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Obras Literárias - UNICAMP 2021

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Obras Literárias 
UNICAMP 2021 
 
 
 
O ESPELHO – Machado de Assis 
O MARINHEIRO – Fernando Pessoa 
SONETOS SELECIONADOS – Camões 
 
 
 
 
 
Raiara Alvarenga 
O ESPELHO 
 
 
 
 
Machado de Assis 
O ESPELHO – Machado de Assis 
Esboço de uma nova teoria da alma humana 
 
Quatro ou cinco cavalheiros debatiam, uma noite, várias questões de alta 
transcendência, sem que a disparidade dos votos trouxesse a menor 
alteração aos espíritos. A casa ficava no morro de Santa Teresa, a sala era 
pequena, alumiada a velas, cuja luz fundia-se misteriosamente com o luar 
que vinha de fora. Entre a cidade, com as suas agitações e aventuras, e o 
céu, em que as estrelas pestanejavam, através de uma atmosfera límpida e 
sossegada, estavam os nossos quatro ou cinco investigadores de coisas 
metafísicas, resolvendo amigavelmente os mais árduos problemas do 
universo. Por que quatro ou cinco? Rigorosamente eram quatro os que 
falavam; mas, além deles, havia na sala um quinto personagem, calado, 
pensando, cochilando, cuja espórtula no debate não passava de um ou 
outro resmungo de aprovação. Esse homem tinha a mesma idade dos 
companheiros, entre quarenta e cinqüenta anos, era provinciano, 
capitalista, inteligente, não sem instrução, e, ao que parece, astuto e 
cáustico. Não discutia nunca; e defendia-se da abstenção com um 
paradoxo, dizendo que a discussão é a forma polida do instinto batalhador, 
que jaz no homem, como uma herança bestial; e acrescentava que os 
serafins e os querubins não controvertiam nada, e, aliás, eram a perfeição 
espiritual e eterna. Como desse esta mesma resposta naquela noite, 
contestou-lha um dos presentes, e desafiou-o a demonstrar o que dizia, se 
era capaz. Jacobina (assim se chamava ele) refletiu um instante, e 
respondeu: 
- Pensando bem, talvez o senhor tenha razão. 
Vai senão quando, no meio da noite, sucedeu que este casmurro usou da 
palavra, e não dois ou três minutos, mas trinta ou quarenta. A conversa, em 
seus meandros, veio a cair na natureza da alma, ponto que dividiu 
radicalmente os quatro amigos. Cada cabeça, cada sentença; não só o 
acordo, mas a mesma discussão tornou-se difícil, senão impossível, pela 
multiplicidade das questões que se deduziram do tronco principal e um 
pouco, talvez, pela inconsistência dos pareceres. Um dos argumentadores 
pediu ao Jacobina alguma opinião, - uma conjetura, ao menos. 
- Nem conjetura, nem opinião, redargüiu ele; uma ou outra pode dar lugar 
a dissentimento, e, como sabem, eu não discuto. Mas, se querem ouvir-me 
calados, posso contar-lhes um caso de minha vida, em que ressalta a mais 
clara demonstração acerca da matéria de que se trata. Em primeiro lugar, 
não há uma só alma, há duas... 
- Duas? 
- Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas almas 
consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que olha de fora para 
entro... Espantem-se à vontade, podem ficar de boca aberta, dar de 
ombros, tudo; não admito réplica. Se me replicarem, acabo o charuto e vou 
dormir. A alma exterior pode ser um espírito, um fluido, um homem, muitos 
homens, um objeto, uma operação. Há casos, por exemplo, em que um 
simples botão de camisa é a alma exterior de uma pessoa; - e assim também 
a polca, o voltarete, um livro, uma máquina, um par de botas, uma cavatina, 
um tambor, etc. Está claro que o ofício dessa segunda alma é transmitir a 
vida, como a primeira; as duas completam o homem, que é, 
metafisicamente falando, uma laranja. Quem perde uma das metades, 
perde naturalmente metade da existência; e casos há, não raros, em que a 
perda da alma exterior implica a da existência inteira. Shylock, por exemplo. 
A alma exterior aquele judeu eram os seus ducados; perdê-los equivalia a 
morrer. "Nunca mais verei o meu ouro, diz ele a Tubal; é um punhal que me 
enterras no coração." Vejam bem esta frase; a perda dos ducados, alma 
exterior, era a morte para ele. Agora, é preciso saber que a alma exterior 
não é sempre a mesma... 
- Não? 
- Não, senhor; muda de natureza e de estado. Não aludo a certas almas 
absorventes, como a pátria, com a qual disse o Camões que morria, e o 
poder, que foi a alma exterior de César e de Cromwell. São almas enérgicas 
e exclusivas; mas há outras, embora enérgicas, de natureza mudável. Há 
cavalheiros, por exemplo, cuja alma exterior, nos primeiros anos, foi um 
chocalho ou um cavalinho de pau, e mais tarde uma provedoria de 
irmandade, suponhamos. Pela minha parte, conheço uma senhora, - na 
verdade, gentilíssima, - que muda de alma exterior cinco, seis vezes por 
ano. Durante a estação lírica é a ópera; cessando a estação, a alma exterior 
substitui-se por outra: um concerto, um baile do Cassino, a rua do Ouvidor, 
Petrópolis... 
- Perdão; essa senhora quem é? 
- Essa senhora é parenta do diabo, e tem o mesmo nome; chama-se 
Legião... E assim outros mais casos. Eu mesmo tenho experimentado dessas 
trocas. Não as relato, porque iria longe; restrinjo-me ao episódio de que 
lhes falei. Um episódio dos meus vinte e cinco anos... Os quatro 
companheiros, ansiosos de ouvir o caso prometido, esqueceram a 
controvérsia. Santa curiosidade! tu não és só a alma da civilização, és 
também o pomo da concórdia, fruta divina, de outro sabor que não aquele 
pomo da mitologia. A sala, até há pouco ruidosa de física e metafísica, é 
agora um mar morto; todos os olhos estão no Jacobina, que conserta a 
ponta do charuto, recolhendo as memórias. Eis aqui como ele começou a 
narração: 
- Tinha vinte e cinco anos, era pobre, e acabava de ser nomeado alferes da 
Guarda Nacional. Não imaginam o acontecimento que isto foi em nossa 
casa. Minha mãe ficou tão orgulhosa! tão contente! Chamava-me o seu 
alferes. Primos e tios, foi tudo uma alegria sincera e pura. Na vila, note-se 
bem, houve alguns despeitados; choro e ranger de dentes, como na 
Escritura; e o motivo não foi outro senão que o posto tinha muitos 
candidatos e que esses perderam. Suponho também que uma parte do 
desgosto foi inteiramente gratuita: nasceu da simples distinção. Lembra-me 
de alguns rapazes, que se davam comigo, e passaram a olhar-me de revés, 
durante algum tempo. Em compensação, tive muitas pessoas que ficaram 
satisfeitas com a nomeação; e a prova é que todo o fardamento me foi dado 
por amigos... Vai então uma das minhas tias, D. Marcolina, viúva do Capitão 
Peçanha, que morava a muitas léguas da vila, num sítio escuso e solitário, 
desejou ver-me, e pediu que fosse ter com ela e levasse a farda. Fui, 
acompanhado de um pajem, que daí a dias tornou à vila, porque a tia 
Marcolina, apenas me pilhou no sítio, escreveu a minha mãe dizendo que 
não me soltava antes de um mês, pelo menos. E abraçava-me! Chamava-
me também o seu alferes. Achava-me um rapagão bonito. Como era um 
tanto patusca, chegou a confessar que tinha inveja da moça que houvesse 
de ser minha mulher. Jurava que em toda a província não havia outro que 
me pusesse o pé adiante. E sempre alferes; era alferes para cá, alferes para 
lá, alferes a toda a hora. Eu pedia-lhe que me chamasse Joãozinho, como 
dantes; e ela abanava a cabeça, bradando que não, que era o "senhor 
alferes". Um cunhado dela, irmão do finado Peçanha, que ali morava, não 
me chamava de outra maneira. Era o "senhor alferes", não por gracejo, mas 
a sério, e à vista dos escravos, que naturalmente foram pelo mesmo 
caminho. Na mesa tinha eu o melhor lugar, e era o primeiro servido. Não 
imaginam. Se lhes disser que o entusiasmo da tia Marcolina chegou ao 
ponto de mandar pôr no meu quarto um grande espelho, obra rica e 
magnífica, que destoava do resto da casa, cuja mobília era modesta e 
simples... Era um espelho que lhe dera a madrinha, e que esta herdara da 
mãe, que o comprara a uma das fidalgas vindas em 1808 com a corte de D. 
João VI. Não sei o que havia nisso de verdade; era a tradição. O espelho 
estava naturalmente muito velho; mas via-se-lhe ainda o ouro,comido em 
parte pelo tempo, uns delfins esculpidos nos ângulos superiores da 
moldura, uns enfeites de madrepérola e outros caprichos do artista. Tudo 
velho, mas bom... 
- Espelho grande? 
- Grande. E foi, como digo, uma enorme fineza, porque o espelho estava na 
sala; era a melhor peça da casa. Mas não houve forças que a demovessem 
do propósito; respondia que não fazia falta, que era só por algumas 
semanas, e finalmente que o "senhor alferes" merecia muito mais. O certo 
é que todas essas coisas, carinhos, atenções, obséquios, fizeram em mim 
uma transformação, que o natural sentimento da mocidade ajudou e 
completou. Imaginam, creio eu? 
- Não. 
- O alferes eliminou o homem. Durante alguns dias as duas naturezas 
equilibraram-se; mas não tardou que a primitiva cedesse à outra; ficou-me 
uma parte mínima de humanidade. Aconteceu então que a alma exterior, 
que era dantes o sol, o ar, o campo, os olhos das moças, mudou de 
natureza, e passou a ser a cortesia e os rapapés da casa, tudo o que me 
falava do posto, nada do que me falava do homem. A única parte do 
cidadão que ficou comigo foi aquela que entendia com o exercício da 
patente; a outra dispersou-se no ar e no passado. Custa-lhes acreditar, não? 
- Custa-me até entender, respondeu um dos ouvintes. 
- Vai entender. Os fatos explicarão melhor os sentimentos: os fatos são 
tudo. A melhor definição do amor não vale um beijo de moça namorada; e, 
se bem me lembro, um filósofo antigo demonstrou o movimento andando. 
Vamos aos fatos. Vamos ver como, ao tempo em que a consciência do 
