica animal. O cão passa imediatamente da defesa ao ataque, do sono à vigilância. São muitas as dinâmicas analisadas que vêm a enriquecer fortemente a representação dos personagens. (LECOQ, 2010, p. 138.) Tendo isso em mente, paralelo ao processo de finalização dos objetos-máscara que se deu no começo do primeiro semestre de 2019, pedi aos atores que pesquisassem imagens, vídeos e informações sobre o comportamento dos animais escolhidos como inspiração para as máscaras em processo de confecção. Conduzi então uma prática de animalização dos corpos em estágios. Pedi que caminhassem pelo espaço inicialmente com o corpo neutro. Este seria o primeiro estágio de uma escala de 1 a 10, sendo o 10 o estágio mais animalizado possível. Gradualmente e depois abruptamente, aumentamos e diminuímos a intensidade de animalização de acordo com a escala proposta. Os vestígios mais importantes que ficavam no corpo e na voz nos estágios entre 1 e 5 serviram de base para o corpo-máscara que foi desenvolvido posteriormente. 2.4.2 Commedia dell'Arte Em 2018, um colega que trabalhou comigo em um outro projeto (com direção de Tiche Vianna) me ofereceu o empréstimo de um grupo de máscaras do mascareiro José Toro-Moreno baseadas nos tipos da Commedia dell'Arte: Ragonda, Brighella, Arlecchino, Zanni, Targlia, Dottore, e dois distintos Pantalone. No encontro final do intensivo que fechou as atividades do laboratório no primeiro semestre, decidi fazer uma introdução ao universo das meias-máscaras expressivas. Pedi que cada um escolhesse uma das máscaras e passasse um tempo sozinho em observação imersiva de suas feições. Pedi que olhassem atentamente cada ângulo possível e, quando estivessem prontos, segurassem sua máscara pela testa e caminhassem pelo espaço, deixando que ela tomasse forma nos seus corpos e, durante essa ação, que encontrassem pequenas situações em que as máscaras poderiam se encontrar e reagir (ainda sem interação entre máscaras). Indiquei que poderiam vestir as máscaras na privacidade de um canto escolhido da sala, cada um no seu tempo, e continuasse a investigação de situações, agora com todo o corpo em ação. Um tempo depois, disse que se permitissem a interagir. Foi um dia de improvisação livre, que eu também participei vestindo a máscara de Arlecchino, e que nos deixou ávidos a continuar a investigação no semestre seguinte. Em fevereiro fui aluno de Tiche Vianna e Esio Magalhães no curso de Commedia dell'Arte do Barracão Teatro, onde tive aulas sobre a história da Commedia dell'Arte; as matrizes foco, interesse e ação; o estrato social, origem histórica, eixos, apoios, gestos, voz e comportamentos de cada tipo; exercícios de desenvolvimento da ação física e vocal dentro da linguagem; estruturas cênicas e, no final, o exercício da criação de um canovaccio. Ao sair do curso, estava ávido para compartilhar o que aprendi com o grupo. No encontro seguinte ao que praticamos dinâmicas de animalização expliquei ao grupo os tipos das máscaras que eu tinha à disposição, primeiro pelo conceito arquetípico e depois pelo corpo e o comportamento, baseando-me no curso do Barracão Teatro e o que é descrito nos livros A Arte Mágica de Amleto e 8 Donato Sartori (ALBERTI e PIIZZI, 2013), A Loucura de Isabella (SCALA, 2003) e Manual Mínimo do Ator (FO, 2015). Experimentamos por algum tempo cada um dos tipos pelo espaço. Um exercício aprendido no curso que foi de muita importância introduzir ao grupo para prepará-lo para o uso das máscaras foi o de separar qualidades comunicativas corporais e vocais da cena: dança, gesto, ação, música, ruído e fala. Nesse exercício separou-se o espaço em seis áreas correspondentes a essas qualidades, como estações. Os atores caminhavam aleatoriamente pelo espaço, ao meu comando paravam na estação que estivessem e exploravam a qualidade comunicativa respectiva à área onde estavam. Depois que esses elementos de linguagem foram bem explorados, mudava-se a configuração do espaço de forma que se assemelhasse a um palco italiano para uma segunda fase desse exercício onde combinam-se as qualidades aos pares, dessa forma: música + dança, ruído + gesto e fala + ação . Nessa segunda parte, cada ator escolhia uma máscara, imaginava uma ação a ser executada em cena 9 por ela e executava um percurso: entrar em cena em um estado expresso por uma musicalidade e movimento dançado, introduzir alguma problemática