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A POLÍTICA ECONOMICA NO GOVERNO MÉDICI

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nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici:
1970-1973
José Pedro Macarini
Professor do Instituto de Economia da Unicamp
Resumo
Este artigo examina a política econômica du-
rante o governo de Emílio Garrastazu Mé-
dici, período que se tornou conhecido pela
descrição oficial do auge cíclico então em cur-
so como se fora um ciclo desenvolvimentis-
ta capaz de prolongar-se por décadas proje-
tando a superação do atraso. Na primeira
parte, examina-se a gestação de um projeto
nacional pelo regime, desaguando no projeto
Brasil Grande Potência, o qual se apoiou no
modelo “agrícola-exportador” como a sua
estratégia de desenvolvimento. Na segunda
parte, procede-se a uma detalhada reconsti-
tuição da execução da política econômica –
com ênfase nos aspectos relacionados à con-
cepção estratégica anunciada, à sustentação
do crescimento e ao tratamento dispensado
à inflação. A análise evidencia alguns aspec-
tos peculiares da conjuntura 1972-1973, su-
gerindo tratar-se de um momento distinto
(uma segunda fase) da administração Médici.
Abstract
This article focuses on the economic policies of
the Emílio Garrastazu Medici administration.
This period became known for the official
description of the then ongoing economic boom,
as if this boom were a real developmental stage
that would lead to prolonged growth for decades,
thus pulling the country out of its backwardness.
In the first section, we will examine the creation
of a national project by the military regime,
leading to the “Brazil: a Great Power” project,
which was based on growth in exports of
agricultural products as its core development
strategy. The second section presents a detailed
summary of the conduct of economic policy –
with emphasis given to aspects concerning the
core strategy announced, to sustained growth and
to stabilization policy. The analysis highlights
some specific aspects of the 1972-1973 economic
scenario, suggesting that this represents a different
period (a second phase) in the conduct of economic
policy during the Brazilian “miracle”.
Palavras-chave
Brasil, ditadura militar,
política econômica.
Classificação JEL E65.
Key words
Brazil, military dictatorship,
economic policy.
JEL Classification E65.
1_Introdução
A evolução da economia brasileira e da
política econômica durante o regime mi-
litar foi objeto de freqüente atenção dos
estudiosos, o que permitiu consolidar pro-
fundo conhecimento acerca do período.
Algumas lacunas permanecem, porém.
Uma delas diz respeito à política econô-
mica do governo Médici. O objetivo des-
te artigo é contribuir para um conheci-
mento mais aprofundado deste tema.
A literatura existente tendeu a tra-
tar em bloco, como se fora um continuum,
o período mais longo iniciado em 1967
(governo Costa e Silva) e abarcando o
governo Médici. Esse enfoque terá sido
estimulado por fatores como a continui-
dade de comando da política econômica
sob Delfim Netto, a explícita inflexão
promovida em 1967-68, a predominân-
cia de uma orientação expansionista na
maior parte do período – e a conjuntura
de crescimento acelerado, descrito à épo-
ca na imagem do “milagre brasileiro”.
Contudo, tal perspectiva, conquan-
to adequada para certos propósitos, não
configura um retrato fiel do movimento
da política econômica, o qual foi bem
mais complexo e não-linear. Assim, o
discurso (e a práxis) delfiniana de 1967-
1968 não se projetam facilmente sobre
todo o período até 1973; é possível argu-
mentar que uma nova inflexão da política
econômica ocorreu em 1969 (sob o efei-
to da mudança de conjuntura política de-
cretada pelo AI-5); o “milagre” desponta
apenas na virada de 1969 para 1970; a
“visão de mundo” delfiniana (o “modelo
agrícola-exportador”) somente adquire o
estatuto de núcleo estratégico da política
econômica no governo Médici – e dis-
crepa da visão elaborada no Planejamen-
to; e o impressionante expansionismo da
política econômica de curto prazo em
1972-1973 se fez num cenário totalmen-
te distinto do observado em 1967-1968,
devendo ser apreciado nesse contexto.
Nesse sentido, a leitura proposta neste
artigo enfatiza as descontinuidades reve-
ladas pelo movimento da política econô-
mica da ditadura.
Este artigo se propõe examinar a
política econômica do governo Médici nos
seguintes aspectos;
1. a sua orientação estratégica, materi-
alizada no projeto Brasil Grande
Potência e tendo o “modelo agrí-
cola-exportador” de Delfim Netto
como a sua base de apoio: a sua
reconstituição requer breves re-
ferências a episódios anteriores
da política econômica (o PAEG
do governo Castello Branco, e o
PED do governo Costa e Silva);
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2. a execução da política econômica
de 1970 a 1973, com referência
seja aos aspectos diretamente re-
lacionados àquela orientação es-
tratégica, seja à evolução da con-
juntura; um tratamento à parte é
dispensado ao subperíodo 1972-
1973, tendo em vista as caracterís-
ticas específicas dessa conjuntura.
A pesquisa realizada trabalhou fun-
damentalmente com a literatura geral
e especializada relativa ao tema, docu-
mentos oficiais do período e artigos e en-
trevistas das autoridades econômicas pu-
blicados em jornais e revistas. O artigo
compõe-se de quatro seções: esta intro-
dução, a reconstituição da estratégia de
desenvolvimento, o exame da execução
da política econômica ao longo do perío-
do e algumas considerações finais.
2_ A estratégia de desenvolvimento
2.1_ Gestação do projeto nacional:
Brasil Grande Potência
A ideologia político-econômica tecida du-
rante o governo Castello Branco foi com-
posta de ingredientes muito singelos: na
linha de frente, o combate sem trégua
à inflação (a origem de todos os males),
acompanhado do repúdio à tentação
estatista – assim, num cenário de estabili-
dade e livre-iniciativa, brotaria com ple-
no vigor a nova racionalidade, alicerce
firme do desenvolvimento. Este teria,
ainda, outro pilar no reconhecimento
das virtudes da internacionalização que,
esperava-se, agora prosseguiria sem en-
traves de espécie alguma. Seja porque
efetivamente se acreditasse numa fácil
retomada do desenvolvimento uma vez
superada a barreira da inflação, seja por-
que de início o horizonte de permanência
do novo regime era incerto mesmo para
os seus artífices, o fato é que inexistiu ou
teve papel secundário qualquer perspec-
tiva explícita de elaboração de um proje-
to próprio de construção da Nação.1
Isso muda completamente nos anos
1967-1969, com o discurso político-eco-
nômico se apropriando da idéia de cons-
trução de um projeto nacional visando
“responder de forma adequada ao desa-
fio brasileiro”, qual seja “demonstrar a
viabilidade do desenvolvimento brasilei-
ro” (PED: I-2).2 Tal preocupação per-
meia o Programa Estratégico de Desen-
volvimento (PED), lançado pelo governo
Costa e Silva em 1968. Contrastando fla-
grantemente com a retórica anterior do
PAEG, o PED se apoiou num diagnósti-
co que vinculava o “desafio brasileiro”
ao “arrefecimento da substituição de im-
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1 Isso foi observado,
já em 1965, num debate
“interno” do PAEG.
Ver Dias Leite (1965).
2 Convém lembrar que o
governo Castello Branco
também produziu, em 1966, o
Plano Decenal, uma coleção
de estudos setoriais
embasados numa perspectiva
de planejamento para toda
uma década. O governo Costa
e Silva, originado de uma
disputa interna ao regime,
responsável por uma mudança
substantiva na condução da
política macroeconômica,
abandonou o Decenal para
elaborar o seu próprio plano.
Uma apreciação do Plano
Decenal permanece em
aberto, não tendo sido
abordada neste artigo. Para
uma introdução ao tema, ver
Ianni (1977, p. 225-239).
portações”, encerrando um estágio do
processo de desenvolvimento econômi-
co do Brasil, caracterizado por uma es-
tratégia baseada num “único fator dinâ-
mico” (a indústria), tornada possível pelo
fato de adecisão de investir depender
“apenas do tamanho absoluto dos mer-
cados”. A resposta do PED ao desafio de
“assegurar a retomada da trajetória de
desenvolvimento acelerado” consistiu na
proposta de “um novo modelo de desen-
volvimento”. Como a decisão de investir
passava a depender essencialmente das
expectativas de crescimento dos merca-
dos (e não mais “apenas” do seu “tama-
nho absoluto”), era necessário identificar
corretamente e apoiar os setores dinâmi-
cos aptos a dar sustentação ao cresci-
mento econômico. A novidade estaria no
caráter “multissetorial” do novo estágio
de desenvolvimento. Essa proposição é
formulada da seguinte forma:
Exatamente porque arrefeceu a substitui-
ção de importações e nenhuma estratégia
concentrada numa única fonte de dinamis-
mo terá condições de assegurar o desenvol-
vimento auto-sustentável, a estratégia a
adotar no novo estágio objetiva a
diversificação das fontes de dina-
mismo. Dever-se-á ampliar substancial-
mente o ‘bloco’ de setores dinâmicos inter-
ligados, e que na fase anterior se limitara
praticamente à Indústria (Bens de capi-
tal, Bens de consumo duráveis, Bens inter-
mediários) e alguns segmentos de Infra-es-
trutura e de Agricultura. A ampliação
desse “bloco” de impactos simultâneos,
para abranger (além da Indústria) o Setor
Agrícola, áreas substanciais da Infra-
Estrutura Econômica e da própria Infra-
Estrutura Social (Habitação, Educação,
Saneamento) irá permitir a expansão da
demanda e oferta capaz de sustentar um
ritmo intenso de crescimento, numa ampli-
ação de mercado que permita superar a
fase de crescimento moderado em que se en-
contrava a economia (PED: IV-16).
O PED não deixa dúvidas quanto
à necessidade de diversificar as fontes de
dinamismo:
O elemento essencial a salientar é que so-
mente a ação simultânea naquelas quatro
áreas dinâmicas, com a ênfase adequada
em cada uma, mobilizará do lado da de-
manda e do lado da oferta os fatores indis-
pensáveis a um crescimento do produto da
ordem de 6% ao ano (PED: IV-16).
Atente-se para o fato de, em 1968,
a política econômica estar engajada na
elaboração de uma nova estratégia de de-
senvolvimento que projetava um cresci-
mento do produto de “no mínimo, 6%
ao ano, no período 1968-1970” (estiman-
do-se viável um crescimento levemente
acima, dada a prevalência de capacidade
ociosa generalizada) (PED: II-2 e IV-11).