homem se obliterava, a do alferes tornava-se viva e intensa. As dores 
humanas, as alegrias humanas, se eram só isso, mal obtinham de mim uma 
compaixão apática ou um sorriso de favor. No fim de três semanas, era 
outro, totalmente outro. Era exclusivamente alferes. Ora, um dia recebeu a 
tia Marcolina uma notícia grave; uma de suas filhas, casada com um 
lavrador residente dali a cinco léguas, estava mal e à morte. Adeus, 
sobrinho! adeus, alferes! Era mãe extremosa, armou logo uma viagem, 
pediu ao cunhado que fosse com ela, e a mim que tomasse conta do sítio. 
Creio que, se não fosse a aflição, disporia o contrário; deixaria o cunhado e 
iria comigo. Mas o certo é que fiquei só, com os poucos escravos da casa. 
Confesso-lhes que desde logo senti uma grande opressão, alguma coisa 
semelhante ao efeito de quatro paredes de um cárcere, subitamente 
levantadas em torno de mim. Era a alma exterior que se reduzia; estava 
agora limitada a alguns espíritos boçais. O alferes continuava a dominar em 
mim, embora a vida fosse menos intensa, e a consciência mais débil. Os 
escravos punham uma nota de humildade nas suas cortesias, que de certa 
maneira compensava a afeição dos parentes e a intimidade doméstica 
interrompida. Notei mesmo, naquela noite, que eles redobravam de 
respeito, de alegria, de protestos. Nhô alferes, de minuto a minuto; nhô 
alferes é muito bonito; nhô alferes há de ser coronel; nhô alferes há de 
casar com moça bonita, filha de general; um concerto de louvores e 
profecias, que me deixou extático. Ah ! pérfidos! mal podia eu suspeitar a 
intenção secreta dos malvados. 
- Matá-lo? 
- Antes assim fosse. 
- Coisa pior? 
- Ouçam-me. Na manhã seguinte achei-me só. Os velhacos, seduzidos por 
outros, ou de movimento próprio, tinham resolvido fugir durante a noite; e 
assim fizeram. Achei-me só, sem mais ninguém, entre quatro paredes, 
diante do terreiro deserto e da roça abandonada. Nenhum fôlego humano. 
Corri a casa toda, a senzala, tudo; ninguém, um molequinho que fosse. 
Galos e galinhas tão-somente, um par de mulas, que filosofavam a vida, 
sacudindo as moscas, e três bois. Os mesmos cães foram levados pelos 
escravos. Nenhum ente humano. Parece-lhes que isto era melhor do que 
ter morrido? era pior. Não por medo; juro-lhes que não tinha medo; era um 
pouco atrevidinho, tanto que não senti nada, durante as primeiras horas. 
Fiquei triste por causa do dano causado à tia Marcolina; fiquei também um 
pouco perplexo, não sabendo se devia ir ter com ela, para lhe dar a triste 
notícia, ou ficar tomando conta da casa. Adotei o segundo alvitre, para não 
desamparar a casa, e porque, se a minha prima enferma estava mal, eu ia 
somente aumentar a dor da mãe, sem remédio nenhum; finalmente, 
esperei que o irmão do tio Peçanha voltasse naquele dia ou no outro, visto 
que tinha saído havia já trinta e seis horas. Mas a manhã passou sem 
vestígio dele; à tarde comecei a sentir a sensação como de pessoa que 
houvesse perdido toda a ação nervosa, e não tivesse consciência da ação 
muscular. O irmão do tio Peçanha não voltou nesse dia, nem no outro, nem 
em toda aquela semana. Minha solidão tomou proporções enormes. Nunca 
os dias foram mais compridos, nunca o sol abrasou a terra com uma 
obstinação mais cansativa. As horas batiam de século a século no velho 
relógio da sala, cuja pêndula tic-tac, tic-tac, feria-me a alma interior, como 
um piparote contínuo da eternidade. Quando, muitos anos depois, li uma 
poesia americana, creio que de Longfellow, e topei este famoso estribilho: 
Never, for ever! - For ever, never! confesso-lhes que tive um calafrio: 
recordeime daqueles dias medonhos. Era justamente assim que fazia o 
relógio da tia Marcolina: - Never, for ever!- For ever, never! Não eram 
golpes de pêndula, era um diálogo do abismo, um cochicho do nada. E 
então de noite! Não que a noite fosse mais silenciosa. O silêncio era o 
mesmo que de dia. Mas a noite era a sombra, era a solidão ainda mais 
estreita, ou mais larga. Tic-tac, tic-tac. Ninguém, nas salas, na varanda, nos 
corredores, no terreiro, ninguém em parte nenhuma... Riem-se? 
- Sim, parece que tinha um pouco de medo. 
- Oh! fora bom se eu pudesse ter medo! Viveria. Mas o característico 
daquela situação é que eu nem sequer podia ter medo, isto é, o medo 
vulgarmente entendido. Tinha uma sensação inexplicável. Era como um 
defunto andando, um sonâmbulo, um boneco mecânico. Dormindo, era 
outra coisa. O sono dava-me alívio, não pela razão comum de ser irmão da 
morte, mas por outra. Acho que posso explicar assim esse fenômeno: - o 
sono, eliminando a necessidade de uma alma exterior, deixava atuar a alma 
interior. Nos sonhos, fardava-me orgulhosamente, no meio da família e dos 
amigos, que me elogiavam o garbo, que me chamavam alferes; vinha um 
amigo de nossa casa, e prometia-me o posto de tenente, outro o de capitão 
ou major; e tudo isso fazia-me viver. Mas quando acordava, dia claro, 
esvaía-se com o sono a consciência do meu ser novo e único -porque a alma 
interior perdia a ação exclusiva, e ficava dependente da outra, que teimava 
em não tornar... Não tornava. Eu saía fora, a um lado e outro, a ver se 
descobria algum sinal de regresso. Soeur Anne, soeur Anne, ne vois-tu rien 
venir? Nada, coisa nenhuma; tal qual como na lenda francesa. Nada mais 
do que a poeira da estrada e o capinzal dos morros. Voltava para casa, 
nervoso, desesperado, estirava-me no canapé da sala. Tic-tac, tic-tac. 
Levantava-me, passeava, tamborilava nos vidros das janelas, assobiava. Em 
certa ocasião lembrei-me de escrever alguma coisa, um artigo político, um 
romance, uma ode; não escolhi nada definitivamente; sentei-me e tracei no 
papel algumas palavras e frases soltas, para intercalar no estilo. Mas o 
estilo, como tia Marcolina, deixava-se estar. Soeur Anne, soeur Anne... 
Coisa nenhuma. Quando muito via negrejar a tinta e alvejar o papel. 
 - Mas não comia? 
- Comia mal, frutas, farinha, conservas, algumas raízes tostadas ao fogo, 
mas suportaria tudo alegremente, se não fora a terrível situação moral em 
que me achava. Recitava versos, discursos, trechos latinos, liras de 
Gonzaga, oitavas de Camões, décimas, uma antologia em trinta volumes. 
As vezes fazia ginástica; outra dava beliscões nas pernas; mas o efeito era 
só uma sensação física de dor ou de cansaço, e mais nada.Tudo silêncio, 
um silêncio vasto, enorme, infinito, apenas sublinhado pelo eterno tic-tac 
da pêndula. Tic-tac, tic-tac... 
- Na verdade, era de enlouquecer. 
- Vão ouvir coisa pior. Convém dizer-lhes que, desde que ficara só, não 
olhara uma só vez para o espelho. Não era abstenção deliberada, não tinha 
motivo; era um impulso inconsciente, um receio de achar-me um e dois, ao 
mesmo tempo, naquela casa solitária; e se tal explicação é verdadeira, nada 
prova melhor a contradição humana, porque no fim de oito dias deu-me na 
veneta de olhar para o espelho com o fim justamente de achar-me dois. 
Olhei e recuei. O próprio vidro parecia conjurado com o resto do universo; 
não me estampou a figura nítida e inteira, mas vaga, esfumada, difusa, 
sombra de sombra. A realidade das leis físicas não permite negar que o 
espelho reproduziu-me textualmente, com os mesmos contornos e feições; 
assim devia ter sido. Mas tal não foi a minha sensação. Então tive medo; 
atribuí o fenômeno à excitação nervosa em que andava; receei ficar mais 
tempo, e enlouquecer. - Vou-me embora, disse comigo. E levantei o braço 
com gesto de mau humor, e ao mesmo tempo de decisão, olhando para o 
vidro; o gesto lá estava, mas disperso, esgaçado, mutilado... Entrei a vestir-
me, murmurando comigo, tossindo sem tosse, sacudindo a roupa com 
estrépito, afligindo-me a frio com os botões, para dizer alguma coisa. De 
quando em quando, olhava furtivamente para o espelho; a imagem era a 
mesma difusão de linhas, a mesma decomposição de contornos... Continuei 
a vestir-me. Subitamente por uma inspiração inexplicável, por um impulso 
sem cálculo, lembrou-me... Se forem capazes de adivinhar qual foi a minha 
idéia... 
- Diga. 
- Estava a olhar para o vidro, com uma persistência de desesperado, 
contemplando as próprias feições derramadas e inacabadas, uma nuvem 
de linhas soltas, informes, quando tive o pensamento... Não, não são 
capazes de adivinhar. 
- Mas, diga, diga. 
- Lembrou-me vestir a farda de alferes. Vesti-a, aprontei-me de todo; e, 
como estava defronte do espelho, levantei os olhos, e... não lhes digo nada; 
o vidro reproduziu então a figura integral; nenhuma linha de menos, 
nenhum contorno diverso; era eu mesmo, o alferes, que achava, enfim, a 
alma exterior. Essa alma ausente com a dona do sítio, dispersa e fugida com 
os escravos, ei-la recolhida no espelho. Imaginai um homem que, pouco a 
pouco, emerge de um letargo, abre os olhos sem ver, depois começa a ver, 
distingue as pessoas dos objetos, mas não conhece individualmente uns 
nem outros; enfim, sabe que este é Fulano, aquele é Sicrano; aqui está uma 
cadeira, ali um sofá. Tudo volta ao que era antes do sono. Assim foi comigo. 
Olhava para o espelho, ia de um lado para outro, recuava, gesticulava, sorria 
e o vidro exprimia tudo. Não era mais um autômato, era um ente animado. 
Daí em diante, fui outro. Cada dia, a uma certa hora, vestia-me de alferes, 
e sentava-me diante do espelho, lendo olhando, meditando; no fim de 
duas, três horas, despia-me outra vez. Com este regime pude atravessar 
mais seis dias de solidão sem os sentir... Quando os outros voltaram a si, o 
narrador tinha descido as escadas. 
 