através de um gesto acompanhado de ruído, falar e agir, demonstrar mudança de estado por gesto e ruído e sair de cena expressando o novo estado através de outra musicalidade e dança. Nesse exercício pretende-se sintetizar a trajetória que qualquer máscara normalmente traça ao entrar em cena na Commedia dell'Arte: ela entrará em cena em algum estado e estabelecerá uma relação que a levará a agir, transformando seu estado de entrada. Consequentemente a máscara sairá diferente de como entrou. Executamos nossas primeiras experiências de contracenação que não foram muito bem-sucedidas e atribuímos o insucesso à falta de referência da ação de máscaras e, para fazermos esse estudo, lemos alguns canovacci de Flaminio Scala e assistimos juntos a partes da encenação de Arlecchino Servidor de Dois Patrões dirigida por Giorgio Strehler e ao filme A Viagem do Capitão Tornado. Essas referências inspiraram o grupo e nos deixou ávidos a experimentar as nossas máscaras que acabavam de ficar prontas. 2.4.3 Nossas máscaras Na semana que ficaram prontas nossas máscaras calhou que houve um evento, no dia 15 de maio de 2019, relacionado às manifestações contra os cortes do governo à educação pública chamado Ciência na Rua. O evento consistia em levar pesquisas acadêmicas de forma acessível à Praça Rui Barbosa, no 8 Imagens 14, 15 e 16 dos anexos são fotos de anotações no meu diário de bordo sobre o estudo corporal dos tipos durante o curso. 9 Imagem 18 dos anexos é uma foto de dois desenhos que representam esquemas da divisão de espaço nesse exercício. centro de Campinas/SP, para divulgar o que é feito dentro da universidade e sua importância. Com o tempo de pesquisa se esgotando, num momento de ansiedade para usar logo as máscaras de nossa autoria, propus ao grupo que fizéssemos a primeira experiência de vesti-las durante esse evento. Hoje penso que talvez tenha sido um passo ousado demais, mas eu estava inspirado pelos experimentos na rua de Tiche Vianna: O convívio com as máscaras criadas por Ahmad e Mahmoud me provocou a experimentá-las, além das máscaras de Commedia dell'Arte, diante das pessoas, na rua, para perceber o quanto os espectadores se deixariam envolver por elas ou não. O quanto meacompanhariam ou me ignorariam.[...] Retornando a Firenze, peguei máscaras das mais variadas formas do Alice Atelier e fui pra rua experimentá-las diante das pessoas. Não fazia uma “cena teatral”. Propunha-me apenas a estar ali intensamente enquanto desenvolvia alguma ação muito simples e buscava, acima de tudo, a verdadeira relação com qualquer coisa que acontecesse. Ali, vestindo a máscara e não querendo fazer nada além de estar lá, tornava-me outro ser. (VIANNA, 2017, p. 44-45.) Por problemas pessoais Everson não pôde participar do exercício desse dia. Nos reunimos na praça à frente da Catedral Metropolitana e combinamos o programa do que faríamos. Pedi que todos se mantivessem atentos ao seu redor, jogando com os objetos, lugares e pessoas, com o corpo vivo sem sair, nem por um momento, do caráter da máscara. Sugeri que cada um olhasse para as imediações e escolhesse um local, pensando num universo ao qual a máscara pertencesse para entrar em contato e vestir a máscara. Saindo do local nos encontraríamos no centro da praça e seguiríamos juntos subindo a rua do comércio, Treze de Maio, para depois descermos e juntos finalizarmos a prática no mesmo lugar que nos encontramos. Pedi também que não ficássemos presos a interagir entre nós mesmos, já que a reação das pessoas em volta era o foco da experiência. Ficamos nesse jogo por quase três horas, quando o cansaço nos venceu. Durante essa improvisação que apelidamos de Viagem, descobrimos muitas coisas novas sobre o caráter das máscaras que representávamos ao vestir as máscaras e a impressão causada por elas. No próximo encontro, após ter experimentado jogos com as pessoas e o ambiente, o corpo e a voz das máscaras e já tendo tateado o efeito que elas causavam no público, proporcionamos encontros cênicos, estabelecendo relações e jogos entre elas. Baseados nesse exercício criamos um canovaccio que sintetizava as descorbertas até então. Apresentamos este a Tiche Vianna, que nos deu uma devolutiva sobre as máscaras enquanto objetos e enquanto tipos, sua funcionalidade, sobre nossa técnica e sobre a narrativa traçada pelo canovaccio. O tempo de pesquisa acabou e terminamos assim as experimentações. 