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E é claro que um dos setores dinâmicos
continuaria a ser a indústria de transforma-
ção, para isso sendo necessário diversificar
suas fontes de expansão: substituição de
importações (“enquanto racionalmente
possível”), expansão do mercado inter-
no, promoção de exportações. Em al-
guns momentos, uma formulação mais
contundente transparece: O mercado in-
terno é a ferramenta mais importante
de que dispomos para conseguir o nosso
desenvolvimento. Cumpre ao Governo
fortalecê-lo e expandi-lo (Diretrizes de
Governo: 15). Nessa linha, uma política
de distribuição de renda integra a estra-
tégia e vislumbra-se a criação de um
“mercado de massa” como condição do
desenvolvimento acelerado e auto-sus-
tentado. O PED esclarece que tal mer-
cado de massa é entendido
no sentido de que considerável percenta-
gem da população urbana e rural tenha
nível de renda capaz de permitir consu-
mo habitual de bens industriais, princi-
palmente não duráveis, que sustente o
crescimento das Indústrias Tradicionais
a taxas próximas das do crescimento do
PIB (PED: IV-11).3
Uma menção deve ser feita ao
ambiente político-ideológico observado
nas hostes do regime militar nos anos fi-
nais da década de 60. Nesse período,
tendeu a ganhar densidade a reflexão
doutrinária acerca do real significado
da Revolução de 1964, numa linha que
podemos designar, não obstante a sua
manifestação difusa, de “nacionalismo
autoritário”. Um exemplo lapidar foi a
revista Nação Armada, surgida nesse mo-
mento e explicitando em seu programa
o propósito de dedicar-se “ao debate in-
terpretativo e ao ideário da Revolução”
para assim chegar ao “conhecimento”
e à “doutrina da Revolução” (esta, no-
te-se, não havia sido explicitada nem em
1964, nem durante o governo Castello
Branco). O “conhecimento” perseguido
dizia respeito ao sentido da Revolução
de 64, qual seja, atualizar
uma VOCAÇÃO e um DESTINO: a
liderança continental de uma Revo-
lução e a afirmação mundial de uma
grande Potência.
Para ensejar esse “conhecimento” e sua
concretização através de um “projeto
brasileiro” surgia Nação Armada, correia
de transmissão dos ideais e anseios da eli-
te pensante do regime aos “setores revo-
lucionários no Governo ou fora dele”.4
Talvez a liderança mais expressiva
do nacionalismo autoritário nesse perío-
do tenha sido o general Albuquerque Li-
ma, ministro do Interior em 1967-1968,
crítico da política econômica delfiniana
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3 Não apenas a expansão do
emprego e a melhoria de
produtividade, mas igualmente
uma política de distribuição
impulsionaria o surgimento
desse mercado de massa.
4 “Nação Armada contribuirá
para que esta verdade seja
percebida, formulada e
realizada. É óbvio o nosso
empenho em alinhar os
elementos técnicos
(econômicos, sociais e
políticos) do PROJETO
BRASILEIRO que é,
sobretudo, o conjunto de
diretrizes e alternativas que
ordenarão os esforços da
Sociedade e do Estado para
que a Nação realize a sua
vocação e o seu Destino”.
Todas as citações são
extraídas do Programa de
Nação Armada, republicado no
n. 3, junho de 1968.
pós-AI-5 e candidato à sucessão de Cos-
ta e Silva. Seu discurso se caracterizou
por associar enfaticamente a Revolução
de 1964 à tarefa de realizar “grandes re-
formas e transformações sociais”, vistas
como passagem obrigatória para o pleno
desenvolvimento da Nação. Este se via
contido graças à alta concentração de ren-
da e pobreza, afetando, sobretudo, algu-
mas regiões, o que tornava limitado o
mercado interno – assim, se contrapu-
nham o interesse nacional e os interesses
de oligarquias, estes últimos sempre soli-
damente incrustados no aparelho políti-
co-institucional.
Ousar enfrentar as oligarquias pa-
ra varrer estruturas arcaicas, tal era, ao
que parece, um elemento central da con-
cepção do general Albuquerque Lima –
haja vista sua defesa da reforma agrária,
considerada “condição primordial do cres-
cimento industrial e criadora de amplo
mercado interno”. Através da “incorpo-
ração da massa brasileira”, tornar-se-ia
possível superar o atraso, atualizando o
sonhado destino de grandeza. A contribu-
ição do capital estrangeiro é valorizada,
mas não de forma incondicional, acenan-
do-se o propósito de estabelecer contro-
les. Apoiar a empresa nacional visando
ao seu fortalecimento constituía outra
preocupação explícita do seu ideário.5
As reflexões cultivadas pelos ideó-
logos do nacionalismo autoritário rece-
beram estímulo adicional e ganharam
maior ressonância com a penetração al-
cançada por alguns estudos produzidos
no exterior – a saber, a tese da suprema-
cia absoluta dos EUA, fundada em seu
domínio da tecnologia (popularizada em
O desafio americano, de Servan-Schreiber),
e as projeções futuristas promovidas por
uma instituição norte-americana (sinteti-
zadas em O ano 2000, de Herman Kahn),
as quais insistiam em ignorar o destino
de grandeza reservado à nação brasileira.
É sintomático que o tema do “desafio
tecnológico” se tenha tornado ingredien-
te importante da retórica do Planejamen-
to nos anos seguintes, enquanto a intelli-
gentsia oficial contra-atacou maciçamente
as projeções de Kahn relativas ao Brasil.6
Não será demais reafirmar: a recu-
peração da economia que iria prosseguir
sem interrupção, desdobrando-se em vi-
goroso auge cíclico, havia começado em
meados de 1967; não obstante, até o se-
gundo semestre de 1969, a própria política
econômica do regime não se mostrava
segura na avaliação do processo em curso;
as ambições explicitadas não iam além da
recuperação datrajetória histórica de cres-
cimento (PED). A propagação de um es-
tado de inquietação latente, uma espessa
névoa recobrindo o futuro sonhado, se
não chegava a colocar um risco real de
guinada profunda na orientação do regi-
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A política econômica do governo Médici58
5 Todas as citações são
extraídas de matéria da revista
Visão, 24-10-69, resumindo
um documento inédito de
Albuquerque Lima no qual
esboça um programa de
governo. Para uma breve
discussão do nacionalismo
autoritário, ver Vinhas de
Queiroz (1973).
6 Ver Reis Velloso, entrevista
à revista Veja, 18-6-69. Ver
também seu texto “O Desafio
Tecnológico e o Projeto
Brasileiro” (set./69),
divulgado pelo Planejamento.
No âmbito acadêmico,
Simonsen daria a sua
contribuição ao debate
escrevendo o livro Brasil 2001
– ver Simonsen (1969).
me, criava, porém, a necessidade de uma
resposta para acomodar as “bases” (mes-
mo porque, como é sabido, a “eleição”
do general Médici ocorreu em detrimento
justamente da candidatura nacionalista
de Albuquerque Lima). Enquanto mani-
festação retórica, a estratégia de desen-
volvimento do período 1970-1973 só se
torna compreensível quando se tem em
conta esses desdobramentos. Mas há um
dado adicional freqüentemente ignora-
do: data do início de 1970 (ou final de
1969) a tomada de consciência do vigor da
recuperação em curso, o que permitiu à
política econômica mudar sua anterior
postura cautelosa e sóbria, passando a
apostar “alto”, em consonância com as as-
pirações políticas do novo governo. Assim
surgiria o projeto Brasil Grande Potência,
visando trazer à luz, até o ano 2000, o pre-
tendido destino nacional de grandeza.7
Desde o primeiro momento, o dis-
curso de Médici revelou afinidades ine-
quívocas com os anseios de grandeza.
Em sua mensagem de 7 de outubro de
1969, diria: “O Brasil é grande demais
para tão poucas ambições”. Estas se insi-
nuavam no reconhecimento da meta de
“triunfo final na arrancada para o desen-
volvimento econômico e social”. Em seu
discurso de posse, reiteraria: “Homem
de meu tempo, tenho pressa”. Um ritmo
de crescimento oscilando entre 6 e 7%
“já não nos bastam”, “urge acelerar o
processo”. E ainda:
Creio no apressamento do futuro. E cre-
io em que, passados os dias difíceis dos
anos 60, amanhecerá, na década de 70,
a nossa hora.8
A orientação a ser imprimida à
política econômica do novo governo
permaneceu indefinida durante alguns
meses. Uma leitura atenta das manifes-
tações dos atores principais envolvidos
na sua elaboração e a cobertura feita pe-
la grande imprensa permitem especular
que uma disputa interna (no mínimo um
“debate”) tenha ocorrido contrapondo
Fazenda e Planejamento. Reis Velloso,
que em seu discurso de posse havia
anunciado para breve a divulgação de
um documento explicitando as grandes
diretrizes da política econômica – as
“Bases da Política do Governo”, conti-
nuaria a advogar uma linha de ação to-
talmente afinada com o ideário já expli-
citado no PED. A retórica elaborada por
Velloso apresentava uma “visão telescó-
pica”, alcançando o ano 2000 (período
estimado para o nosso “ingresso na so-
ciedade dos desenvolvidos”), e era fran-
camente desenvolvimentista ao alertar
para o papel decisivo atribuído ao novo
governo (1970-1973):
José Pedro Macarini 59
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7 Ver “A crise institucional”,
in O Estado de S. Paulo,
26-10-69.
8 Ver Médici (1970).
A incapacidade de assegurar o desenvolvi-
mento acelerado nesse período poderá sa-
crificar irremediavelmente as perspectivas
de longo prazo.
O otimismo de Velloso – seu discurso
pode ser lido como se afirmasse: “Sim,
podemos ambicionar o pleno desenvol-
vimento” – era, contudo, temperado pela
prudência na hora de definir o ritmo al-
mejado do crescimento (ao alertar para o
risco das “formulações irrealistas”).9 Se
isso bastava para emudecer as vozes de
cassandra da ortodoxia econômica, sem-
pre inconformadas com a longa perma-
nência da inflação (mesmo após o “ataque
mortal” que a política econômica preten-
dera executar durante 1969), é lícito su-
por que ainda estava aquém do deman-
dado por um governo que nascia sob o
signo da “pressa”.