 
 
FIM 
O MARINHEIRO 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Fernando Pessoa
O MARINHEIRO – Fernando Pessoa 
DRAMA ESTÁTICO EM UM QUADRO 
 
A Carlos Franco 
 
Um quarto que é sem dúvida num castelo antigo. Do quarto vê-se que é 
circular. Ao centro ergue-se, sobre uma essa, um caixão com uma donzela, de 
branco. Quatro tochas aos cantos. À direita, quase em frente a quem imagina o 
quarto, há uma única janela, alta e estreita, dando para onde só se vê, entre 
dois montes longínquos, um pequeno espaço de mar. 
Do lado da janela velam três donzelas. A primeira está sentada em frente 
à janela, de costas contra a tocha de cima da direita. As outras duas estão 
sentadas uma de cada lado da janela. 
É noite e há como que um resto vago de luar. 
PRIMEIRA VELADORA — Ainda não deu hora nenhuma. 
SEGUNDA — Não se pode ouvir. Não há relógio aqui perto. Dentro em 
pouco deve ser dia. 
TERCEIRA — Não: o horizonte é negro. 
PRIMEIRA — Não desejais, minha irmã, que nos entretenhamos contando 
o que fomos? É belo e é sempre falso. .. 
SEGUNDA — Não, não falemos nisso. De resto, fomos nós alguma cousa? 
PRIMEIRA — Talvez. Eu não sei. Mas, ainda assim, sempre é belo falar do 
passado... As horas têm caído e nós temos guardado silêncio. Por mim, tenho 
estado a olhar para a chama daquela vela. Às vezes treme, outras torna-se mais 
amarela, outras vezes empalidece. Eu não sei por que é que isso se dá. Mas 
sabemos nós, minhas irmãs, por que se dá qualquer cousa?... 
(uma pausa) 
A MESMA — Falar do passado — isso deve ser belo, porque é inútil e faz 
tanta pena... 
SEGUNDA — Falemos, se quiserdes, de um passado que não tivéssemos 
tido. 
TERCEIRA — Não. Talvez o tivéssemos tido… 
PRIMEIRA — Não dizeis senão palavras. E tão triste falar! É um modo tão 
falso de nos esquecermos! ... Se passeássemos?... 
TERCEIRA — Onde? 
PRIMEIRA — Aqui, de um lado para o outro. As vezes isso vai buscar 
sonhos. 
TERCEIRA — De quê? 
PRIMEIRA — Não sei . Porque o havia eu de saber? 
(uma pausa) 
SEGUNDA — Todo este país é muito triste... Aquele onde eu vivi outrora 
era menos triste. Ao entardecer eu fiava, sentada à minha janela. A janela dava 
para o mar e às vezes havia uma ilha ao longe... Muitas vezes eu não fiava; 
olhava para o mar e esquecia-me de viver. Não sei se era feliz. Já não tornarei a 
ser aquilo que talvez eu nunca fosse... 
PRIMEIRA — Fora de aqui, nunca vi o mar. Ali, daquela janela, que é a 
única de onde o mar se vê, vê-se tão pouco!... O mar de outras terras é belo? 
SEGUNDA — Só o mar das outras terras é que é belo. Aquele que nós 
vemos dá-nos sempre saudades daquele que não veremos nunca... 
(uma pausa) 
PRIMEIRA — Não dizíamos nós que íamos contar o nosso passado? 
SEGUNDA — Não, não dizíamos. 
TERCEIRA — Por que não haverá relógio neste quarto? 
SEGUNDA — Não sei... Mas assim, sem o relógio, tudo é mais afastado e 
misterioso. A noite pertence mais a si própria... Quem sabe se nós poderíamos 
falar assim se soubéssemos a hora que é? 
PRIMEIRA — Minha irmã, em mim tudo é triste. Passo Dezembros na 
alma... Estou procurando não olhar para a janela.. Sei que de lá se vêem, ao 
longe, montes... Eu fui feliz para além de montes, outrora... Eu era pequenina. 
Colhia flores todo o dia e antes de adormecer pedia que não mas tirassem... Não 
sei o que isto tem de irreparável que me dá vontade de chorar... Foi longe daqui 
que isto pôde ser... Quando virá o dia?... 
TERCEIRA — Que importa? Ele vem sempre da mesma maneira... sempre, 
sempre, sempre... 
(uma pausa) 
SEGUNDA — Contemos contos umas às outras... Eu não sei contos 
nenhuns, mas isso não faz mal... Só viver é que faz mal... Não rocemos pela vida 
nem a orla das nossas vestes... Não, não vos levanteis. Isso seria um gesto, e 
cada gesto interrompe um sonho... Neste momento eu não tinha sonho nenhum, 
mas é-me suave pensar que o podia estar tendo... Mas o passado — por que não 
falamos nós dele? 
PRIMEIRA — Decidimos não o fazer... Breve raiará o dia e arrepender-nos-
emos... Com a luz os sonhos adormecem... O passado não é senão um sonho... 
De resto, nem sei o que não é sonho. 
Se olho para o presente com muita atenção, parece-me que ele já passou... 
O que é qualquer cousa? Como é que ela passa? Como é por dentro o modo 
como ela passa?... Ah, falemos, minhas irmãs falemos alto, falemos todas 
juntas... O silêncio começa a tomar corpo, começa a ser cousa... Sinto-o 
envolver-me como uma névoa... Ah, falai, falai!... 
SEGUNDA — Para quê?... Fito-vos a ambas e não vos vejo logo... Parece-me 
que entre nós se aumentaram abismos... Tenho que cansar a ideia de que vos 
posso ver para poder chegar a ver-vos... Este ar quente é frio por dentro, 
naquela parte que toca na alma... Eu devia agorasentir mãos impossíveis 
passarem-me pelo cabelos — é o gesto com que falam das sereias... (Cruza as 
mãos sobre os joelhos. Pausa). Ainda há pouco, quando eu não pensava em 
nada, estava pensando no meu passado. 
PRIMEIRA — Eu também devia ter estado a pensar no meu... 
TERCEIRA — Eu já não sabia em que pensava... No passado dos outros 
talvez..., no passado de gente maravilhosa que nunca existiu... Ao pé da casa de 
minha mãe corria um riacho... Por que é que correria, e por que é que não 
correria mais longe, ou mais perto?... Há alguma razão para qualquer cousa ser 
o que é? Há para isso qualquer razão verdadeira e real como as minhas mãos?... 
SEGUNDA — As mãos não são verdadeiras nem reais... São mistérios que 
habitam na nossa vida... às vezes, quando fito as minhas mãos, tenho medo de 
Deus... Não há vento que mova as chamas das velas, e olhai, elas movem-se... 
Para onde se inclinam elas?... Que pena se alguém pudesse responder!... Sinto-
me desejosa de ouvir músicas bárbaras que devem agora estar tocando em 
palácios de outros continentes... É sempre longe na minha alma... Talvez 
porque, quando criança, corri atrás das ondas à beira-mar. Levei a vida pela 
mão entre rochedos, maré-baixa, quando o mar parece ter cruzado as mãos 
sobre o peito e ter adormecido como uma estátua de anjo para que nunca mais 
ninguém olhasse... 
TERCEIRA — As vossas frases lembram-me a minha alma... 
SEGUNDA — É talvez por não serem verdadeiras... Mal sei que as digo... 
Repito-as seguindo uma voz que não ouço que mas está segredando... Mas eu 
devo ter vivido realmente à beira-mar... Sempre que uma cousa ondeia, eu amo-
a... Há ondas na minha alma... Quando ando embalo-me... Agora eu gostaria de 
andar... Não o faço porque não vale nunca a pena fazer nada, sobretudo o que se 
quer fazer... Dos montes é que eu tenho medo... É impossível que eles sejam tão 
parados e grandes... Devem ter um segredo de pedra que se recusam a saber que 
têm... Se desta janela, debruçando-me, eu pudesse deixar de ver montes, 
debruçar-se-ia um momento da minha alma alguém em quem eu me sentisse 
feliz... 
PRIMEIRA — Por mim, amo os montes... Do lado de cá de todos os montes 
é que a vida é sempre feia... Do lado de lá, onde mora minha mãe, 
costumávamos sentarmo-nos à sombra dos tamarindos e falar de ir ver outras 
terras... Tudo ali era longo e feliz como o canto de duas aves, uma de cada lado 
do caminho... A floresta não tinha outras clareiras senão os nossos 