2.5 Entrevistas Para sumarizar a experiência, ao finalizar as práticas laboratoriais, entrevistei os participantes no dia 3 de julho seguindo o seguinte roteiro de perguntas: 1. Tendo em vista cada parte do processo (confecção, máscara neutra, máscara da Commedia dell'Arte e a máscara de própria autoria), me fale sobre o processo. 2. Houve algum aprendizado, uma transformação? Se sim, qual? Houve alguma parte do processo que teve mais importância? 3. Que tipo de relação você desenvolveu sendo ator que atua com a máscara da própria autoria? 4. O que você enxerga na relação ator e mascareiro. Houve alguma mudança no seu olhar? 5. Você gostaria sentiu que algum procedimento não foi explorado o suficiente e gostaria de revisitá-lo? 6. Considerações finais? No dia 31 de julho entrevistei Tiche Vianna e Esio Magalhães a fim de conseguir material reflexivo sobre o experimento e o processo do ator com a máscara nos pontos de intersecção dos nossos trabalhos. O roteiro de perguntas foi o seguinte: 1. Na relação da artesania da máscara com a atuação, do atelier com a sala de ensaio, como as duas habilidades interagem ou se complementam? Conte sobre processos que envolveram as duas juntas. 2. Descreva o que é, para você, pegar uma máscara pela primeira vez e “incorporá-la” ou “corporificá-la”. Esse processo é sinestésico? Empático? 3. Qual diferença você percebe em atores que passaram pela experiência com teatro com máscaras? Na questão de formação, no antes e o depois, qual a transformação? 4. Pra você, qual a relação da forma (técnica) com o conteúdo (narrativa)? 5. Ao conduzir processos pedagógicos com máscara, quais as maiores dificuldades que você identifica no jovens atores na compreensão da máscara? 6. Como o BT, na renovação da Commedia dell'Arte, lida com a fricção de tipificação e os grupos minoritários? 7. Que coisas novas que têm surgido, em questões mais técnicas ou formais na linguagem da máscara, que tem te cativado e te dá vontade de ver mais e explorar mais? 8. Considerações finais e conselhos para jovens atores e/ou mascareiros? As entrevistas foram gravadas em áudio e foram transcritas por mim. 3. Resultados 3.1 Do ponto de vista artístico Conseguimos criações interessantes com nossas máscaras. A máscara “"Germano"” foi baseada na categoria dos vecchi da Commedia dell'Arte (os patrões velhos), portanto ele interage com as outras máscaras com o pressuposto de ser a autoridade através da sabedoria. Porém, contrastando com isso, diferente do caráter sábio que eu esperava ao criá-lo, um lugar que acabei explorando muito foi justamente o oposto: os seus erros e ingenuidades. Surgiram algumas cenas no experimento da rua que, se aprimoradas, poderiam se tornar lazzi – termo utilizado na commedia dell’arte para designar cenas curtas, como esquetes, em sua maioria cômicas, que compunham seus repertórios, pois sempre obtinham bons resultados diante do público e das quais poderiam lançar mão sempre que necessário – como confusões por não enxergar direito (inspirado na característica míope de Tartaglia) e reações com dificuldades de entender o mundo atual, ataques cardíacos ao ouvir mentiras chocantes (mais tarde utilizado no nosso canovaccio) e flatulências. Sem saber das consequências futuras, coloquei um pequeno óculos entre os olhos da máscara "Germano", o que não estava previsto no projeto, e isso serviu como disparador para esse contraste da sabedoria e o semblante “corujesco” ameaçador, observador de tudo e todos com a ingenuidade e os frequentes erros. Esse contraste gerou muitas situações cômicas. A máscara “Olívia” resultou numa interessante máscara, pois passa a maior parte do tempo sonhando, o que contrasta com as obrigações de sua função servente. A ingenuidade de "Olívia" somado com o mau-encaixe da máscara no rosto que causou aspecto de um queixo muito retraído trouxe comentários estranhas de transeuntes no experimento na rua, coisas como “Você tem demência?”