Outra foi a postura exibida por
Delfim Netto nessa conjuntura. Antes de
mais nada, em plena consonância com os
anseios voluntaristas do novo grupo diri-
gente, Delfim terá sido a primeira autori-
dade econômica a ousar defender uma
meta de crescimento da ordem de 9% ao
ano. Por suposto, o fascínio exercido por
tal perspectiva de crescimento colocava
em efetivo segundo plano as preocupa-
ções com a inflação persistente (que con-
traste com a experiência vivida ao longo
de 1969!). Por outro lado, ele brandia (no
começo, discretamente) a sua própria es-
tratégia de desenvolvimento: a acelera-
ção do desenvolvimento seria assegurada
pelo apoio simultâneo à agricultura e à
exportação, configurando um novo mo-
delo de desenvolvimento.10
É bastante sugestivo que a divul-
gação das grandes diretrizes do novo
governo, reiteradamente anunciada para
dezembro, tenha sido adiada para a reu-
nião ministerial de 6 de janeiro de 1970,
ocasião em que nada foi decidido. A jul-
gar pela cobertura da grande imprensa, o
documento preparado no Planejamento
teria despertado acentuada reação crítica;
ademais, teria aflorado o desencontro de
opiniões no tocante à meta de crescimen-
to a ser adotada, sob o impacto da apre-
sentação das estatísticas revistas de cres-
cimento relativas a 1968 e 1969.11
Uma leitura superficial da política
econômica, induzida pela forma imprimi-
da aos sucessivos documentos produzidos
pelo regime, sempre preocupados em tecer
uma linha de continuidade inaugurada em
1964, tenderia a desprezar os indícios de
mudança e debate de alternativas. Tanto
mais que a atividade do Planejamento fru-
tificou, dando origem às Metas e Bases pa-
ra a Ação do Governo (documento divul-
gado em outubro de 1970). Uma leitura
atenta, entretanto, sugere que as Metas e
Bases (e o posterior I PND) cumprem pa-
pel essencialmente retórico, não se consti-
tuindo no guia da política econômica do
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A política econômica do governo Médici60
9 Ver, por exemplo:
“Desenvolvimento e
Planejamento” (nov./69), “As
Grandes Realizações Nacionais”
(dez./69) e “Projeto Nacional,
Planejamento e Perspectivas”
(O Estado de S. Paulo e Jornal do
Brasil, 30/12/69).
10 Ver as declarações de
Delfim, reproduzidas in O
Estado de S. Paulo, 15/11/69,
30/11/69 e 9/12/69.
11 A revista Veja, 14/1/70, faz
um relato da primeira reunião
ministerial, colocando o
ministro numa posição muito
incômoda; a matéria vai ao
ponto de relatar uma suposta
divergência quanto ao
crescimento do PIB: “Velloso
falara em 6 a 7% e na reunião
ministerial Delfim prometera
entre 8 a 9% para 1970, depois
Velloso voltaria a carga com
10%”. Reis Velloso responderia
à revista, esclarecendo: “1. É
inexata a informação de que o
Sr. Presidente da República teria
ficado ‘extremamente irritado’
com o texto do documento de
‘bases’; 2. É inexata a
informação de que [...] o
Presidente haja mudado o
sentido da reunião para reduzir
a evidência da exposição do
Ministro do Planejamento;
3. É inexata a informação de
que o Ministro do Planejamento
teria alterado a meta de
crescimento [...] de 6/7% para
10%”. Veja, 21/1/70.
governo Médici. Com efeito, a ação do Pla-
nejamento, tão bem ilustrada pelo PED
(1968) e pelo II PND (1974), foi sufocada
pela perspectiva dominante durante o “mi-
lagre” fielmente traduzida na máxima de
Delfim Netto: “Dêem-me o ano, e não se
preocupem com décadas”.12
E não há como negar que a orien-
tação da política econômica foi, sim, de-
cidida naqueles meses iniciais. Ainda em
janeiro de 1970, Delfim tornaria pública
a nova opção estratégica, o modelo “agrí-
cola-exportador”. E em março o próprio
general Médici ratificaria a escolha da op-
ção delfinista ao comunicar a sua política
de desenvolvimento:
Aí estará, precisamente, a maior novida-de da nova política governamental. Desde
os anos 50, nosso esforço desenvolvimen-
tista vem sendo predominantemente indus-
trial, de forma desequilibrada em relação
ao setor agrícola [...] Dessa forma, nossa
política de desenvolvimento [...] visará ao
incremento substancial da produção agrí-
cola e ao aumento das exportações, o que
certamente haverá de motivar rápida am-
pliação do mercado interno e induzirá a
própria expansão do setor industrial.
E esclareceria em definitivo a me-
ta de crescimento de seu governo: “Es-
peramos acelerar a marcha do desenvol-
vimento em ritmo de crescimento da
ordem de 10%”.13
2.2_ O modelo “agrícola-exportador”
O início do governo Médici será marcado
por acentuada dominância dessa concep-
ção que, embora já esboçada anteriormen-
te (sobretudo a partir de 1967), não des-
frutava até então de semelhante primazia.
Agora, passa a se constituir no núcleo mes-
mo da política de desenvolvimento e do
modelo de crescimento adotados – dese-
nha-se, assim, em sua plenitude, o novo
modelo “exportador” (ou, mais precisa-
mente, “agrícola-exportador”), formulação
José Pedro Macarini 61
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
12 Esse é o título de um artigo
de Delfim publicado no Jornal
do Brasil, 31/3/70. A meu ver,
o mais significativo é o
momento escolhido para
comunicar essa “visão de
mundo”, francamente hostil à
atividade de planejamento. O
próprio general Médici vinha
indicando um apreço menor
por diagnósticos e
programação; em sua
Mensagem de 31/12/69,
afirmou: “Convencido estou da
menor necessidade de novos
planos que de determinação e
constância para acionar e
aperfeiçoar o que planejado
existe”. (Médici, 1970, p. 82).
Um editorial de O Estado de S.
Paulo (23/12/69) atacaria a
“planomania” – para concluir:
“[...] a inflação de planos
provocou sua desvalorização
perante os técnicos. E o
público propriamente dito já
não liga”. Reis Velloso
reconheceria o surgimento de
um ambiente marcado pela
“insistência em mais execução
e menos planejamento” e
buscaria defender a
importância crucial do
planejamento (Ver seu artigo
em O Estado de S. Paulo,
31/12/69).
13 Aula inaugural na ESG – in
O Estado de S. Paulo, 11/3/70.
O fortalecimento de Delfim já
era insinuado em matéria da
revista Veja, 14/1/70. Após a
precoce saída do ministro
Fábio Yassuda, a revista Visão,
14/3/70, comentaria: “Na
verdade, Delfim Netto surgiu
como figura dominante na
área econômico-financeira”.
associada a Delfim Netto. Convém exami-
nar a questão com algum detalhe.
Um notável (e ignorado) documen-
to desse período delineia a tarefa da qua-
dra histórica que se anunciava:
Cabe agora, num verdadeiro programa de
emergência para o Brasil, fixar a opon-
do às crises de motivação e às frustrações
do passado a confiança no projeto brasilei-
ro e a vontade de toda a Nação de realizar
o pleno desenvolvimento.
(Esse “projeto brasileiro” envolvia a am-
bição explicitada tranqüilamente de do-
brar a renda per capita de 1970 a 1980,
apoiada numa projeção de crescimento
do PIB de 9% a. a. – “indiscutivelmen-
te viável nas atuais condições econômi-
cas do país”).
O sucesso na implementação des-
se “projeto brasileiro” exigiria “altera-
ções substanciais na estratégia de desen-
volvimento”, de forma a permitir “evitar
a repetição das falácias que têm obstado
a construção de um país grande, livre e
progressista”. Assim:
Essa aceleração do crescimento resultaria
de uma modificação substancial na estra-
tégia do desenvolvimento, que passaria a
centrar-se [...] no forte incremento da pro-
dução agrícola e das exportações do país,
ensejando a rápida ampliação do mercado
interno e induzindo o crescimento dos de-
mais setores.
Tal estratégia [...] se orienta no sentido de
um crescimento equilibrado, com as vir-
tudes inerentes a esse processo, que, pelo
desenvolvimento simultâneo dos diversos
setores, acelera a criação de renda e de
mercado para cada um desses setores.
O aspecto chave da estratégia era:
“Centrar-se, a curto e médio prazo, no
aumento e exportação simultânea da pro-
dução agrícola”. Essa era a resposta del-
finiana para as recorrentes preocupações
com o tamanho (insuficiente) do nosso
mercado interno: lembre-se, o PED dis-
corria sobre a necessidade de criar o “mer-
cado de massa”, Albuquerque Lima ace-
nava com a reforma agrária (falácia?).
Dos dois setores básicos – agricultura e ex-
portações – surgirão condição para uma rá-
pida ampliação do mercado interno.
O argumento – central – é reiterado:
Não existem fórmulas mágicas de amplia-
ção do mercado interno. Esta depende,
para sua mais rápida concretização, de
um elemento exógeno ao sistema, represen-
tado pelo mercado externo que permitirá
um aumento geral da produtividade.
Ainda uma vez: “Do setor exportador
provirá o elemento dinâmico para altera-
ção de todo o quadro da economia brasi-
leira”. Dessa forma, pretende-se viável o
desenvolvimento almejado, posto que “a
estratégia confere à economia o elemento
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici62
incentivador dos investimentos que é a
ampliação do mercado”, equacionando
pois “o problema básico na formação do
capital e no desenvolvimento”.14
Na entrada dos anos 70, esse é “o
único caminho que resta ao Brasil” para
lograr “atingir as altas taxas de crescimen-
to que almeja”. Com efeito:
Falecem alternativas para a estratégia pro-
posta. As políticas utilizadas no passado,
forçando a expansão com base no fator es-
casso, encontraram as limitações que trouxe-
ram descontinuidade ao desenvolvimento.
As políticas utilizadas no passado
dizem respeito ao conhecido conjunto de
instrumentos acionados para dar apoio à
industrialização por substituição de im-
portação. A avaliação daquele processo é
abertamente crítica, uma vez que acarre-
tou “a redução da eficiência geral da eco-
nomia” e “custos sociais maiores do que
seria necessário com a utilização de uma
política mais racional” – para colher um
desenvolvimento que se revelou “de curta
duração”. O importante, porém, é que
o processo de substituição de importações
encontrou seu limite, e não se deve esperar
dele a fonte dinâmica da aceleração do de-
senvolvimento industrial do país.
Qualquer tentativa de insistir com essa
opção fracassaria em atingir “os objeti-
vos mais importantes”, quais sejam:
A ampla mobilização de recursos internos
para a sustentação do desenvolvimento e o
aumento geral da eficiência do sistema
produtivo nacional.