pensamentos... E os nossos sonhos eram de que as árvores projectassem no 
chão outra calma que não as suas sombras... Foi decerto assim que ali vivemos, 
eu e não sei se mais alguém... Dizei-me que isto foi verdade para que eu não 
tenha de chorar... 
SEGUNDA — Eu vivi entre rochedos e espreitava o mar... A orla da minha 
saia era fresca e salgada batendo nas minhas pernas nuas... Eu era pequena e 
bárbara... Hoje tenho medo de ter sido... O presente parece-me que durmo... 
Falai-me das fadas. Nunca ouvi falar delas a ninguém... O mar era grande de 
mais para fazer pensar nelas... Na vida aquece ser pequeno... Éreis feliz, minha 
irmã? 
PRIMEIRA — Começo neste momento a tê-lo sido outrora... De resto, tudo 
aquilo se passou na sombra... As árvores viveram -no mais do que eu... Nunca 
chegou nem eu mal esperava... E vós irmã, por que não falais? 
TERCEIRA — Tenho horror a de aqui a pouco vos ter já dito o que vos vou 
dizer. As minhas palavras presentes, mal eu as digo, pertencerão logo ao 
passado, ficarão fora de mim, não sei onde, rígidas e fatais... Falo, e penso nisto 
na minha garganta, e as minhas palavras parecem-me gente... Tenho um medo 
maior do que eu. Sinto na minha mão, não sei como, a chave de uma porta 
desconhecida. E toda eu sou um amuleto ou um sacrário que estivesse com 
consciência de si próprio. É por isto que me apavora ir, como por uma floresta 
escura, através do mistério de falar... E, afinal, quem sabe se eu sou assim e se é 
isto sem dúvida que sinto?... 
PRIMEIRA — Custa tanto saber o que se sente quando reparamos em 
nós!... Mesmo viver sabe a custar tanto quando se dá por isso... Falai, portanto, 
sem reparardes que existis... Não nos íeis dizer quem éreis? 
TERCEIRA — O que eu era outrora já não se lembra de quem sou... Pobre 
da feliz que eu fui !... Eu vivi entre as sombras dos ramos, e tudo na minha alma 
é folhas que estremecem. Quando ando ao sol a minha sombra é fresca. Passei a 
fuga dos meus dias ao lado de fontes, onde eu molhava, quando sonhava de 
viver, as pontas tranquilas dos meus dedos... Às vezes, à beira dos lagos, 
debruçava-me e fitava-me... Quando eu sorria, os meus dentes eram misteriosos 
na água... Tinham um sorriso só deles, independente do meu... Era sempre sem 
razão que eu sorria... Falai-me da morte, do fim de tudo, para que eu sinta uma 
razão para recordar... 
PRIMEIRA — Não falemos de nada, de nada... Está mais frio, mas por que é 
que está mais frio? Não há razão para estar mais frio. Não é bem mais frio que 
está... Para que é que havemos de falar?... É melhor cantar, não sei porquê... O 
canto, quando a gente canta de noite, é uma pessoa alegre e sem medo que entra 
de repente no quarto e o aquece a consolar-nos... Eu podia cantar-vos uma 
canção que cantávamos em casa de meu passado. Por que é que não quereis que 
vo-la cante? 
TERCEIRA — Não vale a pena, minha irmã... quando alguém canta, eu não 
posso estar comigo. Tenho que não poder recordar-me. E depois todo o meu 
passado torna-se outro e eu choro uma vida morta que trago comigo e que não 
vivi nunca. É sempre tarde de mais para cantar, assim como é sempre tarde de 
mais para não cantar... 
(uma pausa) 
PRIMEIRA — Breve será dia... Guardemos silêncio... A vida assim o quer. 
Ao pé da minha casa natal havia um lago. Eu ia lá e assentava-me à beira dele, 
sobre um tronco de árvore que caíra quase dentro de água... Sentava-me na 
ponta e molhava na água os pés, esticando para baixo os dedos. Depois olhava 
excessivamente para as pontas dos pés, mas não era para os ver. Não sei porquê, 
mas parece-me deste lago que ele nunca existiu... Lembrar-me dele é como não 
me poder lembrar de nada... Quem sabe por que é que eu digo isto e se fui eu 
que vivi o que recordo?... 
SEGUNDA — À beira-mar somos tristes quando sonhamos... Não podemos 
ser o que queremos ser, porque o que queremos ser queremo-lo sempre ter sido 
no passado... Quando a onda se espalha e a espuma chia, parece que há mil 
vozes mínimas a falar. A espuma só parece ser fresca a quem a julga uma... Tudo 
é muito e nós não sabemos nada... Quereis que vos conte o que eu sonhava à 
beira-mar? 
PRIMEIRA — Podeis contá-lo, minha irmã; mas nada em nós tem 
necessidade de que no-lo conteis... Se é belo, tenho já pena de vir a tê-lo ouvido. 
E se não é belo, esperai..., contai-o só depois de o alterardes... 
SEGUNDA — Vou dizer-vo-lo. Não é inteiramente falso, porque sem dúvida 
nada é inteiramente falso. Deve ter sido assim... Um dia que eu dei por mim 
recostada no cimo frio de um rochedo, e que eu tinha esquecido que tinha pai e 
mãe e que houvera em mim infância e outros dias — nesse dia vi ao longe, como 
uma coisa que eu só pensasse em ver, a passagem vaga de uma vela. Depois ela 
cessou... Quando reparei para mim, vi que já tinha esse meu sonho... Não sei 
onde ele teve princípio.. . E nunca tornei a ver outra vela... Nenhuma das velas 
dos navios que saem aqui de um porto se parece com aquela, mesmo quando é 
lua e os navios passam longe devagar... 
PRIMEIRA — Vejo pela janela um navio ao longe. É talvez aquele que 
vistes... 
SEGUNDA — Não, minha irmã; esse que vedes busca sem dúvida um porto 
qualquer... Não podia ser que aquele que eu vi buscasse qualquer porto... 
PRIMEIRA — Por que é que me respondestes?... Pode ser. . Eu não vi navio 
nenhum pela janela... Desejava ver um e falei-vos dele para não ter pena... 
Contai-nos agora o que foi que sonhastes à beira-mar...SEGUNDA — Sonhava de um marinheiro que se houvesse perdido numa 
ilha longínqua. Nessa ilha havia palmeiras hirtas, poucas, e aves vagas passavam 
por elas... Não vi se alguma vez pousavam... Desde que, naufragado, se salvara, 
o marinheiro vivia ali... Como ele não tinha meio de voltar à pátria, e cada vez 
que se lembrava dela sofria, pôs-se a sonhar uma pátria que nunca tivesse tido: 
pôs-se a fazer ter sido sua uma outra pátria, uma outra espécie de país com 
outras espécies de paisagens, e outra gente, e outro feitio de passarem pelas ruas 
e de se debruçarem das janelas... Cada hora ele construía em sonho esta falsa 
pátria, e ele nunca deixava de sonhar, de dia à sombra curta das grandes 
palmeiras, que se recortava, orlada de bicos, no chão areento e quente; de noite, 
estendido na praia, de costas e não reparando nas estrelas. 
PRIMEIRA — Não ter havido uma árvore que mosqueasse sobre as minhas 
mãos estendidas a sombra de um sonho como esse!... 
TERCEIRA — Deixai-a falar... Não a interrompais... Ela conhece palavras 
que as sereias lhe ensinaram... Adormeço para a poder escutar... Dizei, minha 
irmã, dizei... Meu coração dói-me de não ter sido vós quando sonháveis à beira-
mar... 
SEGUNDA — Durante anos e anos, dia a dia, o marinheiro erguia num 
sonho contínuo a sua nova terra natal... Todos os dias punha uma pedra de 
sonho nesse edifício impossível... Breve ele ia tendo um país que já tantas vezes 
havia percorrido. Milhares de horas lembrava-se já de ter passado ao longo de 
suas costas. Sabia de que cor soíam ser os crepúsculos numa baía do norte, e 
como era suave entrar, noite alta, e com a alma recostada no murmúrio da água 
que o navio abria, num grande porto do sul onde ele passara outrora, feliz 