. Isso causou muitas situações onde a máscara-personagem teve que ser defendida pelas duas outras, dando-lhe uma qualidade muito frágil, o que foi usado na construção do canovaccio. Porém, ao mesmo tempo, sua ingenuidade e o trabalho prévio de Larissa com a palhaçaria trouxeram uma sinceridade que causava situações engraçadas também, através de comentários inesperados. Utilizamos também a imprevisibilidade na cena que compomos ao final do processo, onde ela apareceu como um caráter que se deixa levar pelos outros, sendo facilmente usada para outros objetivos de terceiros, de formas cada vez mais absurdas. A máscara “Sérgio” exigiu muito corporalmente de Lucas Caparrós, já que sua expressão facial era muito intensa e raivosa, mas surpreendeu ao não estar sempre estado de fúria. Acabou que seu semblante foi lido na rua como se estivesse sob efeito de cocaína, isso foi motivo de muito riso quando a máscara-personagem não admitia. Aí revelaram-se momentos inesperados de "Sérgio"tentando se provar um ser humano normal, o que contrastava com seu rosto muito anormal. Esse tipo de momento foi evidenciado no canovaccio quando "Sérgio" tinha dificuldades de expressar sua paixão por "Olívia". A máscara "Daniele" não estava no experimento da rua, mas revelou-se cleptomaníaca no processo de criação do canovaccio. Ela infelizmente não teve muito tempo de exploração, mas gerou bastante debate entre nós sobre tipos marginais. Ao ouvir a devolutiva de Tiche Vianna após ter visto nossa cena, nos demos conta de nossas maiores falhas. Uma delas foi justamente o mote gerador da trama. O canovaccio era o seguinte: Germano não paga sua secretária Daniele há meses. Os dois se encontram na rua e ela o faz de bobo e rouba sua carteira enquanto Germano sai. Sérgio também encontra Daniele pela rua e a incomoda pedindo conselhos amorosos para conquistar Olívia. Daniele enciumada mente a Sérgio que Olívia gosta que a chamem de delinquente. Quando Sérgio está saindo, Daniele também lhe rouba a carteira. Sérgio encontra Olívia, a chama de delinquente a fim de cortejá-la e esta foge chorando. Sérgio e Germano se encontram, percebem que foram roubados, juntos percebem que isso só pode ser obra de Daniele e saem à sua procura. Daniele encontra Olívia triste pelo insulto que recebeu e a consola, saem juntas. Os dois pares se esbarram, os dois homens acusam Daniele de roubo. Daniele distrai Germano contando o que Sérgio fez a Olívia. Ao mesmo tempo que Germano briga com Sérgio pelo que fez, Daniele convence Olívia a fugirem juntas. Ao perceber a fuga, Germano tem um ataque cardíaco por achar que Olívia virou delinquente, tem uma experiência de quase morte e ao voltar, diz a Sérgio que enxergou uma luz que o disse que o único caminho para a felicidade é o perdão. Sérgio reluta em perdoá-las, mas a autoridade de Germano sobre ele se sobrepõe e eles saem juntos. O caso tem desfecho com Daniele contando o dinheiro que roubou e convencendo Olívia a viajarem juntas para Poços de Caldas. Tiche nos chamou a atenção a uma série de problemas: 1. Problemas políticos com a narrativa: A máscara-personagem mais marginalizada é posta como uma vilã, praticamente sem causa. Muito do que se podia ser interpretado é oposto do que acreditamos. Justamente por isso não fizemos apresentação pública do experimento cênico. 2. Problemas na construção narrativa: Não tivemos o cuidado de apresentar universo fantástico no começo, então ao assistir, pressupõe-se que o universo apresentado é o que vivemos, o que não condiz com a aparência das máscaras. Ou seja, de primeira as máscaras já não convencem, não criam relação de maravilhamento. As máscaras-personagens se precaviam demais para não cometer erros, isso ajudou em nada a exploração do caráter ou a criação de quiprocós. 3. Erros de confecção das máscaras: Elas pareciam vir de referências confusas e não possibilitavam a compreensão de quem realmente eram ou quais realidades representavam. Todas elas apoiavam-se muito na frontalidade, por ter o lado da face curto quase desapareciam quando vistas de perfil. Tamanhos e encaixes com muitos erros de principiante também não favoreciam uma imagem final convincente. Faltava contraste nos traços esculturais e pintura, para que todos os detalhes fossem bem visíveis de longe. 4. Materialidade das máscaras em relação à atuação: Os objetos concretamente propunham um universo onde é normal pessoas de pele azul, roxa, coral ou amarela, mas não dávamos importância nenhuma a isso. Ou seja, era evidente que estávamos querendo impor uma forma “já sabida” de atuação e um tipo de trama tão mundana a máscaras que claramente pertenciam a universo diferente. 