Esse diagnóstico – originalmente
desenvolvido no âmbito do pensamento
cepalino – era partilhado pelo Planeja-
mento e conduzia à formulação de uma
estratégia “multissetorial” de desenvolvi-
mento, incluindo como uma das fontes
de dinamismo o aprofundamento da in-
dustrialização (vale dizer, para o Planeja-
mento a substituição de importações não
estava exaurida como tal, tão-somente
como fonte única, exclusiva, do dinamis-
mo). A estratégia de Delfim Netto é mais
simples: o motor do processo provém da
agricultura e das exportações; mais radical,
ao sugerir uma rejeição integral das políti-
cas do passado, oferecendo ao regime um
modelo econômico “novo” que confirma
a ruptura com a velha ordem pré-64; e, não
menos importante, é dotada de forte apelo
ao colocar a agricultura numa posição cen-
tral (e ainda fazê-lo, afastando a incômoda
proposta de reforma agrária).15
No “novo” modelo, a dinâmica do
desenvolvimento ativada valendo-se de
“um elemento exógeno” envolve tanto
a agricultura quanto a indústria. Ocor-
re, porém, que as possibilidades de incre-
mento das exportações industriais são re-
conhecidamente mais limitadas – e mesmo
que isso não se verificasse, o seu efeito
José Pedro Macarini 63
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
14 As citações são do
Programa da Política
Econômica do Governo. Esse
documento, ao que parece,
jamais foi oficialmente
divulgado. Mas uma edição na
forma de apostila, sem
referências precisas de data e
precedência, foi utilizada no
curso deEconomia Brasileira
da FEA-USP em 1975 sob a
responsabilidade do Professor
Carlos Viacava (anteriormente
um integrante da equipe de
Delfim). Um exame atento do
seu conteúdo e um cotejo
com declarações públicas de
Delfim e assessores indicam
convincentemente que foi
elaborado pela Fazenda no
início do governo Médici. A
respeito, ver especialmente a
entrevista de Delfim Netto à
revista Mundo Econômico de
janeiro de 1970.
15 Ver C. Viacava, “A
modernização da agricultura
brasileira”, in Jornal do Brasil,
20/3/70.
dinâmico seria reduzido, dada a participa-
ção “mínima” das exportações no total da
demanda industrial. Daí a centralidade
atribuída à agricultura. E dada a abundan-
te disponibilidade de recursos ociosos e a
existência de notável capacidade empre-
sarial no setor, uma política econômica
racional produziria o resultado esperado:
“Sempre que incentivos adequados fo-
ram oferecidos ao setor, ele demonstrou
uma ampla capacidade de resposta”.
A resposta pretendida se traduziu
nas seguintes projeções de crescimento: la-
voura para o mercado interno (6,8% a. a.),
pecuária para consumo interno (9,0% a. a.),
exportações (10,0% a. a.), concluindo-se
que “a demanda dos produtos de lavoura
deve crescer em 7,9% a. a. e o da agricul-
tura como um todo 8,2%”.16 Esse de-
sempenho seria induzido pela adoção de
“incentivos adequados” (redução de pre-
ços relativos), capazes de estimular a am-
pliação do uso de fertilizantes e outros
insumos e a mecanização, possibilitando
uma expressiva elevação da produção por
área e da área cultivada por pessoa.17
Embora a performance da agri-
cultura seja explicitamente vinculada à
questão da ampliação de mercado reque-
rida pelo desejado crescimento acelerado,
existe outra razão, em tese mais plausível,
para o tratamento que lhe foi dispensado
na nova estratégia. A experiência de de-
senvolvimento econômico do Brasil mos-
trava que as importações eram elásticas
ao crescimento do produto, de forma
que um adequado dinamismo das expor-
tações era crucial para evitar que o cres-
cimento acelerado fosse abortado pelo es-
trangulamento externo. Com efeito, a meta
de crescimento das exportações agrícolas
reflete precisamente o ritmo esperado de
importações decorrente do crescimento
do PIB a 9,0% a. a.18
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici64
16 Programa da Política
Econômica do Governo: 15.
Ver também o artigo citado
de Viacava.
17 Segundo o Programa, a
evidência de outros países
indicava ser muito alta a
elasticidade-preço do consumo
de fertilizantes; no caso do
trator, o documento apóia-se em
estimativas sinalizando um
aumento de 16% na sua
utilização para uma queda de
10% do seu preço real.
Ver também Delfim Netto,
entrevista a Mundo Econômico,
jan. 1970.
18 Ver Delfim Netto, “É Preciso
Exportar Mais Para Acelerar o
Ritmo do Progresso”, in Mundo
Econômico, set. 1970 – aí ele,
ironicamente, conclui: “E
aqueles que acreditaram ser
possível realizar o
desenvolvimento sem a
expansão das exportações
tiveram amargas desilusões ao
verificar muito rapidamente que
isso era impossível. Se nós
tivéssemos tentado alcançar as
altas taxas de desenvolvimento
sem simultaneamente nos
termos preparado para agredir o
comércio exterior, teríamos
caminhado para um tipo de
endividamento que acabaria por
inibir o próprio
desenvolvimento”. Em outra
oportunidade Delfim advertira:
“O gargalo do desenvolvimento
brasileiro, na medida em que o
desejarmos, será a capacidade
para importar”. – “O
Desenvolvimento e o Comércio
Exterior”, in Revista de Finanças
Públicas, ago. 1968. Ver também:
José Flávio Pécora, secretário-
geral do Ministério da Fazenda,
“Perspectivas das Exportações
Brasileiras”, in Revista de Finanças
Públicas, jan. 1970; Carlos
Viacava, artigo citado.
A retórica do modelo agrícola-ex-
portador pode levar um observador desa-
tento à conclusão de que a nova estratégia
configurava um retrocesso, um retorno à
época pré-industrial. Nada mais distante
da realidade, porém. Sem dúvida repre-
sentou um afastamento (no mínimo uma
desconfiança pronunciada) de quaisquer
teses pró-industrialização conforme culti-
vadas no Planejamento; ao mesmo tempo,
a política econômica seria acionada para
promover o crescimento da diversificada
indústria já existente no País.
A expansão da agricultura e das ex-
portações tinha justamente o papel de
criar as condições para uma forte expan-
são industrial (a meta estabelecida inicial-
mente foi de 10,5% a. a.). Como se an-
tecipassem àquela possível objeção, os
artífices da nova estratégia lembravam:
É necessário ressaltar que tal estratégia só
é possível porque o País dispõe, hoje, de
uma estrutura industrial suficientemente
ampla e diversificada. Não houvesse essa
condição, a estratégia proposta poderia
conduzir a uma forte concentração da eco-
nomia na agricultura. O estímulo às ativi-
dades agrícolas na fase presente atuará
como um dos elementos de dinamização da
demanda interna de produtos manufatu-
rados e, como tal, estimulará ainda mais o
crescimento industrial (Programa: 12).19
Uma expansão industrial da or-
dem pretendida suscitava naturalmente o
receio de se mostrar irrealista em face da
magnitude dos investimentos requeridos.
A aceleração dos investimentos era evi-
dentemente uma pré-condição da sus-
tentação do desenvolvimento mais rápi-
do – e a estratégia desenhada identificava
o caminho da ampliação de mercado ca-
paz de induzir as decisões privadas de in-
vestimento. As ambições traçadas eram,
sim, viáveis com base em uma análise
mais próxima do mundo real: esta suge-
ria que o volume de investimento reque-
rido, na verdade, não seria tão vultoso
quanto o imaginado nas avaliações mais
superficiais. Em primeiro lugar, reconhe-
cia-se a existência de “margens bastante
amplas” de capacidade ociosa na indústria,
embora distribuída desigualmente entre os
diferentes setores (a título de exemplo: a
indústria automobilística e de autopeças
experimenta acentuado desaquecimento
no segundo semestre de 1969).20 Em se-
gundo lugar, o estoque de capital herda-
do da industrialização por substituição
de importações conferia, localizadamen-
te, certa elasticidade à oferta, tendo em
vista o excesso de capacidade criado em
alguns setores. E o próprio conceito de
capacidade é certamente flexível, predo-
minando no Brasil o seu cálculo em ter-
José Pedro Macarini 65
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
19 Delfim Netto, em
conferência no Instituto dos
Advogados de Porto Alegre,
esclareceria: “Algumas pessoas
acreditam que esta ênfase
extraordinária à agricultura
representa uma diminuição da
ênfase na indústria. É
exatamente o oposto. A
experiência dos anos 60
mostrou que não podíamos
crescer a não ser com maior
equilíbrio. Que não podíamos
crescer deixando a agricultura
retardada. Que não
poderíamos crescer sem criar
um mercado interno para que
essa indústria se debruçasse
por todo o Brasil e se
preparasse depois para invadir
os outros mercados. A
estratégia, portanto, quando
dá grande força, grande vigor
à política agrícola e à política
de exportação é porque busca
o equilíbrio dentro do
desequilíbrio”. –
“Desenvolvimento com
liberdade”, in O Estado de S.
Paulo, 14/8/70.
20 Ver APEC, Carta Mensal:
12/11/69, p. 1 e 12/01/70,
p. 2; Banas, 8/12/69, p. 13.
mos da utilização de um só turno de tra-
balho. Por tudo isso, estima-se viável a
meta de expansão postulada:
Havendo possibilidades de parte do cresci-
mento da produção (algo como 2 a 3% ao
ano) ser realizado pelo aproveitamento da
capacidade hoje não utilizada, o cresci-
mento necessário da capacidade produtiva
será inferior à média dos últimos vinte
anos, o que aumenta a convicção de que a
expansão exigida poderá ser realizada
(Programa: 20).21
E nesse sentido são arrolados al-
guns incentivos à “utilização intensiva da
capacidade instalada”:
a. redução dos encargos previdenciários e
demais itens da legislação trabalhista nos
acréscimos de turnos de trabalho;
b. diminuição dos encargos tributáriosso-
bre os acréscimos de produção provocados
pelos turnos adicionais;
c. redução da tarifa para os consumos de
energia elétrica industrial nos períodos no-
turnos, fora dos atuais picos de demanda;
d. aceleração da depreciação, vinculada à uti-
lização de turnos adicionais (Programa: 30-31).