talvez, das suas mocidades a suposta... 
(uma pausa) 
PRIMEIRA — Minha irmã, por que é que vos calais? 
SEGUNDA — Não se deve falar demasiado... A vida espreita-nos sempre... 
Toda a hora é materna para os sonhos, mas é preciso não o saber... Quando falo 
de mais começo a separar-me de mim e a ouvir-me falar. Isso faz com que me 
compadeça de mim própria e sinta demasiadamente o coração. Tenho então 
uma vontade lacrimosa de o ter nos braços para o poder embalar como a um 
filho... Vede: o horizonte empalideceu... O dia não pode já tardar... Será preciso 
que eu vos fale ainda mais do meu sonho? 
PRIMEIRA — Contai sempre, minha irmã, contai sempre... Não pareis de 
contar, nem repareis em que dias raiam... O dia nunca raia para quem encosta a 
cabeça no seio das horas sonhadas... Não torçais as mãos. Isso faz um ruído 
como o de uma serpente furtiva... Falai-nos muito mais do vosso sonho. Ele é 
tão verdadeiro que não tem sentido nenhum. Só pensar em ouvir-vos me toca 
música na alma… 
SEGUNDA –– Sim, falar-vos-ei mais dele. Mesmo eu preciso de vo-lo 
contar. À medida que o vou contando, é a mim também que o conto... São três a 
escutar... (De repente, olhando para o caixão, e estremecendo ). Três não... Não 
sei... Não sei quantas... 
TERCEIRA — Não faleis assim... Contai depressa, contai outra vez... Não 
faleis em quantos podem ouvir... Nós nunca sabemos quantas coisas realmente 
vivem e vêem e escutam... Voltai ao vosso sonho... O marinheiro. O que sonhava 
o marinheiro? 
SEGUNDA (mais baixo, numa voz muito lenta) — Ao princípio ele criou as 
paisagens, depois criou as cidades; criou depois as ruas e as travessas, uma a 
uma, cinzelando-as na matéria da sua alma — uma a uma as ruas, bairro a 
bairro, até às muralhas dos cais de onde ele criou depois os portos... Uma a uma 
as ruas, e a gente que as percorria e que olhava sobre elas das janelas... Passou a 
conhecer certa gente, como quem a reconhece apenas... Ia-lhes conhecendo as 
vidas passadas e as conversas, e tudo isto era como quem sonha apenas 
paisagens e as vai vendo... Depois viajava, recordando, através do país que 
criara... E assim foi construindo o seu passado... Breve tinha uma outra vida 
anterior... Tinha já, nessa nova pátria, um lugar onde nascera, os lugares onde 
passara a juventude, os portos onde embarcara... Ia tendo tido os companheiros 
da infância e depois os amigos e inimigos da sua idade viril... Tudo era diferente 
de como ele o tivera — nem o país, nem a gente, nem o seu passado próprio se 
pareciam com o que haviam sido... Exigis que eu continue?... Causa-me tanta 
pena falar disto!... Agora, porque vos falo disto, aprazia-me mais estar-vos 
falando de outros sonhos... 
TERCEIRA — Continuai, ainda que não saibais porquê... Quanto mais vos 
ouço, mais me não pertenço... 
PRIMEIRA — Será bom realmente que continueis? Deve qualquer história 
ter fim? Em todo o caso falai... Importa tão pouco o que dizemos ou não 
dizemos... Velamos as horas que passam... O nosso mister é inútil como a Vida... 
SEGUNDA — Um dia, que chovera muito, e o horizonte estava mais incerto, 
o marinheiro cansou-se de sonhar... Quis então recordar a sua pátria 
verdadeira..., mas viu que não se lembrava de nada, que ela não existia para 
ele... Meninice de que se lembrasse, era a na sua pátria de sonho; adolescência 
que recordasse, era aquela que se criara... Toda a sua vida tinha sido a sua vida 
que sonhara... E ele viu que não podia ser que outra vida tivesse existido... Se ele 
nem de uma rua, nem de uma figura, nem de um gesto materno se lembrava... E 
da vida que lhe parecia ter sonhado, tudo era real e tinha sido... Nem sequer 
podia sonhar outro passado, conceber que tivesse tido outro, como todos, um 
momento, podem crer... Ó minhas irmãs, minhas irmãs... Há qualquer coisa, 
que não sei o que é, que vos não disse... Qualquer coisa que explicaria isto 
tudo... A minha alma esfria-me... Mal sei se tenho estado a falar... Falai-me, 
gritai-me, para que eu acorde, para que eu saiba que estou aqui ante vós e que 
há coisas que são apenas sonhos... 
PRIMEIRA (numa voz muito baixa) — Não sei que vos diga... Não ouso 
olhar para as cousas... Esse sonho como continua?... 
SEGUNDA — Não sei como era o resto.... Mal sei como era o resto... Por 
que haverá mais?... 
PRIMEIRA — E o que aconteceu depois? 
SEGUNDA — Depois? Depois de quê? Depois é alguma cousa?... Veio um 
dia um barco... Veio um dia um barco... — Sim sim... só podia ter sido assim... — 
Veio um dia um barco, e passou por essa ilha, e não estava lá o marinheiro 
TERCEIRA — Talvez tivesse regressado à pátria... Mas a qual? 
PRIMEIRA — Sim, a qual? E o que teriam feito ao marinheiro? Sabê-lo-ia 
alguém? 
SEGUNDA — Por que é que mo perguntais? Há resposta para alguma 
coisa? 
(uma pausa) 
TERCEIRA — Será absolutamente necessário, mesmo dentro do vosso 
sonho, que tenha havido esse marinheiro e essa ilha? 
SEGUNDA — Não, minha irmã; nada é absolutamente necessário. 
PRIMEIRA — Ao menos, como acabou o sonho? 
SEGUNDA — Não acabou... Não sei... Nenhum sonho acaba... Sei eu ao 
certo se o não continuo sonhando, se o não sonho sem o saber, se o sonhá-lo não 
é esta coisa vaga a que eu chamo a minha vida?.. Não me faleis mais... Principio 
a estar certa de qualquer coisa, que não sei o que é... Avançam para mim, por 
uma noite que não é esta, os passos de um horror que desconheço... Quem teria 
eu ido despertar com o sonho meu que vos contei?... Tenho um medo disforme 
de que Deus tivesse proibido o meu sonho... Ele é sem dúvida mais real do que 
Deus permite... Não estejais silenciosas... Dizei-me ao menos que a noite vai 
passando, embora eu o saiba... Vede, começa a ir ser dia.. Vede: vai haver o dia 
real... Paremos... Não pensemos mais... Não tentemos seguir nesta aventura 
interior... Quem sabe o que está no fim dela?.... Tudo isto, minhas irmãs, 
passou-se na noite... Não falemos mais disto, nem a nós próprios... É humano e 
conveniente que tomemos, cada qual, a sua atitude de tristeza. 
TERCEIRA — Foi-me tão belo escutar-vos... Não digais que não... Bem sei 
que não valeu a pena... É por isso que o achei belo... Não foi por isso, mas deixai 
queeu o diga... De resto, a música da vossa voz, que escutei ainda mais que as 
vossas palavras, deixa-me, talvez só por ser música, descontente... 
SEGUNDA — Tudo deixa descontente, minha irmã... Os homens que 
pensam cansam-se de tudo, porque tudo muda. Os homens que passam 
provam-no, porque mudam com tudo... De eterno e belo há apenas o sonho... 
Por que estamos nós falando ainda?... 
PRIMEIRA — Não sei... (olhando para o caixão, em voz mais baixa) — Por 
que é que se morre? 
SEGUNDA — Talvez por não se sonhar bastante... 
PRIMEIRA — É possível... Não valeria então a pena fecharmo-nos no sonho 
e esquecer a vida, para que a morte nos esquecesse?... 
SEGUNDA — Não, minha irmã, nada vale a pena... 
TERCEIRA — Minhas irmãs, é já dia... Vede, a linha dos montes maravilha-
se... Por que não choramos nós?... Aquela que finge estar ali era bela, e nova 
como nós, e sonhava também... Estou certa que o sonho dela era o mais belo de 
todos... Ela de que sonharia?... 