5. Atuação: Estávamos demais centrados na palavra. A construção da linguagem que pretendíamos é baseada na ação física. Não interessa ao espectador entender o que se passa, mas sim divertir-se com como o quiprocó se dá. Dentro dessa construção textocêntrica, negligenciávamos o corpo, reagíamos pouco e frequentemente abandonávamos o corpo que desenvolvemos para a máscara. Reconhecemos todas essas críticas e, se fôssemos continuar a criação, levaríamos todas elas em conta. Se tivéssemos mais tempo de pesquisa, experimentaríamos outros exercícios de criação que tivessem mais a ver com o tipo de narrativa que gostaríamos. Além disso refaríamos as máscaras todas. Infelizmente, o grupo teria que se desfazer no semestre seguinte. 3.2 Do ponto de vista pedagógico Do processo surtiram efeitos muito diferentes nos três outros participantes do laboratório, de acordo com os interesses individuais. Lucas Caparrós já tinha tido experiências prévias com máscaras da Commedia dell'Arte e me disse que o que mais o transformou foi a calma que a máscara neutra o ensinou a ter em cena. Aprender a respirar e não usar tanta força para exprimir energia extra-cotidiana. Também falou sobre a mudança no seu olhar para com as pessoas quando quer se inspirar artisticamente, que agora as enxerga e as analisa como uma soma de aparência, gestos e caráter. Outro aprendizado dele foi sobre “desenhar os movimentos e não passar por cima deles com pressa. A pressa gera confusão de traços, que dificulta o entendimento da cena. Um desenho bem traçado faz parte da linguagem da máscara, em cada uma das que experimentamos.” (CAPARRÓS, 2019.) Larissa Blanco se descobriu muito durante esse tempo, quase tudo foi-lhe apresentado pela primeira vez. Em entrevista, disse que se afeiçoou muito por tudo que passamos, mas que infelizmente sente que não conseguiu executar o que idealizava tanto corporalmente quanto na confecção da máscara, disse também que faria tudo outra vez. “Algo que levei muito pra outras instâncias do meu trabalho de atriz foi o princípio de ação e reação corporal, trabalhar fisicamente com a coluna e não só se apoiar na fala. São algumas coisas que eu acho básicas do trabalho de uma atriz”. (BLANCO, 2019) Everson dos Santos me disse que demorou a entender o que lhe atraía no estudo da máscara e no final foi a investigação da construção da ação física. Também disse que a Commedia dell'Arte foi um estudo interessante na questão de aprender sua estrutura, não para reproduzi-la como era, mas para atualizá-la em narrativas novas. Falou-me também de como a máscara, em si, é a materialização de um processo de criação poética. “Algo concreto, que é bem diferente do que é normal no trabalho de ator, que é efêmero. Cada fase dessa manufatura é materialização do processo, por exemplo quando vemos que o resultado final não era o que planejamos, o que não previmos.” (SANTOS, 2019) Considero que dois foram os maiores achados da pesquisa. O primeiro ponto forte foi descobrir sobre a formação interdisciplinar, e me dei conta disso entrevistando Larissa Blanco: [...] foi legal pra ver as artes da cena como algo mais integrado, não só como “Vou pegar essa máscara aqui e vou atuar com ela!”, mas como algo que você pode confeccionar, ter habilidades para além da atuação. Isso envolve pensar tipos e caráteres fisicamente também. Pensar em como podem ser colocados numa máscara, no sentido de “Como fazer a sobrancelha, o nariz, a boca?”. Você aprende que ao colocar na máscara, você pode colocar em você também, eu acredito. É muito interessante nesse sentido, de ser um artista mais integrado.BLANCO, L. F. Entrevista concedida a João P. M. Speckart no dia 03/07/2019 Ao ouvir essa resposta, ocorreu-me que aí está uma das riqueza da atuação com máscara. O teatro bebe de muitas outras artes e há infinitas formas de explorar e evidenciar um determinado canal de comunicação dentro da cena. Da mesma forma que há o teatro musical e o teatro que privilegia o texto, o teatro com máscaras (pertencendo ao campo das formas animadas) bebe da comunicação visual. O que diferencia a arte visual do teatro de formas animadas é justamente a presença de atores que, através de seus corpos, animam os objetos, gerando narrativa. É claro, no campo das meias-máscaras, que falam, o canal sonoro também é um fator importante. Mas um dos lugares de maior aprendizado para os atores que participaram dessa experiência foi o de ter que transmitir corporalmente a narrativa, de forma concreta e visível. Ao dar vida a objetos