A componente industrial da estra-
tégia tinha também outra faceta, de na-
tureza qualitativa. Tendo em vista que
o processo de industrialização do pós-
guerra deixou como herança negativa uma
estrutura caracterizada por baixo grau de
eficiência, a busca de sua correção impu-
nha-se como uma necessidade para o
êxito da nova orientação decididamente
voltada à integração na economia inter-
nacional. Postula-se, assim, uma mudan-
ça de perspectiva, de modo a reconhecer
estar ultrapassada a fase de indústria nas-
cente, devendo-se, pois, ingressar em uma
nova fase “cuja característica básica deve
necessariamente estar ligada à obtenção
de níveis de eficiência iguais aos padrões
internacionais”. Isso implica uma política
de importações “relativamente liberal”, an-
tecipando-se uma “cuidadosa redução ta-
rifária” com o objetivo de intensificar a
concorrência naqueles setores de maior
ineficiência. E igualmente alguma mar-
gem para substituição de importações por-
ventura ainda existente estaria sujeita à
condição de se fazer “a níveis de eficiência
internacional” (Programa: 20-21).
Um crescimento econômico co-
mo o pretendido exigiria certa taxa de
poupança: esta é estimada em 20 a 22%
do produto, sendo 1,5 a 2% a esperada
contribuição da poupança externa (uma
“insignificância”, razão pela qual não de-
veria “despertar temores ou animosida-
des” – mas, ainda assim, “um substancial
auxílio, na margem”). A possível dificulda-
de para a sua mobilização decorria, so-
bretudo, da necessidade imperiosa de asse-
gurar expressiva poupança pública para
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici66
21 A elasticidade da oferta
refletiria também um
sobredimensionamento de
linhas ou seções das fábricas:
ver a entrevista de Delfim
Netto a Mundo Econômico, jan.
1970. José Flávio Pécora
também chamaria a atenção
sobre esse ponto: “Algumas
vezes, com pequenos
investimentos adicionais,
pode-se operar mais
intensamente conjuntos ou
máquinas subutilizados que
não estejam corretamente
dimensionados com o restante
das instalações fabris”. –
“Perspectivas das Exportações
Brasileiras”, in Revista de
Finanças Públicas, jan. 1970.
viabilizar a expansão do investimento pú-
blico (do contrário, este seria travado ou
implicaria elevação da carga tributária,
em ambos os casos desestimulando o in-
vestimento privado e frustrando as ambi-
ções de crescimento). Para tal, contava-se
com a possibilidade de manter estáveis as
despesas reais de custeio e as transferên-
cias: neste último caso, reconhecia-se que
“certamente será um problema político
importante” – mas tudo dependeria da
“vontade política do governo”.
Um último ponto merece ser des-
tacado. A estratégia delfiniana se caracte-
rizava por uma ousada aposta no cresci-
mento, o que pareceria uma arriscada
incursão voluntarista aos olhos dos pla-
nejadores mais cautelosos. Estes, porém,
cometeriam um erro em seus exercícios
de planejamento ao supor, incorretamen-
te, uma relação produto-capital fixa. Essa
suposição é negada pela evidência empí-
rica, a qual mostra um comportamento
que reforça a crença na viabilidade do
crescimento acelerado:
A relação produto/capital tende a corre-
lacionar-se positivamente com a taxa de
crescimento do produto, o que significa que
os países em rápida expansão encontram
formas de aumentar a produtividade mé-
dia do capital (Programa: 25).22
3_ A execução da política
econômica: 1970-1973
3.1_ A administração do “milagre”:
1970-1971
O objetivo de crescimento acelerado –
note-se, num ritmo jamais aventado até
então pelo regime – desfruta de explícita
primazia desde o início do governo Mé-
dici. A política econômica será intensa-
mente acionada com esse propósito. A
estabilidade dos preços, a primeira ban-
deira desfraldada em 1964 (e retomada
com vigor logo após a edição do AI-5), é
preservada como passagem retórica, even-
tualmente até como compromisso em
1972-1973, mas deixa de ser vista como a
condição mesma do desenvolvimento –
mudando, pois, a hierarquia de priorida-
des da política econômica. A evolução da
conjuntura o comprova, sem deixar mar-
gem para dúvida.23
O ano de 1970 iniciou-se trazendo
sinais incômodos em matéria de inflação:
de janeiro a março, enquanto o ICV acu-
mulou alta de 4,4% (contra 5,6% em
igual período de 1969), o IPA registrou
forte aceleração, atingindo 5,5% (oferta
global – 2,5% em 1969) e 4,7% (disponi-
bilidade interna – 2,3% em 1969). A pers-
pectiva de manutenção do patamar infla-
José Pedro Macarini 67
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
22 E num tom explicitamente
crítico: “É com base em
cálculos dessa natureza
(utilizando uma relação
produto/capital fixa) que
freqüentemente se levantam
objeções à possibilidade de
crescimento mais rápido da
economia. É claro que a
objeção é inconsistente, uma
vez que todos os estudos
empíricos têm mostrado que a
relação entre a taxa de
crescimento do produto e taxa
de formação de poupança é
muito mais tênue do que se
supunha.” (Programa, p. 24).
23 Em discurso no Conselho
para a América Latina, em
Nova York, Delfim anunciou:
“A retomada do ritmo de
desenvolvimento, o virtual
controle da inflação e a
recomposição da situação
externa deixam patente a
melhoria verdadeiramente
dramática das perspectivas
econômicas do Brasil. O
Governo do Presidente
Médici lança-se agora num
ousado programa de
aceleração substancial da taxa
de crescimento econômico ...”
– O Estado de S. Paulo,
9/12/69, e Revista de
Finanças Públicas, jan. 1970.
cionário suscitava inquietação em certos
setores: volta e meia, pleitos em favor da
adoção de um tratamento de choque se-
riam veiculados. Delfim os rejeitou suces-
sivas vezes ao longo do ano.24
Por vezes, a existência de um de-
bate é revelada pelo próprio Delfim Net-
to – por exemplo, ao referir-se a uma
“crise de fé” no gradualismo em curso,
envolvendo “uma parcela da sociedade”,
um autêntico “frisson sobre a inflação”.
Delfim, escolhido “Homem de Visão de
1970”, responde com indisfarçável rispi-
dez. O tratamento de choque preconiza-
do, tendo em vista o seu custo, não pas-
sa de uma “alegre irresponsabilidade”,
uma “aventura”. Ainda mais porque to-
talmente desnecessário: a correção mo-
netária, as minidesvalorizações cambiais
e a liberação (sic) da taxa de juros consti-
tuem “mecanismos de compensação que
eliminaram os efeitos da inflação antes
de eliminar a inflação propriamente di-
ta”. O gradualismo é reafirmado com
plena convicção:
É por isso que nós estamos podendo crescer e
simultaneamente reduzir a inflação. Isso
para alguns economistas parece impossível,
porque eles estão presos no esqueminha que
está no livro. Dentro do esqueminha que
está no livro não é possível mesmo.
Mas o fato é que “a realidade é um pouco
mais rica do que a teoria”, cabendo reco-
nhecer que no Brasil “estamos diante de
uma experiência nova” – capaz de “justi-
ficar, sob ângulo inteiramente diferente,
a política gradualista”. Esta, convém lem-
brar, “não significa que se considere me-
nos importante a eliminação do processo
inflacionário”; mas, decididamente, “sig-
nifica que quando temos de trocar me-
nos 5% de inflação com mais 2% de pro-
duto, ficamos com o produto”.25
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici68
24 A favor do choque: APEC,
Carta Mensal, 12/4/70
(Apêndice) e 12/5/70, p. 4;
editorial de O Estado de S.
Paulo, 15/1/70; artigos de
Campos e Simonsen no Jornal
do Brasil, 20/3/70. Mensagens
de Delfim Netto: “Não se deve
esperar que a política de
combate à inflação, no estágio
em que se encontra, provoque
uma redução na produção
industrial. [...] nossa
expectativa é que ocorra
exatamenteo contrário, uma
vez que agora as pressões de
demanda são relativamente
menores do que as pressões de
custo”. – Banas, 1/6/70. p. 11.
“Não temos o menor interesse
de impor um tratamento de
choque à sociedade brasileira.
Não precisamos [...] de uma
política mais violenta, no
momento em que o setor
privado retomou sua confiança
[...] Todavia, não sei quando a
inflação será debelada, pois ela
não depende do Ministro da
Fazenda [...] Ela depende de
todos nós”. – depoimento no
Senado, in Jornal da Tarde,
17/7/70. No início do ano,
Delfim havia acenado com um
gradualismo efetivo, sugerindo
uma redução da inflação para
um nível inferior a 18% – ver
Revista de Finanças Públicas, fev.
1970, p. 42.
25 As citações foram extraídas
livremente dos artigos “A alegria
da irresponsabilidade”, in Jornal
da Tarde, 15/10/70; “Experiência
nova no Brasil”, in Economia
Paulista, dez. 1970; e do seu
discurso reproduzido in Visão,
7/11/70. Ver também a nota de
apoio “total, completo e
irrestrito” à política delfiniana
por parte da ADECIF, in APEC,
Carta Mensal, 15/11/70, p. 18.
O gradualismo da política econô-
mica do “milagre” tinha interessante im-
plicação, merecedora de registro. A op-
ção pela convivência com uma inflação
sob controle, neutralizada em seus efei-
tos, indicava a preservação indefinida da
correção monetária, originalmente insti-
tuída com caráter provisório. Um culto
às virtudes da correção monetária ganha-
ria força durante esses anos. Delfim Netto
referir-se-ia a ela como um “extraordiná-
rio instrumento, agora objeto da burrice
nacional”; e daria o seu veredicto:
Como todo instrumento, tem seus lados po-
sitivos e negativos. Deve ser julgado do pon-
to de vista da soma algébrica; deste ponto
de vista, considero o resultado positivo.
Reis Velloso seria mais explícito:
Nunca devemos abrir mão do princípio da
correção monetária, o que não quer dizer
que o sistema não possa sofrer algumas re-
formas. [...] Poderíamos aplicar um fator
de correção da correção monetária; por
exemplo, estabelecer que somente 90 a
95% da correção seja aplicada.26
A marca distintiva da política mone-
tária durante o “milagre” foi o seu caráter
expansionista. Os pleitos pró-choque pre-
tendiam reverter esse comportamento; a
defesa do gradualismo sintetizava a recu-
sa em implementar qualquer restrição de
liquidez que pudesse comprometer o rit-
mo de crescimento almejado. Contudo,
pelo menos em 1970, a sua execução re-
fletiu certa cautela: a expansão real da
oferta de moeda não passou de 6%, de
longe o desempenho mais modesto ob-
servado de 1967 a 1973. Mas convém não
perder de vista o seguinte:
1. ela foi razoavelmente bem dosada
ao longo do ano (contrastando
com a experiência de 1969);
2. nota-se um uso intenso dos meca-
nismos de crédito seletivo;
3. sobretudo, a política fiscal foi ma-
nipulada com desenvoltura, vi-
sando deliberadamente ampliar a
disponibilidade de liquidez para
as empresas.