PRIMEIRA — Falai mais baixo. Ela escuta-nos talvez, e já sabe para que 
servem os sonhos... 
(uma pausa) 
SEGUNDA — Talvez nada disto seja verdade... Todo este silêncio, e esta 
morta, e este dia que começa não são talvez senão um sonho... Olhai bem para 
tudo isto... Parece-vos que pertence à vida?... 
PRIMEIRA — Não sei. Não sei como se é da vida... Ah, como vós estais 
parada! E os vossos olhos tão tristes, parece que o estão inutilmente... 
SEGUNDA — Não vale a pena estar triste de outra maneira... Não desejais 
que nos calemos? É tão estranho estar a viver... Tudo o que acontece é 
inacreditável, tanto na ilha do marinheiro como neste mundo... Vede, o céu é já 
verde... O horizonte sorri ouro... Sinto que me ardem os olhos, de eu ter pensado 
em chorar... 
PRIMEIRA — Chorastes, com efeito, minha irmã. 
SEGUNDA — Talvez... Não importa... Que frio é isto?... Ah, é agora... é 
agora!... Dizei-me isto... Dizei-me uma coisa ainda... Por que não será a única 
coisa real nisto tudo o marinheiro, e nós e tudo isto aqui apenas um sonho 
dele?... 
PRIMEIRA — Não faleis mais, não faleis mais... Isso é tão estranho que 
deve ser verdade. Não continueis... O que íeis dizer não sei o que é, mas deve ser 
de mais para a alma o poder ouvir… Tenho medo do que não chegastes a dizer... 
Vede, vede, é dia já… Vede o dia... Fazei tudo por reparardes só no dia, no dia 
real, ali fora... Vede-o, vede-o... Ele consola.. Não penseis, não olheis para o que 
pensais... Vede-o a vir, o dia... Ele brilha como ouro numa terra de prata. As 
leves nuvens arredondam-se à medida que se coloram.. Se nada existisse, 
minhas irmãs?... Se tudo fosse, qualquer modo, absolutamente coisa 
nenhuma?... Porque olhastes assim?... 
(Não lhe respondem. E ninguém olhara de nenhuma maneira.) 
A MESMA — Que foi que dissestes e que me apavorou?... Senti-o tanto que 
mal vi o que era... Dizei-me o que foi, para que eu, ouvindo-o segunda vez, já 
não tenha tanto medo como dantes... Não, não... Não digais nada... Não vos 
pergunto isto para que me respondais, mas para falar apenas, para me não 
deixar pensar... Tenho medo de me poder lembrar do que foi... Mas foi qualquer 
coisa de grande e pavoroso como o haver Deus... Devíamos já ter acabado de 
falar… Há tempo já que a nossa conversa perdeu o sentido... O que é entre nós 
que nos faz falar prolonga-se demasiadamente... Há mais presenças aqui do que 
as nossas almas.. O dia devia ter já raiado.. Deviam já ter acordado... Tarda 
qualquer coisa... Tarda tudo... O que é que se está dando nas coisas de acordo 
com o nosso horror?... Ah, não me abandoneis... Falai comigo, falai comigo... 
Falai ao mesmo tempo do que eu para não deixardes sozinha a minha voz... 
Tenho menos medo à minha voz do que à ideia da minha voz, dentro de mim, se 
for reparar que estou falando... 
TERCEIRA — Que voz é essa com que falais?... É de outra... Vem de uma 
espécie de longe... 
PRIMEIRA — Não sei... Não me lembreis isso... Eu devia estar falando com 
a voz aguda e tremida do medo... Mas já não sei como é que se fala... Entre mim 
e a minha voz abriu-se um abismo... Tudo isto, toda esta conversa e esta noite, e 
este medo — tudo isto devia ter acabado, devia ter acabado de repente, depois 
do horror que nos dissestes... Começo a sentir que o esqueço, a isso que 
dissestes, e que me fez pensar que eu devia gritar de uma maneira nova para 
exprimir um horror de aqueles... 
TERCEIRA (para a SEGUNDA) — Minha irmã, não nos devíeis ter contado 
essa história. Agora estranho-me viva com mais horror. Contáveis e eu tanto me 
distraía que ouvia o sentido das vossas palavras e o seu som separadamente. E 
parecia-me que vós, e a vossa voz, e o sentido do que dizíeis eram três entes 
diferentes, como três criaturas que falam e andam. 
SEGUNDA — São realmente três entes diferentes, com vida própria e real. 
Deus talvez saiba porquê... Ah, mas por que é que falamos? Quem é que nos faz 
continuar falando? Por que falo eu sem querer falar? Por que é que já não 
reparamos que é dia?... 
PRIMEIRA — Quem pudesse gritar para despertarmos! Estou a ouvir-me a 
gritar dentro de mim, mas já não sei o caminho da minha vontade para a minha 
garganta. Sinto uma necessidade feroz de ter medo de que alguém possa bater 
àquela porta. Por que não bate alguém à porta? Seria impossível e eu tenho 
necessidade de ter medo disso, de saber de que é que tenho medo... Que 
estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz… Parte de mim 
adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo... Já 
não sei em que parte da alma é que se sente... Puseram ao meu sentimento do 
meu corpo uma mortalha de chumbo... Para que foi que nos contastes a vossa 
história? 
SEGUNDA — Já não me lembro... Já mal me lembro que a contei... Parece 
ter sido já há tanto tempo!... Que sono, que sono absorve o meu modo de olhar 
para as coisas!... O que é que nós queremos fazer? o que é que nós temos ideia 
de fazer? — já não sei se é falar ou não falar... 
PRIMEIRA — Não falemos mais. Por mim, cansa-me o esforço que fazeis 
para falar... Dói-me o intervalo que há entre o que pensais e o que dizeis... A 
minha consciência bóia à tona da sonolência apavorada dos meus sentidos pela 
minha pele... Não sei o que é isto, mas é o que sinto... Preciso de dizer frases 
confusas um pouco longas, que custem a dizer... Não sentis tudo isto como uma 
aranha enorme que nos tece de alma a alma uma teia negra que nos prende? 
SEGUNDA — Não sinto nada... Sinto as minhas sensações como uma coisa 
que se sente... Quem é que eu estou sendo?... Quem é que está falando com a 
minha voz?... Ah, escutai,.. 
PRIMEIRA e TERCEIRA — Quem foi? 
SEGUNDA — Nada. Não ouvi nada... Quis fingir que ouvia para que vós 
supusésseis que ouvíeis e eu pudesse crer que havia alguma coisa a ouvir... Oh, 
que horror, que horror íntimo nos desata a voz da alma, e as sensações dos 
pensamentos, e nos faz falar e sentir e pensar quando tudo em nós pede silêncio 
e o dia e a inconsciência da vida... Quem é a quinta pessoa neste quarto que 
estende o braço e nos interrompe sempre que vamos a sentir? 
PRIMEIRA — Para quê tentar apavorar-me? Não cabe mais terror dentro 
de mim... Peso excessivamente ao colo de me sentir. Afundei-me toda no lodo 
morno do que suponho que sinto. Entra-me por todos os sentidos qualquer 
coisa que nos pega e nos vela. Pesam as pálpebras a todas as minhas sensações. 
Prende-se a língua a todos os meus sentimentos. Um sono fundo cola umas às 
outras as ideias de todos as meus gestos. Por que foi que olhastes assim?... 
TERCEIRA (numa voz muito lenta e apagada) — Ah, é agora, é agora... 
Sim, acordou alguém... Há gente que acorda... Quando entrar alguém tudo isto 
acabará... Até lá façamos crer que todo este horror foi um longo sono que fomos 
dormindo... É dia já. Vai acabar tudo... E de tudo isto fica, minha irmã, que só 
vós sois 
 feliz, porque acreditais no sonho… 
SEGUNDA — Por que é quemo perguntais? Porque eu o disse? Não, não 
acredito .. 
Um galo canta. A luz, como que subitamente, aumenta. As três veladoras 
quedam-se silenciosas e sem olharem umas para as outras. 
Não muito longe, por uma estrada, um vago carro geme e chia. 
 