inanimados, é necessário o uso de energia extra-cotidiana e de movimentos muito precisos que só se tornam naturais a partir de muito treino. Junto com isso, utilizar uma máscara de própria autoria é pô-la em teste e, com a ajuda de um olhar externo, reconhecer as potencialidades e limitações do objeto. Nosso processo, que se iniciou com a confecção de máscaras teatrais, passou por treinamentos e finalizou com uma criação cênica, foi um exercício que nos permitiu experimentar alguma autonomia dentro de uma linguagem específica e codificada dentro de uma tradição. É certo que esses atores, ao trabalharem essa linguagem novamente, estarão mais preparados do que antes, no âmbito artesanal. Esses atores experimentaram técnicas que poderão ser revisitadas e aperfeiçoadas, desse modo aumentando a capacidade de executar concretamente ideias através do canal comunicativo visual. Levarão consigo princípios que foram introduzidos em nossos treinamentos para outras linguagens. O teatro com máscaras está nas raízes do teatro ocidental, muitos de seus princípios podem ser transpostos para outras linguagens, então esse trabalho com máscaras não serviu apenas para este tipo de teatro. Em relação ao meu papel de pedagogo, reflito o seguinte: treinamento não é algo que pode ser abandonado e algo que senti falta na minha ação foi voltar no que já fizemos antes toda vez quando sentisse necessidade. Chegamos ao final do processo sem domínio de técnica e, se tivéssemos tempo para dedicação total, talvez o resultado nesse sentido teria sido melhor. O processo me fez entender a arte cênica analogando-a com a o processo artesanal de se fazer uma máscara. Ao ouvir sobre os processos de construção de máscaras de Esio Magalhães, refleti sobre como é importante não ceder ao imediatismo, a relação artesanal com o que se faz precisa de tempo, rigor e humildade de reconhecer os erros. Abaixo um trecho de sua entrevista: Se você planta uma árvore, tem que esperar ela florescer. Não tem como catalisar esse processo. Pra mim, a maior dificuldade é isso, esperar. Esse pensar “Eu sou ator, então eu faço tudo.” Não, você vai errar pra aprender uma linguagem, pra aprender a andar de bicicleta você vai cair! Tem que esperar isso. E isso é algo que eu aprendo muito com o circo. Desde o começo da minha carreira eu tenho andado junto com o circo (e eu acabo sendo palhaço não é à toa). Andar de monociclo precisa de uma dedicação, que não adianta querer aprender hoje. Você não vai aprender hoje. Talvez você fique caindo o tempo todo e não consiga dar uma pedalada sequer naquele negócio. Aí, quem sabe, no terceiro dia de repente algo acontece e “Opa! Entendi. Não me equilibro ainda, mas entendi onde eu posso não cair”. Tem esse tempo de maturação que é o tempo de aprendizado. Pra trabalhar com máscara você vai precisar se dar um tempo de entender aquilo. Acho que o problema maior é a vontade de logo dominar a máscara. MAGALHÃES, E. Entrevista concedida a João P. M. Speckart no dia 31/07/2019. 4. Discussão / Conclusões 4.1 Materialidade e concretude Nosso processo confeccionou máscaras grotescas que, ao serem pintadas com cores distantes do padrão de coloração que nos remete ao universo humano, caberiam nos universos das fábulas, dos mundos fantásticos e penso que cometemos um erro de atribuir a elas, ingenuamente, características que pertencem ao jogo das máscaras arquetípicas da Commedia dell’Arte. Longe de achar que as ideias das máscaras que fizemos nunca deveriam ter sido executadas, penso que deveríamos ter refinado a forma de trabalharmos com elas, criar cenas que combinassem com sua materialidade. Refazer a máscara também teria sido um passo importante, para que os erros técnicos na forma não se sobrepusessem ao conteúdo delas. Há uma lição de Lecoq que experimentamos a respeito um pouco através da Viagem Elemental e do exercício de animalização, mas penso não ter explorado o suficiente e que ainda quero retornar, que é imitar a natureza. Essa lição está muito bem sintetizada nas partes 26 e 27 (23:49-25:10) do segundo filme Le Jeu, La Création da coletânea documentária Les Deux Voyages de Jacques Lecoq (direção de Carasso e Royonde), onde Lecoq amassa e o joga no chão um pedaço de plástico para que seus alunos observem atentamente a movimentação do material, logo em seguida é mostrado uma cena em que a movimentação dos atores em coro