Vejamos as medidas mais signifi-
cativas nessa área, todas da primeira me-
tade do governo Médici.
3.1.1_Política monetária: crédito e juro
A Resolução 130, de 27/1/70, reduziu
de 27% para 25% o depósito compulsó-
rio, criando uma faixa especial de financi-
amento destinada a pequenas e médias
empresas. Para desfrutarem dessa redu-
ção, os bancos deveriam completar com
um terço de recursos próprios o volume
de financiamento previsto. A taxa de ju-
ros foi fixada em 1,5% a. m., e o prazo da
José Pedro Macarini 69
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
26 Visão, 29/3/71, p. 96 e
100. Ver também o artigo de
Delfim no Jornal da Tarde,
15/10/70.
operação, em doze meses; dado o seu ca-
ráter permanente, a faixa especial abria a
possibilidade de rotação dos créditos.27
A Resolução 134, de 18/2/70,
reduziu em 0,2% a. m. as taxas de juros
dos bancos comerciais, agora fixadas em
1,6% a. m. nas operações até 60 dias e
1,8% a. m. nas de prazo superior. Outra
Resolução, de nº 136, estabeleceu um redu-
tor de 10% sobre as taxas cobradas pelos
bancos de investimento em suas opera-
ções ativas. Já as financeiras foram pou-
padas, beneficiadas pela redução de 3%
para 2% da taxa de colocação das letras
de câmbio (Resolução 137).
Essas medidas certamente perse-
guiam o objetivo de melhoria das condi-
ções de crédito – não há por que duvidar
da intenção manifesta da política econô-
mica de trazer as taxas de juros reais para
níveis que “não ultrapassem 8 a 10% ao
ano”.28 Mas não deve passar despercebi-
do que os grandes bancos já praticavam
a taxa de 1,6% a. m. (desde a Resolução
114, de 1969) – e agora seriam compen-
sados com alguns benefícios adicionais, a
saber: elevação de 50 para 55% da parce-
la remunerada em ORTN do compulsó-
rio, liberação da taxa de juros nas opera-
ções de crédito pessoal (até então fixadas
em 2,2% a. m.), bem como eliminação de
restrições quanto a prazos (vista como
uma abertura para a sua entrada no
CDC). É possível que apenas os bancos
médios e pequenos, e os bancos de inves-
timento, tivessem de ajustar seus custos
para enfrentar o cenário de taxas de juros
mais baixas – indiretamente, as decisões
do BC favoreciam o movimento de con-
centração bancária e centralização finan-
ceira, sabidamente políticas promovidas
con amore no período.
3.1.2_ Política fiscal: financiamento
do capital de giro a custo zero
A prática, observada anteriormente em
caráter emergencial, de dilatação dos pra-
zos de recolhimento dos impostos indire-
tos, torna-se permanente a partir de 1970,
contribuindo para a expansão do ritmo de
atividade numa medida difícil de quanti-
ficar, mas cuja importância não deve ser
subestimada. Esse instrumento foi mani-
pulado com alguma seletividade, conce-
dendo prazos máximos para setores debi-
litados ou prioritários (tal foi o caso da
indústria têxtil, aquinhoada com um pra-
zo de 75 dias em jan./70, ampliado para
120 dias no final de maio – quando pas-
sou a beneficiar também as indústrias de
calçados e aço). Para a maioria dos setores
industriais, concedeu-se um prazo de 60
dias (jan./70), ampliado sucessivamente
para 75 dias (maio/70) e, por fim, 90 dias
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici70
27 Ver a nota do Ministério da
Fazenda e declarações de
Delfim: “É óbvio que a taxa
de juros global nunca poderá
ser negativa, mas a setorial,
correspondente aos objetivos
do Governo, pode e deve ser
negativa ...”, in Revista de
Finanças Públicas, fev. 1970,
p. 41-43. Ver também “A
ajuda demorada”, in Veja,
11/2/70, p. 41-42.
28 Ver a entrevista de Delfim
a Mundo Econômico, jan. 1970,
p. 28. Também suas
declarações “Capital de giro e
sistema bancário”, in Revista de
Finanças Públicas, fev. 1970,
p. 2. As taxas de juros cobradas
pelas financeiras e bancos de
investimento estariam em
torno de 37 a 44% a.a. (Visão,
28/2/70, p. 43).
(fev./71). Alguns setores foram excluídos
do benefício, destacando-se os casos de
bebidas, cigarros e veículos.
Com menor abrangência e pro-
fundidade, também o ICM do setor in-
dustrial teve seus prazos de recolhimento
alongados. O convênio do Rio de Janei-
ro, de 15/1/70, reunindo os secretários
estaduais da Fazenda, estipulou um cro-
nograma com esse objetivo. Logo em se-
guida, o Decreto n. 52.389, de 16 de feve-
reiro de 1970, e o Decreto n. 52.462, de 6
de junho de 1970, tornaram compulsóri-
os aqueles prazos dilatados para vários
setores (por exemplo: siderurgia, têxtil e
calçados). Pelo menos São Paulo efetiva-
mente concedeu prazos maiores para o
recolhimento do ICM já em 1970 e nova-
mente em 1971 (em alguns casos, o prazo
fixado chegou a 60 dias).29
3.1.3_ Os fundos PIS/PASEP e a melhoria
das condições de crédito
Em 1970, são instituídos os fundos PIS/
PASEP, refletindo a preocupação oficial
com a injusta distribuição de renda. As
Metas e Bases para a Ação do Governo
identificariam aí um dos “grandes proble-
mas éticos do nosso tempo” – mas expli-
citamente descartavam qualquer “excesso
redistributivista que sacrifique a acelera-
ção da taxa de crescimentonacional”.30 O
Programa de Integração Social foi conce-
bido nesse espírito. É importante obser-
var como foi a sua operacionalização.
Em simultâneo à criação do PIS,
uma resolução do Senado Federal (n. 65,
de 19/8/70) reduziu as alíquotas de IPI e
ICM em 0,5% a. a., de 1971 a 1974. Na
avaliação de Reis Velloso, o fundo seria,
assim, inteiramente financiado via redu-
ção da carga tributária – e ainda propicia-
ria um bônus (a redução gradual do IPI)
na forma de ampliação do capital de giro
próprio das empresas. E o próprio meca-
nismo de recolhimento – defasado de 6
meses – representou disponibilidade de
financiamento do capital de giro a custo
zero para o setor empresarial que não há
que se desprezar. Finalmente, a mobiliza-
José Pedro Macarini 71
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
29 Delfim Netto explica o
sentido dessas medidas:
“Hoje, o IPI, todo ele, é
recolhido a prazos maiores
que os prazos médios de
venda dos setores. Isto é,
nenhuma indústria, ninguém,
em princípio, financia mais o
IPI. O mesmo está
acontecendo com o ICM. Isso
representa uma redução da
busca de capital de giro das
empresas nos bancos e
significa, portanto, uma
redução do custo do dinheiro
para as empresas. É recurso, a
taxa de juro zero, que o
Estado entregou a essas
empresas. [...] São medidas
que estão procurando
controlar, no prazo mais
longo, a taxa de juros”. –
Banas, 16/8/71, p. 8.
30 As citações são das páginas
5 e 6. A revista Veja, de
14/1/70, noticia o debate no
interior do regime acerca
dessa questão e o
compromisso de Médici em
dar uma resposta em breve.
Ver também declarações de
Velloso, in Visão, 28/2/70.
ção desses fundos pela CEF representou
óbvia ampliação da oferta de crédito.31
3.1.4_ Mudanças operacionais na política
monetária
O ano de 1970 é o da implantação do open
market (após uma fase experimental em
1968-1969 utilizando a ORTN com pra-
zo decorrido): o quadro institucional ga-
nhou forma no Decreto-Lei n. 1079, de
29 de janeiro de 1970, e na Resolução
n. 150, de 22 de julho de 1970. Esse aper-
feiçoamento da política monetária, coro-
ando os movimentos anteriores de redu-
ção do desequilíbrio fiscal e a introdução
das minidesvalorizações cambiais (am-
bos pré-condições para a eficácia da polí-
tica monetária), teve outras implicações
não menos importantes.
O open facultaria aos bancos remu-
nerar parte do seu encaixe, desenvolver
as operações interbancárias (negadas le-
galmente, mas cedo institucionalizadas
pela sistemática do “cheque BB”) e proje-
taria possíveis passos futuros (por exem-
plo, redução dos depósitos compulsórios,
tornados um instrumento antiquado)
visando à redução de custos operacio-
nais.32 E naturalmente o open constituiria
uma esfera de valorização dos capitais
em aplicações de curto prazo, numa con-
juntura de alongamento de prazos de re-
colhimento e redução/isenção de impos-
tos, etc. Interessante notar que, já no ato
de nascimento do open, observaram-se al-
gumas deformações reveladoras da sua
potencialidade “para o mal” (carta de re-
compra, fracionamento dos títulos de ele-
vado valor, visando atrair o “pequeno
poupador”), obrigando o Banco Central
a intervir – é o caso, por exemplo, da Cir-
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici72
31 Delfim Netto vincularia o
PIS ao objetivo permanente
de redução das taxas de juros,
pré-condição do crescimento:
“Na medida em que o fundo
vai servir como captação de
recursos que se transformará
em capital de giro das
empresas, ele reduzirá a
demanda de capital de
financiamento por parte
dessas empresas e certamente
vai baixar a taxa de juros. O
mesmo efeito se obteve
quando se ampliou e continua
a se ampliar o prazo do
recolhimento dos impostos.
De forma que tudo está
caminhando para baixar a taxa
de juros. Os empresários
financeiros têm de
compreender que essa é uma
necessidade imperiosa e as
taxas de juros vão ter de
baixar neste país de qualquer
forma. O fundo será apenas
mais um instrumento para a
realização deste objetivo” –
Revista de Finanças Públicas, ago.
1970, p. 2-16. Para um exame
detalhado do PIS, ver Loloian,
1980 (a citação de Velloso
encontra-se na p. 22).
32 Isso foi indicado por
Delfim Netto: “As operações
de mercado aberto são o
substituto eficaz para o velho
sistema de taxas mínimas ou
obrigatórias de depósitos
compulsórios. Estamos
aprendendo a trabalhar com o
open market para poder superar
aquele sistema, extremamente
oneroso para os bancos. [...]