 
Sobre o Autor: 
Fernando Antonio Nogueira Pessoa (1888-1935) nasceu em 
Lisboa, partindo, após o falecimento do pai e o segundo 
casamento da mãe, para África do Sul. Freqüentou várias escolas, 
recebendo uma educação inglesa. Regressa a Portugal em 1905 
fixando-se em Lisboa, onde inicia uma intensa atividade literária. 
Simpatizante da Renascença Portuguesa, corta com ela e em 
1915, com Mário de Sá-Carneiro, Almada Negreiros e outros, 
esforça-se por renovar a literatura portuguesa através da criação 
da revista Orpheu, veículo de novas idéias e novas estéticas. Cria 
vários heterônimos (Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo 
Reis, Bernardo Soares, etc.), assinando as suas obras de acordo 
com a personalidade de cada heterônimo. Colabora em várias 
revistas, publica em livro os seus poemas escritos em inglês e, em 
1934, ganha o concurso literário promovido pelo Secretariado de 
Propaganda Nacional, categoria B, com a obra Mensagem, que 
publica no mesmo ano. Faleceu prematuramente em 1935, 
deixando grande parte da sua obra ainda inédita. É considerado 
um dos maiores poetas portugueses. 
 
 
Cronologia: 
1888 - A 13 de Junho nasce Fernando António Nogueira Pessoa 
no Largo de São Carlos nº 4, 4º Esq. em Lisboa. 
1893 - Morre com 43 anos o pai de Fernando Pessoa - Joaquim 
de Seabra Pessoa 
1895 - A mãe de Fernando Pessoa - Maria Madalena Pinheiro 
Nogueira Pessoa - casa, por procuração, com João Miguel Rosa - 
cônsul interino em Durban - África do Sul. 
19 A 26 de Julho escreve Fernando Pessoa a sua primeira quadra 
À minha querida mamã. 
1896 - A família parte para Durbam. 
1896-1904 - Fernando Pessoa faz os seus estudos primários e 
secundários em Durbam. 
1905 - Fernando Pessoa regressa sozinho a Lisboa, a bordo do 
navio alemão Herzog, para se matricular no Curso Superior de 
Letras que abandona um ano depois. 
1907 - Fernando Pessoa funda a Empresa Íbis - Tipografia Editora 
- Oficinas a Vapor - que durou escassos meses. 
1908 - Fernando Pessoa inicia a sua atividade como 
"correspondente estrangeiro" 
1912 - Colabora na revista A Águia. 
1913 - Conhece Mário de Sá-Carneiro e José de Almada 
Negreiros. Escreve a poesia Pauis. 
1914 - Primeiros poemas dos seus heterônimos Alberto Caeiro, 
Álvaro de Campos e Ricardo Reis. 
1915 - Publicação dos dois números da revista Orpheu. 
1916 - Mário de Sá Carneiro suicida-se em Paris. 
1917 - É publicado o único número da revista Portugal Futurista. 
1920 - Conhece Ofélia a quem são destinadas as suas "Cartas de 
Amor". 
1921 - Início da publicação da revista Contemporânea onde 
Fernando Pessoa colabora. 
1924-1925 - Publicação dos cinco números da revista Athena 
dirigida por Fernando Pessoa e Ruy Vaz. 
1927 - Em Coimbra inicia-se a publicação da revista Presença 
onde Fernando Pessoa colaborará. 
1932 - Requer, em concurso documental, o lugar de 
conservador-bibliotecário do Museu-Biblioteca Conde de Castro 
Guimarães, em Cascais, no qual não foi provido. 
1934 - Publicação da Mensagem. 
A 31 de Dezembro a Mensagem recebe o prêmio da Secretaria 
da Propaganda Nacional. 
1935 - A 30 de Novembro Fernando Pessoa morre no Hospital de 
S. Luís dos Franceses onde tinha sido internado na véspera com 
uma cólica hepática. 
 
 
SONETOS 
SELECIONADOS 
 
 
 
 
 
 
Luís de Camões 
SONETOS SELECIONADOS – Camões 
 
• A fermosura desta fresca serra (1668 - soneto 136) 
• Ah! Minha Dinamene! Assi deixaste (1685-1668 - soneto 101) 
• Alma minha gentil, que te partiste (1595 - soneto 080) 
• Amor é um fogo que arde sem se ver (soneto 005) 
• Busque Amor novas artes, novo engenho (l595 - soneto 003) 
• Cá nesta Babilônia? donde mana (1616 - soneto 120) 
• Como quando do mar tempestuoso (1598 - soneto 043) 
• De vos me aparto, ó vida! Em tal mudança (1595 - soneto 057) 
• Enquanto quis Fortuna que tivesse (1595 - soneto 001) 
• Esta lascivo e doce passarinho (1595 - soneto 014) 
• Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades (1595 - soneto 092) 
• Na ribeira do Eufrates assentado (soneto 129) 
• O Céu, a terra, o vento sossegado (1616 - soneto 106) 
• O dia em que eu nasci, moura e pereça (1860 - v) 
• O tempo acaba o ano, o mês e a hora (1668 - soneto 133) 
• Pede o desejo, Dama, que vos veja (1595 - soneto 008) 
• Quando de minhas mágoas a comprida (soneto 100) 
• Sete anos de pastor Jacob servia (1595 - soneto 030) 
• Transforma-se o amador na cousa amada (1595 - soneto 020) 
• Vencido estáde amor meu pensamento (1685-1668 - soneto 145) 
 
 
136 
A fermosura fresca serra, 
e a sombra dos verdes castanheiros, 
o manso caminhar destes ribeiros, 
donde toda a tristeza se desterra; 
o rouco som do mar, a estranha terra, 
o esconder do sol pelos outeiros, 
o recolher dos gados derradeiros, 
das nuvens pelo ar a branda guerra; 
enfim, tudo o que a rara natureza 
com tanta variedade nos oferece, 
me está (se não te vejo) magoando. 
Sem ti, tudo me enoja e me aborrece; 
sem ti, perpetuamente estou passando 
nas mores alegrias, mor tristeza. 
 
 
 
 
101 
Ah! minha Dinamene! Assi deixaste 
quem não deixara nunca de querer-te? 
Ah! Ninfa minha! Já não posso ver-te, 
tão asinha esta vida desprezaste! 
Como já para sempre te apartaste 
de quem tão longe estava de perder-te? 
Puderam estas ondas defender-te, 
que não visses quem tanto magoaste? 
Nem falar-te somente a dura morte 
me deixou, que tão cedo o negro manto 
em teus olhos deitado consentiste! 
Ó mar, ó Céu, ó minha escura sorte! 
Que pena sentirei, que valha tanto, 
que inda tenho por pouco o viver triste? 
 
080 
Alma minha gentil, que te partiste 
tão cedo desta vida descontente, 
repousa lá no Céu eternamente, 
e viva eu cá na terra sempre triste. 
Se lá no assento etéreo, onde subiste, 
memória desta vida se consente, 
não te esqueças daquele amor ardente 
que já nos olhos meus tão puro viste. 
 E se vires que pode merecer te 
algüa causa a dor que me ficou 
da mágoa, sem remédio, de perder te, 
roga a Deus, que teus anos encurtou,que tão cedo de cá me leve a ver te, 
quão cedo de meus olhos te levou. 
 
 
 
 
005 
Amor é um fogo que arde sem se ver, 
é ferida que dói, e não se sente; 
é um contentamento descontente, 
é dor que desatina sem doer. 
 É um não querer mais que bem querer; 
é um andar solitário entre a gente; 
é nunca contentar se de contente; 
é um cuidar que ganha em se perder. 
É querer estar preso por vontade; 
é servir a quem vence, o vencedor; 
é ter com quem nos mata, lealdade. 
Mas como causar pode seu favor 
nos corações humanos amizade, 
se tão contrário a si é o mesmo Amor? 
 
 003 
 Busque Amor novas artes, novo engenho, 
para matar me, e novas esquivanças; 
que não pode tirar me as esperanças, 
que mal me tirará o que eu não tenho. 
 Olhai de que esperanças me mantenho! 
Vede que perigosas seguranças! 
Que não temo contrastes nem mudanças, 
andando em bravo mar, perdido o lenho. 
Mas, conquanto não pode haver desgosto 
onde esperança falta, lá me esconde. 
Amor um mal, que mata e não se vê. 
Que dias há que n'alma me tem posto 
um não sei quê, que nasce não sei onde, 
vem não sei como, e dói não sei porquê. 
 