é semelhante ao modo que o plástico se mexe. Ao entrevistar de Esio Magalhães, ouvindo sobre o processo de construção do movimento de três máscaras diferentes do espetáculo Freguesia da Fênix, identifiquei similaridade com o raciocínio de criação através da observação da natureza de Lecoq: Eu fazia três delas: o Tonho, o Sabiá e um enamorado (neto do barão), que não usa o objeto-máscara. Logo pensei em como diferenciar essas máscaras e em qual universo eu as trabalharia. Pensando no fato do Tonho ser escravo, eu tinha lido uma história sobre Campinas exportar tecnologias de tortura e castigo para escravos e uma delas era cortar o tendão de Aquiles para que eles não conseguissem andar direito e fugir. Usei essa marca no Tonho. Ele é uma máscara de muita sabedoria, um espírito, fui procurar a capoeira para achar uma força tradicional negra. Toda a sua movimentação foi baseada em capoeira. Nisso eu também cheguei numa outra inspiração importante para ela, que foi o elemento fumaça. Fumaça por causa dos turíbulos, incensários e nessa consistência espiritual da fumaça, que você vê mas não pega. Essa foi a base dessa máscara. Dei materialidade aos traços pela concretudes. A fumaça é uma referência também de tempo, era uma máscara mais lenta, mas que também podia ser rápida, com se a fumaça fosse soprada.[...] Aí veio o Sabiá, bem, o nome dele já traz a imagem da ave pequena. Ele tinha muito disso de ser meio um galinho, um bicho que voa. Eu fazia um movimento aqui atrás [demonstra] que era como se ele batesse asas e voasse [...] Pensei também na adaptabilidade, sendo ele um sujeito que se adapta, que precisa fazer uma coisa,mais outra, olhar para tudo ao redor, estar no meio do sinal, sair, se esgueirar, se esquivar de carros… Logo pensei em trabalhar a borracha, o látex, essa coisa que se estica, espreme, pode ser apertada e feita caber em lugares… Pensei nisso para o seu movimento emborrachado que tem elasticidade o tempo todo. Então no Sabiá era esse bicho mais o elemento. Já o Neto, que era um filhinho mimado que teve todos seus desejos realizados, um filho muito bem tratado no Sucrilhos… Então ele foi cuidado, e aí eu tratei ele como uma jóia, então eu pensei que o elemento dele podia ser o cristal. A movimentação dele já trazia algo disso, veja que não é um processo primeiramente mental. Se você pensa nisso antes que qualquer coisa, se torna algo muito externo que causa um choque. Primeiro se vivencia a máscara e se deixa os olhos ensinarem o corpo. [...] A referência primeira pra isso era a Commedia dell'Arte, então, sendo um enamorado logo vi que o Neto era mimado, nunca ouviu um não. Quando ele escutava um “não”, ele não sabia o que fazer e desmontava. Isso foi importante pra criação desse enamorado. Esse movimento de criação não foi unilateral, o diálogo de simultaneamente manufaturar a máscara e criar corpo à máscara que ainda não existe foi indo para um foco, se retroalimentando se convergindo. MAGALHÃES, E. Entrevista concedida a João P. M. Speckart no dia 31/07/2019. 4.2 Aprender a Commedia dell'Arte hoje Uma dificuldade que percebi foi a de agir com as máscaras Pantalone (o patrão ganancioso) e Brighella (o servo astuto), os atores, de modo geral, muitas vezes dentro das experimentações do laboratório prático, os atores tinham pouca criatividade quando improvisavam com elas, inclusive a dificuldade foi expressa por certa vez, interrompendo um exercício. Uma hipótese que foi levantada sobre isso por Esio Magalhães durante o curso que fiz no Barracão Teatro foi que atores jovens muitas vezes têm tido receio de desempenhar papéis opressores,. Pantalone tem potencial para o assédio sexual e Brighella, para a agressão física. O oposto observei em máscaras como Tartaglia e Ragonda, que representam um patrão ético e uma servetta muito empoderada, tipos mais fáceis de criar empatia. Eu e uma outra atriz éramos os mais novos dos alunos no curso e fomos questionados sobre o porquê de escolhermos Tartaglia para estudar na fase final É como se fosse difícil se desvencilhar da própria identidade e conduta moral até mesmo dentro de cena, onde as ações são ficcionais. Nesse sentido, tocou-me muito o que aconteceu com a máscara-personagem "Daniele", e fiz questão de perguntar a Tiche Vianna e Esio Magalhães sobre como aliam engajamento político à estrutura da Commedia dell'Arte, abaixo alguns trechos da