Vai ser um instrumento
extremamente importante no
futuro para controle da
liquidez global do sistema
econômico brasileiro. E vai
ajudar a reduzir muito os
empréstimos compulsórios,
quando chegar o momento
apropriado. Portanto, vai ser
uma operação que reduzirá de
maneira substancial o custo
do sistema bancário.” – Visão,
7/11/70, p. 36-38.
cular 145, de 25/9/70, que buscou coibir
a prática do fracionamento.33
A mudança na sistemática da polí-
tica monetária seria completada pelas Re-
soluções n. 168 e n. 169, de 22 de janeiro
de 1971: a primeira simplificou o redes-
conto de liquidez, convertido em “assis-
tência financeira” do BC, consistindo em
abertura de crédito por prazo indetermi-
nado e o controle sendo exercido via ma-
nipulação dos limites, prazos de utiliza-
ção e taxa de juros; a segunda introduziu
a média quinzenal dos depósitos, no lu-
gar de um dia determinado, como base
de cálculo dos recolhimentos compulsó-
rios devidos pelos bancos comerciais.
3.1.5_ Incentivos às exportações de manufaturados
Como se sabe, desde 1964, a política fis-
cal vinha sendo acionada num crescendo
visando à promoção de exportações. Du-
as medidas merecem destaque. O crédito
prêmio de IPI, introduzido em 1969, foi
habilmente manipulado nos anos seguin-
tes: por exemplo, a Portaria GB-14, de
15 de janeiro de 1970, estabeleceu a pos-
sibilidade de transferência para terceiros,
como pagamento de matérias-primas, em-
balagens, etc., do eventual excedente de
créditos (sendo facultado aos fornecedo-
res utilizar tais créditos para abater o seu
IPI devido); e uma sucessão de portarias
fixariam alíquotas especiais de IPI, váli-
das apenas para cálculo do crédito fiscal
(em alguns casos, alcançando o dobro,
ou mesmo o triplo, da alíquota válida pa-
ra o mercado interno). Em 15 de janeiro
de 1970, o Convênio do Rio de Janeiro
estabeleceu um mecanismo de crédito
prêmio do ICM, semelhante ao IPI.34
3.1.6_ Apoio “estratégico” à agricultura:
incentivos à elevação de produtividade
O governo Médici elegeu a agricultura
sua prioridade. A retórica da política eco-
nômica identificará 1970 ao “ano da agri-
José Pedro Macarini 73
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
33 Ver matéria do Jornal da
Tarde, 20/10/70, informando
que um grande banco paulista
vinha operando com garantia
de recompra. Ver também de
R. Appy, “Open market ainda
não deslanchou”, in Economia
Paulista, set./out. 1970.
34 Essa política adquiriu tal
enraizamento que, em 1972,
durante uma exortação aos
exportadores, Delfim se
atreveu a proclamar: “[...] não
creio que ninguém possa
alterar esse processo de
incentivos que foi criado. Não
há a menor possibilidade que
isto seja mudado no futuro
visível, de forma que os
senhores podem tratar de
fazer seus investimentos para
a exportação com a maior
tranqüilidade. Não há força
material capaz de mudar esta
orientação do governo”. Nem
mesmo o risco de retaliações
seria capaz de fazer recuar
essa política, pois “ [...] no dia
em que objetarem, já temos
um sistema alternativo pronto.
As contribuições (como
Fundo de Garantia, Funrural,
etc.) pesam em 76% sobre a
folha salarial. Transformam-se
essas contribuições em
impostos sobre vendas ou em
IPI. Assim, no momento em
que apresentassem objeções
ao mecanismo de créditos, se
poderia dobrar o valor do IPI,
recolher o IPI , devolver ao
INPS a sua parte e dar como
crédito de IPI a diferença.
Ficaria tudo na mesma, mas as
regras estariam satisfeitas.” –
Visão, 28/8/72, p. 424.
cultura”,tal o tratamento a ela dispensa-
do. A retórica justifica-se, tendo em vista
o conjunto de incentivos dados ao setor.
Incentivos esses visando à ampliação da
mecanização e do uso de insumos moder-
nos, consolidando a sua transformação em
agronegócio.
Assim, cabe destacar:
1. isenção de IPI e de ICM sobre tra-
tores e demais máquinas agrícolas;
2. isenção de ICM sobre os insumos
utilizados na produção de adu-
bos e fertilizantes;
3. incentivo fiscal à compra de trato-
res e máquinas agrícolas, fertili-
zantes, defensivos, etc. (tratados
como investimentos, permitindo
abater até 80% do rendimento lí-
quido sujeito ao IR);
4. redução do IR devido pela agricul-
tura (limitando o rendimento tri-
butável a 10% em 1970 e 25%
em 1971 do rendimento líquido
após a dedução dos investimen-
tos realizados);
5. isenção de IPI sobre matérias-pri-
mas, produtos intermediários e
material de embalagem utilizados
pela indústria de máquinas e im-
plementos agrícolas;
6. isenção de ICM sobre motores e
engrenagens utilizados na fabri-
cação de tratores.35
A isso tudo some-se a farta dispo-
nibilidade de crédito, a juros favorecidos.
O volume de financiamento de tratores,
em termos reais, realizado pelo Banco do
Brasil a uma taxa de juros fixa em 15%
a. a., após sofrer uma retração em 1969,
cresce 16,5% em 1970 e, em seguida, pra-
ticamente triplica até 1973. O volume de
crédito para fertilizantes, em termos reais,
após sofrer retração em 1969, cresce aci-
ma de 150% em 1970 e acima de 200%
em 1971: em 1973, alcançando um valor
4,5 vezes maior que o de 1970, já repre-
sentava 14% do volume total do crédito
rural (em 1969 apenas 3,6%). Note-se
que, pelo Fundag, a taxa de juros nessa
modalidade permaneceu fixa em 7% a. a.
E o crédito rural total, por sua vez, cresce
18,8%, em termos reais, em 1970, e sim-
plesmente dobra até 1973.36
A sua política econômica foi uma
vez descrita por Delfim Netto como uma
“política de libertação do empresário”:
ao libertá-lo, o governo tornava viável o
desenvolvimento com base na agricul-
tura e nas exportações.
A resposta da agricultura aos estímulos é o
que se pode dizer uma experiência crítica, é
a resposta definitiva àqueles que acredita-
vam que o sistema era incapaz de atender
aos estímulos do lucro. Nós temos uma coi-
sa extremamente rara e que talvez nos dis-
tinga de todo o mundo subdesenvolvido: o
fator mais escasso que é o empresário.
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici74
35 Essa última medida é de
abril/71 e propiciaria nova
redução no preço final do
trator, estimada em 3 a 4% –
ver Exame, set. 1971, p. 212.
As demais datam do primeiro
ano do governo Médici.
Referências a essas diferentes
medidas localizam-se em
Revista de Finanças Públicas, jan.
1970, p. 40; fev. 1970, p. 45 e
47; jul. 1970, p. 50; out. 1970,
p. 47. Ver também o
telegrama (de “júbilo”)
enviado ao presidente e seus
ministros pela Federação da
Agricultura do Estado de São
Paulo, in O Estado de S. Paulo,
24/1/70.
36 Barros (1980):127; IPT
(1981):II-60.
Com efeito, no início de 1970,
Delfim antecipava que “a produção agrí-
cola baterá todos os recordes”.37 O mau
desempenho da cultura de café frustrou
essa previsão, mas não abalou a certeza
da futura resposta do empresariado agrí-
cola. No final do ano, Delfim reafirma-
ria sua crença:
Desde a posse do Presidente foi tomada
uma série de medidas, todas na direção da
expansão da produtividade da agricultu-
ra. Acho que abril ou maio de 1971 vai
revelar que esse esforço extraordinário ob-
teve uma resposta espantosa do setor agrí-
cola brasileiro. Não tenho dúvidas de que
1971 deve revelar a maior taxa de cresci-
mento da agricultura de que se tem notícia
na história deste país.38
De fato, a agropecuária cresceu
11,4% em 1971 (e a lavoura cerca de
14,8%) – espetacular, sem dúvida, porém
uma performance que não se repetiria nem
em 1972 (4,1%), nem em 1973 (3,5%).
Não obstante, o auge cíclico prosseguiu vi-
gorosamente; como explicá-lo a partir da
“estratégia agrícola-exportadora”?39
Mas é certo que essa política im-
pulsionou com força a indústria de trato-
res, a qual operava com 50% de capacidade
ociosa em 1969; a expansão da produção
alcança sucessivamente marcas impressi-
onantes: 47% em 1970, 57% em 1971,
32% em 1972, induzindo um estado eu-
fórico das expectativas. Com isso, o se-
tor, estagnado desde a conclusão de seu
primeiro ciclo de investimentos em 1962,
voltaria a investir, duplicando a capacidade
instalada durante o “milagre”. No caso
dos fertilizantes, a produção de nitroge-
nados cresce aos saltos, multiplicando-se
por oito entre 1970 e 1974 (5,5 entre
1970 e 1973), enquanto a de fosfatados
cresce acima de 150% no período (prati-
camente duplica de 1970 a 1973). Em
ambos os tipos, contudo, o peso das im-
portações era superior a 50% do consu-
mo – já os potássicos eram importados
na sua totalidade; assim, no período ob-
servam-se taxas elevadíssimas de cresci-
mento das importações (à exceção de
1973, quando a conjuntura agitada vivida
pelo mercado afetou as importações).40
3.1.7_ Política industrial: Plano Siderúrgico
Nacional, incentivos ao investimento
e à indústria de bens de capital
A aceleração do crescimento tornaria evi-
dente o atraso na expansão de capacida-
de da siderurgia. O setor fora prejudica-
do não só pela desaceleração industrial
pós-1962, mas também por fatores vá-
rios, como preços contidos que afetavam
a capacidade de autofinanciamento (so-
bretudo durante o PAEG); redução de
tarifas de importação em 1966, e, nova-
mente em 1967, projeções pessimistas
da necessidade futura de aço (relatório
José Pedro Macarini 75
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
37 Entrevista coletiva na
recém-formada Associação
dos Jornalistas de Economia e
Finanças, in Revista de Finanças
Públicas, fev. 1970, p. 43 e mar.
1970, p. 3. Na linha do
modelo agrícola-exportador,
ele diria então: “Uma
expansão da renda agrícola,
como a que vai se verificar
neste ano, tende a produzir
uma expansão extraordinária
da demanda de bens
industriais. Estão, portanto,
criadas as condições
necessárias para a realização
do desenvolvimento”.
38 Visão, 7/11/70. Ele
reafirmaria essa expectativa
em entrevista à revista
Progresso, mar./abr. 1971.