 
 
 
120 
Cá nesta Babilónia, donde mana 
matéria a quanto mal o mundo cria; 
cá onde o puro Amor não tem valia, 
que a Mãe, que manda mais, tudo profana; 
cá, onde o mal se afina, e o bem se dana, 
e pode mais que a honra a tirania; 
cá, onde a errada e cega Monarquia 
cuida que um nome vão a desengana; 
cá, neste labirinto, onde a nobreza 
com esforço e saber pedindo vão 
às portas da cobiça e da vileza; 
cá neste escuro caos de confusão, 
/cumprindo o curso estou da natureza. 
Vê se me esquecerei de ti, Sião! 
 
043 
Como quando do mar tempestuoso 
o marinheiro, lasso e trabalhado, 
d'um naufrágio cruel já salvo a nado, 
só ouvir falar nele o faz medroso; 
e jura que em que veja bonançoso 
o violento mar, e sossegado 
não entre nele mais, mas vai, forçado 
pelo muito interesse cobiçoso; 
 Assi, Senhora eu, que da tormenta, 
de vossa vista fujo, por salvar me, 
jurando de não mais em outra ver me; 
minh'alma que de vós nunca se ausenta, 
dá me por preço ver vos, faz tornar me 
donde fugi tão perto de perder me. 
 
 
 
 
057 
 De vós me aparto, ó vida! Em tal mudança, 
sinto vivo da morte o sentimento. 
Não sei para que é ter contentamento, 
se mais há de perder quem mais alcança. 
Mas dou vos esta firme segurança 
que, posto que me mate meu tormento, 
pelas águas do eterno esquecimento 
segura passará minha lembrança. 
Antes sem vós meus olhos se entristeçam, 
que com qualquer cous' outra se contentem; 
antes os esqueçais, que vos esqueçam. 
Antes nesta lembrança se atormentem, 
que com esquecimento desmereçam 
a glória que em sofrer tal pena sentem. 
 
001 
Enquanto quis Fortuna que tivesse 
esperança de algum contentamento, 
o gosto de um suave pensamento 
me fez que seus efeitos escrevesse. 
Porém, temendo Amor que aviso desse 
minha escritura a algum juízo isento, 
escureceu-me o engenho co tormento, 
para que seus enganos não dissesse. 
Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos 
a diversas vontades! Quando lerdes 
num breve livro casos tão diversos, 
verdades puras são, e não defeitos... 
E sabei que, segundo o amor tiverdes, 
tereis o entendimento de meus versos! 
 
 
 
 
014 
 Está o lascivo e doce passarinho 
com o biquinho as penas ordenando; 
o verso sem medida, alegre e brando, 
espedindo no rústico raminho; 
o cruel caçador (que do caminho 
se vem calado e manso desviando) 
na pronta vista a seta endireitando, 
lhe dá no Estígio lago eterno ninho. 
Dest' arte o coração, que livre andava, 
(posto que já de longe destinado) 
onde menos temia, foi ferido. 
Porque o Frecheiro cego me esperava, 
para que me tomasse descuidado, 
em vossos claros olhos escondido. 
 
092 
Mudam se os tempos, mudam se as vontades, 
muda se o ser, muda se a confiança; 
todo o mundo é composto de mudança, 
tomando sempre novas qualidades. 
Continuamente vemos novidades, 
diferentes em tudo da esperança; 
do mal ficam as mágoas na lembrança,e do bem (se algum houve), as saudades. 
O tempo cobre o chão de verde manto, 
que já coberto foi de neve fria, e, enfim, 
converte em choro o doce canto. 
E, afora este mudar se cada dia, 
outra mudança faz de mor espanto, 
que não se muda já como soía. 
 
 
 
 
129 
Na ribeira do Eufrates assentado, 
discorrendo me achei pela memória 
aquele breve bem, aquela glória, 
que em ti, doce Sião, tinha passado. 
Da causa de meus males perguntado 
me foi: Como não cantas a história 
de teu passado bem, e da vitória 
que sempre de teu mal hás alcançado? 
Não sabes, que a quem canta se lhe esquece 
o mal, inda que grave e rigoroso? 
Canta, pois, e não chores dessa sorte. 
Respondo com suspiros: Quando cresce 
a muita saudade, o piedoso 
remédio é não cantar senso a morte. 
 
106 
O céu, a terra, o vento sossegado... 
As ondas, que se estendem pela areia... 
Os peixes, que no mar o sono enfreia... 
O nocturno silêncio repousado... 
O pescador Aónio, que, deitado 
onde co vento a água se meneia, 
chorando, o nome amado em vão nomeia, 
que não pode ser mais que nomeado: 
Ondas (dezia), antes que Amor me mate, 
torna-me a minha Ninfa, que tão cedo 
me fizestes à morte estar sujeita. 
Ninguém lhe fala; o mar de longe bate; 
move-se brandamente o arvoredo; 
leva-lhe o vento a voz, que ao vento deita. 
 
 
 
 
V 
O dia que nasci moura e pereça, 
Não o queira jamais o tempo dar, 
Não torne mais o mundo, e, se tornar, 
Eclipse nesse passo o Sol padeça. 
A luz lhe falte, o Sol se lhe escureça, 
Mostre o mundo sinais de se acabar, 
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, 
A mãe ao próprio filho não conheça. 
As pessoas pasmadas, de ignorantes, 
As lágrimas no rosto, a cor perdida, 
Cuidem que o mundo já se destruiu. 
Ó gente temerosa, não te espantes, 
Que este dia deitou ao mundo a vida 
Mais desventurada que jamais se viu. 
 
133 
O tempo acaba o ano, o mês e a hora, 
a força, a arte, a manha, a fortaleza; 
o tempo acaba a fama e a riqueza, 
o tempo o mesmo tempo de si chora. 
Tempo busca e acaba o onde mora 
qualquer ingratidão, qualquer dureza; 
mas neo pode acabar minha tristeza, 
enquanto não quiserdes vós, Senhora. 
O tempo o claro dia torna escuro, 
e o mais ledo prazer em choro triste; 
o tempo a tempestade em grã bonança. 
Mas de abrandar o tempo estou seguro 
o peito de diamante, onde consiste 
a pena e o prazer desta esperança. 
 
 
 
 
008 
Pede o desejo, Dama, que vos veja, 
não entende o que pede; está enganado. 
É este amor tão fino e tão delgado, 
que quem o tem não sabe o que deseja. 
Não há cousa a qual natural seja 
que não queira perpétuo seu estado; 
não quer logo o desejo o desejado, 
porque não falte nunca onde sobeja. 
Mas este puro afeito em mim se dana; 
que, como a grave pedra tem por arte 
o centro desejar da natureza, 
assim o pensamento (pola parte que 
vai tomar de mim, terreste [e] humana) 
foi, Senhora, pedir esta baixeza. 
 
100 
Quando de minhas mágoas a comprida 
maginação os olhos me adormece, 
em sonhos aquela alma me aparece 
que para mim foi sonho nesta vida. 
Lá nüa soïdade, onde estendida 
a vista pelo campo desfalece, 
corro par'ela; e ela então parece 
que mais de mim se alonga, compelida. 
Brado: Não me fujais, sombra benina! 
Ela (os olhos em mim cum brando pejo, 
como quem diz que já não pode ser), 
torna a fugir-me; e eu, gritando: Dina... 
antes que diga mene, alardo, e vejo 
que nem um breve engano posso ter. 
 
 
 
 
030 
Sete anos de pastor Jacob servia 
Labão, pai de Raquel, serrana bela; 
mas não servia ao pai, servia a ela, 
e a ela só por prémio pretendia. 
Os dias, na esperança de um só dia, 
passava, contentando se com vê la; 
porém o pai, usando de cautela, 
em lugar de Raquel lhe dava Lia. 
Vendo o triste pastor que com enganos 
lhe fora assim negada a sua pastora, 
como se a não tivera merecida; 
começa de servir outros sete anos, 
dizendo: —Mais servira, se não fora 
para tão longo amor tão curta a vida. 
 
020 
 Transforma se o amador na cousa amada, 
por virtude do muito imaginar; 
não tenho, logo, mais que desejar,pois em mim tenho a parte desejada. 
Se nela está minha alma transformada, 
que mais deseja o corpo de alcançar? 
Em si sòmente pode descansar, 
pois consigo tal alma está liada. 
Mas esta linda e pura semideia, 
que, como um acidente em seu sujeito, 
assi co a alma minha se conforma, 
está no pensamento como ideia: 
[e] o vivo e puro amor de que sou feito, 
como a matéria simples busca a forma. 
 
 
 
 145 
 
 Vencido está de Amor o mais que pode 
sujeita a vos servir 
oferecendo tudo 
Contente deste bem, 
ou hora em que se viu 
mil vezes desejando 
outra vez renovar. 
Com essa pretensão 
a causa que me guia 
tão estranha, tão doce, 
Jurando não seguir 
votando só por vós 
ou ser no vosso amor 
 
 
meu pensamento 
vencida a vida, 
 instituída, 
a vosso intento. 
Louva o momento, 
tão bem perdida; 
a tal ferida, 
seu perdimento. 
Está segura 
nesta empresa, 
honrosa e alta. 
Outra ventura, 
rara firmeza, 
achado em falta.

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