resposta de Tiche: [...] Commedia dell'Arte é um modelo estrutural de dramaturgia. Funciona a partir de tipos tirados da sociedade. Nesse sentido, é possível fazer Commedia dell'Arte com qualquer tipo criado. Como nós trabalhamos com isso? Convidando pessoas que pertencem a essas minorias(costumo usar esta palavra entre aspas ou o termo essas, ditas, minorias) para estudar e fazer Commedia dell'Arte. Começamos a abrir vagas de bolsas no chapéu a partir do momento que não somos nós, que somos brancos, eurodescendentes, machistas, de uma cultura de pensamento hegemônico que teríamos o protagonismo ao falar sobre essas outras realidades. Cada um tem que trazer, a partir da sua realidade a máscara que se quer abordar. [...] Aí compomos a cena relacionando nossos universos com os delas e vice-versa. [...] eu particularmente, trouxe desde o início dos meus estudos com ela o desejo de não reproduzir uma forma espetacular que se fazia na Itália do século XV, mas de compreender que aquela forma de fazer teatro era um teatro popular urbano. [...]. Assim como os meus estudos o tempo todo me disseram que não havia forma fixa de fazer Commedia dell'Arte, e ela sobreviveu do século XV até hoje justamente por se atualizar, incorporou tudo aquilo que pertence ao seu momento atual. É mais do que óbvio que é muito possível fazer Commedia dell'Arte hoje no sentido da sua pergunta. Se quiser manter a mesma estrutura, pode-se mudar a relação dos enamorados e a de quem é quem dentro da comédia. Por exemplo, numa direção do Esio[...]: a peça se chamava O Triângulo, nesse espetáculo os enamorados formaram um triângulo amoroso sendo que ele e ela eram apaixonados pelo Capitano, e esses dois estavam sendo comprometidos pelas famílias. [...] Essa é uma maneira de se retratar [as minorias] sem ridicularização, esse é sempre o cuidado. Existem milhares de coisas ridículas, não é ridícula essa relação ou essa figura. Ridículas são as relações impostas, tudo aquilo que a gente não quer, mas faz acontecer. Essa ainda é outra maneira de lidar com essa questão, são muitas. [...] Mas por exemplo: fazer um Pantalone ser um patrão negro. Para o arquétipo Pantalone é muito ruim porque o que com isso se diz? Que o negro é explorador e um vilão na relação de trabalho. Enquanto na realidade observa-se justamente o contrário. Mas se eu for fazer a máscara de Pantalone ela será branca, porque fala-se justamente do patrão europeu. Não há porque fazer esse tipo de adaptação, essas são questões que temos que pensar. Trazer temas e debatê-los dentro da Commedia dell'Arte com aquilo que são as máscaras é muito possível. Trazer uma máscara trans para dentro dela é muito possível. Depende de como arquitetar os quiprocós para não enfraquecer a relação, para a comicidade, não tirar sarro do que você queria reforçar e afirmar. Quando fazemos isso, fazemos porque achamos necessário. Houve um momento que nos foi cobrado e concordamos com essa questão da representação. [...] Tem coisas que nós não faremos mais, porque no momento que foram feitas tinham uma significação e agora têm outra. Agora não interessa mais. Quando fazem perguntas como “Puxa, mas aí como fica a questão da tradição? Se estamos trabalhando com um tema e não pode mais falar sobre isso, então não vamos poder falar? A linguagem justifica. Como a gente faz? Vamos parar de fazer? Como que é?” eu respondo “Como que é? Não somos seres criativos? Só temos criatividade para fazer aquilo que já aprendemos? Não temos para fazer aquilo que precisamos aprender? Estamos num momento de transição cultural, vamos negar isso? Não podemos negar. Em nome do que? Em nome de manter uma tradição porque já sabemos fazer as coisas desse modo? Acho que não. Temos que apostar mais na nossa capacidade de lidar com aquilo que esse momento da vida está nos pedindo e criar, inventar. Esse é o nosso ofício, o tempo todo. Não temos que criar melindre nesse lugar, temos que ouvir, compreender... Debater também, não é que tudo está certo e correto, mas é que o debate tem que acontecer. E tem horas que temos que ceder. Entre o “sim” e o “não” no caso de uma dúvida, eu cedo ao argumento que precisa do espaço de afirmação. Acho que uma hora isso passa e aí vai ser diferente, mas temos que viver o que está posto. Esse é o desafio. 5. Matéria encaminhada para publicação
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