39 Os números são extraídos
de “Agricultura num contexto
de recessão”, Paulo Rabello de
Castro e Renato Ticoulat
Filho, in O Estado de S. Paulo,
27/12/81.
40 Para um exame
pormenorizado, ver
CEFER-IPT (1980);
os dados da indústria de
tratores são de Barros (1980)
e Banas, 10/9/73.
Booz-Allen). Dessa forma, até o governo
Médici não tivera início qualquer programa
de investimento antecipando um possível
ponto de estrangulamento futuro. Com is-
so, acompanhando o crescimento acelera-
do, as importações de aço em relação ao
consumo aparente ingressariam em uma
trajetória ameaçadora: 12,4% em 1969,
14,5% em 1970, 21,9% em 1971. O Plano
Siderúrgico Nacional tornava-se, então,
inadiável – e veio inteiramente permeado
do clima Brasil Grande Potência, caracte-
rístico do período, ao fixar, em dez./70, a
meta de quadruplicar a produção de aço
em uma década, a qual deveria alcançar 20
milhões de toneladas em 1980.41
Por outro lado, a continuidade do
crescimento acelerado dependia evidente-
mente da concretização das decisões de in-
vestimento do setor privado. O crescimen-
to do investimento público e do setor
produtivo estatal – a taxas anuais de 12,2 e
27,7%, respectivamente, em 1970-1973 –
sem dúvida teve grande importância, dado
o seu efeito indutor sobre as decisões pri-
vadas. Mas não deve ser negligenciado
o papel da política econômica, cultivando
um otimismo sem restrições (como se pre-
tendesse atiçar o animal spirits do empresari-
ado) e, sobretudo, distribuindo incentivos
(no fundo, respostas às solicitações da in-
dústria). Por exemplo, Reis Velloso de-
mandaria dos empresários uma atitude
mais arrojada, fazendo hoje o que talvez
pensassem fazer apenas amanhã:
[...] numa prova de confiança em si mes-
ma ena Nação, deve a indústria fazer
agora os investimentos e proceder à am-
pliação de instalações que pretenderia fa-
zer daqui a um, dois ou três anos. Ante-
cipar os investimentos é uma necessidade
básica para o Brasil.42
Os incentivos seriam ampliados –
e, sobretudo, eliminariam a discrimi-
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici76
41 Segundo Pratini de Moraes,
da Indústria e Comércio: “Se a
produção siderúrgica fosse
mantida nos níveis atuais – 5,4
milhões de toneladas anuais –,
em poucos anos o processo
de desenvolvimento poderia
ser comprometido, pela nossa
crescente dependência das
importações”. – “A Siderurgia
e o Desenvolvimento”, in
Segurança e Desenvolvimento
n. 154, 1973.
42 Pronunciamento no
banquete anual da indústria
elétrica e eletrônica: “Governo
só apoiará indústria eficiente”,
O Estado de S. Paulo,
12/12/70. Velloso renovaria a
exortação em entrevista ao
Correio da Manhã, 25/1/71.
Delfim, por sua vez, quando
dissertava sobre a “libertação
do empresário” promovida
pela política econômica, tinha
presente que o
desenvolvimento “é mais uma
questão de mobilização”, “é
basicamente obra do setor
privado” – não poupando
esforços, pois, para promover
o seu engajamento, a sua
“crença” (ele diria mesmo:
“Precisamos acreditar que o
desenvolvimento é possível”).
Ver suas declarações na
Associação dos Jornalistas de
Economia e Finanças, in
Revista de Finanças Públicas, fev.
1970, p. 43. Para uma análise
do investimento do setor
público, ver Dain (1979).
nação diante das importações até então
sofrida pela indústria nacional de bens
de capital – através dos Decretos-Leis
n. 1.136 e n. 1.137, Decreto n. 67.707 e Por-
taria GB-334, todos de 7 de dezembro de
1970, estabelecendo: isenção do imposto
de importação, do IPI e do ICM, quando
da importação de equipamentos, máqui-
nas, aparelhos e instrumentos, acessórios
e ferramentas, sem similar nacional, bem
como de partes complementares à produ-
ção nacional; crédito do IPI ao compra-
dor de equipamento nacional; deprecia-
ção acelerada sobre os bens de fabrica-
ção nacional, para efeito de apuração do
imposto de renda. E o Convênio do Rio
de Janeiro, de 12 de janeiro de 1971, con-
cederia também a isenção de ICM à in-
dústria de bens de capital; no caso de
São Paulo, essa decisão foi imediatamen-
te ratificada através do Decreto estadual
n. 52.656, de 15 de janeiro de 1971. Por
fim, via BNDE-Finame e CEF-BB (mo-
bilizando os fundos PIS/PASEP), seria
ofertado o indispensável crédito de lon-
go prazo, condição essencial da competi-
tividade da indústria de bens de capital
(e uma antiga reivindicação). Não sem
razão, Delfim comunicaria à FIESP: “Ter-
minada a execução do programa destina-
do à agricultura, o governo iniciou a for-
mulação do ano da indústria”.43
3.2_ A conjuntura 1972-1973
e as contradições da política
econômica do “milagre”
A política econômica parece ter desfru-
tado ao longo de 1970-1971 uma “lua
de mel” prolongada: distribuição genero-
sa de incentivos (à agricultura, aos expor-
tadores, à indústria, aos bancos); colheita
farta de crescimento econômico (incluin-
do, em 1971, a longamente aguardada su-
persafra agrícola), inflação estabilizada,
aumento progressivo das reservas inter-
nacionais – nem mesmo o fiasco que aco-
meteu a Bolsa de Valores em 1971 foi ca-
paz de empanar o brilho da administração
econômico-financeira. Em 1972-1973,
combinam-se uma conjuntura econômi-
ca internacional e doméstica de intenso
crescimento, geradora de dificuldades pa-
ra a condução da política econômica; es-
ta, ademais, explicita em sua formulação
ambições que aprofundam as dificulda-
des. É conveniente, pois, tratar em se-
parado esse subperíodo, considerando-o
uma nova fase (terminal) da política eco-
nômica do “milagre” – na medida em
que se verificou a sobreposição de algu-
mas condicionantes novas.
Em primeiro lugar, há que se ter
presente os efeitos do boom sincronizado
das economias capitalistas desenvolvidas,
observado nesses anos. O início da dé-
cada fora marcado pela recessão nor-
José Pedro Macarini 77
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
43 Ver O Estado de S. Paulo,
23/1/71. Na CNI, Delfim
comentara que a nova política
industrial “será um passo
decisivo para que nos
tornemos uma grande
potência industrial”; “o ano de
1971 está destinado a
tornar-se o grande ano da
indústria de base” – Revista de
Finanças Públicas, nov. 1970,
p. 44-45. O otimismo de
Delfim era, na verdade, ainda
maior, vaticinando: “ [...]
lograremos fomentar o último
setor que faltava amparar
dentro da economia brasileira:
o das máquinas que produzem
máquinas. Com isso, a
economia brasileira adquirirá
um nível de maturidade
insuspeitada nos últimos anos.
Estaremos realmente em
condições de alcançar um grau
de desenvolvimento acelerado
e auto-suficiente.” – entrevista
à revista Progresso, mar./abr.
1971. Para exemplos da
posição da indústria acerca do
crédito de longo prazo, ver,
por exemplo, as entrevistas de
Estevam Faraone, da Romi,
in Banas 13/4/70; e Manoel da
Costa Santos, da ABINEE,
in Banas, 24/8/70.
te-americana, enquanto as demais econo-
mias desenvolvidas apresentavam com-
portamentos diferenciados (Japão, França
e Alemanha mantiveram um elevado cres-
cimento; Canadá, Reino Unido e Itália
exibiram, quando muito, crescimento ras-
tejante). A recuperação dos EUA teve
início durante 1971, evoluindo para taxas
reais de crescimento do PNB da ordem
de 5,7% em 1972 e 5,5% em 1973 (o
crescimento mais vigoroso desde 1966).
As demais economias desenvolvidas tam-
bém cresceram e a taxas ainda maiores –
até mesmo o Reino Unido conseguiu,
em 1973, sair do seu crônico estado de
crescimento rastejante, exibindo taxa de
crescimento próxima de 6%. Um deter-
minante chave dessa conjuntura foi o
manejo da política monetária pelo FED,
caracterizado por incomum flexibilidade
(oferta abundante de liquidez e baixas ta-
xas de juros). A repercussão se fez em vá-
rias direções: o comércio mundial atingiu
os maiores índices de expansão de todo o
pós-guerra; o mercado de euromoedas,
que vinha há anos em uma trajetória ver-
tiginosa, simplesmente duplica entre 1971
e 1973, tornando clara a conjuntura de
sobreliquidez internacional; e os preços
internacionais dos produtos primários des-
frutaram entre 1972 e 1974 o seu maior
boom desde o pós-guerra, superior mes-
mo ao ocorrido durante a Guerra da Co-
réia no início dos anos 50. Este último
ponto merece ser destacado. O boom sin-
cronizado do capitalismo avançado inten-
sificou a demanda mundial por alimentos
e matérias-primas industriais (um merca-
do caracterizado pela dominância de pre-
ços flex), tendência reforçada por movi-
mentos especulativos desatados pela alta
de preços num ambiente de juros reduzi-
dos. Com efeito, os preços dos alimentos
crescem 54,0% em 1972 e 43,2% em
1973, enquanto os preços das matérias-
primas industriais exibem alta de 29,4%
em 1972 e 74,2% em 1973.44
No plano interno, o crescimento a
altas taxas, prolongando-se por vários
anos, terminou desaguando numa con-
juntura de superaquecimento, com os ní-
veis de produção tendendo a esbarrar no
teto da plena utilização de capacidade.
O ritmo acelerado dos investimentos,
característico do auge, contribuiu para
manter em contínuo crescimento a de-
manda, excitando as expectativas empre-
sariais, o que culminará em sobreinvesti-
mento – assim, ao longo do tempo, o
processo tende a desdobrar-se em uma
crise de superacumulação de capital (isso
já ocorrera na crise dos anos 60 e voltaria
a repetir-se na crise do “milagre”).
Mas, a curto prazo, dada a defasa-
gem entre os gastos de investimento e a
resultante expansão de capacidade, o que
nova Economia_Belo Horizonte_15 (3)_53-92_setembro-dezembro de 2005
A política econômica do governo Médici78
44 Os dados se referem a
jan./72, jan./73 e jan./73,
jan./74. Ver a análise de A.
Udry, in Mandel (1977).
eventualmente pode observar-se no pico
do auge cíclico são manifestações varia-
das e mais ou

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